UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO TRÊS SANTAS DO POVO: UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE SANTIFICAÇÕES POPULARES EM MINAS GERAIS Simone Geralda de Oliveira Juiz de Fora 2008 UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO TRÊS SANTAS DO POVO: UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE SANTIFICAÇÕES POPULARES EM MINAS GERAIS Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião como requisito parcial à obtenção do título de doutora em Ciência da Religião por Simone Geralda de Oliveira. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Ayres Camurça Juiz de Fora 2008 TRÊS SANTAS DO POVO: UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE SANTIFICAÇÕES POPULARES EM MINAS GERAIS Simone Geralda de Oliveira Ao Junior, meu adorável companheiro! AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Marcelo Camurça, além do acompanhamento da pesquisa, agradeço pela confiança e respeito às minhas opções e estilo; Ao Junior meu marido, pela colaboração e carinho; À Prof.ª Ms Silvania de Oliveira Manso, pela leitura e correção do texto; À Prof.ª Ms Raquel Lima, que também estuda os santos, pelas trocas de materiais e ideias; Ao amigo e historiador Ademildo Ferreira, pela preciosa colaboração nas pesquisas de campo, agradecimento estendido ao Prof. Ms Erick Carvalho; À Prefeitura Municipal de Juiz de Fora, pela concessão de licença das atividades laborativas para aperfeiçoamento; Às amigas da Escola M. ‘Marília de Dirceu’, com quem divido as dores e delícias de lecionar no ensino fundamental; A todos os professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião – PPCIR/UFJF, particularmente a Antônio Celestino, pela atenção dispensada em vários momentos; Aos profissionais responsáveis pelos vários arquivos visitados e, carinhosamente, às pessoas que se dispuseram a compartilhar comigo sua fé, permitindo que suas crenças e opiniões se tornassem de conhecimento público. O que mais me impressiona não é a explosão da novidade religiosa, mas a permanente interação entre asas efêmeras e errantes e raízes estáveis e fixas na terra e no coração das pessoas. Carlos Rodrigues Brandão RESUMO Esta tese é um estudo sobre devoções a santas não canonizadas, ou seja, que foram santificadas pela crença popular a revelia da Igreja Católica, que são aqui denominadas santas do povo. As santificações populares são bem comuns no universo católico e remetem a uma prática existente desde o início do cristianismo. Para esta pesquisa foram selecionados três casos mineiros: Nhá Chica – “A Santa de Baependi”; Lola – “A Santa de Rio Pomba” e “Santa Palmyra”, de Juiz de Fora. O centro das investigações foi a perspectiva dos devotos, com destaque para os momentos de encontro dos mesmos, os rituais realizados em torno das santas do povo, as relações estabelecidas entre os devotos, destes com as santas e com demais sujeitos do meio onde as devoções se concretizam. Este estudo permite perceber ainda as novas formas de viver as devoções, que passaram por grandes transformações nos últimos anos, tornando-se um fenômeno urbano, permeado pelas inovações contemporâneas, reunindo pessoas de diferentes lugares e classes. Trata-se, sobretudo de uma análise antropológica sobre os paradigmas populares da santidade, como fenômenos socialmente construídos e contextualizados. RIASSUNTO Questa tesi è uno studio sulle devozioni alle sante non canonizzate, ossia, que furono santificate dalla credenza popolare senza il conoscimento della Chiesa Cattolica, che sono qui denominate “sante del popolo”. Le santificazioni popolari sono abbastanza comuni nell’universo cattolico e rimettono a una pratica esistente dall’inizio del cristianesimo. Per questa ricerca furono selezionati tre casi mineiros: Nhá Chica – “La santa di Bapendi”; Lola – “La santa di Rio Pomba” e “Santa Palmira” di Juiz de Fora. Il centro delle investigazioni fu la prospettiva dei devoti, distaccando i suoi momenti di incontro, i rituali realizzati intorno alle “sante del popolo”, i rapporti stabiliti fra i devoti, di questi con le sue sante e con gli altri soggetti del mezzo dove le devozioni si concretizzano. Questo studio permette ancora di osservare le nuove forme di vivere le devozioni che ebbero grandi transformazioni negli ultimi anni diventando un fenomeno urbano, permeato dalle innovazioni contemporanee, riunendo persone di diversi luoghi e classi. Si tratta sopratutto di un’analisi antropológica sui paradigmi popolari della santità, come fenomeni socialmente costruiti e contestualizzati. SUMÁRIO 1 - INTRODUÇÃO ............................................................................................................. .... 11 2 - MANIFESTAÇÕES DO SAGRADO CONTEMPORÂNEO ....................................... .... 31 2.1: Um Encontro entre tradição, a Modernidade e a Pós-Modernidade .................... 31 2.2: Catolicismo Popular: revisitando alguns conceitos . ........................................ .... 40 3 - A PRESENÇA DOS ESCOLHIDOS DE DEUS NO DEVIR HISTÓRICO-CULTURAL ............................................................................................................................................. .....47 3.1: Sobre santos e Santidade ..................................................................................... 47 3.2: Apontamentos sobre a devoção aos santos no Brasil ....................................... .... 56 3.3: Santificações populares: algumas definições primárias ................................... .... 68 4 - AS SANTAS DO POVO: TRÊS CASOS MINEIROS EM DESTAQUE – LOLA, PALMYRA E NHÁ CHICA....................................................................................................82 4.1: Narrativas em torno de Lola (1911–1999): A “Santa de Rio Pomba” . ........... .... 86 4.1.1: Narrativas sobre o martírio e a santidade de Lola ............................. .... 90 4.1.2: Sinais da santidade de Lola ................................................................ .... 93 4.1.3: Lola apresentada pela Imprensa........................................................... 104 4.1.4: Os devotos e os rituais para “Santa Lola” ........................................ ....113 4.2: Palmyra Pessoa: A “Santa de Juiz de Fora” ..................................................... ...123 4.2.1: Construções e Representações sobre Santa Palmyra. ........................ ...125 4.2.2 - Cultos a Santa Palmyra: Um túmulo como Santuário para preces, oferendas e peregrinações ........................................................................... ....134 4.3: Nhá Chica (1810-1895): A “mãe dos pobres” e “Santa de Baependi” ............ ...145 4.3.1: Narrativas sobre os milagres de Nhá Chica ....................................... ...151 4.3.2: Sobre os devotos e os lugares de honras à Santa Nhá Chica ............. ...160 4.3.3: Missas, orações, festas e peregrinações: rituais para a Santa de Baependi ..................................................................................................................... ....168 5 - BREVE ESPAÇO PARA ENCONTRO E COMPARAÇÕES ENTRE AS SANTAS DO POVO ................................................................................................................................. ....195 6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... ...217 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. ...229 ANEXOS: ............................................................................................................................. 249 1) Anexos Gerais ..................................................................................................... ...249 2) Anexos referentes à Santa Lola ........................................................................... ...251 3) Anexos referentes à Santa Palmyra ..................................................................... ...254 4) Anexos referentes à Santa Nhá Chica ................................................................. ...256 11 INTRODUÇÃO O estudo de temas relacionados à religião faz parte de minha formação acadêmica, sendo objeto de meus interesses antes mesmo do ingresso no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião-PPCIR/UFJF. Foi durante os cursos de especialização e mestrado que me dediquei mais concentradamente, explorando suas possibilidades teórico-metodológicas ao 1 estudo da religião, a partir do caso do Espiritismo. Ainda que o estudo do Espiritismo em sua relação com as outras religiões tenha me levado a estudar um pouco sobre as mesmas, inclusive o catolicismo, a mudança de foco em meus interesses ocorreu de forma lenta, não planejada e inspirada inicialmente pela disciplina Campo Religioso Brasileiro, oferecida pelo PPCIR/IFJF durante o curso de mestrado, quando aprendi um pouco mais sobre a diversidade religiosa do Brasil. Encerrada esta etapa de minha formação, mantive-me envolvida com os temas do catolicismo mediante as atividades realizadas no Núcleo de Estudos de História da Igreja de Juiz de Fora - núcleo regional do CEHILA - Centro de Estudos de História da Igreja Latino- Americana-, especialmente durante o ano de 2002, ocasião em que tomamos como meta para o Núcleo pesquisar sobre festas e religião. Tive então a oportunidade de me dedicar à 2 pesquisa da folia de reis em Juiz de Fora , e pude conviver temporariamente com os integrantes do grupo Três Reis Magos do Oriente, presenciando, bem de perto, uma singular demonstração de fé, devoção e total entrega ao culto dos “Santos Reis”, como dizem os devotos. Tal mergulho no campo das devoções populares de forma direta e intensa foi extremamente significativo e me despertou para uma realidade que eu julgava pertencer a outro tempo e lugar, compatível apenas, com as pequenas cidades do interior, lugar onde a modernidade ainda não tivesse estendido seus domínios, talvez por uma grave ingenuidade intelectual minha. A partir desta experiência tornei-me mais atenta a outros eventos 1 Como produção final para o curso de Especialização em História do Brasil (ICHL/UFJF) produzi a monografia: A fé raciocinada na “Atenas de Minas”: Os primeiros anos do Espiritismo em Juiz de Fora (1880-1930), Juiz de Fora: 1998; ao final do curso de mestrado (PPCIR/UFJF) a dissertação A Fé Raciocinada Na “Atenas de Minas”: Gênese e Consolidação do Espiritismo em Juiz de Fora e Algumas Repercussões para Contemporaneidade. Juiz de Fora: 2001. 2 Pesquisa que resultou no artigo A bandeira pede passagem’: Folia de Reis – fé e festar entre a tradição e a modernidade, in: PEREIRA, Mabel Salgado & CAMURÇA, Marcelo Ayres (orgs.), Festa e religião: imaginário e sociedade em Minas Gerais, pp. 7-22. 2000. 12 Similares que ocorrem em Juiz de Fora. Aqui as procissões ainda acontecem em meio das 3 avenidas - apesar do constante vai e vem dos carros e das reclamações dos não participantes - , sempre encontramos folhetos de ofertas de ônibus para romarias espalhadas por vários pontos das cidades (especialmente nos postes de iluminação pública), em todos os anos acontece distribuição de rosas vermelhas na Igreja de Santa Rita no dia a ela dedicado; de chaves moldadas em cera na Igreja de São Pedro por ocasião de sua festa; pãezinhos de Santo Antônio; raminhos bentos, no Domingo de Ramos; além da devoção e santificações não oficiais, como o caso de Palmyra, uma das santas do povo que se tornou meu objeto de investigação. A partir destas primeiras observações locais ampliei o olhar e passei a interessar-me 4 mais pelas pesquisas e notícias sobre as aparições de Nª Senhora nos mais diversos lugares, sobre as grandes romarias e peregrinações que ocorrem no Brasil e em várias partes do mundo que conhecemos, a grande divulgação das novas e várias canonizações e beatificações realizadas pela Igreja Católica nos últimos tempos, especialmente a de Madre Paulina, primeira santa brasileira, canonizada no ano de 2002 e a de Frei Galvão em 2007. Em meio a tantos eventos ligados ao campo católico considero que a questão das canonizações realizadas pelo Papa João Paulo II e a mobilização em torno delas, seja de apoio ou de questionamentos, colocou o tema da santidade na ordem do dia, fazendo-o constar tanto nos púlpitos quanto nas conversas cotidianas, colunas jornalísticas e produções acadêmicas, 5 haja vista o crescente volume de textos sobre santos e devoções tanto nas bancas de revistas e 6 jornais quanto nas instituições de ensino e pesquisa científicas. 3 Algumas informações sobre estas relações aparecem no texto de Arnaldo Érico HUFF Jr., Em outros tempos e lugares: convergências de imagens e sentidos em via Sacra de Juiz de Fora (2007). 4 Vários estudos foram publicados nos últimos anos sobre Nª Senhora, muitos versam sobre as ‘aparições’, cito: Tânia Mara Campos ALMEIDA: Vozes da mãe do silêncio (2003); Leila do Carmo BARRETO & Marcelo Ayres CAMURÇA: As Aparições da Virgem Maria m Mercês (MG): sua vidente, ‘apóstolos’, romeiros e a Igreja Católica (2003); Marcelo Ayres CAMURÇA: As muitas faces das devoções: das romarias e dos santuários ao turismo, ao marketing religioso e aos altares virtuais (2006); Roberta Bivar CARNEIRO CAMPOS: Nossa Senhora andou por Juazeiro do Norte: explorando critérios de validação dos milagres e ‘causos’ do Juazeiro do Norte (CE) (2003); Elisabeth CLAVERIE. La vierge, le désordre, la critique: les apparitions de la vierge à l’âge de la science (1990), Apparitions et disparitions. Le constitution d’une identité nationele en Bosnie Herzegovine (2002), La vierge en action (2005); Cecília Loreto MARIZ, Aparições da Virgem e o Fim do Milenio (2002), Rainha dos Anjos: a Aparição de Nossa Senhora m Itaipu, Niteroi (RJ) (2003); Mísia Lins REESINK, Nossa Senhora de Angüera, Rainha da Paz e do mundo católico contemporâneo (2003); Rita Laura SEGATO, Los dos Vírgenes Brasileñas: local y global em el culto mariano (1999); Carlos Alberto STEIL: Aparições Marianas contemporâneas e carismatismo católico (2001b), As Aparições Marianas na história recente do Catolicismo (2003c). 5 Ver: Revista Veja ed. 1680 (20/12/200) e (31/10/2001), ed. 1997 (28/02/2007); Revista Galileu nº 149 (dez./2003); Revista Época, ed.188 (24/12/2001), entre outras. 6 Entre as produções científicas recentes encontramos muitos estudos sobre o tema das santificações não-oficiais, entre eles destaco: Marília SCHNEIDER: Memória e História: (Antonino da Rocha Marmo) – Misticismo, santidade e milagre em São Paulo (2001); Oscar Calavia SÁEZ: Fantasmas Falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro (1996); Eliane Tânia M. FREITAS: Violência e Sagrado: O que no criminoso anuncia o 13 Tanto alvoroço é justificado, afinal, sob a direção do Papa João Paulo II a Igreja Católica voltou-se, mais uma vez, para a questão da santidade e da valorização da devoção 7 aos santos, realizando 482 canonizações e afirmando a santidade como “horizonte para que 8 deve tender todo o caminho pastoral”. Somado a esta proposta João Paulo II preocupou-se ainda em reconhecer a santidade como um elemento dinâmico e, um objetivo a ser alcançado pelas mais diferentes pessoas, manifestado de maneiras igualmente diferenciadas sem, é claro, afastar-se do necessário aval da Igreja, como percebemos no trecho a seguir transcrito da Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte (2001): este ideal de perfeição não deve ser objeto de equívoco vendo nele um caminho extraordinário, percorrível apenas por algum « gênio » da santidade. Os caminhos da santidade são variados e apropriados à vocação de cada um. Agradeço ao Senhor por me ter concedido, nestes anos, beatificar e canonizar muitos cristãos, entre os quais numerosos leigos que se santificaram nas condições ordinárias da vida. É hora de propor de novo a todos, com convicção, esta « medida alta » da vida cristã ordinária: toda a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nesta direção. Mas é claro também que os percursos da santidade são pessoais e exigem uma verdadeira e própria pedagogia da santidade, capaz de se adaptar ao ritmo dos indivíduos; deverá integrar as riquezas da proposta lançada a todos com as formas tradicionais de ajuda pessoal e de grupo e as formas mais recentes oferecidas pelas associações e movimentos reconhecidos pela Igreja. (NMI, nº 31 – grifos nossos) O discurso e as ações de João Paulo II trouxeram para o presente a questão da santidade antes circunscrita a um distante passado histórico do catolicismo, por obra desta mesma Igreja seja como forma de manter a constante tutela sobre seu rebanho, seja para adequar-se aos contextos históricos vividos. Em verdade, a nova postura do Vaticano em relação às canonizações, a invasão dos santos nos diversos ambientes e espaços ditos seculares são apenas indicativos das Santo? (2000); Maria Cristina Leite PEIXOTO: “Santos da porta ao lado”: os caminhos da santidade contemporânea católica (2006); Iara Toscano CORREA: João Relojoeiro: A construção de um santo no imaginário popular – Uberlândia/MG (1956-2002) (2003); Maria de Cáscia Nascimento FRADE: Santa de Casa – A devoção a Odetinha no cemitério S. João Batista (1987); Eloísa MARTIN: En torno a la tumba de Gilda. Fanáticos devotos de una cantante popular da Argentina (2003); Maria Julia CARROZZI: Carlos Gardel, el patrimonio que sonrie (2003), esses dois últimos trabalhos remetem à ‘santidade’ num sentido mais ampliado. O tema da santidade ‘oficial’ também tem ocupado espaço entre as pesquisas, ver: Jacques LE GOFF: São Francisco de Assis (2001); Elan PIMENTEL: Um estudo sobre a devoção a São Longuinho (2005); Renata de Castro MENEZES: A Dinâmica do Sagrado: Rituais, sociabilidade e Santidade num Convento do Rio de Janeiro (2004); Raquel dos Santos Sousa LIMA: A Igreja Católica e o discurso sobre a mulher no século XIX: questões de gênero na santidade de Rita de Cássia. (2005), “Oh! Que imitem a Santa Rita de Cássia!” As mulheres de nosso tempo: representações e práticas da devoção em Viçosa (MG), 2003-2006 (2006). 7 Dados disponíveis em . 8 Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte do Sumo Pontífice João Paulo II ao Episcopado, ao Clero e aos Fiéis no Termo do Grande Jubileu do Ano 2000, nº 30, disponível no endereço . 14 transformações ocorridas no campo do catolicismo contemporâneo que, segundo Steil (1996 e 9 2001b) tem como traços mais significativos a revalorização da “mística” e do “milagre”. Como parte desse processo, presenciamos o crescimento do panteão dos santos e beatos oficialmente reconhecidos, bem como o aumento de organizações de devotos em torno de novos processos de canonizações, em demonstrações públicas de fé e crença nos santos, sejam esses canônicos ou não, e pela presença, quase constante, dos santos e temas a eles relacionados não apenas nos seus lugares tradicionais, como já mencionado, mas em variados 10 veículos da mídia escrita, falada, televisiva e on line , essa última a vedete dos dias atuais nos quesitos divulgação rápida, visibilidade nos mais diversos grupos sociais, verdadeiro sinônimo de modernidade. A forte presença dos santos entre nós nos permite dizer que eles “estão na moda, viraram fashion”, para usar a expressão da antropóloga e estudiosa da religião Renata 11 Menezes. E viraram mesmo! Estão estampados em camisas, casacos, ornamentam joias e bijuterias, cintos, bolsas e demais acessórios. Passeiam por shoppings, ganham cada vez mais visibilidade em vitrines, sites e programas de TV, com a desenvoltura de quem ocupa o seu 12 lugar , indicando inovações no trato com o religioso, característico do contexto contemporâneo. A esse respeito, analisando as novas configurações da religião, Geertz (2001) afirma que ao procuramos nesse “nosso mundo sintonizado na mídia”, o que há nele de religioso, não 9 Entre os estudos sobre as novas faces do catolicismo, ver: CAMURÇA (2005; 2006; 2007); CARRANZA (2004; 2005) e STEIL (1998; 2001b; 2001c; 2003b). 10 Sobre a presença e uso da mídia on line como meio de divulgação e realização de rituais ‘virtuais’ em torno dos santos, novos e tradicionais ver: Élan PIMENTEL (2005); Mabel Salgado PEREIRA, O Culto aos santos católicos no Brasil: tradição novas combinações (2005); Emerson J. S. da SILVEIRA, Católico.com: A presença dos carismáticos na Internet (MIMEO); Marcelo A. CAMURÇA, As muitas faces das devoções: das romarias e santuários ao “turismo”, marketing religioso e altares virtuais, (2005) e Um tradicionalismo na linguagem virtual? : O catolicismo carismático-midiático, (2007). 11 Renata Menezes é antropóloga, dedicada também ao estudo das devoções. Entre suas produções estão: Devoção, Diversão e Poder. Um estudo antropológico sobre a festa da Penha (Dissertação de mestrado, UFRJ – 1987) e A Dinâmica do Sagrado: Rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro (2004). A citação apresentada no texto faz parte da reportagem A nova onda dos santos, do jornalista Ivan P. F. Mengozzi, disponível em , ou Revista ÉPOCA, 28/05/2005. 12 Em maio de 2005 a TV Panorama (em Juiz de Fora), no programa Panorama Revista exibiu uma longa matéria sobre os santos e a moda, apresentando desfiles onde eram divulgadas as roupas e acessórios, ornamentados por imagens de santos, destacando a grande aceitação e venda destes produtos. Outro exemplo de exposição dos santos foi protagonizado pelo BBB/2005 Jean, que passou boa parte do tempo de seu confinamento na casa do programa vestindo camisas com imagens de São Jorge. É digno de nota que a TV tem se transformado em vitrine para divulgar as devoções, até aos “santos do povo”. Mesmo não encerrando uma novidade, a frequência tem sido maior. A título de ilustrar, cito algumas das novelas globais que destacaram devoções, não apenas em momentos de dificuldade das personagens, mas como algo constitutivo do cotidiano: A devoção a São Francisco esteve em: -Como uma onda; a Santa Rita em:- Mulheres Apaixonadas, Laços de Família, Páginas da Vida; à Santa Izildinha: - Coração de Estudante; à Nª Senhora Aparecida: -A Padroeira (nesse caso a devoção foi o tema central); e para encerrar: -Desejo Proibido, onde uma Virgem de Pedra foi cultuada, sendo objeto de disputa (e manipulação) de políticos, religiosos e devotos da fictícia cidade mineira Passa Perto. 15 vemos “uma luminosa linha divisória entre as preocupações com o eterno e as do cotidiano, aliás, praticamente não vemos linha divisória alguma” (2001:153). Acrescenta ainda que na atualidade, a religião não se apresenta como algo “particularmente privado – encoberto, talvez, ou sub-reptício, mas dificilmente privado”. (Geertz, 2001:151) As discussões a respeito do cenário religioso contemporâneo serão retomadas no decorrer deste texto, ainda assim considero necessário antecipar que as transformações identificadas promoveram, dentre outras coisas, novas configurações para as devoções aos santos, que é tema central nesta tese, mesmo que eu tenha optado pelo estudo das santificações não oficiais, ou seja, as devoções relacionadas aos “santos do povo”, conforme expressão apresentada por Brandão (1980:207), e que vem designar aqueles santos que são reconhecidos como tais pela crença e devoção populares, sem o reconhecimento e/ou 13 aprovação por parte da Igreja Católica. As personagens selecionadas para este estudo são: “Santa Nhá Chica” (1810-1895), cultuada principalmente na cidade de Baependi, Lola (1911-1999) – a “Santa de Rio Pomba”; e “Santa Palmyra” (1861-1877), cultuada em Juiz de Fora. Tendo em vista que investigo três casos de santidades femininas escolhi chamá-las Santas do Povo, como consta no título da tese. Mediante as pesquisas busquei identificar como são construídas as santidades populares, quais são os sinais da santidade dos eleitos, como as devoções são vividas e o que temos como resultante destes fenômenos, no que tange às relações sociais, às construções e modificação dos espaços, à organização do tempo, entre outros. Para tanto, privilegiei os momentos dos cultos, os encontros em torno das santas do povo, os rituais e as falas dos devotos sem, no entanto, abrir mão da análise de documentos cartorários, jornais e demais fontes. É sabido que os casos de santificações populares não representam exceções no mundo católico, tampouco refletem uma característica exclusivamente contemporânea. Em verdade era uma prática comum no início do cristianismo, quando cabia aos fiéis a iniciativa e legitimação do culto aos santos. Somente a partir do séc. XII a Igreja Católica alterou esta situação, criando novas regras para o reconhecimento da santidade e atribuindo apenas à 13 Em alguns casos, embora a Igreja institucional não reconheça alguns dos ‘“santos do povo”’ efetivamente como ‘santos católicos’, alguns membros atuantes desta mesma Igreja trabalham por tal reconhecimento junto ao Vaticano e celebram com o povo os seus ‘santos não canonizados’. Como exemplo para o exposto, mantendo-me entre os casos selecionados para minhas pesquisas, ressalto Nhá Chica, que foi personagem de estudos e publicações de padres atuantes na região de Baependi e Caxambu, cidades onde ela viveu e realizou os seus ‘milagres’. Entre estas publicações cito as obras do Mons. José do Patrocínio LEFORT: Francisca de Paula de Jesus Isabel – Nhá Chica e de Frater Jacinto PALAZZOLO: A Pérola Escondida: Nhá Chica, a Serva de Deus. 16 14 Santa Sé o privilégio de reconhecer, entre os fiéis, aqueles que poderiam ser considerados santos. (Mott, 1994:14). Na prática, apesar de todo empenho da Igreja, muitos são os santos eleitos pelo povo e reverenciados com festas, oferendas, romarias e preces. De acordo com Lopes (...) os segmentos populares de devotos, em todas as épocas, nunca aceitaram passivamente a definição clerical de santidade e a institucionalização das devoções. Muitos dos santos canonizados pela Igreja e figurados na imagética religiosa nem chegaram a ser cultuados ou difundidos amplamente, enquanto outros se tornaram cultuados e aceitos institucionalmente a partir de um movimento iniciado desde a experiência popular. (Lopes, 2003:07) No que se refere ao Brasil esta prática é bastante comum. Discorrendo sobre a santidade no Brasil Colônia, Luis Mott nos informa que desde a época do descobrimento, até nossos dias, “centenas e centenas de homens e mulheres viveram ou morreram com fama de santidade. Raro é o cemitério ou igreja antiga onde não haja pelo menos um túmulo ou lápide, alvo de devoção popular (...).” (Mott, 1994:3) No Estado de Minas Gerais, onde se localizam as devoções selecionadas para esta pesquisa, encontramos vários outros casos de santificações populares. Para termos uma noção melhor dessa realidade, apresento alguns exemplos de santos e santas do povo cultuados em Minas, juntamente com o mapa do Estado para localização de algumas regiões citadas. Figura 1- Mapa de Minas Gerais Fonte: 14 Uma mudança lenta, que fez parte de um longo processo de centralização iniciado já no séc. XI, ao qual se integra também a instituição dos ‘Processos de Canonização’, que são investigações sobre os candidatos a santos, portanto, instrumentos reguladores da seleção dos santos. André VAUCHEZ. Santidade, p. 297, 1987. 17 Esta lista provavelmente não contempla todos os casos de “santos do povo” de Minas, mas indica o quanto este fenômeno é representativo. Inicio-a com o Padre Alderigi (1895- 1977), atuante em Santa Rita de Caldas por 50 anos, onde é cultuado como santo; Francisca de Paula de Jesus (1808-1895), a Nhá Chica, cultuada especialmente em Baependi, em São 15 João Del Rey (cidade onde nasceu), e nas demais cidades da região do Circuito das Águas ; Isabel Cristina M. Campos (1962-1982), morta por resistir a um estupro, nascida em 16 Barbacena, lugar onde é cultuada ; Lola - Florípedes Dornelas de Jesus (1913-1999), a 17 18 "Santa de Rio Pomba ”; Santa Palmyra, cultuada principalmente em Juiz de Fora ; Padre 19 Francisco de Paula Victor, o "anjo tutelar de Três Pontas" (1827-1905) ; Padre Eustáquio de 20 Belo Horizonte, fundador dos Padres dos Sagrados Corações ; Vicente de Paula, mais conhecido como Lázaro de Freitas, um portador de lepra que viveu escondendo-se e isolado 21 do convívio social, tendo falecido por volta de 1950, originário do sul de Minas ; João Relojoeiro de Uberaba, cidade em que viveu e morreu, em 1956, e é cultuado por ter sofrido 22 uma morte injusta, violenta e dolorosa, foi santificado pelo povo da região , a Irmã/Beata Germana Maria da Purificação que viveu em Caeté e apresentava, entre outros, o fenômeno de extática - ficando imóvel, na posição de crucificada, em geral da meia noite de quinta-feira 23 até a noite de sexta-feira -, a Mártir Filomena de Araxá que foi enterrada viva fora dos limites da cidade numa época de epidemias, ganhou fama de santidade por seu martírio e a 24 seu túmulo acorrem inúmeros devotos. Durante o primeiro levantamento sobre os “santos do povo” pesquisei jornais, revistas, listas de trabalhos divulgadas pelas diversas universidades em suas bibliotecas – 15 Objeto de estudos desta tese, personagens de livros (ver bibliografia), citada entre os santos populares Revista Época, edição 188, 24/12/2001. 16 Para mais informações ver: Maria Cristina Leite PEIXOTO: “Santos da porta ao lado”: os caminhos da santidade contemporânea católica, 2006. 17 Jornal O Imparcial, 25/04/1999, Rio Pomba. 18 Objeto dessa pesquisa e citada por MOTT, Santos e Santas no Brasil Colonial, 1994, p. 3, como exemplos de santificações não oficiais. 19 A canonização do Servo de Deus, disponível no endereço: . 20 Citado por Luis MOTT, op. cit., p. 3; também objeto de estudo de PEIXOTO, op. cit., 2006. 21 Citado na biografia de Marco Aurélio Rodrigues Dias, disponível no endereço , acessado em 02/2003. 22 Ver: Iara Toscano CORREA: João Relojoeiro: A construção de um santo no imaginário popular – Uberlândia/MG (1956-2002), 2003, dissertação de mestrado/UFU. 23 Objeto de estudo de Simone Santos de Almeida SILVA: dissertação de mestrado (PPCIR/UFJF): Religião e condição feminina no início do século XIX: Controvérsias em torno da Irmã Germana, (2003). 24 Ver: Maria Clara Tomaz MACHADO: Ainda se benze em Minas Gerais, 2007, pp.4 e 5. 18 convencionais e virtuais -, trabalhos apresentados em congressos – especialmente de história e 25 ciências sociais - mas contei, sobretudo, com a colaboração de informantes. Há entre os “santos do povo” citados, nomes que só chegaram a meu conhecimento após o início desta pesquisa, como os casos da Mártir Filomena e da Irmã Germana, bem como certamente existem outros sobre os quais não tenho notícia. Por outro lado, muitos deles são bem conhecidos, citados em jornais, revistas, em obras literárias, em textos veiculados na internet, sendo até candidatos ao reconhecimento oficial da Igreja Católica. Dois casos em especial revelam um dado interessante das santidades populares, refiro-me à Mãe Filomena e ao Lázaro. A primeira seria cultuada em um lugarejo próximo à cidade de Ubá e fui informada de sua existência por uma ex-aluna, segundo ela não devota, que me presenteou com um panfleto contendo Orações para Mãe Filomena. Tentei, em vão, investigar sobre a mesma. Viajei até a cidadezinha, acompanhada de minha aluna/informante, mas, não conseguimos nenhuma informação. Ninguém sabia nada sobre ela no lugar. O seu túmulo também não foi identificado, tampouco conseguimos informações por outras vias. Registros documentais nem puderam ser consultados posto que, sabíamos apenas o codinome ‘Mãe Filomena’. Quanto ao caso de Lázaro, a princípio cultuado no Sul de Minas, é citado pelo artista plástico Marco Aurélio, também devoto de Nhá Chica. Fui até São Lourenço, cidade onde ficaria seu túmulo, mas não o encontrei, tampouco encontrei outros devotos de Lázaro, cuja imagem só foi encontrada em algumas das pinturas do citado artista. A respeito do túmulo de Lázaro, parte importante na narrativa construída sobre o mesmo, também é um mistério. A não localização do túmulo de Lázaro é muito significativa para sua história e pode ser justificada porque, de acordo com a narrativa conhecida, os devotos portadores de doenças de pele obteriam a cura por intermédio do contato com fragmentos do túmulo. Podemos supor que exatamente esta crença justifique o 26 desaparecimento do túmulo, destruído em virtude da crença em seu poder taumaturgo. Casos como os de Lázaro e Mãe Filomena são bem comuns. As santificações populares nem sempre são admitidas pelos devotos com naturalidade, em verdade, descobri, com certa surpresa, que estas devoções se tornam mais visíveis em cidades de médio a grande 25 No período de 2000 a 2007 lecionei em faculdades do leste de Minas, da Zona da Mata e do Sul de Minas, o que me fez um tanto ‘cigana’, e permitiu descobrir novos casos de santificações. Para tanto contei com a colaboração ‘voluntária’ de alguns alunos. 26 A narrativa a que tive acesso informa que o túmulo de Lázaro ficava em um lugar fora do cemitério, no local onde ele passou a vida, longe do contato com as outras pessoas e, os devotos doentes deveriam buscar no túmulo de Lázaro uma pedrinha, ou um fragmento qualquer do mesmo, e mantê-lo até que se curasse, devendo então devolvê-lo ao seu lugar de origem. Ver endereço eletrônico . 19 porte, onde, talvez protegidos pela possibilidade do anonimato, ou melhor, da não identificação imediata, comum aos lugarejos e cidadezinhas, as pessoas sejam mais ousadas em suas atitudes, em especial diante de perguntas realizadas por estranhos sobre questões 27 mais pessoais, como estas sobre suas devoções. Estudioso das santificações populares, Sáez (1996) considera que esta certa invisibilidade dos devotos e das manifestações públicas da devoção aos “santos do povo” é uma das suas características marcantes. Para ele o culto aos santos não oficiais comporta um paradoxo: “é ao mesmo tempo conhecido e desconhecido; sabido, mas inconsciente.” (Sáez, 1996:100). Em relação a minha proposta de trabalho tal invisibilidade se transformou em critério para seleção dos casos a serem estudados, posto que a localização de devotos e dos espaços e modos de devoção têm relação direta com a viabilidade da pesquisa, já que minha proposta é trabalhar a questão da santidade a partir da visão dos devotos, se não tenho acesso a eles não há possibilidade de análises. Outro critério da seleção de casos foi eleger para a pesquisa as santificações de leigos. Em minha expectativa este dado afastaria o controle da Igreja sobre a maneira do devoto expressar e agir na construção do santo, fato que acabou se revelando um grande engano de 28 minha parte, como veremos no decorrer da apresentação dos resultados. A opção de trabalhar com leigos santificados reduziu significativamente as opções, principalmente entre os casos de santificações de homens. Lembrando que Lázaro (Sul de Minas) deixou de ser opção por falta de devotos identificáveis, restou entre os leigos apenas 27 Nas entrevistas realizadas em Juiz de Fora eu mesma abordava as pessoas no cemitério no túmulo de Palmyra e elas logo se diziam devotas, davam entrevistas, faziam até fila para serem entrevistadas, me davam telefone, endereço para que conversássemos mais demoradamente. Diferente do ocorrido em Rio Pomba, onde os moradores/devotos me recebiam muito bem e falavam sobre a devoção a Lola desde que eu fosse ‘apresentada’ por alguém que eles conheciam. Mesmo os que encontrei no cemitério (à exceção dos que não eram da cidade) quase não falavam. O senhor que toma conta do cemitério falou comigo menos de cinco minutos, me deu informações sobre ele, seu trabalho e o dia do enterro de Lola mas foi logo me avisando que eu deveria procurar outras pessoas que eram devotas e responsáveis pelo túmulo, ele não sabia muito mais sobre o caso, embora trabalhe lá há mais de 20 anos e cuide de todos os túmulos do pequeno cemitério. Percebo que uma espécie de ‘rede de contatos’ precisava ser construída para que houvesse confiança e só então os depoimentos mais detalhados eram feitos. Quanto a Baependi há uma grande circulação de pessoas que não são de lá, entre estes a maioria se declara devota de Nhá Chica, os locais também falam com naturalidade, alguns dizem que estão já acostumados a fazer depoimentos sobre Nhá Chica, principalmente os mais ligados ao movimento por sua canonização. Este fato talvez favoreça para que em Baependi não haja esta desconfiança interiorana, embora seja também uma cidade bem pequena. 28 A presença de representantes da Igreja católica em eventos inicialmente leigos é uma constatação também de Steil. Falando sobre romarias, eventos a princípio de cunho ‘popular’, ele diz: “mesmo ultrapassando as intenções iniciais de seus agentes institucionais, esses eventos dificilmente se montem sem o investimento eclesiástico (...) quanto ao ponto de partida, muitas romarias que acompanhamos são organizadas por paróquias e agentes religiosos locais que convocam os romeiros e os conduzem a seu destino.” (Carlos Alberto STEIL, Peregrinações, Romaria e Turismo Religioso: Raízes Etimológicas e Interpretações Antropológicas, 2003a, p. 34). 20 João Relojoeiro (Uberlândia), que constava em minha primeira versão do projeto de pesquisa (2003). Em verdade, num primeiro momento me propus a estudar, além dos casos de Palmyra, Nhá Chica e Lola, os casos de Isabel Cristina e João Relojoeiro, entretanto, quando comecei o trabalho de organizar a pesquisa e como iria efetivá-la, precisei reavaliar minhas seleções e, definitivamente, optar por aqueles que se mostravam mais fecundos aos meus objetivos, levando em conta também questões de logística, mantive assim o estudo sobre as santificações de Palmyra, Nhá Chica e Lola como objetos deste trabalho. O interesse pelo caso de Palmyra – a Santa de Juiz de Fora se associa ao início de meu interesse pelas santificações populares, sendo um caso representativo na modalidade de santificações construídas após e/ou em relação a morte do santo, como são também os casos de João Relojoeiro - que foi santificado após sua morte em virtude do martírio que sofrera com as torturas policiais ao ser acusado (para os devotos, injustamente) de um roubo; e da Mártir Filomena que tem sua santidade pautada no evento de sua morte –foi enterrada viva-, 29 situação entendida como martírio. Embora alguns elementos indicativos de santidade sejam distintos a santificação destes três, como já mencionado, relaciona-se com a morte que sofreram e com o que veio depois dela. A opção pelo estudo do caso de Palmyra leva em conta o fato de ser o meu interesse primeiro, associado ao fato de se localizar em Juiz de Fora, cidade em que resido. No grupo de santificações leigas a partir da morte ou em decorrência dela se enquadra também o caso de Isabel Cristina, no entanto, ele é mais divulgado pelos clérigos que atuam em Barbacena e região do que pela fé do povo propriamente dita. 30 Segundo minhas poucas pesquisas , Isabel Cristina era uma moça muito religiosa, frequentava regularmente as missas e mantinha várias atividades na Igreja, juntamente com os seus pais, fazendo parte do grupo das Filhas de Maria. Essas características, aliadas à maneira como ela morreu – uma mártir defendendo sua castidade - a tornaram, aos olhos da Igreja, um modelo a ser seguido pela juventude, em particular pelas mulheres. A abertura do seu processo de canonização foi iniciativa da Igreja e a divulgação dos atributos de Isabel Cristina também o é. Pode-se dizer que ela, embora possa ser classificada 29 Semelhante ao caso do bandido pesquisado por Freitas, o cangaceiro ‘Jararaca’, morto em 1927 e santificado pelo martírio que foi sua morte. Segundo narram os moradores da região, ele teria sido enterrado vivo. Eliane Tânia Martins FREITAS. Violência e sagrado: o que no criminoso anuncia o Santo?, 2000. 30 Obtive as primeiras informações sobre o culto a Isabel Cristina com a Sr.ª. Maria José, com quem trabalhei em 2004, e que me forneceu também de um ‘santinho’ com a foto e a biografia dela. Posteriormente fui a Barbacena investigar um pouco mais sobre o caso, quando pude perceber melhor como ele se organizava. Somente em 2007 tive acesso à tese de Maria C. Leite PEIXOTO - “Santos da porta ao lado”: Os caminhos da santidade contemporânea católica (2006), IFICS/UFRJ, que aborda esta santidade não oficial. 21 como “santa do povo”, pois não tem sua santidade canonicamente reconhecida, é mais um ideal de santa que a Igreja local se esforça em divulgar do que uma santificação, de fato, eleita pelo povo. As conclusões expostas, acerca do caso da santificação de Isabel Cristina, apesar das minhas breves investigações, são próximas das apresentadas por Peixoto (2006), que se dedicou a investigar esse caso de santificação em seu curso de doutorado. Referindo-se ao caso de Isabel Cristina ela afirma: (...) o sucesso da causa depende da fama de santidade do candidato que, muitas vezes, não brota espontaneamente, apesar de essa espontaneidade ser valorizada no discurso dos representantes da Igreja. Na prática, porém, um trabalho publicitário é empreendido e, paradoxalmente, é pela ação institucional que a santidade se manifesta. (...) O caráter de santidade administrada fica evidente na medida em que os envolvidos diretamente na causa têm de promovê-la, incentivando o interesse dos fiéis em tomar o candidato como modelo, em crer no seu poder de intercessão (...). (Peixoto, 2006: 190-191) Dessa circunstância resulta que Isabel Cristina não é do povo no sentido de ser santificada pelo povo, de atrair o devoto à revelia da oficialidade, ao contrário, ela não tem 31 carisma pessoal, retratando uma santidade que podemos classificar como construída de cima para baixo, posto que, são os representantes clericais que se esforçam em atribuir-lhe santidade. Ocorre ainda que, apesar do esforço em torná-la ícone para a juventude, assumido pelos envolvidos na afirmação de sua santidade e canonização, a devoção a Isabel Cristina é 32 bem restrita, mesmo na cidade de Barbacena, onde ela viveu e foi sepultada. Quanto às devoções em torno de Lola e Nhá Chica, são constituídas e manifestas de formas particulares, mas ambas se pautam em eventos relacionados à vida delas, à maneira como se relacionaram com o sagrado, com os outros e consigo. A despeito de contar com a simpatia de alguns representantes clericais, são personagens singulares, especiais aos olhos dos devotos, por força de suas próprias ações, quer dizer, sem a necessidade de um esforço institucional, ainda que ele seja desejado. Definidos os casos a serem estudados, após leituras e anotações iniciais, produção do texto para o exame de qualificação (1º semestre 2005), intensifiquei as pesquisas de campo e as análises para a escrita da tese, que se insere na área de Ciências Sociais da Religião, constitutiva do PPCIR/UFJF. Esta área prevê a investigação dos fenômenos religiosos a partir 31 Weber apresenta que existem três formas básicas de dominação legítima: a legal, a tradicional e a carismática. Essa última, a qual nos interessa por hora, é definida como “autoridade do Dom da graça (carisma) extraordinário e pessoal, a dedicação absolutamente pessoal e a confiança pessoal na revelação, heroísmo ou outras qualidades da liderança individual.” Max WEBER, A Política como vocação, p. 99, 1982. 32 Na tese, já citada, Peixoto (2006) aprofunda-se nestas questões. 22 do enfoque das Ciências Sociais, em especial da Sociologia, da Antropologia e da História Social e da Cultura, centrando-se nas relações destes fenômenos com a sociedade, a cultura e 33 as representações simbólicas. Por ser um elemento cultural, presente nos diferentes grupos sociais, as crenças religiosas apresentam em suas formulações ideias constitutivas desses grupos, o que lhes permite, ou mesmo exige, transformarem-se, adaptarem-se, interferirem e receberem interferências das outras esferas sociais, do meio em que se inserem. Esta dimensão é o que podemos classificar como dimensão externa, social e cultural das crenças. É a partir daí que, enquanto estudiosos da sociedade, podemos interpretá-las e perceber os sentidos que lhe são atribuídos e os sentidos que elas imprimem à cultura, ao meio social, à existência e ações humanas. Trazendo a questão das santificações e devoções populares para o campo das investigações científicas, mais precisamente para a área das Ciências Sociais da Religião, acredito estar contribuindo para redimensionar numa perspectiva contemporânea, os estudos sobre as chamadas devoções populares, elemento estrutural do catolicismo. Mediante a especificidade do objeto a transdisciplinaridade no estudo das manifestações religiosas nos permite tentar apreendê-las de forma mais abrangente. Apostando nisso é que recorro a métodos e autores das três áreas científicas acima citadas, 34 embora haja um maior destaque para a Antropologia. Isso posto para realizar as pesquisas junto aos devotos optei pela observação participante, a realização de entrevistas e aplicações de questionários. Embora, como informa Cardoso de Oliveira (2000), a observação participante tenha se consolidado nas investigações etnológicas junto às “populações ágrafas” e de “pequena escala”, isto não significa que ela não possa ocorrer nas pesquisas com segmentos urbanos ou rurais da sociedade a que pertence o pesquisador. Para ele, na observação participante, o olhar e o ouvir, elementos da primeira etapa de toda pesquisa, são funções por meio das quais se busca interpretar, ou compreender, a sociedade e/ou a cultura do outro, “de dentro”. O bom andamento dessa etapa é essencial para a segunda etapa da pesquisa que é a produção do texto. Na segunda etapa o pesquisador terá condições de rememorar, de trazer para o presente durante o ato de escrever, tudo que 33 Cf. disposições disponíveis no endereço . 34 Considero relevante informar que sou graduada em História (UFJF), o interesse pelo estudo dos fenômenos religiosos voltados para o entendimento das ‘práticas’ e ‘representações’ a ele inerentes promoveu uma aproximação maior com o campo da Antropologia, cujos métodos sobressaem-se nas pesquisa e análises realizadas, mantendo a interface com a Sociologia e a História, como previsto na área de Concentração do PPCIR/UFJF, já mencionada, onde se inclui esta pesquisa. 23 observou “estando lá” e, os dados contidos nos diários de campo “ganham em inteligibilidade sempre que rememorados pelo pesquisador”. (Cardoso de Oliveira, 2000:34). Especificamente sobre o olhar e o ouvir, Cardoso de Oliveira, ressalta que são atividades complementares e que precisam ser “domesticadas”, porque a observação antropológica busca nos detalhes os sinais para conhecer e interpretar as organizações sociais analisadas. Em sua opinião, no estudo da religião esta perspectiva complementar se torna ainda mais eficiente e necessária, pois o olhar é essencial para captar o ambiente e os elementos que o compõem, além de permitir acompanhar como os atores se portam nos ambientes, observar seus gestos, trajes, expressões faciais, entre outros, no entanto, existem algumas dimensões que somente são perceptíveis quando se “sabe ouvir” (Cardoso de Oliveira, 2000:19-22). Ao pesquisador cabe ter em mente que a neutralidade e a objetividade absoluta não se concretizam na realidade da pesquisa, fazendo parte de um conjunto de idealizações. O encontro com o outro (realizado nas pesquisas, em especial durante as entrevistas), deve ser pautado no reconhecimento das diferenças entre pesquisador e pesquisado, o que resulta em um verdadeiro “encontro etnográfico”, onde pode acontecer o diálogo sem a preocupação de estar, neste caso, contaminando o discurso do nativo com elementos de seu próprio discurso. (Cardoso de Oliveira, 2000: 22-24) O reconhecimento das diferenças entre nativo e pesquisador e da impossibilidade de uma intimidade tal que torne o pesquisador um nativo, ou quase isto, é preocupação também de Geertz que ressalta ser “possível relatar subjetividades alheias sem recorrer a pretensas capacidades extraordinárias para obliterar o próprio ego e para entender os sentimentos de outros seres humanos” (1998:106). Desenvolver capacidades “normais” para as atividades de pesquisa e compreensão do outro é essencial para temos acesso ao grupo que queremos pesquisar, mas seja qual for a compreensão que tivermos sobre nossos informantes, ela não depende “de que tenhamos, nós mesmos, a experiência ou a sensação de estar sendo aceitos, 35 pois esta sensação tem que ver com nossa própria biografia e não com a deles.” Atenta a tais indicações, iniciei as visitas aos centros de devoção de cada uma das santas do povo. As visitas não obedeceram apenas o calendário das festividades a elas dedicadas, embora fossem momentos cruciais para minhas observações. Optei por visitar as 35 Geertz afirma que a compreensão depende de uma habilidade para analisar os modos de expressão, o que chama de “sistemas simbólicos”, e reconhece que a ‘aceitação do pesquisador pelo grupo’ contribui para o desenvolvimento desta habilidade. Clifford GEERTZ, “Do ponto de vista dos nativos”: a natureza do entendimento antropológico, pp. 106-107, 1998. 24 cidades referências das santas do povo também fora dos momentos de efervescência na tentativa de acompanhar melhor o ritmo cotidiano daquelas localidades. Ademais, durante as festas as pessoas das cidades que recebem os devotos/ romeiros ficam muito atarefadas, os arquivos não são disponibilizados para pesquisadores, enfim, são momentos riquíssimos em muitos aspectos, mas não capazes de fornecer todos os dados que eu me propunha a levantar. No caso de Nhá Chica, participei da peregrinação do mês de maio em 2005 e, em 2007 estive na região para acompanhar a saída dos peregrinos de São Lourenço e a chegada deles em Baependi, coletando dados para construção do perfil do peregrino; participei ainda do 2º Encontro de estudos sobre Nhá Chica – Mulher de Deus e do povo no Contexto da História (16 e 17 de junho de 2006) e das festas realizadas em junho de 2006 e 2007, além da festa de Nossa Senhora da Conceição em dezembro de 2006. Nos períodos em que fiquei em Baependi acompanhei os devotos em suas orações, nas visitas ao túmulo, às missas e demais atos de devoção. Realizei entrevistas, apliquei questionários, consultei os livros de registros de graças, visitei o memorial, sala de ex-votos e visitei as cidades circunvizinhas, em especial São Lourenço onde se encontra a Capela de Nhá Chica, construída por um artista plástico local como forma de pagamento de promessas, onde também realizei entrevistas em 2005 e 2006. Tornei-me assinante do Jornal Nhá Chica – Notícias do Santuário, periódico de responsabilidade da Associação Beneficente Nhá Chica, entidade que cuida de crianças carentes, dirigida pela Congregação das Irmãs Franciscanas do Senhor. O jornal representa uma maneira de ter acesso a informações do Santuário, sobre as comemorações e demais ocorrências relacionadas à Nhá Chica, que possam vir a ser úteis nesta pesquisa. Para as investigações sobre Lola visitei por várias vezes a cidade de Rio Pomba para realizar as entrevistas, aplicar os questionários, consultar os jornais locais e documentos do Museu Histórico de Rio Pomba, especialmente em 2005, 2006 e início de 2007. Os dias marcantes da devoção a Lola são as primeiras sextas-feiras de cada mês, quando são rezados os terços no seu túmulo, seguido de missa em ação de graças pela alma de Lola; o dia 09 de abril - data de seu falecimento, que se tornou feriado municipal na cidade de Rio Pomba, sendo uma ocasião em que a cidade recebe o maior número de visitantes/devotos 36 e pesquisadores , e o dia 02 de novembro. 36 Em 2007, no dia 09 de abril, encontrei um grupo de estudantes do curso de comunicação da UFJF em Rio Pomba, fazendo um documentário sobre Lola. Também o historiador Roberto FERREIRA, autor de O Sagrado Coração de Lola – a ‘Santa de Rio Pomba’, 2007, escolheu o 09 de abril para lançamento do livro. 25 No caso da pesquisa sobre Lola tive acesso a depoimentos escritos, de vários devotos, em datas anteriores à minha pesquisa, que foram realizados pela Associação dos Amigos da Causa de Lola, dedicada a divulgar essa devoção e ao trabalho pela canonização de Lola. Em relação à Palmyra a visitação a seu túmulo para orações e pedidos é o ritual mais marcante e, tem como marco o dia 02 de novembro, dia de reverenciar os mortos e orar por eles, de acordo com o calendário católico. Outras ocasiões significativas são as segundas- feiras, quando acontecem rezas de terços e novenas junto ao túmulo de Palmyra, dos quais participei algumas vezes. Para a investigação da santificação de Palmyra visito o Cemitério Municipal de Juiz de Fora desde 2004, nos dias 02 de novembro, para conseguir acesso e depoimentos dos devotos. Realizei ainda pesquisas em jornais, em documentos do Arquivo Histórico Municipal, da Biblioteca Murilo Mendes e do Cemitério Municipal de Juiz de Fora – onde contei com a colaboração ativa dos funcionários, tanto dos que atuam na parte administrativa, quanto dos que cuidam da manutenção e limpeza dos túmulos, estes últimos recolheram e guardaram para que eu pudesse ler os papeizinhos com pedidos e agradecimentos dirigidos à santa que frequentemente são deixados no túmulo. Além das observações participantes, nos três casos analisados também realizei pesquisas em arquivos, centros de memória, museus, igrejas, e cartórios. Mesmo que esta tese tenha como objeto de investigação três santidades femininas é necessário realçar que não tive a intenção de realizar um trabalho onde as questões de gênero sejam centrais ou basilares, entretanto, a presença superior das santificações femininas entre as santificações populares brasileiras, especialmente entre leigos, é um dado significativo que não deve ser ignorado. Diante disto, foram necessárias consultas a algumas obras que tratam o tema das relações entre o sagrado e o feminino, devidamente citadas no corpo do texto e na bibliografia. A presente reflexão assume a proposta de realizar um estudo sobre os paradigmas populares da santidade, centrando-se na observação dos devotos em suas relações com as santas: - Mas, o que é o popular no âmbito da religião? Logo de início surge este conceito complexo, polissêmico, que pode designar variadas manifestações religiosas e produzir, igualmente, variadas interpretações e abordagens. Embora encerre controvérsias e muito já se tenha falado a este respeito, considero necessário que o tema popular ocupe ainda as discussões e produções intelectuais voltadas para o estudo da sociedade historicamente contextualizada, em especial nas investigações sobre cultura. Conforme explica Chartier (1995), mesmo reconhecendo que os eruditos são 26 quem classificam as manifestações culturais como populares ou não, essa é uma noção importante porque destaca as identidades múltiplas coexistentes no campo social. Neste caso, ainda que muitos especialistas considerem que as constantes interações entre o oficial e o popular sejam boas razões para abolir tais classificações, tal procedimento impediria perceber a diversidade e as próprias interações entre as identidades diversas constituintes do campo social (Chartier, 1995:85). Retomar o debate sobre o catolicismo popular foi também uma proposta defendida por Fernandes (1984: 9-11), para quem existem questões nas produções acerca do conceito de catolicismo popular que precisam ser revistas. Este autor destaca a ausência, ou a reduzida etnografia realizada, como justificativa para construções generalizadas sobre o objeto em questão, tais como associações do catolicismo popular com os pobres e do oficial como sendo reduto das elites, negligenciando-se assim, na formulação do conceito, a complexa rede de relações que se estabelece entre os elementos constitutivos da sociedade e da religiosidade brasileira. Nesta tese os termos ‘popular’ ou ‘do povo’, empregados para qualificar as santas em estudo, remetem essencialmente ao fato de que pertencem a um grupo de santificações que se organizam sem o reconhecimento canônico, ainda que haja em dois dos casos estudados, movimentos e organizações voltadas para tal reconhecimento eclesiástico, ambos contando com o apoio de representantes clericais, o que não elimina conflitos de interesses ou de 37 perspectivas dos envolvidos. O termo popular aparece com o objetivo de identificar o foco irradiador das devoções e santificações que investigo. Insisto em dizer que não se trata de uma referência construída a partir de dualismos, inseridos na lógica da luta/oposição entre classes sociais, culturais, econômicas ou políticas, mesmo porque as pesquisas de campo mostram que não há estratificações rigidamente definidas nestes termos. Em última instancia identifica o lócus popular, entendido como informal, espontâneo, em demarcação ao que é institucional sem, contudo, reduzir tal identificação a uma disputa estrutural entre estas duas esferas, considerando sempre composições e complementações entre elas. Uma opção consoante como o indicado por Fernandes (1988). Para ele as diferenças entre popular e oficial não devem ser traduzidas como uma “rígida dicotomia”, embora as 37 Esta relação aparentemente dúbia entre representantes eclesiásticos e leigos, construídas em torno das devoções e das maneiras de realizar os cultos é tema recorrente nas pesquisas de Carlos Alberto STEIL, com destaque para a obra O Sertão das Romarias – Um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia (1996), em especial nos capítulos 2 – Disputando o sagrado, 8 – A Romanização do Catolicismo Brasileiro e o Santuário, e o capítulo 9 – A Reforma do Concílio Vaticano II e o Culto ao Bom Jesus da Lapa. Estão ainda presentes em produções de OLIVEIRA (1983) e FERNANDES (1986), incluídos na bibliografia. 27 diferenças precisem ser consideradas. Neste caso, seria mais adequado entender a distinção como uma “oposição complementar”, atentando-se para as interpenetrações constantes nestas 38 esferas. Nos casos estudados identificamos representantes de esferas não religiosas, envolvidos em ações relacionadas às devoções e em como elas se manifestam. Alterando uma possível relação bipolar (catolicismo oficial X popular) novos agentes aparecem na organização e desenrolar dos eventos em homenagem às santas do povo, especialmente oriundos das esferas políticas e econômicas, agindo por intermédio de empresas privadas e/ou das prefeituras locais, que trabalham para fazer dos cultos e dos rituais verdadeiras atrações públicas, instrumentos para incrementar o turismo, arrecadar fundos, atrair investimentos, entre outras 39 coisas. Neste contexto, as relações de conflitos e coalizões de interesses se ampliam para demais setores da sociedade, independente de serem compostos por devotos ou não, e alianças 40 e afastamentos se fazem presentes de formas diversas e inovadoras. Como resultante desta realidade as disputas de poder relacionadas à capacidade de atribuir santidade também assumem posturas inesperadas, se tomarmos a instituição católica como o braço forte do cabo-de-guerra geralmente instaurado em torno das santificações populares. As pesquisas realizadas demonstram que, se por um lado a hierarquia católica não reconhece oficialmente as santas do povo, por outro, os devotos não as consideram menos santas por causa destas questões canônicas e divulgam e celebram sua fé abertamente, 38 A discussão sobre catolicismo ‘oficial’ e ‘popular’ aparece em várias obras de Fernandes, as citadas foram expostas na nota de rodapé nº 11, p. 98, Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá!, Rubem César FERNANDES, 1988. - Perspectiva similar é indicada por Burke. Para ele ao investigar questões culturais, a melhor opção é reconhecer a existência dos diversos campos (oficial/erudito e popular) sem intensificar uma oposição binária entre eles, localizando-os numa estrutura mais ampla e mantendo clara a ideia de que não há homogeneidade em cada um deles. Peter BURKE, O que é História Cultural?, pp. 41-42, 2005. 39 A peregrinação a Nhá Chica é um exemplo de ‘apropriação’ dos rituais pelos agentes turísticos. No ano de 2005 o ‘Caminho de Nhá Chica’ passou a integrar o ‘Caminho da Estrada Real’, projeto de turismo estadual, amplamente apoiado pelas prefeituras das cidades de Baependi, São Lourenço e outras circunvizinhas. Mediante tal incorporação esta peregrinação passa a constar nos roteiros turísticos como Peregrinação a Nhá Chica: O Caminho da Fé na Estrada Real. A cidade de Rio Pomba também tem como atrativo a devoção a Lola. No site da ‘Estrada Real’ a cidade de Rio Pomba é citada como “Cidade sedução – Terra da Santa Lola” e a casa onde Lola viveu é indicada como ‘ponto turístico’, conforme consta no endereço , página oficial do projeto Estrada Real. Esta perspectiva é investigada por outros estudiosos da religião como ocorre com Sanchis e Steil, em vários momentos de suas produções, muitas inclusas na bibliografia. 40 Além das obras citadas em nota anterior, que retratam os conflitos presentes principalmente entre agentes institucionais e devotos, o tema de disputas entre ‘peregrinos, Igreja, moradores, devotos, romeiros, com destaque para as questões do turismo’ também estão presentes na obra de Carlos Alberto STEIL. O Sertão das Romarias – Um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa (1996), em seus artigos (1998; 2003a; 2003d); nas produções de SILVEIRA (2003 e 2004), de CAMURÇA e GIOVANNINI Jr. (2003), todos citados na bibliografia. 28 fazendo uso inclusive dos espaços institucionais, identificando-os de acordo com a sua devoção. De fato, especialmente nos casos da devoção à Lola e à Nhá Chica, ocorre o que classifico como inversão de julgamento. Para os devotos não são eles os ignorantes – no sentido de não ter acesso à verdade-, por acreditarem na santidade delas, ao contrário, não reconhecer tais santidades é que representa sinal de ignorância e uma perda inestimável. A fala e o comportamento dos devotos demonstram que: - Se alguém, nesta relação com a Igreja Institucional, está perdendo, não admitindo o que é incontestável é a própria Igreja Católica. Por isto mesmo, em Baependi, seguros de sua fé, os devotos de Nhá Chica transitam com extrema liberdade pelo Santuário da Conceição, centro de romaria em Baependi, que é de fato, ainda que não de direito, denominada por eles como “Igreja de Nhá 41 Chica” que, por sua vez, é a “Santa de Baependi”. Já em Rio Pomba, diante da inércia e/ou negativa dos representantes clericais locais em aceitar a construção de uma capela nas terras doadas à Igreja por Lola, os seus devotos declaram que: - “(...) existem regras prá Lola ser chamada de santa e a gente tem que respeitar 42 isso, mas nós precisamos divulgar a verdade”. Segundo eles “Lola é um exemplo de vida para todos nós e é por isso que precisamos lutar para Lola ser reconhecida e imitada por todos. (...) ela vai estar em breve nos altares, para que um número maior de pessoas possa tê- 43 la como intercessora e modelo de vida cristã.” A certeza dos devotos é reforçada até mesmo pela ação de alguns representantes clericais que participam ativamente das homenagens às santas do povo, estabelecendo com elas relações de devotos, ainda que, tentando evitar contrariar, aberta e efusivamente a hierarquia, à qual pertencem e representam. Como será apresentado nos capítulos específicos sobre cada um dos casos em estudo. É no universo do catolicismo que se encontram os objetos da investigação aqui realizada. Bem sabemos que o termo catolicismo nomeia uma realidade múltipla, dinâmica e, por isto mesmo, fugidia. Os esforços em compreendê-lo são inúmeros e várias são as classificações construídas pelos estudiosos. Como exemplo, cito: “catolicismo popular”, 41 Em minha primeira visita a Baependi precisei me informar sobre o local do Santuário da Conceição, para tanto parei em um posto de gasolina logo na entrada da cidade e interpelei o frentista a fim de sanar minhas dúvidas. Diante de minha pergunta (Onde fica o Santuário de Nª da Conceição?) o frentista me olhou com certa surpresa e respondeu: “Ah! Você que ir à Igreja de Nhá Chica! É só seguir em frente e depois subir prá esquerda, você vai ver fácil. Qualquer coisa é só falar que você quer ir à Igreja de Nhá Chica que todo mundo sabe onde é (...)”. 42 Depoimento da Sr.ª. Myriam Rodrigues Vieira, 17 de março de 2006. 43 Depoimento da Sr.ª. Myriam Rodrigues Vieira, 17 de março de 2006. 29 “rústico”, “tradicional”, “oficial”, “institucional”, “romanizado”, “libertador”, “carismático” e, mais recentemente, “catolicismo midiático”. As variações denominativas do catolicismo, de acordo com Steil (2001) colocam em relevo sua lógica de crescimento que é a lógica da “elasticidade”, ou seja, o catolicismo tende a absorver a diversidade em seu interior e, diferentemente de outras denominações religiosas que crescem se dividindo, tais como as protestantes, “o catolicismo cresce incorporando as diferenças” (Steil, 2001:33). A respeito da diversidade interna, Pierre Sanchis realça a capacidade do catolicismo de aglutinar em seu seio várias religiões, embora encerradas em uma só congregação institucional, visível e concreta. Para ele trata-se de um “significante para vários significados” (Sanchis, 1986:06). Reconheço que o estudo das devoções aos santos, mesmo os não canonizados, não encerra propriamente uma novidade nos estudos da história, sociologia e antropologia da religião. Entretanto estas devoções passaram por grandes transformações nos últimos anos, tornaram-se fenômenos também urbanos, incorporando dimensões do consumo, turismo, mídia, reunindo, entre os devotos, pessoas de diferentes origens, classes e interesses. Nesse sentido algumas questões precisam ser investigadas no intuito de descobrirmos um pouco mais sobre como se conjugam na atualidade as devoções e as questões relacionadas à modernidade e pós-modernidade, que imprimem suas marcas também na religiosidade; quais tipos de relações são construídas entre os leigos - devotos e não devotos; entre esses e os representantes eclesiástico; como os devotos se relacionam entre si; o que os motiva enquanto devotos, entre outras. Na tentativa de realizar um trabalho que venha contribuir com a tarefa de conhecer um pouco mais sobre este fenômeno religioso, é que me coloquei em campo. Esta tese foi produto de tal empenho e o texto se organiza da seguinte forma: - No capítulo Manifestações do Sagrado Contemporâneo faço uma breve exposição a respeito das manifestações do sagrado no contexto contemporâneo, considerando-o como lugar de encontro entre a tradição, a modernidade e a pós-modernidade. As questões relacionadas à devoção aos santos são, classicamente, associadas ao chamado catolicismo popular, definido basicamente como aquele produzido pelas crenças do povo em sua interação com a religião oficial (institucionalizada). As produções existentes dedicadas ao estudo do catolicismo popular tornaram-se, portanto, leituras indispensáveis para realização desta pesquisa e, algumas considerações e conceitos produzidos são também apresentados neste capítulo. 30 - No capítulo A presença dos escolhidos de Deus no devir histórico-cultural apresento as informações sobre os santos, a origem das devoções e santificações, as transformações ocorridas no devir histórico; incluindo informações sobre as devoções aos “santos do povo”. - No capítulo As Santas do Povo: Três casos Mineiros em destaque estão expostas as análises sobre os casos em estudo, as santas do povo Lola, Nhá Chica e Palmyra. - No capítulo Breve espaço para encontro e comparações entre as Santas do Povo reuni as informações sobre as santas do povo estudadas, sendo este um espaço para comparação entre os três casos. - Por fim, ciente de que muitas perguntas ainda precisam ser feitas sobre esse tema, e novas respostas poderão sempre surgir, no último momento da tese apresento algumas reflexões e considerações finais sobre as santas do povo estudadas. 31 2 - MANIFESTAÇÕES DO SAGRADO CONTEMPORÂNEO 2.1: Um encontro entre a tradição, a modernidade e a pós-modernidade Pensar os temas da tradição, da modernidade e da pós-modernidade (termo usado para referir-se ao momento contemporâneo na percepção de alguns estudiosos) em sua relação com a questão da religião faz-se conveniente pela opção de contextualização histórico-social das santificações populares que me proponho a estudar, sem, no entanto, delongar-me nestas discussões. Habitualmente, sempre que nos deparamos com o termo tradição nos preparamos para um mergulho no passado, numa viagem pelas gerações que nos antecederam, suas memórias, conhecimentos e costumes. A rememoração, a lembrança recuperada são fatores centrais na constituição das tradições que, por sua vez, representam uma tentativa de recuperação e perpetuação de acontecimentos marcantes, em geral relacionados à origem dos grupos sociais e, como tais, significativos na construção identitária destes grupos. Um dado recorrente ao tema da tradição é a tendência que temos em qualificá-la a partir de uma oposição ao que é moderno, consolidando uma permanente relação de concorrência entre passado - tempo e lugar da tradição, e o presente – tempo e lugar da modernidade. Dedicado ao estudo da tradição, da memória e da modernidade, Rivera (1998), afirma que a relação entre modernidade e tradição deve ser entendida mais como “relação de complemento que como relação de contrários”, importando ainda reconhecer que a “imaginação criativa da modernidade não teria sido possível sem o necessário desenvolvimento das tradições” (1998:51). Além disto, ressalta que o esforço pela volta às origens, traduzido na manutenção das tradições, não significa uma intenção de permanecer no passado e sim de dar sentido ao presente e imaginar o futuro (1998:51), um exercício constante da sociedade ansiosa por certezas e projeções para além do tempo presente. A questão do que vem a ser uma sociedade tradicional permanece indefinida, de acordo Giddens (2001). O que pode ser dito é que se trata daquelas sociedades em que a tradição exerce um papel preponderante. Seguindo este raciocínio, podemos entender as sociedades modernas como aquelas que se “destradicionalizaram”, o que não encerra uma oposição cerrada entre tradição e modernidade. (Giddens, 2001:35) 32 O próprio Giddens amplia suas exposições afirmando que, se modernidade, por definição, se coloca em relativa oposição à tradição, no decorrer da sua história, ela representou também a sua reconstrução na medida em que a dissolvia isto é: em dada medida, a “modernidade destrói a tradição”, no entanto, é inegável a “colaboração entre modernidade e tradição”, essencial às fases iniciais da sociedade moderna, o que permite identificar a “tradição na modernidade” (Giddens, 2001:73). Pode-se afirmar até que a “imaginação criativa da modernidade não teria sido possível sem o necessário desenvolvimento das tradições.” (Rivera, 1998:51) As sociedades ditas modernas têm como referências centrais o indivíduo e o individualismo. Suas diferenças mais marcantes em relação à sociedade tradicional repousam na progressiva diferenciação entre as pessoas, seus papéis sociais e seus conhecimentos, baseados na razão instrumental, na separação entre Igreja e Estado e no laicismo. Dissertando também sobre a modernidade Pierre Sanchis (1992) ressalta que a nossa civilização ocidental é a “civilização da modernidade”. O Ocidente se apresenta como “feito de modernidades sucessivas.” Por isso só é possível, nele, falar de uma “conjuntura permanente de modernidade” e não de uma modernidade. Para ele “o homem ocidental vive paradoxalmente – ou aspira a viver - em estado de modernidade (...)” (Sanchis, 1992:43-44). A complexidade de aferir definições à modernidade levou Sanchis (1992) a propor uma relativização deste conceito. Em suas palavras, “não existe em si, uma modernidade; sempre se é moderno de alguém”. Disto resulta que a “modernidade é relação, e relação não- necessária. Para que exista é preciso encontrar, destacar e privilegiar, no fluxo do tempo, um lugar: o presente, a partir do qual o tempo ido torna-se passado.” Esse processo, mesmo parecendo banal ao primeiro olhar não o é, afinal, a categoria “tempo é historicamente modulada e o tempo do homem não lhe é dado naturalmente, como um quadro neutro, onde se ordenariam necessariamente os momentos sucessivos de sua atividade.” (Sanchis, 1992: 43) A mesma complexidade existente na distinção entre tradição e modernidade aparece na relação dessas com o período que se tem convencionado denominar pós-modernidade, na perspectiva de alguns autores, ou ainda, alta modernidade, supermodernidade, ultra- modernidade para outros. (Rivera, 1998:57) Segundo Sanchis, se considerarmos que a modernidade tem como referência a sucessão permanente de valorização do “novo” em oposição ao “antigo ultrapassado”, não haveria de fato a modernidade tampouco uma pós-modernidade. Neste caso modernidade encerraria, ao menos na civilização ocidental, um “processo em permanente realização e, por definição, nunca acabado.” Mas, o próprio Sanchis indica que, diante do objetivo de 33 constituir-se uma definição para pós-modernidade, pode-se fazê-lo compreendendo-a como uma percepção de tempo que não vise mais superar outro, mas compor e articular (Sanchis, 1992: 44). Sobre este assunto, Vaz (1992) destaca o “desdobramento” em várias etapas do indivíduo, por excelência o princípio transformador da sociedade. Segundo ele, a partir dos fundamentos da modernidade moderna (fase intermediária, divisória do processo de sucessão das modernidades), - identificados como sendo a razão por princípio, o indivíduo por ator e a liberdade por instrumento e condição, surge o “homem moderno”. Esse homem moderno se entende como “sujeito infundado”, em um mundo cujo conhecimento analítico e particularizante apresentam para ele uma “verdadeira operação de criação de mundo” e, nesta circunstância, tenderá a criar um “mundo para o homem”, racional e conhecido. (Vaz, 1992:94) Durante esse processo de construção do mundo conhecido, na concepção de Martelli (1995), ocorrem transformações e descobertas que alteram e radicalizam as relações 44 estabelecidas na modernidade. Percebe-se então, a partir do próprio homem, “descontinuidades emergentes entre modernidade e pós-modernidade”, essa última se originando com as transformações socioculturais que aconteceram a partir dos anos 1980, época em que se firmou a crise dos pressupostos da modernidade enquanto “horizonte auto- interpretativo da sociedade contemporânea” (Martelli, 1995-I: 01). Outro estudioso desse assunto, Azevedo (2003), considera que a pós-modernidade se diferencia por reforçar radicalmente a questão do individualismo e representar um modo de viver e de pensar desencantado diante da razão positiva, onde há opção por uma ética sempre provisória e pela moral do imediatismo. (Azevedo, 2003:01) Em sintonia com tais considerações, Daniéle Hervieu-Léger, que denomina de “ultra- modernidade” o período contemporâneo, também destaca o indivíduo e afirma que esse período é caracterizado especialmente pela instituição psicológica do indivíduo, a generalização das relações sociais contratuais, o rompimento do isolamento espacial e a imediatização das comunicações. (Hervieu-Léger, 2004:17) 44 Como exemplos ele cita: 1) O fim do sujeito e as modificações na concepção do saber, como efeito da especialização e fragmentação crescentes na pesquisa científica; 2) A aceleração do tempo até o hábito da novidade como efeito do crescimento autocinético; 3) A des-realização da realidade como efeito das crescentes possibilidades comunicativas; 4) O hiperespaço como nova dimensão assumida pelos espaços presentes nas megalópoles; 5) A crise do eurocentrismo e a multiplicação dos centros de história do mundo como efeito do fim da rivalidade ideológico-militar entre Leste e Oeste. Stefano MARTELLI, A religião na sociedade “pós- moderna” – Parte I, p. 03, 1995. 34 Mesmo diante de esforços para traçar o que seria a pós-modernidade, Martelli (1995) ressalta que ela não deve ser entendida como uma etapa posterior à modernidade, como sua superação. A dicotomia moderno/pós-moderno não deve ser concebida como algo que se sobrepõe dentro do ritmo antes/depois, sob o risco de cair-se na estrutura categorial da modernidade que se auto-concebe. Em sua leitura o que ocorre é a “co-presença" de moderno 45 e de pós-moderno na cultura contemporânea. Pensando a contemporaneidade como lugar de permanência da modernidade, da pós- modernidade e mesmo da tradição, importa refletir sobre o lugar da religião neste período. Novamente recorrendo a Martelli, trago a afirmativa de que o resultado da nova consciência pós-moderna é do ponto de vista da sociologia da Religião, “a secularização da fé secularizada do progresso.” Para ele, essa consciência pode gerar resultados distintos, entre os quais dois são destacados. O primeiro seria a “contra-utopia”, quer dizer: (...) mediante o fim da certeza otimista da modernidade em atingir a meta do total desdobramento da humanidade e da sociabilidade, se reage adotando uma perspectiva performativa, que visa à gestão dos problemas colocados pela hipercomplexidade, mediante o recurso de fatores meramente técnicos de seleção e estabilização do sistema, visando a uma planificada distribuição das respectivas quotas entre duração e sobrevivência, transformação e mutação. (Martelli, 1995-I: 06) O segundo resultado seria o “retorno à tradição, na convicção de que nela existem 46 sementes do futuro , que a modernidade recusou muito apressadamente, junto com os comportamentos conexos, considerados como não-adaptáveis.” O que não deve ser entendido como “simples retorno à situação anterior à modernidade” (Martelli, 1995-I: 06). No contexto pós-moderno apresenta-se para a religião uma situação, sob alguns aspectos, inédita, identificada com o “decantar da questão da secularização” a partir de fatores externos, ou seja, pela mudança do quadro sociocultural geral e não apenas por um “despertar interno.” Em lugar de um “eclipse do sagrado” – identificado durante os anos 1960 -, a partir dos anos 1980 percebe-se o “eclipse da secularização” e a descoberta do “paradoxo da modernidade” – quer dizer, as instâncias críticas que a modernidade fez valer contra a tradição se voltam contra ela própria. Na modernidade instaurou-se um clima de “crise permanente, que o crescimento autocinético alimenta e no qual se esvaem as pretensões de 45 Stefano MARTELLI, A religião na sociedade “pós-moderna” – Parte I, 1995, p. 02; aqui se assemelha ao que é apresentado por Pierre SANCHIS, Modernidade e pós-modernidade, 1992. 46 A ideia de ‘sementes do futuro citada por Martelli é inspirada em Franco Ferrarotti, apresentada na obra Una fede senza dogni (1990), onde o autor apresenta que o moderno tem necessidade do antigo, por isto, a fórmula pós-moderno, seria linguística e conceitualmente infeliz. Pare ele, as soluções dos problemas do moderno deveriam ser procuradas não no depois, mas no antes do moderno. (p. 172-173). Martelli, p. 14, nota 58, 1995. 35 auto fundação da razão” (Martelli, 1995-I: 06), abrindo espaço para busca de novas perspectivas. Faz-se coerente, portanto, a posição de Crespi (1999) sobre o retorno de interesse pela religião na contemporaneidade. Para ele o interesse revitalizado pelo religioso diz respeito à busca de certezas, de respostas para crises e questões mantidas em suspenso diante da razão moderna. (Crespi, 1999:9, 13) A necessidade de novas alternativas foi deflagrada, em especial, a partir do final do século XX, quando a dissolução de narrativas e utopias que prestavam sentido à vida de muitos abriu enormes fendas nas estruturas de plausibilidade que forneciam sustentação ao mundo social de então. Os indivíduos que não podiam mais situar suas ações num quadro mais amplo de significados e reabastecerem-se de forças para novos desafios voltaram-se para a busca de novas fronteiras explicativas, entre elas a religião (Teixeira, 2000:01). A situação acima descrita reforça a tese de Berger, segundo a qual, diante da modernidade que (...) solapa todas as velhas certezas; a incerteza é uma condição que muitas pessoas têm grande dificuldade em assumir, assim, qualquer movimento (não apenas religioso) que promete assegurar ou renovar a certeza tem um apelo seguro. (Berger, 2000: 14) A discussão sobre a situação da religião na contemporaneidade passa, normalmente, 47 pela questão do desencantamento do mundo e da secularização, mas não há entre os estudiosos da religião um consenso em torno destes temas. Algumas tendências se destacam neste embate científico. Em sua tese já citada, Peixoto (2006) destaca três delas: a primeira nega a permanência do processo de secularização, baseando-se na evidência empírica da diversidade de religiões na contemporaneidade; a segunda, aposta na existência do processo de secularização, ainda que haja a evidente efervescência religiosa já citada; e uma terceira vertente ganha espaço nos debates, defendendo a proposta de que a religião deve ser analisada como resultado da 48 interação de forças secularizantes e contra-secularizantes. 47 A ideia de ‘desencantamento do mundo’ encontra na sociologia de Weber as suas bases. Se refere essencialmente ao abandono da magia em prol da eticização da conduta religiosa, uma racionalização das construções de imagem do mundo (explicação do mundo a partir da ciência). Ver Max WEBER. A ética Protestante e o espírito do capitalismo. 1994; Flávio A.PIERUCCI. A Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido, 1998. 48 Sobre esta discussão ver: Maria Cristina Leite PEIXOTO. “Santos da porta ao lado”: os caminhos da santidade contemporânea católica (2006); Danièle HERVIEU-LÉGER: La religion pour memoire (1993), Le pélerin et le converti (1999); Marcelo Ayres CAMURÇA: Da “Boa” e da “Má vontade” para com a Religião nos Cientistas Sociais da Religião Brasileiros (2001), Secularização e Reecantamento: a emergência dos Novos Movimentos religiosos (2003a); Peter BERGER. A Dessecularização do Mundo: uma visão global (2000); A. Flávio PIERUCCI. Interesses Religiosos dos sociólogos da religião (1997), A propósito do auto-engano em 36 O sociólogo Peter Berger, um dos teóricos da secularização, é atualmente um dos que apresenta a tese de que não vivemos num mundo secularizado à maneira que se previa (incluindo ele próprio). Em sua opinião, com algumas poucas exceções, vivemos num mundo tão ou mais religioso que antes. O que significa dizer que há equívocos substanciais na teoria da secularização. (Berger, 2000:10) Berger lembra que o termo “teoria da secularização” surge como uma construção de trabalhos dos anos 1950 e 1960, mas a ideia central da teoria pode ser encontrada já no Iluminismo e pressupõe que: (...) a modernização leva necessariamente a um declínio da religião, tanto na sociedade como na mentalidade das pessoas. E é justamente essa ideia central que se mostrou estar errada. Com certeza a modernização teve alguns efeitos secularizantes, em alguns lugares mais do que em outros. Mas ela também provocou o surgimento de poderosos movimentos de contra-secularização. Além disso, a secularização a nível societal não está necessariamente vinculada à secularização a nível da consciência individual. (Berger, 2000:10) Reconhecer a não realização efetiva do processo de secularização como foi preconizado pelos teóricos, não significa dizer que nada foi alterado na relação da religião com a sociedade contemporânea. Tampouco que retornamos ou mantivemo-nos sob a égide das relações pré-modernas. As maneiras de se viver o religioso ganhou novos contornos e o sagrado atingiu espaços nunca dantes navegados na forma como ocorre hoje. Até mesmo os que apostam na eficácia total da secularização precisam reconhecer a permanência da religião na sociedade atual não apenas no reduto do privado, mas cada vez mais ocupando espaços públicos. Conforme exposto por Berger: Algumas instituições religiosas perderam poder e influência em muitas sociedades, mas crenças e práticas religiosas antigas ou novas permaneceram na vida das pessoas, às vezes assumindo novas formas institucionais e às vezes levando a grandes explosões de fervor religioso. Inversamente, instituições religiosamente identificadas podem desempenhar um papel social ou político mesmo quando muito poucas pessoas confessam ou praticam a religião que essas instituições representam. (Berger, 2000:10) Berger argumenta ainda que, se a secularização tivesse mesmo se realizado, se vivêssemos numa sociedade realmente secularizada, a tendência seria que as instituições religiosas tradicionais só se mantivessem no mercado, ou ampliassem sua possibilidade de atuação, à medida que se adaptassem às imposições da secularização. No entanto, observada a realidade empírica, revela-se algo no mínimo surpreendente, pois “são os movimentos sociologia da religião (1997) e A Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido (1998). 37 conservadores, ortodoxos ou tradicionalistas que estão crescendo em toda parte”. Para exemplificar suas afirmativas Berger cita os eventos que denomina de “explosão islâmica” e 49 “explosão evangélica”. Atento ao panorama mais amplo da questão da religião, da secularização e dessecularização, Berger ressalta que a conjuntura atual exige ao estudo da religião uma “abordagem matizada e caso a caso.” Por isso mesmo, preocupa-se em deixar claro que tanto a secularização quanto a dessecularização são processos observáveis na sociedade 50 contemporânea. Relembrando a afirmação já enunciada da ausência de consenso sobre esse tema, Pierucci é um daqueles cientistas, estudiosos da religião e da sociedade, que questiona com certa veemência as teses de sociedade “pós-secular”, “dessecularização” e “reencantamento” do mundo. É questionador também das intenções e postura dos cientistas da religião que, segundo ele, em virtude de seus valores, correm o risco de interpretar equivocadamente a real 51 situação da religião na atualidade. Ousado em suas proposições, Pierucci afirma que os acadêmicos que defendem a ressacralização cometem um “auto-engano”, tentando manter vivo o objeto de seu interesse científico. Em sua opinião, os que afirmam que a religião tem ainda um papel significativo em nossa sociedade podem ser qualificados como neoconservadores, carolas, inocentes, senão 52 patéticos. Segundo a argumentação de Pierucci não há porque duvidar da secularização, pois a religião perdeu a capacidade de exercer influência sobre qualquer aspecto central da vida social de forma ampla, reduzindo-se ao nível individual. A seu ver os movimentos religiosos que surgem na atualidade não colocam em xeque e sim reforçam a tese da secularização, 49 Quanto aos exemplos de crescimento islâmico e das Igrejas Evangélicas a nível mundial, Berger realça que não se trata de fenômenos identificados com setores menos modernizados ou “atrasados” da sociedade. Muito ao contrário ainda que, mantendo diferenças entre uma região e outra, bem como diferenças claras entre si, na maneira como ocorrem, ambos são movimentos representativos e de grande força nas cidades com alto grau de modernização. Só para lembrar, no caso Evangélico, a origem de tal “explosão” está nos Estados Unidos. Peter BERGER. A Dessecularização do Mundo: uma visão global, pp. 11; 13-15, 2000. 50 Como reforço ao seu argumento Berger indica a existência de duas exceções à “dessecularização”, uma mais difusa outra bastante clara. No primeiro caso cita a Europa Ocidental; no segundo uma “subcultura internacional”, claramente secularizada, composta por pessoas de formação universitária, particularmente ligadas aos campos das ciências das humanidades e das ciências sociais. Peter BERGER, A Dessecularização do Mundo: uma visão global pp. 16-17, 2000. 51 Ver PIERUCCI 1997a, 1997b e 1997c; 1998; 2000b; 2004. 52 PIERUCCI, Reencantamento e Dessecularização, 1997c, p. 108. As considerações do sociólogo Flávio Pierucci a respeito do agir dos cientistas sociais da religião e a polêmica em torno do retorno ou não do sagrado ao cenário contemporâneo, inspirou o artigo - Da “Boa” e da “Má Vontade” para com a Religião nos Cientistas Sociais da Religião Brasileiros-, do também cientista social e antropólogo, professor do Programa de Pós- Graduação em Ciência da Religião, Prof. Dr. Marcelo A. Camurça; UFJF/MG, que merece ser lido com atenção pelos estudiosos da religião, disponível em < www.iser.org.br/religiaoesociedade>. 38 partindo do pressuposto que ela [a secularização] não se reduz a um processo linear e de curta duração estando, portanto, sujeita a momentos de retração e expansão da religião, no entanto, vista sob a perspectiva da longa duração, o que não é possível ainda, poder-se-á constatar, aí sim, suas linearidade e irreversibilidade. (Pierucci, 1997c:111) Para confirmar sua tese de que as novas expressões religiosas são evidências da eficácia da secularização Pierucci as interpreta como expressão do declínio geral do compromisso com o religioso. Ou seja, em sua leitura tais efervescências religiosas convivem entre si porque a secularização deixou nelas a sua marca, além disto, a forma como as pessoas se relacionam com o religioso reduzem a religião a mais um item de consumo. (Pierucci, 1997c:113). Ele não nega a explosão de novos movimentos religiosos, ao contrário, reconhece-os e os utiliza como provas empíricas de suas argumentações, insistindo em que deixaram de ser fonte de valores éticos e morais, representando mais atitudes pragmáticas, 53 verdadeiros “postos de oferta mágico-místico”. Pierucci é antes de tudo um grande defensor da ciência. Para ele, muito mais do que o sagrado, a ciência nos faz experimentar um “misto de medo e encantamento”, em sua “trajetória incessante de desencantar a natureza nos reserva surpresas inauditas e realiza, como arte da descoberta, milagres para todos.” (Pierucci, 1997c:117) Uma terceira interlocutora deste debate acerca da religião na atualidade é Hervieu- Léger. Em sua perspectiva a religião hoje deve ser analisada a partir da hipótese de que ela é “resultante da interação de forças secularizantes e contra-secularizantes”. Nesse contexto a secularização deve ser entendida como recomposição da religião a partir de seu embate com a 54 modernidade, um processo de reorganização que é permanente. Hervieu-Léger identifica na sociedade atual um movimento duplo em relação à religião: por um lado ocorre a perda de plausibilidade das explicações institucionais religiosas, incapazes de imprimir, hoje, padrões reguladores de práticas e crenças; por outro, presenciamos o surgimento de novas formas de crenças e devoções (Hervieu-Léger, 1999: 41- 42). Reconhece também a difícil relação estabelecida entre a religião e a sociedade moderna, principalmente em virtude dos questionamentos impostos pela modernidade acerca da necessidade de um passado fundador como referência (Hervieu-Léger, 2005:87). Em sua perspectiva a crise da tradição religiosa na atualidade reflete a crise de sua transmissão e da ideia de que o passado é referência para explicar o presente. Afinal, o 53 PIERUCCI, Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 30/12/2000. 54 Sobre o pensamento de Daniele Hervieu-Léger a respeito da secularização, modernidade e tradição, ver: CAMURÇA, Sociologia da Religião de Daniele Hervieu-Léger: entre a memória e a emoção, 2003b. 39 “Homem Moderno” se entende como autônomo, o influxo da racionalização enfraquece os “cosmos sagrados” e o processo de diferenciação das instituições implica no fim das “sociedades-memórias”. Tendo em mente que toda “religião implica em uma mobilização específica da memória coletiva” e o individualismo moderno promovem o fim do “indivíduo- memória”, instaura-se então a crise das tradições religiosas. (Hervieu-Léger, 2005:87, 88). Em relação ao modelo linear de secularização Hervieu-Léger propõe uma revisão, afirmando que nas sociedades modernas ela não se reduz à retração da esfera religiosa, implicando também na disseminação de “fenômenos de crença” “flutuantes” e “relativos". Chama a atenção ainda para a necessidade de considerar-se a desregulação institucional da religião, os processos de decomposição, dispersão e recomposição das crenças, além da 55 mobilidade religiosa dos indivíduos modernos. Propostas como a de Hervieu-Léger parecem-me adequadas para analisar a religião na atualidade. A realidade social contemporânea é excessivamente dinâmica e múltipla, não permitindo posições arbitrárias, tais como as que apostam na efetiva realização da secularização e as que apostam na “revanche de Deus”, no “retorno do Sagrado”. A religião alcança novos postos na realidade atual, apresenta-se não como um retorno ao passado transplantado para o presente, mas porta novos valores, novas formas de se relacionar com o 56 mundo, com os adeptos e com os apelos da modernidade. A diversidade contemporânea permite que, paralelamente a um movimento de reforço, ou tentativa de reafirmação do controle institucional religioso, e o crescimento de outras religiões tradicionais, presenciemos uma onda mística que resgata e reforça vivências religiosas particulares, muitas das quais ocorrem, à margem e/ou à revelia das instituições religiosas tradicionais. Este fato não encerra um paradoxo, posto que a atualidade religiosa caracteriza-se, entre outras coisas, pela convivência de elementos herdados da tradição, da modernidade e da pós-modernidade. De acordo com Oro (1996: 64-65) defrontamo-nos com um movimento de ampliação e deslocamento do sagrado, que deflagra a ausência de contornos fixos para o que seja ou não sagrado, não havendo linhas limítrofes que demarquem o domínio do sagrado e do não- sagrado, ou seja, manifestações, eventos e seres que poderíamos qualificar como profanos são envolvidos e cooptados pela “nebulosa” deste sagrado “flutuante” e em constante expansão. 55 Ver Hervieu-Léger, 1999, 2003. 56 Sobre esta questão da religião na contemporaneidade ver também: Clifford GEERTZ, O beliscão do destino: A religião como experiência, sentido, identidade e poder, 2001. 40 Há hoje uma forte tendência globalizante da fé, onde a incorporação de novos elementos é muito mais frequente do que a separação, a restrição ou a segregação. A respeito da manifestação do sagrado em meio contemporâneo Burity (2000), defende que a conjuntura atual da religião destaca-se por sua fragmentação e diversificação. Para ele há “velhas coisas que voltam e parecem ter o frescor do novo; há outras que se anunciam como novas e não conseguem ocultar seu dejà vu; e há as que não se percebem como novas por se insistir em lançar o mesmo olhar sobre as pequenas oscilações como lugares do irrelevante ou disforme” (Burity, 2000:43). Embora a questão da emoção já se manifestasse nas expressões religiosas tradicionais ela é agora muito mais explícita. O “crer e o sentir, a razão e o coração” estão sempre juntos, atendendo à demanda atual de sentido para a vida. Destacam-se as experiências pessoais e as manifestações sensíveis de tais experiências, busca-se um encontro, um “engajamento total do 57 corpo e dos sentidos na expressão religiosa”. Os indivíduos buscam “o contato imediato com o divino, a valorização do simbólico, do milagre, a dinamização dos rituais, a sacralização do mundo, da natureza e da vida, a experiência místico-espiritual, a recuperação da magia e, especialmente, a expressividade emocional.” (Oro, 1996:66) Estas tendências podem ser percebidas observando-se que, com relativa frequência, eventos extraordinários têm marcado o cotidiano dos homens contemporâneos. Não é mais novidade encontrarmos notícias veiculadas pelos diversos meios de comunicação acerca de aparições, sinais, manifestações de santos, em especial Nossa Senhora, que se materializam em vidros, luzes em montanhas, árvores, vozes interiores, dentre outros. O cotidiano secular tem sido atingido constantemente pela magia, o encantamento e o mistério do sagrado o que, no que tange à questão das santificações, se expressa no retorno de antigas devoções bem como na eleição de novos santos e seres sagrados, como os que me proponho a investigar. 2.2: Catolicismo Popular: revisitando alguns conceitos Procurar delinear o que seja catolicismo popular é uma daquelas tarefas que parecem nunca chegar ao fim, ao mesmo tempo em que encerra questões importantes para muitos estudiosos da religião. 57 Françoise CHAMPION, & Daniéle HERVIEU-LÉGER. De l’émotion en religion. Renouveaux et traditions. 1990, cf. ORO, Ari Pedro. Considerações Sobre a Modernidade Religiosa. Sociedad y Religión, nº 14/15, nov. /1996, p.66. 41 O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, uma das leituras imprescindíveis para 58 pesquisadores da religião e da cultura , identificou na década de 1970 a existência de três tendências para análise do catolicismo popular, sendo elas provenientes da Sociologia, da Antropologia e da Teologia. (Brandão, 1988:59-83) Atualmente, como sugerido por Andrade (2006:02), devemos acrescentar às tendências citadas, uma quarta, aquela produzida pelos historiadores, sendo possível identificar, em cada uma delas, elementos e preocupações específicas de seu tempo, de seu contexto histórico-social, embora o objeto seja o mesmo. De acordo com Certeau (1995) foi no contexto do século XIX que se iniciou a redescoberta da religião popular, principalmente por estudiosos do folclore. Na época pensava-se a religião nitidamente dividida em dois polos distintos: o da religião oficial – baseada na ortodoxia, controlada pelo clero, que a ensinava aos fiéis letrados; e o da religião popular – entendida como reduto de sobrevivência de costumes pagãos, superstições, magia, associados a alguns traços do cristianismo. Como reduto da tradição, a religião popular 59 deveria ser protegida da extinção . (Certeau, 1995:55, 64-65) Nas primeiras produções voltadas para a preocupação de resgatar a cultura popular os intelectuais investiram na hipótese de que eles próprios não pertenciam nem à elite nem ao povo, ocupando um campo neutro, metafísico. Esta premissa, a do distanciamento dos intelectuais, de acordo com Certeau, foi o bastante para criar desvios e manipulações – mesmo inconscientes, e projeções utópicas acerca do objeto estudado, haja vista que o instrumental usado pelos pesquisadores e os conceitos elaborados não são em nada neutros, as opções de observação, por si próprias, já definem a abordagem. (Certeau, 1995:64-65) A constatação acima exposta é recorrente no discurso de muitos estudiosos da cultura e da religião, como ocorre com Brandão (1986). Analisando a problemática construção de conceitos e abordagens do catolicismo popular, esse antropólogo ressalta que muitas das discussões desenvolvidas ocultam a evidência de que a própria classificação de “popular”, oposta a um modo “oficial”, legítimo e legitimamente institucionalizado de catolicismo é uma 58 Como afirma Fernandes: "Brandão é o autor que mais tem feito, entre nós, para dar substância empírica e consistência lógica ao conceito de religião popular", suas produções, em especial Os Deuses do Povo, "são leituras obrigatórias para quem se aproxima do tema”. Rubem César FERNANDES. Religiões populares: uma visão parcial da literatura recente, 1984, p. 05. 59 Sobre esta questão, Vovelle afirma que os reformadores do século XVI lutaram contra uma religião popular vívida, ao passo que os folclorista do século XIX a investigaram em seu “leito de morte” (1991:163-164), o que justificaria o desejo de “restaurar” festividades e cerimônias já desaparecidas. Consequentemente, este tipo de abordagem, levou ao entendimento da religião popular como imóvel, anacrônica, e toda e qualquer transformação era identificada como sinal de “degeneração”. Michel Vovelle, Ideologias e Mentalidades, pp. 240-246, 1991. 42 construção erudita, muitas vezes realizada pela própria Igreja. Isso ajuda a explicar porque, aos olhos da ortodoxia, o catolicismo popular representaria uma forma desqualificada de imaginar e viver a religião. (Brandão, 1986:28-29). A presente tese, ao retomar a questão do catolicismo popular, precisou se defrontar com uma interlocução com os vários autores que estabeleceram os contornos básicos deste conceito paradigmático. Consciente da importância de buscar referências sobre o catolicismo popular, bem 60 como da polissemia típica deste termo, tomei como ponto de partida a década de 1960 , significativa para os estudos sobre o catolicismo no Brasil por ser o momento em que os temas relacionados à religião, de modo mais amplo, voltaram a aguçar o interesse de um maior número de pesquisadores, preocupados em constituir um campo de investigação próprio para os estudos da religião. Nesta época ocorre uma redescoberta dos clássicos, sendo retomadas, mais frequentemente, as produções de Marx, Weber, Durkheim e 61 Malinowski. Com grande ênfase nos estudos empíricos, as discussões empreendidas pelos pesquisadores giravam em torno das relações entre religião e sociedade, mantendo ainda como característica compartilhada a preocupação em estabelecer tipologias para o estudo do 62 fenômeno religioso. Entre os estudos realizados sob esta ótica, ao final da década de 1960 e início dos anos 70, merecem destaque os de Queiroz (1965) e de Camargo (1973), sociólogos que exerceram, e ainda exercem grande influência sobre os pesquisadores da religião. Através de suas investigações identificaram na religião e sua presença na sociedade, vista tanto pela participação como pela articulação entre seus membros e a sociedade, um conjunto de relações capazes de tornar inteligíveis como são e, como funcionam as construções sociais presentes no religioso. Outro sociólogo, Thales de Azevedo, também contribuiu significativamente para o debate sobre as questões metodológicas no estudo do catolicismo. Preocupou-se em 60 Segundo Queiroz (1988) o primeiro momento de valorização dos estudos sobre religião/religiosidade no Brasil ocorreu em fins do século XIX, época em que os intelectuais brasileiros buscavam definir o ‘brasileiro’, criar ‘imagens do Brasil’, na tentativa de revelar as diferenças entre o Brasil e o resto do mundo, enfim, definir a ‘identidade’ do Brasil. Interesse amenizado por volta dos anos 20 do século seguinte. Embora ensaiasse um retorno já nos anos 50 é somente na década de 60 que, de fato, o tema da religião retorna aos meios acadêmicos. 61 Conf. Indica, entre outros, os estudos de FERNANDES (1984), OLIVEIRA (1998), MONTERO (1999) e ANDRADE (2006). 62 A preocupação em identificar ‘tipos’ de catolicismo, por exemplo, levou Maria Isaura P. Queiroz, em 1965, a descrever sete tipos de catolicismo: catolicismo oficial, catolicismo cultural, catolicismo popular, catolicismo misturado com magias e crenças indígenas, catolicismo associado aos cultos africanos, catolicismo reunido com espiritismo e o catolicismo em sincretismo com o espiritismo e os cultos africanos. Em estudos posteriores apresentou o ‘catolicismo rústico’ ou ‘sertanejo’, o mais usado dos conceitos e classificações que Queiroz elaborou (Cf. ANDRADE, 2006:3). 43 identificar de que maneira se constituiria uma sociologia da religião e elaborou, em 1966, uma tipologia do catolicismo, descrevendo o catolicismo popular como uma “religiosidade que se relaciona mais com a estrutura da comunidade local do que com a sociedade nacional, sendo relativamente independente da Igreja formal”. (Azevedo, 1966:184). De forma mais visível é a partir dos anos 70 que firma-se o interesse dos 63 pesquisadores pelos temas típicos do catolicismo popular no Brasil , tais como: as devoções aos santos, os messianismos, as festas e romarias. Entre os estudos de então temos produções de historiadores (Riolando Azzi, Oscar Beozzo, Eduardo Hooranert), sociólogos (Pedro Ribeiro de Oliveira, Luiz Roberto Benedetti, Duglas Teixeira Monteiro) e antropólogos (Carlos Rodrigues Brandão e Alba Zaluar). Analisando produções científicas desta época Paula Montero (1999) conclui que os pesquisadores preocupavam-se principalmente com as problemáticas relacionadas à repressão e à emergência dos movimentos sociais. Inseridos neste contexto, os estudos referentes ao catolicismo refletem as preocupações políticas da época e as questões de dominação e luta de classes ocupam papel importante nas reflexões produzidas. 64 Em parte influenciados pelas s de Bourdieu (1978) , acerca dos “especialistas oficiais e não-oficiais” da religião, a maioria dos estudos deste período giram em torno das relações estabelecidas entre o catolicismo oficial e o catolicismo popular, afirmando o campo do catolicismo popular como “espaço de re-significação” do catolicismo oficial.(Luiz Silva, 2003) Entre os historiadores destaco Riolando Azzi (1978) e Eduardo Hoornaert (1974) que se uniram na hipótese da não existência de um catolicismo oficial e autêntico, definido como tal pelo direito canônico e pela Teologia. Para eles um catolicismo oficial não seria prerrogativa nem do próprio clero, ocorrendo, sob a configuração de catolicismo, a organização de um sistema impregnado de elementos de diferentes civilizações. Neste caso, a classificação hierarquizadora em oficial ou popular seria resultante da pretensão dos religiosos 63 Estudiosos de outras nacionalidades também passaram a dedicar-se ao estudo do ‘cristianismo popular’ a partir dos anos 70 do século XX, entre outros: André Vauchez, Carlo Ginzburg, Dominique Julia, Georges Duby, Jacques Le Goff, Michel Mollat, Natalie Davis. Estas novas interpretações demonstraram que não seria possível mais considerar a separação rígida entre oficial e popular, além disto, a religião popular não poderia continuar sendo identificada como primitiva ou degenerada. Cf. Jean DELUMEAU. L’histoire de la christianisation, p. 138-153, 1981. 64 Pierre Bourdieu afirma existir dois tipos de produção de bens religiosos: 1) a "autoprodução" religiosa, que é produzida pelos grupos populares e são pertencentes a todos os membros dos grupos em que foi produzida; 2) a “produção religiosa dos especialistas”: “especialistas” são aqueles que têm como função específica a produção dos bens religiosos, são ‘sustentados’ para produzir doutrinas e rituais preestabelecidos pelas instituições. Ao serem legitimados pelas instituições os especialistas se tornam os ‘detentores do monopólio do capital religioso’, isto é, os únicos aptos a exercer as atividades religiosas relacionadas as suas instituições. Pierre BOURDIEU. Gênese e estrutura do Campo Religioso, 1978. 44 em considerar o cristianismo praticado por eles como a expressão da verdade, em detrimento das práticas e concepções associadas ao povo. Em trabalhos posteriores, assumindo a classificação oficial e popular como referências, Azzi acentua que no catolicismo popular as relações com o sobrenatural são bastante humanizadas. A presença do sacerdote seria dispensável ou acessória, e os cerimoniais se caracterizariam pela vasta expressão corporal, gestos excessivos, o gosto pelo emocional, o ritual e as penitências. Ao mesmo tempo, o catolicismo popular se enquadra dentro da religião oficial, tirando dela inspiração para os diversos enfoques, se expressando em formas religiosas de tradição judaica, indígena e africana, adequadas aos costumes e cotidiano dos fiéis. (Azzi, 1987a: 215-217) Outra obra referência para minhas pesquisas, Os Santos Nômades e o Deus Estabelecido (1983) de Benedetti, manteve o foco nos conflitos situados entre ortodoxia e crenças populares. Adotando a região de Campinas (SP) como espaço de investigação, Benedetti empenhou-se em realizar uma pesquisa histórico-social da estrutura de produção do catolicismo e os conflitos a ela inerentes, realçando os instrumentos de poder construídos pela ortodoxia. Em sua proposta existiriam os santos nômades – aqueles da devoção popular, nômades como seus devotos, os trabalhadores, agentes de uma economia de subsistência, anterior à urbanização; e o Deus estabelecido - referente ao universo do padre, que por sua vez, associava-se aos proprietários de terras, e, paulatinamente, tentava impor seu controle sobre os santos nômades. (Benedetti, 1983:09) A mesma tônica é encontrada em estudos do sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira que definiu o catolicismo popular como o conjunto das práticas e das representações católicas institucionais adotadas pelos devotos com relativa independência das autoridades eclesiásticas. (Oliveira, 1985:122) Ainda na década de 80 encontramos a obra Os homens de Deus, de Alba Zaluar 65 (1983) , onde é igualmente notável a preocupação em demarcar o popular e o oficial como polos em constantes embates. Merece destaque o cuidado da autora ao destacar o poder da religião popular em atuar nos processos históricos não como folclore ou artifícios dos subalternos, mas como uma religião que diz respeito à vida prática, ao cotidiano, em nada inferior à religião dita oficial. 65 Dissertação de mestrado defendida em 1974 e publicada em 1983. Para realizar suas investigações Zaluar utilizou-se basicamente dos ‘estudos de comunidades rurais’, comuns nos anos 40 e 50. Estes ‘estudos’ comportavam descrições detalhadas de localidades selecionadas, oferecendo informações sobre diversos aspectos da vida social local, o que, segundo a autora, permitiria uma apresentação rica e contextualizada dos ritos religiosos. Alba ZALUAR. Os Homens de Deus. Um estudo do santos e das festas no catolicismo popular, p. 14, 1983. 45 Contemporâneo de Zaluar, Brandão (1980) classificou o catolicismo oficial como aquele típico das elites - rígido, hierárquico, dominante; ao qual se contrapunha o catolicismo popular - heterogêneo, ecumênico por natureza e sem regras rígidas, onde se reuniam os destituídos de poder e de conhecimento, para ele, o povo e suas representações e re- significações (Fernandes, 1984:06). Na concepção de Brandão as expressões catolicismo luso-brasileiro ou catolicismo popular designam o catolicismo resultante do trabalho cultural e religioso de agentes ibéricos, mesclado às influências de sistemas de crenças e cultos indígenas, afro-brasileiros e espíritas. Esse catolicismo preservou da doutrina canônica e do imaginário fantástico da Igreja colonizadora ibérica quase toda a estrutura de símbolos, de articulações de códigos e 66 princípios de conduta social. (Brandão, 1986:134) Ainda nos anos 80 encontramos a obra de Pierre Sanchis, Arraial, Festa de um Povo (1983), que pode ser considerada, sob alguns aspectos, como precursora dos estudos realizados na década seguinte. Nela, não desconsiderando as dimensões políticas e econômicas bem como o tema da erudição oficial e suas relações com o catolicismo popular, Sanchis insere em suas análises questões mais proeminentemente culturais e simbólicas. Conforme explicita Fernandes (1984), na obra supracitada, Sanchis dedicou-se a investigar a relação entre o catolicismo institucional e o popular, estudando as festas populares, baseando-se nos vetores “norma e desvio, a disciplina e o desafio dos limites, a segurança e os riscos da dor e da alegria, os rigores clericais e a exuberância da festa popular”. (Fernandes, 1984:07) Esta preocupação, ou este olhar voltado para elementos das manifestações culturais e construções simbólicas dos fiéis, como meio para o entendimento da relação oficial-popular, presente em Sanchis, aparece como marca identificadora dos estudos das décadas de 90, tais como os de Maués (1987) e Steil (1996). A diferença essencial entre os estudos deste período e o anterior encerra-se na mudança de visão das Ciências Sociais, no que concerne ao estudo das relações entre religião, política e cultura. Em geral, nos trabalhos dos anos 70 e 80 prevaleceu o par “religião- 66 Segundo Montero (1999) a abordagem de Brandão sobressai-se por considerar o catolicismo popular como um “sistema particular de crenças”, enfatizando o papel das festas, das promessas e dos milagres. Ao enfatizar o seu rico universo de valores e cosmovisões, livrou-o de ser classificado como algo residual, colaborando, de forma relevante, para a superação do reducionismo sociológico das análises que reduziam a religião “ao grito dos despossuídos”, isto quando a avaliavam positivamente (1999:335-336). Por outro lado, considera que as investigações de cunho antropológico, como as desenvolvidas por Brandão e Zaluar, embora fundamentais para desenvolver a ideia de que o ‘catolicismo popular’ pode ser interpretado como uma legítima “forma de expressão política dos excluídos”, portam uma tendência que “projetou o ‘povo’ nos moldes de uma sociedade camponesa em desagregação no espaço urbano” e, precisamente por isto, não conseguiram produzir argumentações, eficazes o bastante, para interpelar as reflexões sociológicas e da ciência política acerca da religião. (1999:336). Paula MONTERO, Religiões e dilemas da sociedade brasileira, 1999. 46 67 política” , enquanto os produzidos a partir da década de 90 centram-se no par “religião- cultura”. (Luiz Silva, 2003). A nova perspectiva trouxe para o debate as tensões internas do catolicismo, entendidas como elementos chave para as leituras e interpretações socioculturais. A religião católica passa a ser interpretada como portadora de multiplicidade de sentidos, de pluralismos e porosidades, como apresentado, entre outros, por Steil (1996) e Sanchis (1986). Pautando-se na noção de imbricamentos, de interferências mútuas, outra teoria que muito tem influenciado os estudiosos da religião popular propõe a existência da “circularidade cultural”, a interferência recíproca entre as culturas popular e erudita. Essa teoria foi apresentada por Mikhail Bakhtin em seu estudo sobre François Rabelais (1985) e adotada posteriormente pelo historiador Carlo Ginzburg (1987) em O queijo e os vermes, obra resultante de seus estudos sobre feitiçaria no século XVI. Minha proposta foi realizar uma pesquisa sobre a construção da santidade que, sem perder a perspectiva sociológica das classes e extratos sociais, enfatizasse a dimensão antropológica do cultural e simbólico, o que se reverte num maior diálogo com os trabalhos produzidos após os anos 90, com a ideia de “circularidade cultural” e, de certa maneira, atende à sugestão de Montero (1999:338) acerca da concretização de uma proposta de trabalho que una especialidades disciplinares da antropologia e da sociologia, a essas acrescento a história, em busca de uma análise mais sofisticada e menos unilateral. Assumindo uma possibilidade interdisciplinar busquei investigar a santidade e suas inter-relações com os demais elementos do tecido social, partindo do pressuposto de que as manifestações aparentemente apenas religiosas não estão destituídas das questões profanas, como as relacionadas ao status, aos conflitos e ao poder (Desan, 2001:93). Além disso, retomo o tema do catolicismo popular em uma realidade histórica-social bastante diversa daquela encontrada entre os anos 60 e 80, tendo em vista que as maneiras de ser religioso se transformaram no devir histórico, bem como as relações entre as diferentes igrejas, entre estas e seus fiéis, entre os fiéis de uma mesma denominação religiosa e os que professam outra crença, todos inseridos em um mundo plural, globalizado, tecnológico, dinâmico, em constante transformação. 67 E mesmo o destaque dado às religiões populares ainda estava marcada pelo crivo da política, onde o catolicismo popular esteve contrastando com as ‘pastorais populares’. Cf. Rubem César FERNANDES. Religiões populares: uma visão parcial da literatura recente, 1984. 47 3 - A PRESENÇA DOS ESCOLHIDOS DE DEUS NO DEVIR HISTÓRICO-CULTURAL 3.1: Sobre santos e santidade Como exposto no capítulo anterior, pesquisas recentes demonstram que as transformações ocorridas com o advento da modernidade e seu tributo à secularização e à racionalização não eliminaram a religião da sociedade, tampouco impediram a criação de novas crenças, novos santos e renovações de antigas devoções. Segundo Vauchez o conceito de santidade está presente na maior parte das grandes religiões, assumindo um significado ambivalente, visto que “evoca, de fato, algo de terrífico, que implica uma separação radical da condição humana, mas também a possibilidade de uma relação com o Divino susceptível de efeitos purificadores”. (Vauchez, 1987:28) Ainda de acordo com Vauchez, embora haja santos em outras religiões, foi com o 68 cristianismo, e em alguma medida com o islamismo , que a noção de santidade se “vulgarizou e difundiu na mentalidade comum, a ponto de se tornar um elemento de importância fundamental para a compreensão de certas civilizações e de certas épocas” (Vauchez, 1987:287-288). Analisando as produções especializadas pode-se inferir que os santos atuam unindo não apenas o mundo dos vivos e dos mortos, como indicado por Peter Brown (1983:15), mas une ainda o que é inovador ao que é tradicional. Sob este prisma é correto considerar que a história da santidade é sempre, ao mesmo tempo, uma história de inovações e tendências permanentes à conservação, como provam, por um lado, a duração dos cultos e da patronagem das igrejas, e, por outro lado, a presença persistente dos martírios e das vidas de santos antigos até em obras novas pela forma e pela finalidade (Boesch-Gajano, 2002:461). Uma hipótese que ajuda a entender a efervescência contemporânea em relação aos santos, tanto na ampliação e divulgação das devoções entre fiéis, quanto no aumento do interesse por seu estudo entre pesquisadores. 68 No islamismo os santos são designados awliyá (no singular Wali) de Deus – ‘vassalos de Deus’. A palavra Wali tem duplo sentido, sendo entendida como ‘hóspede e hospedeiro’. Deus é o Wali dos crentes, e o santo é o Wali de Deus e dos homens, seu guia, protetor e intercessor. Os dois elementos básicos da santidade no Islã são o ‘anonimato dos santos e proximidade de Deus’. Cf. Jean DELUMEAU e Sabine MELCHIOR-BONNET. De Religiões e de Homens, p. 297, 2000. 48 Desde sua origem o culto aos santos representa um dado significativo na história da humanidade. Peter Brown (1983) indica que o surgimento e o progresso desse culto provocaram grande impacto sobre a organização social, espacial e mesmo política da sociedade. Para ele, a primeira grande novidade foi o rompimento da fronteira entre a cidade dos vivos – onde a vida social, econômica e política se realizavam, e a cidade dos mortos – precisamente representada pelos cemitérios, o lugar onde estavam os excluídos do mundo dos vivos, sob este prisma, marginais, sem poder de influência sobre os rumos das sociedades. (Brown, 1983:15) Os novos esquemas de crença e vivência da fé provocaram uma re-interpretação dos cemitérios. Eles passaram não só a fazer parte das cidades, como também, no lugar de antigos cemitérios, precisamente em torno dos túmulos dos mártires, surgiram santuários que, paulatinamente, deram origem a novas cidades redesenhando o mapa do mundo até então conhecido. (Brown, 1983:17-19) No plano político, os bispos cristãos fortaleceram seu poder assumindo o controle destes santuários e, por conseguinte, das devoções e reconhecimento dos santos enquanto tais, o que acabava por converter-se em poder político para os mesmos.69 As regras para reconhecimento ou atribuição de santidade só iriam se alterar a partir do século XI, quando se intensifica o esforço da Igreja em prol de sua centralização. Os processos de investigação e confirmação da santidade, como conhecidos hoje, se firmaram a partir do século XII. A partir de então se generalizou que apenas o papado teria direito de 70 canonizar os santos. Há muito os santos são objetos do interesse científico e são identificados como personagens historicamente situadas, significativas para estudo e entendimento de determinada sociedade. Uma análise histórica dos cultos põe em evidência a variedade de 69 Como exemplos de como esta ‘ponte’ entre a Igreja e o poder político ocorria na prática podem ser citadas as santificações de representantes da realeza, como o ocorrido com Luís IX da França e Fernando III de Castilha; ou ainda o caso da santificação de Joana D’Arc - camponesa julgada e condenada por bruxaria, queimada na fogueira da inquisição em 1431 - alguns estudiosos apontam que sua canonização (1920) foi mais o resultado de uma “necessidade de um bom entendimento entre o Vaticano e o governo francês” do que reconhecimento da devoção do povo, que já a tinha proclamado ‘santa’, levando em conta sua agonia e o dom de ouvir vozes celestiais. Juan G. ATIENZA. Santos Pagãos: deuses ontem, santos hoje, pp. 8-9, 1995. 70 Jean DELUMEAU & Sabine MELCHIOR-BONNET. De Religiões e de Homens, pp. 291-292, 2000. As disposições canônicas transferiram dos bispos para o papado o poder de anunciarem a santidade. Politicamente isto não resultou em enfraquecimento dos clérigos em suas respectivas localidades. Com o culto aos santos, túmulo e altar foram reunidos e isto colaborou para o reforço da autoridade religiosa de forma geral. Peter BROWN, Le culte des Saints, p.20, 22, 24-25, 1983. 49 tipos e os modelos de santidade que expressam os hábitos, práticas religiosas, interesses 71 institucionais, enfim o contexto sociocultural em que se inserem. Inspirados por esta relevância dos santos para o conhecimento dos momentos histórico-culturais de determinados períodos e regiões, alguns estudiosos dedicaram-se a construir referências mais sistematizadas sobre as variadas santidades e suas relações com os contextos históricos em que prevaleceram na tentativa de destacar a santidade não apenas como um evento espiritual, de caráter atemporal, mas como um fenômeno intrinsecamente ligado ao devir histórico-cultural. A partir da literatura produzida sob este prisma – o de identificar a santidade como fenômeno histórico-cultural; e guardando os devidos cuidados, por considerar que não seja prudente, tampouco possível, associar de forma rigorosa, determinados períodos históricos a um ou outro modelo de santidade, optei por traçar a breve história da santidade por entender que isto seja um referencial valoroso para as análises empreendidas nesta tese. Estudioso da questão da santidade Vauchez (1987, 1989) afirma que, durante muitos 72 séculos, o martírio sangrento, materializado pela via do sofrimento físico, foi tido como sinal mais proeminente da santidade, embora não fosse o único. Desde os primórdios da Igreja a virgem e os apóstolos também foram venerados como santos pela comunidade de fiéis, no entanto, o mártir ocupa lugar especial no imaginário ocidental, tendo se radicado no traço mais autêntico do cristianismo, em relação às outras religiões, que é precisamente a interpretação da morte como meio de redenção, o resgate do homem pela fidelidade ao exemplo de Jesus. A partir do século IV a nova visibilidade política e social do cristianismo firmou um novo estilo de santidade. Nesta época os eremitas, cenobitas e bispos tornaram-se os modelos exemplares, os “novos mártires” que haviam substituído o martírio de sangue pelo da penitência e da prática das virtudes. (Boesch-Gajano, 2002:456) 71 Exemplos desta possibilidade de conhecimento de uma determinada época, a partir do estudo dos santos, estão presentes, entre outros, em Jacques Le Goff (‘São Francisco de Assis’, 2001); e Boesch-Gajano (2002:456) que aponta a produção hagiográfica dos séculos VI e XII como fontes para estudar as transformações ocorridas numa região geopolítica (fim da unidade mediterrânea; o contato com as populações não romanas; o alargamento das fronteiras internas e externas; o desenvolvimento das instituições eclesiásticas e monásticas, a progressiva fusão das elites políticas e religiosas; os problemas ocorridos por calamidades naturais e guerras, as variações nas formas de divisão dos poderes no decorrer dos séculos, inseridas na modificação das relações entre cidade e campo). 72 Etimologicamente, do grego, o termo martyr é equivalente à testemunha, assim, os mártires do cristianismo eram essencialmente ‘testemunhas de Cristo’ e de seus ensinamentos. Na obra De Religiões e de Homens, os autores chamam a atenção para o fato de que “os doutores” da Igreja e os monges dos primeiros séculos também eram ‘testemunhas de Cristo’, e foram em alguns casos santificados, embora não tenham derramado seu sangue em defesa da fé. Jean DELUMEAU e Sabine MELCHIOR-BONNET, p. 89, 2000. 50 No decorrer da Idade Média, a partir do século V, a busca pela construção de uma espiritualidade cristã apontou por diversos caminhos e condutas, ora buscava-se um Estado Religioso, ora a fuga do mundo que se tornara o lugar do mal, ora defendia-se uma ação direta no mundo, para transformá-lo no Reino de Deus. Com relação à santificação feminina, durante todo este período, a mulher foi excluída ou julgada negativamente pelos religiosos, postura que só começou a se alterar, efetivamente, no século XIII. De modo geral, mesmo que tenham ocorrido algumas alterações nos estilos de santidade no decorrer dos séculos, a relação entre o sofrimento e a santificação se estendeu por vários séculos, atuando inclusive na origem de devoções aos santos reis, em geral monarcas vítimas de mortes violentas, casos mais comuns até o século IX. (Bartholo, 1991:18) As fontes informativas sobre os santos, quase sempre produzidas por religiosos, indicam que até os séculos X, XI e XII, encontramos “modelos persistentes, embora nunca estáveis nem homogêneos” de santidade. A hagiografia produzida é dominada por figuras de bispos e abades ou por personagens dotadas de um estatuto religioso bem preciso – quase sempre, figuras masculinas. (Boesch-Gajano, 2002:456) É possível apontar como traço marcante no período citado o surgimento dos “santos reformadores”, especialmente a partir do século X, tanto entre monges quanto entre os bispos. No século seguinte, época de reforma da Igreja, a “santidade de função”, ou seja, aquela estabelecida mediante um trabalho teológico e a prática cultual, passou a constar entre os modelos de santidade, tendo Gregório VII como seu mais eminente divulgador. (Boesch- Gajano, 2002:456) Ainda no início do século XI o parâmetro da exemplaridade levou à santificação de governantes, dando origem aos chamados rex bonus ou rex justus, por serem citados como grandes colaboradores na construção de templos e expansão dos domínios da Igreja. Nesta época, à noção de santidade marcada pelo sofrimento agregou-se outro componente – o nascimento nobre. Com isto, “santidade, poder e distinção aristocráticas”, ficaram intimamente ligados, o que não se restringia a um indivíduo, mas ao grupo familiar, 73 originando a “santidade de linhagem” ou “dinástica”. 73 Cf. M. E. C. BARTHOLO. Que seja feita a tua vontade: um estudo sobre santidade e culto aos Santos no catolicismo Brasileiro, pp. 16-18, 1991 e Sofia BOESCH-GAJANO. Santidade, p. 457, 2002. 51 A partir de meados do século XII e início do XIII, as virtudes evangélicas de humildade, pobreza e ascetismo ganham vigor, mas tanto na Europa Central quanto Oriental, 74 não afastaram dos altares os representantes da nobreza. Diferentemente, nos países mediterrâneos, principalmente na Itália, prevalecia a existência de santos oriundos das classes menos abastadas, muitos deles representantes do povo trabalhador e humilde, mantendo-se uma ligação estreita entre pobreza, sofrimento e santidade. Havia ainda, no Mediterrâneo, uma distinção quanto ao que se entendia por santidade. As venerações presentes no campo eram, em sua maioria, ligadas a eremitas e reclusos, ao passo que na cidade havia prevalência dos penitentes e religiosos mendicantes. (Bartholo, 1991:16-18) A partir do século XIII foi constituindo-se uma concepção de santidade aberta a todos aqueles que se deixassem tocar pelos valores cristãos, em detrimento da ideia da perfeição inata ou herdada, comum nos períodos anteriores. Sob essa concepção de santidade a “espiritualidade feminina”, marcada especialmente por experiências místicas intensas e pela penitência, consegue ser reconhecida, tendo como modelo exemplar Maria Madalena, a 75 pecadora purificada e santificada mediante sua conversão, resignação e penitência. De acordo com Vauchez (1995), no século XIII, dentro da história do cristianismo, um dos aspectos mais originais da espiritualidade ocidental foi o lugar ocupado pelas mulheres. Assistiu-se naquele tempo ao surgimento de uma "espiritualidade feminina", diferente e independente da espiritualidade dos homens, que representou a superação do ideário religioso que remetia às mulheres uma grande carga de suspeitas, resultantes de uma constante referência à Eva em seu pecado original, bem como da tradição literária herdada da antiguidade, que classificava as mulheres como fracas intelectual e moralmente. (Vauchez, 1995:149-150) Desde o século XII, alguns precursores, como Santa Hildegard de Bingen, já se posicionavam contra tais interpretações sobre as mulheres. É certo que a mudança quanto ao reconhecimento da espiritualidade feminina não representou sua libertação da dominação 74 Entre os “santos penitentes” mais citados estão as princesas: Santa Elizabeth da Turíngia (+1231); Santa Edwiges (+ 1243); Santa Margarida (+1231). (Cf.: BARTHOLO, 1991:18). Encontramos ainda no século XIII São Francisco de Assis, nobre que optou pela pobreza no seguimento de Cristo, indicado como pioneiro nesse domínio. (BOESCH-GAJANO, 2002: 457; LE GOFF, 2001:231). 75 Maria Madalena surge como uma terceira via para classificação das mulheres, um elemento mediador para a exemplaridade feminina antes remetida ou à figura de Eva - que sendo a primeira mulher desempenharia o papel de ‘mãe da humanidade’, entretanto em virtude de seu ‘pecado’, teria atirado para fora do paraíso toda sua descendência, condenando assim a humanidade a penar e a sacrificar-se por toda a eternidade, afinal, por sua desobediência nos tornamos “os degredados filhos de Eva”; – ou à figura de Maria – exemplo extremo de virtude, generosidade e obediência a Deus, humanamente impossível de ser imitado com perfeição. André VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média Ocidental: (séculos VIII a XIII), pp. 149-150, 1995. 52 masculina nos planos sociais e religiosos, mas, além de reconhecer sua igualdade com os homens no que tange à Redenção, permitiu que muitas mulheres, dedicadas às experiências de vida espiritual intensa, conseguissem nesse domínio uma ampla autonomia, e até certa superioridade em relação aos homens. (Vauchez, 1995:149) Para Vauchez (1995) a difusão da “espiritualidade penitencial” foi bastante favorável às mulheres, na medida em que associava a santidade ao amor e à contrição, mais do que a um estilo de vida previamente estabelecido. (Vauchez, 1995:150-151) A Idade Média foi palco para inúmeras canonizações, uma quantidade superior ao que se tinha em qualquer outra época até então. Em relação às santificações femininas, entre os anos de 1250 e 1300, houve um aumento percentual de até um quarto, culminado com um número próximo de trinta por cento na metade do século XV, demonstrando um significativo aumento da aceitação de mulheres santas por parte da Igreja. (Dalarun, 1990:58) Alguns estudos realizados por Bynum (1994) levam à conclusão de que a santidade se torna mais feminina a partir do momento em que ela se torna laica. Suas pesquisas demontram que entre os santos laicos 50% são mulheres já no século XIII, e chegam a 71,4% a partir do ano 1305. (Bynum, 1994:39) A emancipação espiritual feminina levou à organização de congregações institucionais especificas para receber mulheres religiosas, entretanto, a procura por conventos femininos foi superior às expectativas da Igreja. Surgiram então espaços alternativos, com o ocupado pelas beatas, as clausuras nas próprias casas, as mulheres semi-religiosas, como as beguinas e as 76 Filhas de Deus. A relativa independência de algumas mulheres no trato com o sagrado, especialmente no caso das místicas, não foi bem aceita pela Igreja, e elas foram novamente associadas ao mal. Vistas como verdadeiras ameaças no âmbito católico, muitas mulheres passaram a ser perseguidas pela Igreja, acusadas de heresias, sendo de novo desqualificadas e até mesmo caçadas pela inquisição, por motivos dos mais variados, incluindo a acusação de bruxaria (Vauches, 1995:156). Assim, várias mulheres até então reconhecidas como milagreiras passaram a ser consideradas hereges, por intermédio do Santo Ofício, e denunciadas como falsas profetizas. No decorrer do século XIV evidencia-se a consolidação do princípio de exaltação do clero, a centralização e “deificação” na figura do papa, resultantes de um movimento já 76 As semirreligiosas eram celibatárias ou viúvas que assumiam, já adultas, uma forma de vida religiosa individual ou comunitária, associando a prece, a prática da caridade e o trabalho manual como meio para devotarem-se ao religioso. André VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média Ocidental: (séculos VIII a XIII), pp. 152-153, 1995. 53 iniciado no século XI. Nesta época a cúria fortalecida impôs grande rigor na ortodoxia e severidade nas penas dirigidas às manifestações religiosas independentes. (Peixoto, 2006:75) O contexto do século XIV forneceu ainda as bases para a Reforma Protestante, cujos representantes opunham-se às indulgências, a missa, as peregrinações, os votos monásticos, a transubstanciação e a intercessão da Virgem Maria e dos santos, propondo a recriação da vida cristã. Como resultado desta nova perspectiva, nas regiões onde a Reforma foi vitoriosa, o culto aos santos foi duramente reprimido, quando não eliminado. (Vauchez, 1987:289) Mediante as críticas sofridas, a Igreja Católica passou a controlar mais a devoção popular e, através dos decretos de Urbano VIII (1625 e 1634), ficou estabelecido que o papa, só poderia reconhecer oficialmente a santidade de um homem ou de uma mulher se ficasse devidamente comprovado que, o candidato a santo, nunca antes tivesse sido objeto de culto público. A intenção era que o povo deixasse de ser “criador de santos autênticos”, cabendo este papel estritamente à hierarquia que, com raras exceções, dedicou-se a eleger como santos os sacerdotes, monges, místicos e doutores da Igreja. (Vauchez, 1987:289) Desta forma, a partir do século XVI, a encarnação do modelo de santidade, majoritariamente, está em pessoas oriundas dos quadros da Igreja. A “santidade oficial” passou a desenvolver-se, quase que exclusivamente, no âmbito dos “institutos de perfeição”, constituindo-se na “expressão perfeita de uma religião puramente espiritual”, onde os santos deviam encarnar virtudes heroicas, propostas à imitação dos fiéis. .(Vauchez, 1987:298-299) No decorrer dos séculos XIV e XV a Igreja Católica renunciou à canonização como forma generalizada de sanção dos cultos, aceitando de fato a distancia entre formas de 77 reconhecimento espontâneo local e formas de reconhecimento oficial central. Em relação às santificações femininas, passou-se da “desconfiança à tutela permanente para chegar à discriminação sistemática entre manifestações presumidas divinas e 78 manifestações presumidas diabólicas.” As perseguições se tornaram ainda mais sistemáticas nos séculos XVII e XVIII. Muitas mulheres pagaram com a vida pela busca da santificação. Os delírios das místicas eram entendidos como alheios ao universo da santidade, e as perseguições mantidas sob a 77 Do final do século XV até a primeira metade do século seguinte, em grande medida devido aos questionamentos dos reformadores, que defendiam ser apenas Cristo a fonte de santificação, a Igreja Católica passa a lutar contra “eventuais abusos” da instituição nas santificações. Apesar de ter legitimado o culto aos santos pelo Concílio de Trento (1545-1563), passou a controlar as práticas devocionais, visando evitar a criação de novos santos. No século XVII foi proibida a canonização de pessoas que tivessem sido objeto de culto público, antes da beatificação. Sobre isto ver: Sofia BOESCH-GAJANO. Santidade, 2002; VAUCHEZ, Santidade, 1987, Raquel dos Santos LIMA. “Oh! Que imitem a Santa Rita de Cássia!” As mulheres de nosso tempo: representações e práticas da devoção em Viçosa (MG), 2003-2006, 2006. 78 Sofia BOESCH-GAJANO. Santidade, p. 459, 2002 54 justificativa da necessidade de se cuidar para que as “falsas santas” não fossem confundidas com as “verdadeiras”, separando-as por uso da força e do método. (Souza, 2001:124) A posição da mulher na Igreja só começou a se alterar novamente no limiar da era moderna. A partir de uma filiação a Maria - preceito difundido especialmente pelo pensamento católico do século XIX-, as mulheres foram, mesmo que aparentemente, revalorizadas e simbolicamente entendidas como salvadoras da sociedade, em consequência de sua maternidade idealizada, no quadro da família sacramentada, ou seja, do casamento entendido como necessário ou como um pecado venial. (Ary, 1995:06) A devoção a Maria, que surgira entre os católicos antes mesmo dos concílios e cismas inaugurados em seu nome, fez com que Ela, antes de se “tornar Mãe da Igreja, se tornasse Mãe dos Homens, rainha dos simples, a companheira de todas as mães sofredoras, o exemplo de todas as donzelas, a Mãe divina de todos os desesperados.” Entre Maria e a mulher dá-se, quase que de imediato, um fenômeno de identificação, ao passo que os homens viam nela a Mãe, aquela a quem sempre se recorre, a origem de suas vidas (Silva, 2006:06), características que serão transferidas como ideais a todas as mulheres. Efetivamente a revalorização da espiritualidade feminina reflete uma necessidade da Igreja Católica em adequar-se aos novos parâmetros anunciados no século XVIII e confirmados nos séculos seguintes. Naquele tempo, mediante as transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas, a Igreja precisou rever o lugar da mulher em seus quadros. O mundo tornava-se insensível aos apelos da fé, devido ao crescente racionalismo difundido pelas ideias iluministas, pelo desenvolvimento da ciência, o advento da industrialização, as mudanças nas relações de trabalho, familiares, dentre outras novidades. A Igreja esvaziava-se de homens, promovendo, forçosamente uma aproximação do feminino ao âmbito do catolicismo, tentando consolidar um tipo de ideal feminino adequado à sociedade e à Igreja: filhas obedientes, esposas obedientes e devotadas, mães dedicadas e amorosas, arrimos da família, cumpridoras, sobretudo, de sua obrigação natural: a maternidade. No entanto, apesar da adequação das mulheres aos interesses da Igreja, de seus investimentos nos afazeres religiosos, sendo maioria nos trabalhos de base e na frequência aos cultos, nem sempre elas eram chamadas a participar das decisões sobre os rumos dessa mesma 79 Igreja. 79 Segundo Ary (1995), o lugar ocupado pelas mulheres na Igreja, aqui se referindo à Igreja Católica, comporta, desde sempre, um grande paradoxo: por um lado elas estão excluídas dos lugares de poder e são, portanto, 79 desvalorizadas enquanto pessoas ; por outro lado, representam o grupo mais fiel, mais assíduo e numericamente 55 O século XX trouxe mudanças também na maneira como os santos eram interpretados. Associadas às mudanças ocorridas na Igreja, as transformações sociais promoveram a perda da influência social dos santos (Vauches, 1987:298-299) e, apesar de constar na constituição Lumen Gentium, apresentada durante o Concílio Vaticano II (1962-1965), foi apenas a partir do pontificado de João Paulo II (1978-2005) que o tema da santidade ganhou novamente destaque. Este fato ficou explícito pela tentativa de renovar e ampliar as canonizações, efetuada pelo Papa João Paulo II, diminuindo a burocracia em torno dos processos canônicos, e pelas considerações expostas nas cartas apostólicas do Jubileu do ano 2000 Tertio Millenio Adveniente e Novo Millenio Ineunte, onde o papa reafirma a vocação universal à santidade dada aos cristãos. Além disto, sob o pontificado de João Paulo II o conceito de santidade ganhou novos contornos e os santos destes novos tempos são pessoas comuns. Na expressão de Gomes (Revista Veja, ed. 1680:2000) os “santos gente-como-a-gente” passaram a fazer parte do panteão dos santos canonizados e a santidade deixou de estar confinada aos mosteiros e às sacristias. A santidade não se prende mais tanto na relação com o sobrenatural, fixando-se com maior frequência às perseguições de causas humanas. As alterações propostas por João Paulo II a respeito das canonizações, expostas na Constituição Apostólica Divinus Perfections Magister (25/01/1983) e as Normae servandae in inquisitionibus ab episcopis faciendis in causisi sanctorum (07/02/1983) trouxeram agilidade e simplificação aos processos de beatificação e canonização, o que contribuiu para a ampliação do número de santos oficiais. Acerca desta ampliação das canonizações João Paulo II declarou: Nestes anos, foram-se multiplicando as canonizações e as beatificações. Elas manifestam a vivacidade das Igrejas locais, muito mais numerosas hoje do que nos primeiros séculos e no primeiro milênio. A maior homenagem que todas as Igrejas prestarão a Cristo no limiar do terceiro milênio, será a demonstração da presença onipotente do Redentor, mediante os frutos de fé, esperança e caridade em homens e mulheres de tantas línguas e raças, que seguiram Cristo nas várias formas da vocação cristã. (Carta Apostólica Tertio Millenio Adveniente , n. 37). Dentre as alterações ocorridas nos processos de canonização, destacamos a redução de cinquenta para cinco anos no tempo mínimo entre a morte do candidato a santo e o início do 80 seu processo de santificação oficial , e a descentralização da investigação sobre a biografia superior nas cerimônias eclesiásticas. Zaira ARY, O Marianismo como estereótipo da superioridade espiritual da mulher: poder ou contra-poder das mulheres?, p. 04, 1995. 80 Em alguns casos espera-se menos tempo ainda, como ocorrido com os casos de Madre Tereza e do Papa João Paulo II. 56 do candidato e seus milagres. Acerca deste segundo ponto, os bispos locais assumiram papel significativo no reconhecimento de santidades, posto que, as dioceses ganharam autonomia para iniciar o processo de reconhecimento da santidade e fazer as primeiras investigações sobre a vida do candidato, enviando a Roma a documentação já organizada, o que torna o processo bem mais rápido. Outro dado importante relaciona-se à comprovação da santidade. No período anterior a João Paulo II, aquele que propusesse a canonização de algum santo deveria provar que seu candidato era santo ao passo que o tribunal da Igreja, representado pelo procurador da Congregação da Causa dos Santos, empenhava-se em negar tal santidade, ou seja, em demonstrar que o candidato a santo não era de fato merecedor deste título. Hoje a figura do procurador deixou de existir, cabendo a um grupo de relatores a verificação dos dados biográficos do candidato enviados pelas dioceses. A atitude do Vaticano em prol da santidade reacendeu a esperança de muitos devotos de santos não-canonizados, que agora se dedicam com mais entusiasmo e empenho na organização de processos de canonizações dos seus santos, ainda não reconhecidos pela 81 Igreja, mas já objeto de devoções. A Congregação para Causas dos Santos já estuda os casos de beatificação e canonização de muitos candidatos a santos, dos quais alguns são 82 brasileiros , entre eles estão Lola e Nhá Chica, objetos desta tese. 3.2: Apontamentos sobre a devoção aos santos no Brasil Quanto à devoção aos santos no Brasil sabe-se que ela chegou junto com os colonizadores e enraizou-se com tal intensidade que deu margem à existência de santos para todos os casos, desde os problemas de procriação a questões financeiras (Fernandes, 2004:01). 81 Congregação para Causas dos Santos: é a congregação que responde diretamente pelas várias beatificações e canonizações atuais. Sua origem remonta ao séc. XVI, firmada pela Constituição Immensa Aeterni Dei, quando foi criada a ‘Sagrada Congregação dos Ritos’, então responsável por regular o exercício do culto divino e estudar as causas dos santos. No séc. XX, com a Constituição Apostólica Sacra Rituum Congregatio, de 08 de maio de 1969, o papa Paulo VI dividiu a Congregação dos Ritos em duas, uma voltada para as questões do Culto Divino e outra específica para as Causas Dos Santos. Esta última foi reestruturada em três departamentos – o Judicial, o do Promotor Geral da Fé e o histórico-jurídico (continuação da seção histórica criada em 1930 por Pio XI). Sob o papado de João Paulo II novas alterações foram feitas. Através da Constituição Apostólica Divinus perfectionis magister (25/01/1983) e as respectivas Normae servandae in inquisitionibus ab episcopis faciendis in causis sanctorum (07/02/1983) a Congregação foi reestruturada e as causas de canonizações revistas. Como resultado, os processos de reconhecimento da santidade foram simplificados. Em 28/06/1988, através da Constituição Apostólica Pastor Bonus, João Paulo II alterou o nome da congregação para Congregação para as Causas dos Santos. ( maiores informações ver A Congregação para as Causas dos Santos, disponível no endereço ; ou ainda , e o site do Vaticano , onde estão disponíveis os documentos citados). 82 Como exemplos, cito ainda: Albertina Berkenbrock, Irmã Dulce, Irmã Lindalva, José de Anchieta, Padre Ibiapina, Padre Vitor, Padre Eustáquio e Frei Damião. 57 Em boa medida esta situação pode ser entendida a partir da análise da relação estabelecida entre a Igreja e os fiéis no Brasil, das peculiaridades da inserção do cristianismo no país, os traços culturais pré-existentes – típicos das crenças indígenas, e as influências trazidas pelos africanos. 83 Ainda que realizada no período de contrarreforma , a inserção do catolicismo no Brasil, bem como em toda a América Latina, ocorreu preservando-se algumas práticas dos tempos medievais, especialmente arraigados na Península Ibérica. (Benjamin, 2003:41) Em virtude do contexto em que viviam os colonizadores trouxeram para o Brasil, a um só tempo, ideias e preceitos de um catolicismo mais ortodoxo - oficial, hierárquico, tridentino - e do catolicismo popular - social, leigo, íntimo, impregnado de “magismo, afeito antes às imagens do que à coisa figurada, ao aspecto externo mais do que ao espiritual”, uma construção religiosa comum não apenas a Portugal, mas a toda Europa daquela época. (Souza, 2000:91) É relevante ainda o fato de que o chefe da Igreja era o monarca português, por força do 84 regime de padroado. Ao papa cabia tão somente confirmar as decisões régias no que se referia à religião. As interferências romanas no catolicismo brasileiro só ocorreriam a partir da segunda metade do século XIX, mediante o processo de romanização, que detalho mais adiante. 83 Contrarreforma é a denominação do movimento realizado pela Igreja Católica em reação ao movimento reformista deflagrado com as teses de Lutero e organização das religiões protestantes. Através da contrarreforma a Igreja Católica tentava reaver o monopólio da fé. Para tanto, convocou o Concílio de Trento (1545-1563). As decisões mais contundentes do Concílio relacionavam-se à doutrina e à disciplina na Igreja. Entre outras coisas, proibiu a venda de indulgências e passou a exigir mais estudo e melhor formação para os sacerdotes. Além disso, o Concílio trouxe novas práticas de combate aos ‘hereges’, como a Santa Inquisição, o Index (seleção de livros proibidos) e a criação da Companhia de Jesus, formada de jesuítas e criada para disseminar o cristianismo pelas colônias, catequizando os não cristãos, tal como ocorrido como os índios no Brasil. Com o Concílio de Trento foi deflagrada a necessária busca por uma doutrina mais clara, uma teologia estruturada e de responsabilidade de um clero moderno, instruído, disciplinado, atento a seu dever pastoral. (Ver: Jean DELUMEAU e Sabine MELCHIOR-BONNET. De Religiões e de Homens, 2000.) Apesar dos esforços empreendidos, de acordo com a historiadora Laura de Mello e SOUZA, nem mesmo na Europa os ideais de Trento foram concebidos e aplicados com uniformidade uma vez que, no decorrer do séc. XVI as paróquias não chegaram a ser de fato importantes para a religiosidade vivida pela população. No século imediatamente posterior duas práticas conviviam na ‘ cristandade do Velho Mundo’ – a do clero e a dos fiéis. De acordo com suas pesquisas, a “(...) ação efetiva das violências tridentinas, no sentido de uniformizar a fé e desbastar a religião vivida das reminiscências arcaicas, só se faria sentir no século XVII, e mais nitidamente no século XVIII.” Laura de Mello e SOUZA. O diabo e a terra de Santa Cruz – Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colonial, p. 89, 2000. 84 No período das Grandes Navegações foi confiado aos reis ibéricos o ‘Padroado Real’ sobre as novas terras descobertas, assim se tornavam os chefes da Igreja. Desta forma cabia aos monarcas a responsabilidade de enviar missionários, construir igrejas, conventos, fundar paróquias e dioceses, subvencionar o culto e remunerar o clero. Ficava a cargo da coroa ainda arrecadar e administrar os dízimos eclesiásticos. Cf. Riolando AZZI, A cristandade colonial: mito e ideologia., pp. 46-47, 1987b; A cristandade colonial: um projeto autoritário, p. 24, 1987a. 58 Subordinados ao aval dos monarcas, na prática, durante os períodos colonial e imperial brasileiros, os investimentos nas instituições eclesiásticas eram escassos. Os padres atuantes no Brasil eram poucos e precisavam visitar uma extensa área e atender várias paróquias. Nessa época foi significativa a atuação das Confrarias, divididas entre Ordens Terceiras e Irmandades Leigas - corporações que assumiam o papel de organizar a vida religiosa, e 85 também social, dos povoados. Elas eram umas das poucas formas associativas permitidas a toda população, não apenas aos brancos, e tinham como momento máximo a festa do santo ao qual eram devotados. É importante lembrar que quanto maior fosse a capacidade dos indivíduos de se organizarem para homenagear os santos em seus festejos maior seria a eficácia do santo, afinal, era durante as festas que se operava o ritual de intercâmbio de 86 energias entre homens e divindades. Do quadro descrito origina-se a tese de que no Brasil firmou-se um catolicismo mais vinculado à autoridade civil do que ao poder eclesiástico, de “pouco padre, pouca missa e muita festa” onde, com ou sem padre, todo dia era dia de santo, dia de festejos. (Fernandes, 2004:01) De acordo com Beozzo (1977): entender esta religião, não podemos buscar o seu cerne na matriz das vilas e cidades, com seu vigário e conventos. Ela se enraíza longe da matriz, em torno das capelas, pequenas igrejas e cruzeiros, mui raramente servidas por um padre. Na maioria das vezes foram construídas pelo povo, mesmo sem pedir licença ao padre ou ao bispo. Seu espaço não é feito para abrigar altar e missa e sim para se colocar a imagem do santo. Ampla é a área em frente da capela, lugar da reunião do povo da festa. O espaço externo é a extensão do espaço interno da capela e, no dia da festa o mastro do santo levantado fora da capela exprime simbolicamente a apropriação deste espaço pelo santo padroeiro. (Beozzo, 1977:754) Oratórios domésticos, capelas de beira de estrada, procissões, romarias, promessas, e reza do terço compunham o cotidiano dos brasileiros e a proteção dada pelos santos diante das incertezas da vida tornou-se um núcleo estruturante das crenças e das práticas mais 85 Em Portugal, a origem das irmandades data do século XIII. Do mesmo modo, como ocorreu no Brasil, se dedicavam a obras de caridade, em geral dirigidas a seus próprios membros, embora não exclusivamente a eles. Recebiam religiosos, mas eram formadas em sua maioria por leigos, muitas se associavam às ordens conventuais (tais como franciscanos, dominicanos, carmelitas...). Para que pudessem funcionar estas agremiações precisavam ser acolhidas por uma Igreja e que tivessem seu estatuto aprovado pelas autoridades eclesiásticas. Ver João José REIS. A morte é uma festa, 1991; José Oscar BEOZZO. Irmandades, Santuários, Capelinhas de Beira de Estrada, 1977; Caio César BOSCHI. Os leigos e o poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais, 1986. 86 Ver: João José REIS. A morte é uma festa, 1991; Caio César BOSCHI. Os leigos e o poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais, 1986; Mary Del PRIORE. Religião e Religiosidade no Brasil Colonial, 1997. 59 difundidas. As missas e a presença do padre eram importantes, mas configuravam uma situação especial, fora do comum. (Fernandes, 2004:01) Pensamento já presente nos pressupostos de Douglas Monteiro (1974). Em sua obra Os Errantes do Novo Século: Um Estudo sobre o Surto Milenarista do Contestado, ele destaca que o fortalecimento do “catolicismo rústico” no Brasil se devia, em grande parte, às atribuições que a Igreja delegava aos leigos associadas à autonomia deste catolicismo rústico, em relação ao que seria o catolicismo oficial. Uma autonomia que se manifestava especialmente nas práticas mágico-religiosas curativas, nos recursos de proteção e na tradição das festas dos santos, com destaque para as festas dos padroeiros locais, onde a presença de padres e/ou outros representantes eclesiásticos eram assessórias, e, por conseguinte, sua falta não impedia a realização dos cultos. Mais significativa do que o padre neste contexto, seria a presença do monge que vivia no sertão, sendo mesmo parte integrante do cotidiano do sertanejo, uma representação objetiva desta autonomia do catolicismo rústico. (MONTEIRO, 1974: 81) A busca pela proteção do sagrado está fortemente arraigada a esta tradição religiosa. As associações livres de diferentes crenças e rituais aparecem como características comuns ao universo deste catolicismo, como podemos perceber também nas produções literárias que retratam o meio rural, sertanejo, como em Grande Sertão: Veredas, de Guimaraes Rosa (1979). Diante dos perigos do viver o personagem central, Riobaldo, deixa claro que só mesmo a reza “salva da loucura”, que todas as pessoas carecem de muita religião, entendida aqui como tudo que diga respeito ao sagrado: (...) Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemem, doutrina dele, Cardeque. Mas quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. (Rosa, 1979:15) Numa análise breve temos como destaque que o mais importante do sagrado, diante da fragilidade dos homens, é a proteção que dele emana, não importando tanto por quem ou como esse sagrado é disponibilizado. Discorrendo sobre a sociedade brasileira, Gilberto Freyre (1984) considera existir no 87 Brasil uma “confraternização” religiosa e social que dificilmente teria se realizado se outro 87 Gilberto Freyre é bastante criticado em função de algumas de suas concepções, especificamente por sua teoria da ‘democracia racial’, ou ‘confraternização social’, elaborada na sua interpretação das relações construídas 60 tipo de cristianismo tivesse dominado a formação social do Brasil. Segundo ele formou-se entre nós um cristianismo “doméstico, lírico, festivo, de santos compadres, de santas comadres dos homens, de Nossas Senhoras madrinhas dos meninos”, onde o sagrado e o profano não eram rigidamente classificados, aceitando-se um universo de entidades de origens e crenças distintas, incluindo as devoções às “figuras de Baco (...) Mercúrio, Apolo, o Menino Jesus, os doze Apóstolos, sátiros, ninfas, anjos, patriarcas, reis e imperadores dos ofícios; e só no fim o Santíssimo Sacramento”, enquanto, aos santos e anjos só faltaria “tornar-se carne e descer dos altares nos dias de festa para se divertirem com o povo”. (Freyre, 1984:22; 249; 355) Seguindo essa mesma tônica, o historiador R. Azzi indica que os ensinamentos do catolicismo português difundido no Brasil, embora domiciliar e transmitido de uma geração a outra sem seguir regras rígidas e sistematizações, era pautado em três elementos básicos: - O poder divino na criação do mundo; - A pequenez do homem; - A necessidade da intercessão dos santos, cuja importância e poder eram indiscutíveis, especialmente quanto à proteção. Neste quadro, os santos seriam os amigos e protetores dos homens junto a Deus, essenciais em virtude da pequenez dos humanos e da grandeza divina. Eles estabeleciam com os homens uma relação baseada na devoção e nas promessas, através das quais seria possível construir a ponte entre o céu e a terra, entre o poder divino e a fraqueza humana. (Azzi, 2000:23-25) A devoção e o culto aos santos aparecem como sendo basilares do catolicismo popular em vários outros estudos sobre o tema. Em uma de suas produções, Pedro Ribeiro de Oliveira (1983, p. 114-122) destaca três práticas religiosas que lhe seriam centrais, sendo: - a devoção e ênfase na figura dos santos, a benzeção e os atos de cultos. Os santos seriam muito especiais, afinal, seriam próximos dos homens e Deus. Vivendo no céu eles podem intervir junto a Deus em favor dos homens, pois, foram pessoas merecedoras deste lugar sagrado que agora ocupam. Ao mesmo tempo estão ao alcance dos homens, foram pessoas como eles e, se fazem concretos na Terra por meio das suas imagens, canal de contato direto entre o fiel e o santo. Daí a importância das imagens ou representações dos santos nos cultos de devoção, elas são por excelência o objeto da adoração. entre a ‘casa grande e a senzala’. Os questionamentos se pautam na concepção de que a tese da ‘democracia racial’ defendida por Freyre encobre ou ao menos minimiza toda a violência e a opressão vivida pelos escravos no período por ele estudado, criando uma ideia de que ‘senhores’ e ‘escravos’ se complementavam, como se um tivesse nascido para o outro, vivendo harmoniosamente. No entanto, sem ignorar tais críticas, precisamos levar em conta o momento em que sua teoria foi elaborada, não esquecendo que as produções das ciências humanas comportam muito do contexto do pesquisador. Não podemos deixar de considerar a importância e a contribuição dos estudos de Freyre sobre as raízes sociais e culturais do Brasil, bem como na construção de uma tradição da produção sociológica brasileira. 61 Temos, portanto, que a relativa ausência de controle eclesiástico contribuiu para a ampla difusão das crenças a partir das perspectivas e ações populares, sendo de grande destaque o apego à intercessão e proteção dos santos. Quanto às relações estabelecidas entre santos e devotos, estudos demonstram que são pessoais e, em geral, baseadas no princípio da proteção e lealdade. Neste caso, cada fiel teria 88 "seu santo protetor" ou seu "padrinho celestial", a quem deve ser leal. Mas lealdade não pode ser traduzida como exclusividade. Destarte a fidelidade dos devotos com o seu santo protetor as combinações entre variadas devoções são muito frequentes. Conforme demonstrado pelas pesquisas de Menezes (2004), a combinação de devoções pode indicar uma busca para ampliar o raio de proteção que os santos podem oferecer ao devoto, seja somando a força dos santos, seja unindo seus campos específicos de intervenção. Assim pode-se ser devoto de Nossa Senhora Aparecida por um motivo e, ao mesmo tempo, ser devoto de Santa Luzia - a protetora dos olhos, de São Judas Tadeu – o Santo das causas impossíveis, e assim por diante. As combinações permitem a cada pessoa compor seu próprio panteão e, neste caso, fazê-lo segundo suas necessidades e características individuais. (Menezes, 2004:201-203) Por sua vez, o santo também precisa ser leal ao devoto atendendo suas necessidades de proteção ou outros resultados. Diante de um não atendimento por parte do santo o devoto é capaz de castigá-lo ou recorrer a outros artifícios para induzi-lo a realizar seus pedidos. Os castigos mais comuns são: virar a imagem do santo para a parede, colocá-la de cabeça para baixo, não acender velas... Por outro lado, há também as atitudes de sedução do santo, deixando-o no mel, no açúcar, colocando presentes a seus pés... Todas são atitudes que reforçam a interação entre santos e devotos, mediadas pelas imagens. Algumas interpretações defendem que na perspectiva dos devotos, os santos são os melhores intermediários entre Deus e os homens. Os santos possuem poderes sobrenaturais que colocam a seus serviços, além de serem referências para a vida do devoto inspirando-o moral e eticamente, e ainda marcam e organizam seu tempo, definem, entre outras coisas, datas de festas, de iniciar plantações, das colheitas. (Cavignac, 2001:42; 45-46) Na relação estabelecida com o santo, cumpre ao devoto agradecer pela proteção, e demais benesses conseguidas. Isto se realiza com o pagamento de promessas, oferendas de 88 "Muitos estudiosos da cultura brasileira têm mostrado como esse modelo relacional não apenas serviu de base para legitimar as relações de dominação na sociedade senhorial no Brasil, mas permanecem ainda hoje como um elemento cultural de longa duração, que subjaz as relações de clientelismo e patronagem ainda presentes na política brasileira”. Carlos Alberto STEIL. Catolicismo e cultura, pp. 21-22, 2001a. 62 orações, romarias, homenagens e festejos. Faz-se necessário agradar sempre aos santos, para poder sempre contar com eles. Aos cuidados do devoto inclui reconhecer as promessas como um “pacto sacrossanto com as forças divinas que regem o mundo” (Azzi, 1977:132), por isto mesmo, deixar de pagar uma promessa significa correr o risco de perder esta proteção e sujeitar-se aos infortúnios da vida, aos insucessos e desgraça a que estamos expostos nesta nossa precária existência. Nesta lógica, pagar as promessas encerra um dever sagrado, muitas vezes passado de pai para filhos e que deve ser efetuada superando-se todos os obstáculos que possam vir a dificultar o 89 cumprimento de tal dever. A relação entre os devotos e o santo ocorre mediada pelas imagens dos santos. Elas representam o lugar onde o "invisível se torna acessível e palpável". As imagens são concebidas como os corpos dos santos que, de modo análogo aos corpos humanos que portam a alma dos homens, são depositárias do invisível, da essência do santo. Por intermédio das imagens torna-se possível para o crente uma comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos (Steil, 2001a:21-22), mundos intrinsecamente associados devido à mediação dos santos, únicos seres que podem transitar entre um e outro, já que possuem um “corpo espiritual que está para além da imagem física, e um corpo material que está presente na imagem” (Steil, 1996:183-184). Na perspectiva do devoto, as imagens dos santos são mais do que simples representações dos mesmos. Neste caso, agir sobre a imagem equivale a agir sobre a própria pessoa do santo. É à imagem que o fiel se dirige para pedir ao santo proteção, favores e 89 A literatura produzida por uma sociedade traduz, em grande medida, o cotidiano, as crenças, enfim a constituição sociocultural desta sociedade. A literatura brasileira é repleta de obras que permitem entrever como as questões relacionadas à religião são vividas e afetam o cotidiano das pessoas. Com relação ao tema das promessas e a obrigação irrevogável de cumpri-las, temos como exemplo clássico a obra de Dias Gomes – O Pagador de Promessas (encenada em 1960 e transformada em filme em 1962). Numa ironia do autor, esta obra ambientada em Salvador e tem como fio condutor o esforço de ‘Zé do Burro’ para cumprir uma promessa feita a Santa Bárbara. Para que ‘Ela’ salvasse a vida de seu burrinho Nicolau, Zé do Burro propôs-se a levar, do interior onde residia até a cidade de Salvador, uma grande cruz e depositá-la no interior da Igreja. Entretanto, surgem vários entraves para que a promessa seja cumprida, desde a insatisfação de sua esposa Rosa, até a proibição de sua entrada na Igreja por parte do clero, haja vista que Zé do Burro fez sua promessa num terreiro de candomblé a Iansã (entendida como equivalente a Santa Bárbara pelo devoto). Além disto, Zé foi acusado de querer ‘imitar Jesus’ ao carregar uma grande cruz de madeira, como fizera o Messias. Instaurado o impasse os moradores vizinhos à Igreja, os comerciantes, transeuntes, jornalistas, a força policial, entre outros, passam a participar da história de Zé do Burro, na medida em que alteram suas rotinas em virtude do episódio da promessa. Por fim, depois de longos períodos de espera, negociações e tensão, Zé do Burro consegue entrar na Igreja, mas, já está morto. Em verdade, morto por um tiro, Zé do Burro foi colocado sobre a cruz que antes carregara e transportado nos ombros por capoeiristas que lá estavam. Este final pode ser entendido como um sinal de que o povo presente entendeu o esforço e a fé de Zé do Burro, solidarizando-se com ele e, à revelia dos representantes eclesiásticos e da força policial requisitada por esses, cumpriram a promessa por/com ele. 63 graças, igualmente, é a ela que infligem punições quando o santo precisa ser castigado, ou seja, quando deixa de proteger e/ou atender aos pedidos de seu devoto. (Oliveira, 1983:913) Outro meio utilizado para intermediar o contato com os santos é através das relíquias. Embora guardando diferenças em relação à imagem elas também representam o santo, concretiza a presença dele diante do devoto, que se esforça por obtê-las para si, ou mesmo simplesmente tocá-las ou vê-las. Estas são artigos que remetem aos santos, podendo ser partes das suas vestes, dos seus corpos, dos túmulos, de seus pertences ou mesmo de objetos que o santo tenha tocado. Como demonstra a história da santidade, tanto para os devotos leigos quanto para o clero, as relíquias sempre tiveram grande importância na relação devocional, 90 especialmente no caso dos mártires. Resistindo por mais de 300 anos, a forma estrutural do catolicismo à qual me referi até agora, passou as ser sistematicamente combatida com a romanização, movimento voltado para a construção de uma identidade institucional universal, a partir das diretrizes ditadas pela Cúria Romana, sendo a expressão dos anseios do Concílio Vaticano I (1869-1870), realizado sob o pontificado de Pio IX que, apesar das dificuldades enfrentadas pela religião no contexto do século XIX (impostas pelas transformações ocorridas com a Revolução Industrial, o iluminismo, a Revolução Francesa, e a secularização), mantinha a expectativa de colocar em 91 prática tais orientações tridentinas. Dispensando especial atenção à reestruturação católica da América Latina, entre outras diretrizes, as ações conciliares proclamavam a infabilidade papal, reforçavam o combate ao liberalismo, ao totalitarismo estatal, a laicização e a liberdade do culto. Sob o comando do Vaticano e através da ação dos Bispos Reformadores e das ordens religiosas europeias, buscou-se posturas mais rígidas quanto aos ensinamentos doutrinários, ao comportamento do 92 fiel, tentando manter um discurso mais ilustrado. Os efeitos mais visíveis da romanização foram a desarticulação do catolicismo popular e o deslocamento dos leigos para periferia do campo religioso, onde passaram a ocupar uma 90 Segundo Brown as relíquias são percebidas como matérias impregnadas de uma energia especial denominada virtus, o que as torna ‘fonte de graças’, elementos que podem intervir nos eventos do mundo terreno. Peter BROWN. Le culte des Saints, p. 08, 1983. 91 Para Benedetti: "O processo de romanização deve ser entendido como uma tentativa de reafirmar a autoridade do Papado, abalada desde a Reforma que, ao pregar o sacerdócio para todos os crentes e a justificação somente pela fé, abolia a mediação centralizada do Papa. Isso no aspecto estritamente eclesiástico, sem esquecer que no plano político e econômico a luta contra o Papado e a Igreja era na realidade a luta contra o Feudalismo". Luiz Roberto BENEDETTI, Os Santos Nômades e o Deus Estabelecido, p. 107, 1983. Ver também: OLIVEIRA, 1976; AZEVEDO, 1997; AZZI, 1984; TEIXEIRA, 1992. 92 Henrique Oswaldo Fraga AZEVEDO. Evolução do catolicismo em Juiz de Fora (1741-1925), p. 104, 1997. No Brasil, merece destaque entre os Bispos Reformadores o trabalho de D. Viçoso, da diocese de Mariana. Para ele uma reforma eficaz só seria possível com a colaboração de religiosos europeus. Ver: Pedro Assis Ribeiro de OLIVEIRA. Catolicismo Popular e Romanização do Catolicismo Brasileiro, p. 133, 1976. 64 posição cada vez mais passiva. Com o auxílio de uma complexa rede de mediações (associações, paróquias, dioceses) as bases leigas passaram a ser sempre mais controladas. Uma realidade que só veio a ser questionada a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965). (Teixeira, 1992:565) Afastados do centro da administração do sagrado nas Igrejas Católicas, os leigos foram substituídos pelos clérigos, em sua maioria padres de congregações religiosas já organizadas de acordo como o projeto romanizador, imbuídos na missão de realizar a purificação do catolicismo tradicional, combatendo as superstições e as ingenuidades do povo, prestando 93 assim um serviço de esclarecimento e implantação da verdadeira religião. Para o estudo das questões relativas à devoção aos santos, nosso objeto de interesse, o ponto mais significativo deste processo de reorganização da Igreja está em um dos métodos utilizados para alcançar a universalização da teologia católica. Refiro-me à sistemática substituição das devoções antigas e tradicionais, intimamente relacionadas ao devoto e ao espaço onde era cultuado o santo, por novas devoções ou devoções tradicionais revitalizadas- desde que estas fossem reinterpretadas a partir da lógica do processo de racionalização teológica universalista já mencionado. Atendendo às prerrogativas romanizadoras foram valorizados os cultos que reforçavam os Sacramentos, entre eles o culto ao Sagrado Coração de Jesus, à Sagrada Família e ao Rosário. Nas palavras de Steil (2001c), ocorreu uma tentativa de deslocar o centro do culto “da imagem e do lugar” direcionando-o “para o sacramento e a instituição” (Steil, 2001c:05). Comentando este período da história da Igreja, Brandão (1980), considera que as práticas populares, em descompasso com a proposta romanizadora dos padres e eruditos da Igreja, tentavam recuperar para o domínio do catolicismo as “três concomitâncias mais 94 antigas e poderosas do sagrado: o mistério, o milagre e a magia ”, exatamente os elementos que os clérigos romanizadores tentavam suprimir. (Brandão, 1980:142) Uma das estratégias adotadas pela Igreja Católica, em relação aos santos, para concretizar seu projeto de centralização foi assumir a guarda das imagens dos santos de devoção popular, levando-as para os prédios paroquiais, em substituição aos lugares tradicionais onde os santos seriam guardados por leigos. Paralelamente houve um investimento para o controle das romarias, das festas de santo e demais cultos a eles ligados, afinal, quem tinha o santo era responsável por dirigir seu culto. Neste novo contexto o “padre 93 Esta discussão aparece, entre outras, nas obras de Riolando AZZI sobre a história da Igreja no Brasil, de BEOZZO e STEIL, todas citadas na bibliografia. 94 Esta afirmação, como fica claro no texto de BRANDÃO (1980:142), foi originalmente, feita por Peter BERGER, na obra Para uma teoria sociológica de la religion (1971, p.161), referindo-se à reforma Calvinista. 65 deixou de ser apenas o celebrante da Missa no dia da festa para tornar-se o principal festeiro” (Oliveira, 1976:139). A romanização conseguiu uma clara redução das devoções populares e suas livres 95 manifestações públicas, no entanto não significou a extinção destas devoções. Podendo-se afirmar que a “corrente devocional continuou com uma presença profunda (...)” (Teixeira, 1992:566). Este modelo de renovação católica não conseguiu realizar-se plenamente e entrou em crise basicamente pelo afastamento dos leigos, ao passo que o clero foi afirmado como detentor dos rituais religiosos do catolicismo, classificando como superstição qualquer outra prática religiosa. O recurso aos leigos para outra renovação do catolicismo fez-se urgente e se efetivou a partir da Ação Católica. Uma mudança necessária dada a escassez do clero e os perigos da modernidade que ameaçavam a fé e os costumes católicos. Iniciava-se assim o resgate do leigo como sujeito no campo religioso, condição afirmada pelo Concílio Vaticano II e concretizada pelo surgimento das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, que possibilitaram, novamente, a emergência de um catolicismo de base leiga e recuperaram, “sob novas bases, o ethos que caracterizou a vida do catolicismo popular tradicional: a prática e a liberdade de organizar Igreja. Isto sob novas formas e respondendo a outras exigências” (Teixeira, 1992:566). No cerne do movimento das CEBs estava a proposta de uma nova teologia, a Teologia da Libertação que, divulgada no Brasil especialmente nos anos 70 e 80, aproximou-se dos movimentos sociais de contestação ao regime militar vigente. Na perspectiva de Prandi (1991) as CEBs representaram um espaço de expressão, ao mesmo tempo público e político, aberto aos católicos pobres, onde cada um podia se representar pessoalmente para a definição e defesa de interesses comuns, coletivos e comunitários. A seu ver, o caráter coletivo das CEBs reduzia a importância das questões de foro íntimo dos seus membros, ou seja, na “comunidade eclesial” o indivíduo não poderia expressar-se como dotado de problemas particulares. (Prandi, 1991:133) O catolicismo libertador, tal qual o projeto romanizador, buscava a substituição do discurso do milagre pelo discurso do sacramental, diluindo seu “núcleo mítico” através da 95 Pedro Ribeiro refere-se a esta questão afirmando que a romanização conseguiu subjugar o ‘catolicismo popular’, mas não foi suficiente para implantar o modelo romano entre os católicos brasileiros. Assim a religião católica, para grande maioria dos brasileiros, permaneceu marcada ainda pela devoção aos santos, entretanto, de uma forma privada, não mais ‘social’, o catolicismo popular transformou-se num ‘catolicismo privado de massas’. Pedro Ribeiro de OLIVEIRA, Religiões Populares, 1988:119-120. 66 racionalização, um instrumental basilar na desconstrução da relação entre “sagrado e lugar” e entre “imagem e ação divina”. No entanto, a proposta era deslocar o sagrado do espaço geográfico e direcioná-lo para a sociedade, não para a instituição, não para a mediação clerical, mas para os mediadores políticos. Tratava-se do deslocamento da Igreja para o Reino de Deus e a “luta pela libertação” seria então a mediação com o sagrado. (Steil, 2001a:21) Apesar de haver muitas diferenças entre os movimentos romanizador e libertador, há neles algo em comum, refiro-me à busca pela mudança na postura dos fiéis em relação a alguns aspectos da devoção popular, tais como a crença em milagres, na providência divina e no poder dos santos como intermediários no relacionamento dos homens com Deus. A racionalização, pleiteada tanto no período da romanização quanto do catolicismo libertador, retirou dos altares centrais das Igrejas a grande maioria dos santos tradicionalmente cultuados, bem como, situou as devoções em terreno de pouco ou, nenhum status. Tanto na vigência das premissas romanizadoras quanto libertadoras, as devoções aos santos tornaram- se exemplos de manifestações típicas dos ingênuos ou alienados e embora por mais uma vez não tenham se extinguido, os santos passaram a ocupar espaços mais e mais reduzidos nas 96 práticas religiosas institucionais. Pode-se falar de um esvaziamento da espiritualidade e da instauração do 97 desencantamento, no sentido weberiano , nas práticas religiosas institucionais católicas. As Igrejas e os altares eram espaços marcados pela (...) modernidade, a reflexão, o distanciamento da magia. Pastorais sociais. Celebração encarnada. Altares com camisas manchadas de sangue pela luta em prol dos direitos sociais. Cálices de barro e madeira. Pastoral da terra e do menor. Outra visão e outra mística. Músicas e letras clamando por justiça, saúde e paz. Envolvimento pela reflexividade, sem magias e curas. (Silveira, 2003:145) Como já observado com o advento da romanização, também neste momento a devoção aos santos e o recurso às mediações dos mesmos não foi inteiramente suprimida, mantendo-se como elemento latente da fé católica. Ainda que relegada a espaços menos visíveis os devotos 98 continuaram a recorrer aos santos oficiais e a construir novas santidades. 96 Sobre o tema ver: C. A. STEIL, CEBS e Catolicismo Popular, pp.75-103, 1997. 97 Segundo Weber a humanidade partiu de um mundo ‘encantado’, habitado pelo sagrado, pelo mágico, excepcional e chegou a um mundo racionalizado, material, manipulado pela técnica e pela ciência. O mundo de deuses e mitos foi despovoado, e sua magia substituída pelo conhecimento científico e pelo desenvolvimento de formas de organizações racionais e burocratizadas, ou seja, um ‘mundo desencantado’. Ver: Tania QUINTANEIRO. Um toque de clássicos: Durkheim, Marx e Weber, p. 141, 2001. 98 Ver: STEIL (1996; 1997); CAMURÇA (2006). 67 Nos últimos anos, assistimos a um jorrar de santos por todos os espaços sociais, religiosos ou não. O retorno das devoções aos santos de modo visível, ao cerne das celebrações religiosas católicas começou a ser percebido no final dos anos 1980, quando percebemos também o crescimento de uma nova tendência religiosa, a pentecostalização, que na Igreja Católica manifestou-se pela via da chamada Renovação Carismática Católica (RCC), gerando espaços onde as pessoas encontraram condições para “vivenciar as mais diversas formas de adoração e louvor” (Prandi, 1997:36). A vertente carismática distancia-se da religiosidade politizada, cuja ênfase era as questões sociais, optando por privilegiar o indivíduo, seu núcleo familiar e a resolução de problemas cotidianos, com a incorporação do Espírito Santo, o fortalecimento da devoção a Maria e, o que mais importa neste argumento, a adesão ao milagre, concedendo-lhe lugar de destaque e prestígio, de maneira similar ao modelo tradicional das experiências devocionais, atraindo para o catolicismo contemporâneo uma tendência religiosa “mística e individualista” (Steil, 2001c:22-26), o que considero ter contribuído para a redescoberta e valorização dos santos e das devoções. Embora a centralidade do discurso e das ações da RCC repouse na ideia de privilegiar e destacar os poderes do Espírito Santo e a devoção a Maria, a devoção estendida aos demais santos pode ser entendida como um de seus efeitos latentes, quer dizer, embora não seja uma das bandeiras da RCC, a crença nos milagres e na intercessão dos santos na contemporaneidade pode estar ancorada nas mudanças e resgates proporcionados pela atuação carismática no campo religioso brasileiro. Entretanto, não é possível afirmar que esta redescoberta seja apenas o retorno ou a manutenção de uma antiga tradição. Na atualidade novos elementos, crenças e maneiras de cultuar os santos e de lidar com o sagrado compõem este cenário. Como afirma Menezes (2004), a vitalidade das expressões religiosas, das festas de santos, romarias, procissões e o surgimento de novos cultos e fenômenos como aparições da Virgem, benção e grupos de oração demonstram que estes não são apenas fenômenos residuais. Partindo de suas análises, somadas a de alguns outros pesquisadores, Menezes considera que tal vitalidade pode representar: um jogo de continuidades e mudanças entre formas, conteúdos e significados de práticas cultuais, os quais podem combinar de maneira diferente a cada caso. Assim, pode haver uma continuidade com formas tradicionais de catolicismo, mas com significados diferentes sendo incorporados a práticas já consagradas, as quais estariam assumindo novos papéis na vida contemporânea. O contrário também pode acontecer: novas práticas cultuais, com novos conteúdos 68 discursivos podem, ser apropriados a partir de padrões de significados antigos. E, enfim, coisas originais podem estar sendo geradas. (Menezes, 2004:25-26) É neste contexto que se insere este estudo sobre santificações populares, sobre as quais passo a referir-me. 3.3: Santificações populares: algumas definições primárias É importante iniciar este texto ressaltando que o culto aos santos não canonizados não representa um culto paralelo ao culto oficial, e tampouco um culto contestador, antagônico ou substitutivo do oficial. Trata-se de um culto onde a liberdade expressiva dos devotos não fica limitada ao código da liturgia oficial assumindo traços próprios à cultura de cada grupo ou classe social (Oliveira, 1983:919). Os santos formais e os populares não são rivais, não se excluem, não substituem uns aos outros, mas, unem-se na proteção aos humanos. No caso dos cristãos, o ideal de santidade culturalmente difundido é associado à ideia de aproximação do próprio Jesus Cristo, assemelhando-se a ele, seja através do sacrifício, da aceitação do sofrimento ou da dedicação ao próximo, entre outros sinais. Um propósito válido também para os santos e santas do povo, embora, muitas vezes, esta aproximação com Cristo, seja construída pelos devotos, o que permite até mesmo a santificação daqueles que, num primeiro olhar, em nada se aproximam do ideal de santidade cristã. Para ilustrar a observação acima, de que pessoas nem tão virtuosas podem ser investidas de santidade pelo povo, cito os “santos” estudados por Freitas (2000) que viveram na marginalidade: o Cangaceiro Jararaca e o ladrão e homicida Baracho, ambos atualmente cultuados em cemitérios do Rio Grande do Norte 99. Nestes casos, para identificar a santidade nos marginais, os devotos tomam como referência o sofrimento na hora de suas respectivas mortes, marcadas por grande sofrimento, que são interpretadas como martírio e, como tal, capazes de purificá-los e direcioná-los para uma nova situação, um novo lugar, onde podem ser interpretados como portadores de santidade 100. A relação entre os devotos e os “santos do povo” segue caminhos semelhantes à estabelecida com os santos oficiais da hierarquia católica. Aqui se fazem presentes também mediações das imagens, representadas por fotografias, desenhos e esculturas, bem como das 99 Além dos casos citados, nesta seleção poderiam ser incluídos os cultos a ‘santas prostitutas’, como Jandira e Maria Degolada, bem como o culto a Machera (da Venezuela). Citados por Oscar Calavia SÁEZ, Fantasmas Falados: Mitos e mortos no campo religioso brasileiro, 1996. 100 Jararaca foi enterrado vivo, e Baracho, baleado, morreu com sede, pediu água e ninguém o atendeu. FREITAS, p. 196, 2000. 69 relíquias. Em alguns casos os “santos do povo” contam com orações próprias, até mesmo 101 pequenos livros de orações, onde figuram sua imagem e hagiografia. Muitas podem ser as justificativas para as devoções e santificações produzidas pelo povo, dentre elas destaco a possível proximidade entre a história destes santos e a história do devoto. A humanidade mais facilmente associada aos “santos do povo” reforça a tese de que o santo eleito pelo povo é “(...) mais promissor para o interesse dos devotos do que um santo pronto. Ou, um pezinho no secular torna o santo mais humano, mais próximo, como também mais vulnerável e aberto a negociações” (Freitas, 2000:198). Ainda que reconheça que esta aproximação não se limite apenas aos santos eleitos pelo povo, nesses casos a santidade é reconhecida e eleita essencialmente pelo devoto, construída a partir das suas experiências e expectativas, assim, muitas vezes, elementos presentes na história dos santos são também constitutivos da história e memórias do devoto.102 Atuando na construção dos seus santos, os devotos deixam de ser passivos no processo de afirmação das devoções e os santos deixam de ser necessariamente submetidos à aprovação de um grupo de eleitos, de uma determinada instituição. As santificações do povo são resultantes de uma avaliação individual e de uma relação direta do devoto com o santo, ainda que esses devotos façam uso dos preceitos e fórmulas institucionais em suas ações enquanto produtores de santidade. Em síntese, na relação com os “santos do povo” os devotos são muito mais que receptores de milagres, são sujeitos, partícipes imprescindíveis na construção do santo, redundando numa relação onde um não existe sem o outro. Para Freitas a participação do devoto na construção do santo é essencial para explicar a existência de tais devoções. Ela considera que as ações dos devotos são fundamentais, segundo o seguinte esquema: O devoto pede para que o santo o ajude e, em troca de sua intercessão, o santo recebe as orações do devoto para que Deus o perdoe e santifica-o com tal perdão. (Freitas, 2000:198) Esta pesquisadora se refere aos santos marginais, neste caso, precisariam do perdão divino, para deixarem de sofrer na eternidade, alcançando também a santidade. Em outros casos, como das “santas” que estudo, as orações dos devotos também são elementos essenciais. O diferencial está no fato de que, nem sempre, o pedido dos devotos é para que os 101 Como ocorre com Nhá Chica, Lola e Palmyra. 102 Em muitos casos, estas proximidades são desejadas e construídas pelos devotos, como demonstrou Slater (1984) em seu estudo sobre a devoção a Padre Cícero. Em suas palavras os “cidadãos de Juazeiro fazem o possível para apresentar como memória pessoal até mesmo aqueles episódios conhecidos de todo mundo.” Candace SLATER. Presença individual nas histórias de Padre Cícero, pp. 26-27, 1984. 70 seus santos sejam purificados por obra de Deus, posto que, já merecem as glórias do céu. Em geral, o que pedem é o reconhecimento destes santos pela Igreja Católica e por todos. Os devotos de um santo estão sempre e de alguma maneira, vinculados a ele, numa relação constituída pela fé, a amizade e a confiança (Menezes, 2004:01). O papel do santo na vida dos devotos é muito ativo e significativo, ele é o elo entre o sagrado e o humano, o representante do humano diante de Deus e vice-versa. Baseado nisto, é essencial que o devoto se reconheça em seus representantes, tenha com os mesmos uma relação de proximidade e até mesmo de intimidade, fatores que advêm do conhecimento mútuo entre as partes 103 envolvidas. As crenças nos santos têm relação direta com a produção de sentido para seus devotos, sejam estes oficiais ou não. Mediante as pesquisas realizadas fica claro que é no santoral católico oficial que os devotos se inspiram para realizar seus rituais em torno dos santos por eles eleitos, bem como, para identificar os sinais de santidade característicos dos mesmos. Os “santos do povo” são reconhecidos como santos porque o povo vê em suas histórias elementos como a atitude caridosa para com os pobres, a aceitação do martírio, a recusa à violência, a pregação de uma mensagem ética ou libertadora, a doação pessoal (desprendimento de si), e demais elementos que possam associar à função protetora, elemento central das devoções. (Oliveira, 1983:919) A memória social é construída a partir do mundo real e é a partir dele também que são construídos os sentidos e os elementos das santidades não-canônicas. A santidade muda a sua face segundo o contexto em que se apresenta, sofre os influxos socioculturais das regiões onde se manifesta embora os santos mantenham alguns traços comuns entre si, especialmente no que se refere à maneira como são cultuados e aos elementos indicativos de suas santidades, o que vale também para os santos do povo. Enfim, escolhidos entre padres e possíveis ladrões, escravos e senhores, pessoas de origens humildes ou não, crianças, mulheres e homens, reais ou imaginários, muitos são os Santos do Povo. Eleitos pelos mais diversos motivos eles engrossam as fileiras do panteão das devoções populares que se espalham pelo país, dos grandes centros aos mais distantes rincões. 104 Entre os clérigos, um dos mais conhecidos é o Padre Cícero (CE) que mesmo sendo banido pela Igreja atrai multidões de devotos em romarias o ano inteiro. Entre religiosos temos outros em situação favorável quanto ao reconhecimento católico oficial, ou que não 103 Estes elementos da proximidade e identificação são apresentados por vários estudiosos dos santos, em especial, dentre trabalhos dedicados aos “santos do povo” sugiro a leitura de Candace SLATER: Presença individual nas histórias de Padre Cícero, 1984. 104 O Pe. Cícero atrai interesses de pesquisadores diversos, ver: Candace SLATER, Presença individual nas histórias de Padre Cícero, 1984; Marcela Guasque STINGHEN, Padre Cícero: A Canonização Popular, 2000; Ralph DELLA CAVA, O Milagre em Joaseiro, 1976. 71 enfrentaram problemas com a Igreja, tais como o Padre Ibiapina (Nordeste); o Frei Damião de Bozzano (Nordeste), um fenômeno religioso só comparável ao do Padre Cícero, ao completar cinco anos de sua morte o Vaticano deu início ao processo para sua canonização; Irmã Dulce - A "Mãe dos Pobres" (BA); Irmã Lindalva (BA); o Padre Vitor Francisco (MG), primeiro negro a ser ordenado padre no Brasil; o Padre Eustáquio (MG); Dom Viçoso (MG); Madre dos Anjos (MG); Padre Donizetti (SP); Dom Lustosa (Fortaleza); Padre Reus (RS); Irmã 105 Cleusa(AM); Dom Eliseu Coroli (PA) , Padre Rodolfo Komorek (SP); Padre Santos 106 Ramirez (SP); Madre Teresa de Jesus (SP); Frei Bruno (SC); Frei Silvério Webber (SC)... Alguns leigos também aguardam o reconhecimento oficial, já iniciado, como ocorre 107 com Albertina Berkenbrock (Santa Catarina); Floripes Dornelas de Jesus – Lola (MG) ; Isabel Cristina (MG); Nhá Chica (MG), ao passo que algumas devoções não são objetos de nenhum processo de reconhecimento oficial, e talvez nunca venham a ser, no entanto, suas santidades são reconhecidas e legitimadas pelos devotos. Entre estes estão os casos de Zezinho de Ribeirão Preto, Izildinha, Antoninho da Rocha Marmo, Felisbina Müller, o Santo Menino da Tábua, Bento do Portão, Marina Portugal, Mãe Felícia, Santa Consuelo – a santa da gravidez impossível e o soldado Chaguinha, cultuado na Igreja dos Enforcados. Todos esses possuem seus centros de romaria – representados por seus túmulos- em cidades do 108 Estado de São Paulo, onde também encontramos o culto a Jandira – a Santa Prostituta , cuja devoção se assemelha a tantas outras dedicadas a mulheres no Sul do país, como ocorre com Maria do Carmo de São Borja, Izabel Guapa de São Gabriel e a Maria Degolada de Porto Alegre. No Sul cultua-se também uma santa Cigana, os Irmãos Afuzilados e Maria Bueno, a 109 “Santinha de Curitiba”. Existem muitos santos e santas crianças, algumas já foram citadas, a elas somamos Ana Lídia, cultuada em São Paulo como a Padroeira das Crianças; as “Meninas de Taubaté” – Daniela, Janaina e Maria; a Menina Sem Nome, que foi estuprada, morta e abandonada numa praia, sendo venerada no Recife; Iraceminha de Marília (SP); a Menina Milagrosa (SC); o Petrúcio Corrêa (AL), a Aninha no Ceará, onde há também o culto ao Menino Vaqueiro. Na Paraíba uma menina que morreu aos 12 anos, vítima da violência de policiais é a Santa Maria de Lourdes. No Rio de Janeiro um caso muito famoso é o da devoção a Odetinha, outra 105 Cf. Revista Veja Os Santos da nossa casa, abril de 1999. 106 José Carlos PEREIRA. Devoções Marginais: interfaces do imaginário religioso, pp.65-67, 2005. 107 Jornal Esplendor, Ano II, disponível no endereço www.veritatis.com.br/artigo - acessado em janeiro de 2004. 108 Ver: Revista Veja, Os santos, 31 de outubro de 2001, pp. 10-16; Maria Ap. J. V. GAETA, “Santos” que não são santos: estudos sobre a religiosidade popular brasileira, Revista Mimesis, v. 20, nº 1, pp. 57-76, 1999; BENEDETTI (1983:96). 109 Tema do estudo de Vera Irene JURKEVICS, Os Santos da Igreja e os Santos do Povo: devoções e manifestações de religiosidade popular, 2004. 72 criança. Lá ocorre também o culto a Carmem Pérez – que morreu no parto; a Santa Cristina de Mogi das Cruzes e às meninas Sandrinha e Taninha – essa última assassinada pela madrasta; além do menino Serginho – violentado e assassinado por um parente. Ainda no Rio encontramos o culto a uma argentina chamada Dolores, que teria morrido durante o parto devido a erro médico. Enquanto isto um médico, o Dr. Crasso Barbosa, é cultuado no Estado do Pará por sua santa caridade; lá se cultua ainda a Santa Severa Romana – a Santa Mártir Popular Paraense, que morreu em defesa de sua honra, e a Santa Parteira Mãe Valéria. Uma outra mãe é venerada no Maranhão, a Mãe Marcelina. No Rio Grande do Norte encontramos o culto a Santa Damásia Pereira – a Santa Damasinha e, a Santa Etelvina de Alencar e Santa Radi – uma espécie de curandeira que ensinava como 110 produzir remédios aos necessitados - são cultuadas em Manaus. Há ainda o culto a personagens das quais não existem provas documentais de sua existência, embora configurem no universo santoral de muitos devotos, como o caso da 111 112 devoção à Escrava Anastácia e ao Negrinho do Pastoreio , além das devoções às 13 Almas Benditas, a Alma Desconhecida, a Santa Cabeça – uma cabeça de gesso cultuada em Cachoeira Paulista; a Perna Milagrosa de São José dos Campos e ao Santo Cruzeiro – um tipo de padrão, marco trazido pelos portugueses em 1501, fixado para demarcar a propriedade da 113 terra no litoral do Rio Grande do Norte, na cidade de Pedra Grande. Aqui encerro esta longa lista que, ainda assim, é incapaz de contemplar todos os santos do povo cultuados em nosso país, embora não apenas nele. 110 Muitos destes “santos do povo” mencionados são citados também por FRADE, Santa de Casa - A devoção a Odetinha no Cemitério S. João Batista, 1987; Oscar Calavia SÁEZ, Fantasmas Falados: Mitos e mortos no campo religioso brasileiro, 1996; em reportagens divulgadas na Revista Veja: Nossos Santos de Casa, novembro de 1981; Os Santos da nossa casa, abril de 1999; Os santos, 31 de outubro de 2001; Luis da Câmara Cascudo. Superstição no Brasil, 1985. 111 A devoção a Anastácia evidencia o corpo feminino como lugar do sofrimento e da violência, da tortura e da morte. Embora negra nem sempre a questão da negritude e das lutas antirracistas são colocadas em destaque. A opinião sobre a história de Anastácia e da violência por ela sofrida ganha versões diferentes quando narradas por negras e mulatas. As primeiras destacam a resistência de Anastácia diante da violência sexual do seu senhor como justificativa para seu martírio, enquanto as segundas enfatizam os ciúmes da senhora diante do romance de Anastácia com o senhor que por ela se encantara. Estas versões são apresentadas por John BURDICK, na obra Blessed Anastácia: Women, race, and popular Christianity in Brazil, 1998, em especial nos capítulos 2 e 5. Anastácia é também objeto de estudo de Mônica Dias de SOUZA: Escrava Anastácia: construção de um símbolo e a re-construção da memória e identidade dos membros da Irmandade do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, 2001. 112 Além de ser objeto de folcloristas, sendo uma das lendas representativas do Brasil, em especial do Rio Grande do Sul, o Negrinho do Pastoreio é tema de interesse de Luiz Carlos SUSIN - o Negrinho do Pastoreio: Leitura Teológica de uma Lenda, 1988; José Carlos PEREIRA - Devoções Marginais: interfaces do imaginário religioso, 2005. 113 José Carlos PEREIRA. Devoções Marginais: interfaces do imaginário religioso, p.103, 2005. 73 Os exemplos citados deixam claro que o fenômeno das santificações populares é uma prática comum em todo território brasileiro, embora não se restrinja a ele, como demonstra a literatura especializada, mesmo que esta seja reduzida. Segundo Sáez (1996:102), a literatura produzida sobre estas santificações são ainda escassas e dispersas. Entre as produções existentes, uma referência importante sobre tais cultos é Félix Coluccio, folclorista que se dedicou a catalogar os casos de canonizações populares argentinas, reunidas na obra Cultos y Canonizaciones Populares de Argentina. Para Coluccio, o estudo das canonizações populares é necessário posto que, são fenômenos representativos das crenças e tradições religiosas do povo. Para ele coletar os inúmeros cultos não-canônicos é uma tarefa repleta de dificuldades, tanto por causa do elevado número quanto pela duração efêmera de alguns. As crenças populares surgem muito rapidamente, às vezes baseando-se em apenas um milagre, quase sempre duvidoso e, não raro, com a mesma facilidade com que surgem deixam de existir. Por outro lado, existem cultos que perduram por vários anos, destes, vários permanecem circunscritos a um determinado lugar, ao passo que outros se espalham por outras regiões (Coluccio, 1994:9-10). Entre os “santos do povo” mais difundidos entre argentinos o autor destaca a Defunta Correa – uma mãe em fuga que mesmo depois de morta amamentou seu filho por vários dias até que este fosse resgatado. Sua história virou poema, filme, peças teatrais, sendo ela cultuada em quase todo país. (Coluccio, 1994:13-24) Também na Argentina desenvolve-se o culto a ícones da classe artística dois deles objetos de estudos. Refiro-me aos cultos prestados aos cantores Gilda – objeto de estudo de Eloísa Martin (2004), e Carlos Gardel – caso investigado por Maria Carozzi (2003). Nestes dois casos a morte trágica dos cultuados é elemento destacável na atribuição da santidade, ainda que não o único. Em sua investigação sobre o culto a Gilda, Martin (2003), destaca que considerar Gilda como uma santa aos moldes do catolicismo popular é um ato simplista que não reflete a opinião ou desejo de todos os seus fãs. No entanto, a relação entre fãs e ídolo, neste caso, não raras vezes, se assemelha à relação santo – devoto, havendo mesmo aqueles que atribuem a Gilda a realização de milagres. Por outro lado, há os que não admitem classificá-la como santa e recorrem aos argumentos institucionais católicos para se justificarem, argumentando que não se pode chamar Gilda de santa porque ela não é canonizada, não é reconhecida pela Igreja. (Martín, 2004:107) O caso de Gilda, como bem observa Martín, é ideal para repensarmos as definições de catolicismo popular, de religião. Permite observar um “núcleo sagrado nas práticas dos fãs, 74 que não pode ser ignorado e, portanto, nos permite falar das relações com o sagrado analisando grupos e práticas não definidas como religiosas” (Martín, 2004:112). A devoção a Gardel, também da Argentina, é um caso semelhante ao de Gilda. De acordo com Carozzi (2003), junto com a “Madre Maria", Gardel é um dos “defuntos milagrosos” mais famosos entre os frequentadores do cemitério do Oeste, em Buenos Aires. (Carozzi, 2003:63) Mas o culto a cantores não é uma prerrogativa da América Latina, bem como não o é o culto a santos do povo. O cantor e ídolo de várias gerações, Elvis Presley, é também objeto de culto na cidade onde viveu e onde está enterrado. Este culto é interpretado como religioso por Segré (2006), que o descreve como um culto que se inscreve no âmbito mais amplo das mutações das formas de crer da atualidade, que é caracterizada pelo deslocamento de foco das religiões históricas para zonas profanas, traduzindo-se em uma religião autônoma, secular, um objeto que necessita de novos investimentos investigativos. (Segré, 2006:01). Vale ressaltar que o culto a ícones artísticos, em especial cantores, dentro de uma lógica santo/devoto, é um tipo de santificação ainda não registrado (ou não pesquisado sob esta ótica) no Brasil, embora durante dias de finados e aniversários de morte de artistas famosos como Elis Regina, Clara Nunes, Leandro, Luis Gonzaga, entre outros, os respectivos cemitérios onde foram enterrados ficam repletos de visitantes. Também fora da América Latina, os casos de santificações populares são objetos de investigação científica, como exemplificam os estudos de Gómez (2007), que nos apresenta uma análise comparativa de três casos de “religiosidade marginal” encontrados na província de Granada, na Espanha. O primeiro deles é o culto ao Senhor do Cemitério de Granada – cuja veneração não tem nenhuma explicação além do fato de que as pessoas acreditam em sua possibilidade de realizar milagres, embora ninguém saiba dizer claramente quem é o Senhor do Cemitério, a devoção é dirigida a uma estátua colocada sobre um túmulo, a qual teria chamado a atenção dos devotos, que rezaram diante da mesma e foram agraciados com milagres. Outro caso é o da devoção ao “Cristo de Pano”, uma antiga imagem de Cristo retratada em um estandarte de guerra, cujo culto remonta possivelmente do século XVIII; e o terceiro caso é o culto ao Frei Leopoldo – frei capuchinho que morreu em 1956 e, enquanto vivo, recolhia dinheiro e distribuía aos pobres de Granada. Seu túmulo é um centro de peregrinação, mais evidente todo dia 09 de cada mês. A veneração tem alcance tão elevado, que o “desfile ritual” diante de seu túmulo inicia-se sempre após a missa das 08 da manhã e se estende até as 18 horas e, nem sempre todos conseguem aproximarem-se do túmulo. 75 De volta à América Latina, portador de uma postura Robin Hood, também dedicado a arrecadar dinheiro para os necessitados, porém, através de ações consideradas transgressoras mediante as regras sociais existentes, Machera é o “santo dos estudantes” e dos necessitados, cultuado na cidade de Mérida – na Venezuela. (Cáceres-Péfaur, 2003) O culto a Machera iniciou-se com sua morte, ocorrida em 1977, em um confronto com a polícia. Ele representa uma dualidade dentro do imaginário coletivo da cidade, aparecendo como um transgressor para alguns e como um santo para outros. Em certa medida Machera é um santo próximo dos jovens e acredita-se que continua a ajudar as pessoas necessitadas como fazia quando vivo. A divulgação de seus milagres ocorre de forma oral, enquanto a Igreja ocupa-se em denegri-lo e condená-lo, sem resultados efetivos. (Cáceres-Péfaur, 2003) Na Venezuela encontramos ainda outros “santos do povo”. Além de Machera, os mais conhecidos são os cultos à Santa Maria Lionza e ao médico José Gregório. (Sáez, 1996:103) Alguns paradigmas das santificações populares se repetem, nos diversos contextos em que ocorrem estas santificações. São recorrentes a morte violenta, a opressão e o sofrimento como traços mais significativos, convertendo-se em martírio na leitura dos devotos e, como tal, capaz de purificar até as qualidades não virtuosas do santificado. O que pode ajudar a entender o porquê de encontrarmos santificações de homens, mulheres e crianças vítimas de violência e ao lado da santificação de pessoas extremamente caridosas, de mulheres e homens virtuosos, também andarilhos, prostitutas, e pessoas comuns cujos corpos não se decompuseram após muito tempo de suas mortes, ou cujos túmulos manifestam fenômenos extraordinários como jorrar água, exalar perfume, entre outros. A existência de tantas santificações como as citadas, segundo as considerações de Pereira (2005), encontram grande espaço de inspiração na teologia cristã, que confirma a existência de um Deus semelhante aos seres humanos. A inversão destes papéis ocorre, confundindo as fronteiras do sagrado, quando, na devoção popular às almas, as pessoas, após a morte, se assemelham ao divino, em virtude das associações que são construídas em torno de sua morte e a morte de Cristo, principalmente quando alguns aspectos dessa morte induzem à vitimização ou expiação de culpas do morto. (Pereira, 2005:95) Em relação ao culto aos mortos e almas, Durkheim considera que seja uma forma do ser humano construir, segundo sua imagem, seres sagrados. Para ele este fato representaria uma evolução e não um indicativo de atraso ou primitivismo, encerrando um importante traço do antropomorfismo, haja vista que, anteriormente os seres sagrados eram sempre representados por imagens de animais, fato alterado essencialmente com o advento do cristianismo, quando, pela primeira vez na história, “Deus é um homem, não apenas pela sua forma física, sob a 76 qual ele se apresenta temporariamente, mas ainda pelas ideias e sentimentos que exprime.” (Durkheim, 1989:98; 102). Em certa medida, essa lógica se aplica ao culto dedicado aos “santos do povo”. Com finalidade de estabelecer uma comparação um pouco mais sistematizada, que deixe mais evidente características das santificações populares, optei por realizar uma análise entre as informações apresentadas sobre os cultos argentinos, aos quais tive mais acesso, e os que consegui reunir do Brasil. Para visualizar melhor as afirmações sobre o culto aos “santos 114 do povo” organizei um gráfico comparativo entre os “santos do povo” brasileiro sobre os quais tive informação, e os “santos do povo” venerados na Argentina, especialmente, a partir do trabalho de Coluccio (1994). Os itens dos gráficos visam destacar entre os “santos do povo” listados quantos são leigos divididos entre homens e mulheres; quantos são religiosos, também divididos entre homens e mulheres (este item refere-se exclusivamente a integrantes do clero), quantos são crianças e, o item outros se refere às santificações de objetos ou seres lendários. Gráfico 1 - Proporção das santificações populares do Brasil e da Argentina 51% 30% 27% 28% Brasil Argentina 19% 11% 11% 9% 8% 6% 0 0 Leigos Leigas Religiosos Religiosas crianças Outros Um aspecto notável do fenômeno das santificações populares no Brasil é o grande número de mulheres santificadas, principalmente quando nos limitamos a observar as santificações de leigos. Este dado, por si só, mereceria uma pesquisa mais específica, mais ampla para discutirmos as questões de gênero e o sagrado, o que não é a proposta desta tese. No entanto, algumas inferências serão feitas a partir das pesquisas e leituras realizadas. O grande número de santificações femininas se repete na Argentina, embora neste país o número de homens leigos santificados supere o de mulheres em 21%.Outro dado digno de ressalva é o número de crianças santificadas no Brasil, superior em 17% ao número de casos 114 Reconheço que os dados obtidos não permitem grandes generalizações, no entanto, alguns traços das santificações argentinas e brasileiras podem ser identificados com este exercício. 77 argentinos. As explicações para tais diferenças podem ser encontradas em traços culturais dos dois países, como o detectado por Sáez (1996). Segundo ele, o diferencial entre os cultos argentinos e os brasileiros, dirigidos a mulheres e crianças, têm ligação com a leitura que os devotos fazem das relações familiares, basicamente da questão dos conflitos entre homens e mulheres. Em suas interpretações, Sáez (1996) afirma que os brasileiros tendem a colocar o conflito “homem-mulher” como uma negação da “conjunção-horizontal”, da relação de aliança, da confiança ou traição entre eles, e envolve os dois na dissolução da questão, a qual, em geral, é resolvida com o assassinato da mulher - como ocorrido nos casos de Maria Degolada, Maria do Carmo de São Borja e tantas outras santas brasileiras. Já no caso argentino a conjunção horizontal é negada em função de uma dimensão vertical prioritária, aquela que liga a mãe a seus filhos. O argumento dos acontecimentos sempre traça uma fronteira entre a mãe com seus filhos e o pai - em geral incestuoso ou traído. Aqui a atenção religiosa é também sempre dirigida à mulher vitimada, como mostra o caso da Degolladita de Corrientes – morta junto com sua filha pelo marido desejoso de limpar sua honra; e de Juana Layme – morta por se opor ao marido que tentava uma relação incestuosa com sua filha adolescente (Sáez, 1996:104-105), nestes dois casos, e em outros semelhantes, as mulheres são santificadas, mas as crianças não. As crianças são geralmente associadas ao bem, a anjos e divindades benéficas, neste caso, a santificação de crianças ganha grande espaço na construção popular da santidade. A morte violenta e precoce quase sempre aparece como sinal de santificação, posto que, causa grande comoção infligir sofrimento a inocentes e indefesos. No contexto argentino destaco como exemplos os casos de Telesita – menina muito bela e querida, que morreu queimada num galpão próximo ao vilarejo em que vivia; Pedrito Hallado – menino que foi abandonado, quando recém-nascido, na porta de um cemitério, em pleno inverno, e morreu em decorrência deste fato, logo após ser batizado; e Pedrito Sangueso – assassinado aos 06 anos de idade. (Coluccio, 1994:25; 44; 55) No Brasil, temos os casos de Albertina Berkenbrock, a Menina sem Nome, Taninha, Maria de Lourdes e Serginho, vítimas de violência. Aqui, outra motivação para santificações de crianças seria a vida breve e sofrida, em geral por causa de enfermidades graves, como nos casos de Antoninho da Rocha Marmo vítima de tuberculose; Petrúcio Correia que morreu de tifo aos 08 anos e Odetinha, sempre muito frágil, também morreu de tifo aos 09 anos de idade. 78 No caso das mulheres, a morte violenta e uma vida dedicada à caridade, e/ou intimamente ligada ao sagrado e suas manifestações, sãos os sinais de santificações mais frequentemente indicados pelos devotos nos dois países. O papel do marianismo, entendido como estereótipo originário da devoção católica à Virgem Maria, relacionado à superioridade espiritual das mulheres, não pode ser ignorado nos casos de santificações populares femininas, posto que, entre outros elementos, o marianismo “(...) considera as mulheres semi-divinas, moralmente superiores e espiritualmente mais fortes que os homens. Esta força espiritual engendra a abnegação, quer dizer, uma capacidade 115 infinita de humildade e sacrifício.” Das mulheres são esperadas então atitudes de tolerância, desprendimento de si, dedicação ao próximo, resistência diante de provações. Além de representarem, em virtude da maternidade, o ícone da proteção e da doação, aos que dela necessitam e a ela recorrem. Traços significativos para indicação de santidade associados culturalmente como naturais às mulheres. Levando em conta que a questão da violência é marcante na devoção a santas mulheres, a santificação pode ser entendida também como a vitória do mais fraco mediante um opressor visivelmente mais forte ou mesmo como reconhecimento da purificação de todo pecado que possam ter cometido em vida. O papel da violência nas santificações femininas pode ser entendido pelo fato de que em muitas tradições culturais a honra do homem se afirme com a punição da mulher. No Brasil ainda assistimos a este tipo de julgamento em vários lugares e meios sociais, daí resulta que “somos um dos campeões da violência contra as mulheres (...)”, empreendida por maridos, amantes, namorados, companheiros, pais e irmãos ciosos de lavar a honra. Contamos assim com uma constelação de crimes passionais e vinganças pessoais que, ao lado do tráfico de drogas, vitimam cada vez mais mulheres. (Gebara, 2004:23) Quanto ao maior número de santificações leigas masculinas na Argentina, inverso do ocorrido no Brasil, superior em 40%, encontro justificativa em outro traço significativo das devoções argentinas, que é a grande presença do culto a um personagem marcante da tradição cultural daquele país, o gaúcho. O culto ao gaúcho é tão singular que na obra referencia de Coluccio o capítulo II é inteiramente dedicado aos “Gaúchos Milagrosos”. Em suas palavras “existem no país uma 115 Cf. Evelyn P. STEVENS, “Marianismo: la outra cara del machismo en Latino-América”, citada por Zaira ARY, O Marianismo como estereótipo da superioridade espiritual da mulher: poder ou contra-poder das mulheres?, p. 01, 1995. 79 verdadeira constelação de gaúchos milagroso, que a devoção popular tem entronizado e elevado, em muitos casos, à categoria de verdadeiros santos.” Na maioria das vezes estes gaúchos milagrosos são destacados por terem problemas com as autoridades policiais, em função de suas atividades nem sempre em acordo com a lei. Muitos deles roubavam os ricos para doar aos pobres, o que, é claro, acabava em violentos enfrentamentos e mortes trágicas, quase sempre dos gaúchos. (Coluccio, 1994:67) A morte violenta é, novamente, o primeiro item que desperta a piedade e comoção populares em favor dos gaúchos, passando posteriormente a uma devoção, que se fortalece e espalha-se mediante “favores recebidos, curas incríveis”, localização de objetos ou animais desaparecidos, entre outros eventos que, segundo o código cultural em que se desenvolvem, são entendidos como “verdadeiros milagres.” (Coluccio, 1994:67) A morte violenta também é o sinal de santidade mais comum entre homens leigos santificados no Brasil, como os casos de João Relojoeiro, Baracho, Jararaca, o soldado Chaguinha e os Irmãos Afuzilados; embora haja espaço para a vida caridosa, como o caso de santificação de médicos como Dr. Crasso de Belém, e as santificações baseadas na vida marginalizada em virtude de doença ou outras questões sociais – como ocorrido com Lázaro (MG) e Bento do Portão (SP). O culto a religiosos também se diferenciam bastante. Na Argentina, a partir das fontes observadas, percebe-se que não há a tradição de santificar representantes clericais, embora se 116 santifique líderes espirituais, em geral não católicos (como médiuns e rezadeiras) , ocorrendo ainda a “paganização” de cultos oficiais católicos, ou melhor, uma reinterpretação dos cultos a partir das crenças locais, atribuindo aos santos poderes como o de dar sorte aos jogadores, como o caso de Santo Honofre, ou a recomposição dos nomes de santos oficiais, como ocorrido com Santa Clara que é chamada “Santa Clara Lavandera” – invocada para acabar com o mau tempo. (Coluccio, 1994:135,137) Os fatos acima provavelmente justificam-se pela grande reação negativa aos clérigos na Argentina (especialmente nos séculos XVIII e XIX), em geral associados aos ricos e aos opressores, em franca oposição ao povo, que, mesmo utilizando-se de elementos da tradição católica, recriam sua religião e santificam pessoas de destaque nos grupos religiosos não 117 católicos. 116 Exemplos destes são Pancho Sierra, Madre Maria e Hermana Irma, que compõe o que muitos argentinos denominam de “Triangulo Espiritual de Nuestro Culto Cristiano”, e são cultuados como santos. Ver. Coluccio, p. 100, 1994. 117 Sobre o catolicismo no Cone Sul, ver Maximiliano SALINAS: História da Igreja no Cone Sul (Chile, Argentina, Paraguai e Uruguai), 1992; sobre os cultos a ‘guias espirituais’ argentinos ver. Félix COLUCCIO. 80 A morte trágica ou violenta, quase sempre assimilada como um martírio ou sacrifício é um dado muito frequente entre as motivações para as santificações populares, em especial de mulheres e crianças. Segundo pensamento de Girard, a morte violenta interfere na comunidade e é preciso rituais para exorcizá-la. Com a “morte, a violência contagiosa penetra a comunidade e os vivos devem proteger-se” (Girard, 1998:319), o que pode explicar os variados rituais em torno do morto, em busca de sua purificação e a expulsão da morte maléfica que o vitimou, ao mesmo tempo em que se pede a proteção contra todas as formas de violências. Diante de mortes violentas “a tristeza dos sobreviventes é acompanhada de uma curiosa mistura de horror e de reconforto propícia às resoluções de boa conduta. (...) Um único ser morre e a solidariedade de todos os vivos é reforçada.” Essa sensação é o estopim para que a morte seja entendida como um sacrifício. Como proposto por Girard (1998) “é a violência que mata esta vítima, que a aniquila e, ao mesmo tempo, a coloca acima de tudo, a torna de certa forma imortal.” (Girard, 1998:319-321). A violência que promoveu a execução da vítima é um sacrifício no sentido de ser mecanismo produtor de sagrado. Assim, sacralizada a violência, ou seja, tendo sido expulsa por seus motivos maléficos e venerada pela sua virtude benéfica, a vítima pode se transformar numa criatura sobrenatural salvadora, fonte de equilíbrio. (Girard, 1998) Nas devoções populares em questão a noção de sacrifício encontra suas referencias no cristianismo e as funções do sacrifício não diferem muito das encontradas nas relações oficiais, como a ideia do Cristo Sofredor. Segundo Pereira (2005) uma violência intrínseca permeia o sagrado nas santificações populares, a violência é mesmo uma “interface do sagrado, ou algo que permeia essa categoria de devoção (...)”. Os centros urbanos onde imperam os mais diversificados tipos de violência, desde o “descaso, o anonimato, a exclusão, até a violência física explícita nas ruas ou nos lares das mais distintas classes sociais, reforçam a necessidade de protetores virtuais, do âmbito do sagrado, que apaziguam agressões reais.” (Pereira, 2005:111; 115-116) Aspectos ligados à morte são definitivos na atribuição de santidades. Os sinais da santidade muitas vezes relacionam-se com as circunstâncias em que ela ocorreu e/ou a eventos posteriores a ela, o que nos permite dividir os “santos do povo” entre os santificados em virtude de suas vidas e os santificados em função de sua morte e eventos posteriores a ela. Cultos y canonizaciones populares de Argentina, 1994 e Oscar Calavia SÁEZ. Fantasmas Falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro, 1996. 81 Numa tentativa de classificações dos Santos do Povo, Coluccio (1994) apresenta uma tipologia para as santidades e devoções populares. De acordo com a tipologia descrita por ele, e já aplicada a alguns casos brasileiros pelo antropólogo Roberto Benjamin (2004) é possível propor a existência de duas categorias de santos não-canônicos: - A categoria dos “iluminados” – grupo constituído por pessoas que na sua vida terrena dedicaram-se às atividades de caridade e foram consideradas virtuosas; algumas delas teriam chegado a participar de acontecimentos extraordinários considerados milagrosos; após a morte tiveram a sua intercessão invocada, para auxiliar na resolução de problemas de natureza variada, gerando cultos populares; - e a categoria formada por pessoas “vítimas de morte violenta ou injusta”. (Benjamin, 2004:41) A segunda categoria seria composta por três subgrupos: 1) - O constituído pelos “anjos” (crianças que faleceram ainda na primeira infância, vítimas de abandono ou de outras formas de negligências); 2) - O das vítimas inocentes (espancados, estuprados e assassinados); 3) - O de pessoas de “vida errada” (bandidos e prostitutas cujos devotos acreditam que tiveram oportunidade de arrepender-se e obter perdão dos pecados “in extremis”). (Benjamin, 2004:41) Estas tipologias foram bastante significativas na construção da proposta de estudo das santas do povo que investigo, entretanto, não contemplam todos os santos do povo. É necessário levar em conta, aqueles que são cultuados por causa de eventos extraordinários nos seus post mortem, como a não decomposição dos corpos, fato que promoveu a santificação de Palmyra; o perfume de rosas exalado por Nhá Chica mesmo após dias de sua morte e ausência de cheiros ruins e sinais de putrefação visíveis nos túmulos, como ocorrido com Lola. As santas do povo que investiguei para esta tese, sobre as quais passo a referir-me no próximo capítulo. 82 4 – AS SANTAS DO POVO: TRÊS CASOS MINEIROS EM DESTAQUE – LOLA, PALMYRA E NHÁ CHICA Como visto no capítulo anterior a santificação de mulheres é um traço significativo das santificações populares não sendo uma simples coincidência, ou uma escolha aleatória a seleção de três mulheres como objetos centrais desta pesquisa. É em Minas Gerais que localizamos as cidades polos dessas santificações. Esse é um Estado também marcado pela religiosidade e crenças em espíritos protetores, santos e demais entidades sobrenaturais, onde o catolicismo, em todas as suas formas (popular, tradicional, romanizado, libertador e carismático) encontra grande espaço de atuação, compondo um quadro que permite a convivência de manifestações religiosas diversas, que vão desde as tradições herdadas do período colonial – tais como as grandes festas de padroeiros, folias de reis, congados e irmandades -, aos mais modernos estilos de ser religioso, onde se cultua os santos mediante a construção e/ou frequência aos altares virtuais, as celebrações se transformam em espetáculos transmitidos em tempo real para diferentes lugares e os fiéis transitam livremente entre as diferentes denominações religiosas, podendo não se filiar a nenhuma delas. Neste Estado ainda existem irmandades, confrarias, beatas, ermitães, benzedeiras, curandeiros, entre outros personagens da cultura religiosa popular. Essa contundente realidade religiosa motivou a pesquisa Inventário das práticas culturais populares no interior das Gerais, realizada com aprovação e apoio do Fundo Estadual de Cultura de Minas Gerais em 118 2007. A presença feminina é marcante no universo da religiosidade popular mineira sendo ela, na maioria das vezes, “quem conhece os segredos das palavras e dos gestos capazes de exorcizarem o mal.” Pesquisando este universo, Edmilson Pereira e Núbia Gomes (2004), descobriram muito sobre os costumes, as orações e condutas consideradas relevantes, no que tange ao sagrado e o feminino. Entre esses costumes destacam a valorização da virgindade feminina como elemento sagrado. Segundo eles, para certos habitantes de Minas Gerais, (...) a virgindade é o estado de graça em oposição ao pecado do sexo. Sua religiosidade fala de um paraíso perdido, de onde o homem foi expulso por uma desobediência. E ele aprendeu – nas pregações religiosas – que tal infração se liga à sexualidade: a mulher atraiu o homem e traiu Deus. (Gomes e Pereira, 2004:81-82) 118 Pesquisa coordenada pelas professoras drª Maria Clara Tomaz Machado (UFU) e drª Mônica Chaves Abdala (UFU). Cf. exposto no artigo Ainda se benze em Minas Gerais (MACHADO, 2007). 83 Embora não ocorra com os casos em estudo, em algumas atribuições de santidade femininas a virgindade é basilar, quase sempre associada à pureza. Como exemplos, cito os casos de Isabel Cristina de Barbacena/MG e Albertina Berkenbrock de Santa Catarina, ambas santificadas por terem morrido em defesa de sua castidade. Característica marcante da religiosidade de Minas é ainda a devoção a Maria. Quase sempre a “força de Maria advém da dualidade do seu poder: virgem não se contaminou; mãe doou à humanidade o filho que abriria as portas fechadas do Éden” (Gomes e Pereira, 2004:82). A questão da maternidade sempre associada à Maria transformou-a na mãe dos homens, por isto mesmo, sua grande e zelosa protetora. 119 Também comum ao meio religioso feminino é a presença da beata , uma espécie de reclusa fora dos conventos, que se aproximam um pouco do que viveram Lola e Nhá Chica. De acordo com Algranti (1999) a ausência, por longo período, de instituições propícias ao recolhimento feminino organizadas segundo os moldes canônicos justificam a existência de outros caminhos para a devoção feminina, entre elas o beatismo e demais 120 experiências individuais, por várias vezes vivenciadas distantes da vida comunitária. Peregrinas ou reclusas, as beatas são muitas, não havendo um modelo único e rígido de beatas no Brasil, tampouco em outros países. Elas podem ser definidas como mulheres que, independente dos obstáculos presentes mediante a opção pela vida religiosa feminina, viveram recolhidas numa vida de oração e penitencia conforme as regras canônicas, embora 121 fora dos recolhimentos institucionais. Em muitos casos, portadoras de grande carisma, as beatas não tinham um modo de vida único, vivendo a devoção de maneiras diferenciadas entre si. Embora elas mantivessem como referencia as noções de modelo tradicional de vida contemplativa, cada uma fazia sua própria interpretação de tais noções. Segundo Azzi, as beatas “faziam votos particulares, 119 Há alguns casos de beatas que se tornaram exemplares no contexto mineiro e foram objetos de estudos de cientistas sociais, como exemplo, destaco a dissertação de mestrado de Simone Santos de Almeida SILVA, Religião e condição feminina no início do século XIX: Controvérsias em torno da Irmã Germana, PPCIR/UFJF, 2003. 120 Leila Mezan ALGRANTI. Honradas e devotas: mulheres da colônia – condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822, p. 90, 1999. O beatismo existiu no Brasil desde o período colonial, ocorrendo ainda nos dias atuais, especialmente no interior, tendo sido marcante desde a antiguidade nos países da Europa e América latina. Algumas beatas mudaram seus destinos rompendo com a dinâmica clássica estabelecida na época, entre estas algumas se tornaram conhecidas por suas santidades, como Santa Catarina de Siena, Santa Tereza D’Ávila, Ines de La Cruz. No Brasil as beatas mais conhecidas são Juana de Gusmão, Jacinta de São José, Rosa Maria Egipciaca, e Germana. Ver: Luis MOTT. Santos e Santas no Brasil Colonial, 1994; Simone Santos de Almeida SILVA. Religião e condição feminina no início do século XIX: Controvérsias em torno da Irmã Germana, 2003. 121 Cf. Riolando AZZI, A vida religiosa no Brasil - enfoques históricos, p. 56, 1983; Leila Menzan ALGRANTI, Honradas e devotas: mulheres da colônia – condições femininas nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822, 1999; Simone Santos de Almeida SILVA. Religião e condição feminina no início do século XIX: Controvérsias em torno da Irmã Germana, 2003. 84 mantinham a virgindade, (...) submetendo-se a rigorosas penitencias, fazendo a caridade aos que batiam a sua porta (...)”. Suas opções de vida eram muitas vezes mais rigorosas até do que a vida nos conventos. (Azzi, 1983:56-57) Alguns pesquisadores da espiritualidade feminina indicam que a dedicação ao sagrado, a opção por uma vida contemplativa, a clausura feminina voluntária, pode ser uma forma de resistência frente ao mundo de domínio do masculino, uma forma de sair do anonimato. Em muitos casos, a clausura, o afastamento do mundo empreendido pelas mulheres em um contexto hostil aos valores e atributos femininos, longe de ser sinônimo de fuga, transforma- 122 se num “meio de ser sujeito, e não objeto da história”. Em contextos patriarcais, ao lidar com o sagrado de forma íntima e com desenvoltura, a mulher tornava-se excepcional, imbuindo-se de uma autoridade que lhe era negada em outros espaços sociais fora do lar, do casamento, das relações familiares propriamente ditas. 123 Assim elas podiam ser as “senhoras do sagrado ”, portadoras de relativa autonomia sobre si mesmas e sobre o papel social que desempenhavam. A figura do ermitão, em certa medida, o referente masculino das beatas, é também significativa no cenário religioso de Minas. Coube a alguns deles a construção de importantes ermidas, tais como Félix da Costa que construiu a ermida de Nossa Senhora da Conceição em Macaúbas, próximo ao Rio das Velhas; - Feliciano Mendes que construiu a ermida de Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas do Campo; Antônio Bracarena que edificou a ermida de Nossa Senhora da Piedade, e o irmão Lourenço de Nossa Senhora que construiu a ermida de Nossa Senhora Mãe dos Homens, na serra do Caraça. (Del Priore, 1997: 49-50) Em meados do século XVIII, surgiram os seminários episcopais, dependentes da autoridade diocesana, um deles localizado em Minas Gerais, e os demais no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraíba, Pernambuco, Maranhão e Pará. Nesse mesmo século foram construídos dois grandes conventos em Minas Gerais. O primeiro deles foi o de Macaúbas, uma junção de recolhimento e escola para meninas, originário da ermida de Nossa Senhora da Conceição -, e o segundo no Vale do Jequitinhonha, às margens do rio Araçuaí, denominada Casa de Oração do Vale das Lágrimas. (Del Priore, 1997: 63-64) 122 FONSECA, Dagoberto José da. Clausura e silencio. Texto apresentado no seminário Temático 08 – Experiências religiosas e novas espiritualidades, nas VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina. São Paulo, Centro Universitário Maria Antônia, 22 a25 de setembro de 1998. (tema que retomo no capítulo 4). 123 Expressão utilizada por MAGALDI, Juliana Alves e GERMINIANI, Haudrey, em sua monografia de bacharelado As Senhoras do Sagrado: um estudo da benzeção em Juiz de Fora, curso de graduação em Ciências Sociais, UFJF, 1997. 85 É importante lembrar que é de Minas Gerais um dos mais destacados representante dos bispos reformadores do século XIX, Dom Viçoso, bispo da diocese de Mariana. Este fato ajuda a entender a força que teve o projeto romanizador nesse Estado, embora as devoções populares tenham se mantido também com relativa expressividade. Algumas das características da religiosidade mineira podem ser percebidas nos escritos memorialistas de Pedro Nava, nascido no ano de 1903, na obra sobre sua infância e adolescência, vividas na cidade mineira de Juiz de Fora, de onde transcrevemos: Que engano tomar os fantasmas como ilusões dos sentidos abusados por formas indistintas... São os duendes mesmos e as aparições que, quando espantadas com o pelo sinal e o nome da Virgem, se escondem rapidamente nas roupas penduradas no escuro, nas largas folhas brilhando ao luar ou no lampejo das águas dormentes. Todos nós, mineiros, sabemos disto. (...) E o pior de todos – o caxias, o orelha gorda, o Diabo. Corremos para Deus Padre, para Deus Filho, para o Divino Espírito Santo, ainda mais para os santos, ainda mais para Nossa Senhora Mãe dos Homens, tangidos pelo pânico dessa legião de duendes, avantesmas, aparições, monstros dos limbos, monstros dos infernos, demônios e espíritos imundos. (Nava, 2002: 97; 100) Nas terras mineiras o culto aos santos, em especial a Maria “Mãe dos Homens", tem também raízes profundas e marcantes. Tradicionalmente os santos são evocados para acompanhar os devotos, protegendo-o e 124 defendendo-o dos perigos do mundo e após a morte. Ainda hoje o culto aos santos é elemento chave da religiosidade mineira, bem como, ainda hoje, em variados lugares de Minas existem curandeiros, rezadeiras, médiuns, beatas e beatos. Com relativa frequência surgem relatos sobre aparições de santas milagrosas, organizam-se romarias e multiplicam-se os fiéis que compõem uma complexa e vasta rede de crenças e misticismos. Em meio a tanta diversificação de crenças e devoções das terras mineiras há espaço para uma gama de santificações populares, como citado na Introdução desta tese, entre elas as santas do povo Lola, Nhá Chica e Palmyra, sobre as quais passo a referir-me. 124 Cercada de incertezas e medos, a morte sempre foi profundamente marcada pela fé e devoção aos santos como intercessores benevolentes no julgamento final. A historiadora Beatriz Miranda analisando documentos do final do séc. XVIII, afirma que o moribundo preocupava-se em garantir por escrito nos testamentos a encomenda de sua alma aos anjos e santos de sua devoção, fazendo-lhes promessas de missas, previamente ‘acertadas’ com a igreja, em prol de sua proteção eterna. Entre os santos mais citados nestes documentos e analisados por Miranda (2001), são destaque as devoções a São Miguel Arcanjo, visto como árbitro das almas no purgatório; a Nossa Senhora, cuja intercessão era evocada nos vários momentos da vida e, especialmente na hora de encomendar a alma, justificando-se as várias devoções a N. Sr.ª Do Bom Parto, N. Sr.ª. Do Leite, N. Sr.ª. das Graças, N. Sr.ª. Dos Remédios, N. Sr.ª. da Ajuda e N. Sr.ª. da Boa Morte; além destas devoções, existiam as ligadas ao nome de batismo do morto, os mais comuns eram São João, Santo Antônio, São Francisco e São Sebastião. Beatriz V. Dias MIRANDA. “O bem morrer”: Religiosidade popular e organização social, 2001, p. 16. Sobre este tema ver também José João REIS: A Morte é uma Festa, 1991. 86 Antes apresento um mapa da região sudeste do Brasil, com destaque para as cidades onde concentrei meus estudos: Baependi, Rio Pomba Juiz de Fora, e as capitais dos Estados componentes desta região: Belo Horizonte, Vitória, Rio de Janeiro e São Paulo. Figura 2: Mapa Região Sudeste Belo Horizonte Vitória Rio Pomba Baependi Juiz de Fora São Paulo Rio de Janeiro Fonte: 4.1: Narrativas em torno de Lola: A “Santa de Rio Pomba” Para pesquisar o caso da santificação de Lola, visitei por várias vezes a cidade de Rio Pomba especialmente nas primeiras sextas-feiras, quando ocorre a reza do terço em seu túmulo, acompanhada por uma missa na Igreja de São Manoel, dedicada ao Sagrado Coração de Jesus e à alma de Lola. Além das primeiras sextas-feiras, o dia 09 de abril, dia do aniversário da morte de Lola, também é marcante na devoção a ela, tanto que se tornou 125 feriado municipal em Rio Pomba desde 2003. Nos momentos em que acompanhei os rituais dedicados a Lola aproveitava para observar as pessoas aproximar-me e buscar informações mais específicas sobre a devoção. Muitos dos abordados por mim se dispuseram a falar sobre sua devoção e sobre o que sabiam a respeito de Lola, entretanto uma grande parcela destes pedia que seus depoimentos não fossem registrados por gravadores ou preferiam não se identificar. 125 O feriado municipal de 09 de abril – Dia de Lola – foi decretado e promulgado pelo prefeito Giovani Soares Baía, em 1º de abril de 2003, resultante do Projeto de Lei do então vereador Dalmo Maurício Furtado. 87 O silêncio dos devotos de Lola, principalmente os residentes em Rio Pomba, é um traço peculiar desta devoção. Os devotos se justificam dizendo que esta foi uma opção da própria Lola que, queria alcançar “enclausurada a deslembrança total”, ou seja, queria que 126 “ninguém se conscientizasse da existência de sua pessoa.” Segundo informações obtidas junto aos devotos e demais fontes pesquisadas, sua vida reclusa teria se iniciado por orientação da Igreja e por sua própria vontade após desgosto com a repercussão negativa de uma publicação sobre sua vida veiculada pela Revista Manchete em novembro de 1957, um assunto que retomarei adiante. Tomando como referencia a postura de Lola em sua decisão de se enclausurar, muitos devotos optam por manterem-se em silêncio ou no anonimato quanto são interpelados. Por outro lado, há devotos que querem ver a santidade de Lola reconhecida e divulgada pelo povo e pela Igreja, originando-se aí, uma tensão sobre como lidar com os milagres de Lola e, por conseguinte com sua santidade. Esta tensão é latente no depoimento da Sr.ª Myriam Rodrigues127, afilhada e amiga de Lola por mais de 30 anos: Você pode reparar a maioria das pessoas que falam sobre Lola e as graças que alcançaram através dela não são de Rio Pomba. Ela, em vida ela pedia, eu mesma guardei o silêncio ... ela não queria a casa dela cheia. Para o mundo ela já estava morta... depois que ela morreu o silencio foi com ela, mas o povo acha que não, e os padres também acham que deve guardar silencio para não causar alarde no povo(...), eu falo porque preciso dar testemunho daquilo 128 que eu vi (...) A opção pelo silêncio e anonimato de parte dos devotos de Lola reforça o mistério em torno de sua existência, fortemente marcada por acontecimentos incomuns, senão inexplicáveis aos olhos do povo que a transformou na Santa de Rio Pomba, além de aguçar o interesse e a curiosidade de muitos, originando controvérsias e debates apaixonados que remontam até ao registro de seu nascimento realizado em abril de 1931 quando ela já tinha 19 129 anos, fato que teria provocado erro na data de seu nascimento, alterada de 1911 para 1913. 126 Depoimento do Padre José de Oliveira Valente em 1998, orientador espiritual de Lola durante os últimos 15 anos que ela viveu. Transcrito na íntegra na obra de Roberto Nogueira FERREIRA. O Sagrado Coração de Lola – a ‘Santa de Rio Pomba’, pp. 67-71, 2007, disponível na Associação Amigos da Causa de Lola, em Rio Pomba, aos cuidados da Sr.ª Myriam Rodrigues. 127 D’. Myriam conheceu Lola quando tinha aproximadamente 22 anos de idade, por volta de 1960. Ela era Adventista do Sétimo Dia e converteu-se ao Catolicismo por influência e catequese de Lola. De acordo com seu depoimento, após a morte de Dorvina, irmã de Lola, em 1983, D’. Myriam tornou-se uma das pessoas mais próximas a ela, acompanhando-a diariamente, principalmente nos últimos dois anos de vida. 128 Depoimento da Sr.ª Myriam Rodrigues Vieira, 2006. 129 O que confirma a data de nascimento como sendo 27 de junho de 1911 é o registro de batismo de Lola, realizado em 09 de julho de 1911, na Igreja de Mercês. Estes documentos estão disponíveis para consulta no Museu de Rio Pomba, a cópia dos mesmos pode ser também encontrada in: FERREIRA, Roberto Nogueira. O Sagrado Coração de Lola – a ‘Santa de Rio Pomba’, 2007, p. 93-94. 88 O nome de Lola também gera algumas situações inusitadas, posto que, ela recebeu mais de um nome no decorrer de sua vida, conforme consta nos registros cartorários do município e comarca de Rio Pomba-MG, bem como em seu batistério Lola recebeu o nome de Floripes Maria de Jesus e, não se sabe bem o porquê, posteriormente passou a assinar Floripes Dornellas da Costa, mesmo em documentos oficiais. As variações nominativas não acabam por aí, temos ainda Floripes Dornellas de Jesus, mais frequentemente citado pela imprensa jornalística e nos livros escritos sobre ela, e Floripes Maria Dornelas, como consta na página de abertura do livro de registro de visitas à 130 casa de Lola referente ao ano de 1951. No entanto, diante de todas estas variações e à revelia dos registros oficiais, o nome que ficou na história local e na memória do povo, em especial dos devotos que a aclamaram santa antes mesmo de sua morte, é tão somente Lola. Os eventos em torno do registro de nascimento e nomes de Lola representam uma pequena centelha da instigante história desta mulher e das várias narrativas existentes em torno da mesma. Caçula de uma família de 13 filhos, tendo como pais Joaquim Dornellas da Costa e 131 Deolinda Maria de Jesus, Lola nasceu no distrito de Mercês do Pomba , no local em que 132 hoje existe o Sítio Simão – cuja atual proprietária construiu uma capela onde são realizados cultos a Lola, especialmente no dia 27 de junho, dia do seus nascimento. Lola mudou-se para área rural de Rio Pomba por volta de 1913, para o Sítio Lindo Vale, onde morou até sua morte em 1999. Sua família era católica, frequentavam regularmente as missas aos domingos e, durante a semana, seguindo costume comum à época, reuniam-se ao fim do dia para orações e recitação do rosário, diante de um oratório dedicado à Virgem Maria. Essa vivência católica é confirmada pelas informações registrada em seu diário, em depoimentos e obras escritas sobre Lola, através das ações praticadas por ela, como por exemplo, sua devoção e divulgação da fé no Sagrado Coração de Jesus, sua fé em Nossa Senhora, homenageada com a inserção de Lola no noviciado de Filhas de Maria em 1933, fato que foi motivo de grande alegria para a mesma, conforme os seus próprios registros: “Dia feliz em que me aproximei do Sagrado 133 Altar para receber a fita de Filha de Maria, que alegria senti no meu coração (...)”. 130 Este livro encontra-se relacionado entre os documentos reunidos para o processo de beatificação de Lola, antes disto esteve exposto no Museu Histórico de Rio Pomba – MG. O processo de beatificação de Lola foi aberto em 01 de julho de 2005, por Dom Luciano Mendes de Almeida, então Arcebispo de Mariana, diocese a qual pertence a Igreja de Rio Pomba. 131 Atualmente uma cidade emancipada, Mercês foi distrito de Rio Pomba até 1911. 132 A atual proprietária do Sítio Simão é a Sr.ª Marina Faria Brandão, cf. depoimentos que ouvi, os registros em cartório e obra já citada de FERREIRA (2007). 133 Texto escrito em um dos ‘santinhos’ distribuídos por Lola após seu acidente, assinado por ela e datado 27 de maio de 1944. É desta ocasião a única foto conhecida em que Lola aparece de pé, antes do acidente. (Anexo 2.1) 89 A presença da fé em Maria acompanhou Lola por toda a vida, embora a devoção ao Sagrado Coração de Jesus tenha sido mais divulgada. Por isto mesmo distribuiu até os últimos dias de sua vida, junto aos livros e demais paramentos ligados ao Sagrado Coração de Jesus, um rosário. Além disto, costumava dizer que “nós temos um pai e uma mãe, que muito cuida 134 de todos nós”. A foto seguinte é representativa dessas devoções de Lola: Figura 3 – Imagens de devoção de Lola Fonte: Lola foi, e ainda o é, objeto de interesse de várias pessoas, entre devotos e pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento, tais como padres, jornalistas, médicos, advogados, biógrafos, historiadores, cientistas da religião, dentre outros. Muitos destes foram movidos a escrever sobre ela pelo encantamento e respeito resultante do contato 135 direto com a mesma e seu cotidiano. Somados aos livros e santinhos de Lola, a imprensa jornalística também tem grande participação na divulgação da história de Lola, alimentando novas narrativas a seu respeito, ora enaltecendo, ora questionando-a e tentando desmistificá-la, ora levantando suspeitas sobre sua conduta, apontando-a como alguém que apenas enganava e abusava da fé do povo, como veremos adiante. 134 Segundo Padre Paulo Dionê, esta era uma fala comum a Lola. Cf. depoimento no Programa: Tribuna Independente, A força da Eucaristia, Rede Vida, 13 de maio de 1999. 135 Como o Dr. Cláudio Bomtempo, médico e autor da obra O Que O Meu Coração Aprendeu (2005), onde narra várias situações vividas por ele enquanto amigo e médico de Lola; e do Pe. Euler Alves Pereira, autor de Lola Tal Qual eu a Conheci!(edição do autor, sem registro de data). 90 4.1.1: Narrativas sobre o martírio e a santidade de Lola Qualquer pessoa que saiba algo sobre Lola certamente cita o fato de que ela passou anos presa a uma cama, sem se alimentar e sem dormir, recebendo diariamente a hóstia consagrada que, embora seja elemento eucarístico e como tal um “alimento para o espírito” dos que assim creem, foi o único alimento também para o corpo físico de Lola durante quase 60 anos. De acordo com as narrativas ouvidas, aos 19 anos Lola caiu de uma árvore – mais precisamente de uma jabuticabeira, sobre uma cerca de madeira e arame. Em virtude dos ferimentos e fraturas sofridas ficou imóvel da cintura para baixo. Embora tenha se submetido a muitos tratamentos, ela não foi feliz na busca pela cura para suas dores e paralisia. Após anos de tentativas desistiu dos tratamentos médicos e deixou-se ficar em casa. Recusava os remédios e alimentos afirmando que estes não resolviam seus problemas e, ao contrário, tornava-os mais graves, conforme expresso no depoimento seguinte: Ela caiu da jabuticabeira em cima de uma cerca e, ao bater no moirão da cerca fraturou a espinha e no fraturar a espinha ela perdeu o movimento das pernas. (...) Então fez tratamento por longos anos e os médicos chegaram à conclusão de que era irreversível, ela não ia mais andar, e o corpo dela já não estava mais aceitando, o organismo estava rejeitando os remédios que entrava, os remédios que ela tomava voltava, então ela disse assim que vou afastar dos remédios, o médico dela ia ser o Coração de Jesus, o médico dos médicos seria 136 o coração de Jesus, vou parar com os remédios. Lola não sentia fome, sede, nem sono, assim não comer, não beber e não dormir não representava um ato penitencial. De acordo com os depoimentos a ausência de alimentos lhe aliviava de incômodos vômitos e demais mal-estares manifestos sempre que ela insistia em comer ou medicar-se. De acordo com o depoimento da Sr.ª Myriam Rodrigues: (...) o estômago, como foi perfurado na época do acidente, ela sentia muitas dores, e não parava muita coisa nele. (...) perfurou também o intestino (...) da cintura para baixo nada mais funcionava, com isso sempre que ela se alimentava ela sentia muitas dores, então ela foi começando a ir cortando, ia comendo só aquilo que ela sentia mais confortável, foi cortando tudo que era massa, então á alimentação que ela se sentia melhor era a água de cidra, então ela tomava muita água de cidra e as dores continuaram, depois nem água de cidra ela não bebia mais, de 1944 em diante nem água ela não bebia mais, o 137 único alimento dela era a comunhão sagrada. 136 Depoimento da Sr.ª Myriam Rodrigues Vieira, 2006. 137 Depoimento da Sr.ª Myriam Rodrigues Vieira, 2006. A informação de que esta não foi uma atitude sacrificial, que Lola tivesse se proposto a tal jejum tão prolongado, é reforçada por outros depoentes, entre eles o Padre Paulo Dionê, de Barbacena. 91 O depoimento acima traz outro dado significativo sobre as condições físicas de Lola após o acidente. Ela sofreu também uma perfuração no intestino, fato que culminou com o fim de toda função fisiológica da cintura para baixo. Isto significa que Lola não desassimilava nenhum alimento que pudesse vir a ingerir. Este dado é citado por outras pessoas que tiveram contato mais íntimo com Lola, como é o caso do Padre Gladstone Galo - seu amigo e confessor nos anos seguintes ao acidente; da Sr.ª Myriam - sua afilhada e amiga; do Sr. Severino - seu sobrinho; e do médico Dr. Cláudio Bomtempo, quem cuidou de Lola nos últimos anos de sua vida, e enviou-me a seguinte informação: Prezada Simone, Peço desculpas por ter demorado a responder seu e-mail, é que eu estava fora do País e minha caixa de e-mails estava com problemas. Quanto ao seu questionamento, digo que sim. Lola não descrevia nenhuma função fisiológica. Mas evitava falar no assunto por timidez talvez. Mas me afirmou 138 isto algumas vezes. (...) A hipótese de que Lola vivia sem alimentar-se e não apresentava nenhuma atividade de desassimilação sempre geraram suspeitas e aguçou a curiosidade das pessoas, até mesmo dos mais próximos a ela, como o Padre Gladstone Galo, seu orientador espiritual a partir de 1943, que se dedicou também a investigar a veracidade de tais fenômenos, utilizando-se de interrogatórios e observações diretas. As investigações de Padre Galo são citadas em vários depoimentos, matérias jornalísticas e obras que tiveram Lola como personagem. Na obra Pequena Biografia de Floripes Dornelas de Jesus, o autor assim se manifesta: Certamente ainda pairavam dúvidas; foi então que combinado com o Sr. Vigário de São Manoel, um grupo de senhoras pertencentes a diversas associações da Paróquia, principalmente vinculadas ao Apostolado da Oração, constituíram diversos grupos que por vários dias e noites se revezaram junto à Lola, em vigílias de oração e observação, (...). (Reis, 2001:04) Em matéria divulgada pela revista Manchete, no ano de 1957, consta um depoimento atribuído ao Padre Galo onde ele narra suas estratégias para confirmar as condições reais em que Lola vivia, do qual transcrevo alguns trechos: 138 Após entrevistar a Sr.ª Myriam, a primeira pessoa a falar sobre este dado em relação às funções intestinais de Lola, tentei contato com o Dr. Cláudio Bomtempo, o que consegui via correio eletrônico, recebendo dele a resposta supracitada, outubro de 2006. 92 - Em março de 1951 comecei a dar-lhe comunhão diária. A princípio me cerquei das cautelas necessárias para não emprestar a essa moça um caráter de santidade apenas por seu jejum. (...) o padre esclarece pontos de sua diligencia... Diz que começou por examinar embaixo da cama para ver se encontrava qualquer vasilha. E viu somente livros. Nunca sentiu mau cheiro no quarto. Nem qualquer indício de desassimilação. (...) além das inquisições (o padre) levou três dias, em 1951, com uma vigilância permanente, da qual participaram, em forma de rodízio, outros dois padres e a esposa do médico Romeu Vidal. (...) concluímos que os fenômenos de Lola são os seguintes: não se alimenta de qualquer coisa, exceto da hóstia que lhe dou em comunhão diariamente. Não desassimila absolutamente nada, não urina, não evacua, não bebe líquidos e não anda. Apesar disso, Lola não aparenta uma histeria que seria natural em um caso comum. É equilibrada e calma. E não dorme.139 Como vemos a excepcionalidade de Lola atraiu não apenas a atenção do povo que passou a vê-la como santa, bem como colocou no mapa da imprensa nacional a pequena cidade de Rio Pomba que, por causa de Lola, começou a ser visitada por vários repórteres e jornalistas ansiosos por uma foto, uma entrevista, informações mais precisas sobre aquilo que 140 chamavam de “O mistério de Lola”. Toda curiosidade e desconfiança em torno do caso de Lola são naturalmente compreensíveis, posto que ela faleceu em 1999, e de acordo com depoimentos, parou de se 141 alimentar no início dos anos 40 , o que resulta em um período superior a 50 anos de vida alimentando-se apenas da hóstia eucarística. As informações sobre a vigilância no quarto de Lola estão presentes nos depoimentos conseguidos, apresentando versões variadas sobre quem participou dela, quantas pessoas se revezaram e o tempo que ela durou. Apesar das variações um dado é comum a todos eles: a realização de tal vigília aparece como uma prova incontestável da veracidade sobre a não alimentação, a ausência de sono e de quaisquer atividades abaixo da cintura de Lola, além da alegria, serenidade e calma que ela transmitia apesar de sua situação: (...) o pessoal duvidava que ela não comia, achava que ela tava escondendo, mas o Pe. Galo arrumou as zeladoras que revezavam dia e noite para ver se ela se alimentava ou não, então foi constatado que ela não se alimentava, (...) a vigília foi por várias semanas. Inclusive tem gente ainda viva 142 que participou deste revezamento. 139 Revista Manchete, nº 289, Hóstia é receita para Lola ser santa, 02 de novembro de 1957. Mantive o destaque em itálico, conforme a fonte pesquisada. 140 Titulo da reportagem publicada em 1968 na Revista O Cruzeiro, de autoria do jornalista Mendonça Neto. 141 Não é possível precisar exatamente a data em que Lola teria parado de se alimentar. Alguns depoimentos apontam o ano de 1944, outros 1942 e 1943. 142 Depoimento da Sr.ª Myriam Rodrigues Vieira, 2006. 93 A informação de que “tem gente ainda viva que participou deste revezamento” foi dito pela informante num tom de pode confiar, como se a existência de uma testemunha viva confirmasse a veracidade da vigília e, por conseguinte, a comprovação in loco de que Lola era mesmo um ser especial. No entanto, contrariando minhas expectativas iniciais e apesar dos esforços empreendidos, não consegui localizar nenhuma destas pessoas, no entanto, tive contato com outras que se declararam descendentes de alguns dos agentes da vigília, como ocorre com o Sr. Severino Vieira, filho de uma das zeladoras que se revezaram na vigília; e a jovem advogada Mariana Siani, em cujo depoimento afirma que sua avó materna “viu a santidade de 143 Lola com os próprios olhos” quando participou da vigília do Padre Galo. 4.1.2: Sinais da santidade de Lola Durante as pesquisas realizadas sobre Lola consegui vários depoimentos orais e 144 escritos , além dos questionários aplicados durante as visitas ao túmulo de Lola, às missas e demais atividades dedicadas a ela. Somadas a isso as observações participantes me permitiram levantar dados importantes para construção da santidade de Lola. Os devotos de Lola quando falam sobre ela, geralmente relatam sua aceitação do sofrimento, sua religiosidade e dedicação à Igreja mesmo quando era ainda uma mocinha, deixando claro que a aproximação de Lola com Deus não ocorreu após o acidente. A questão do sofrimento e da pacífica aceitação do mesmo está muito presente na pregação católica tradicional, onde encontramos grande ênfase ao fato de que a (...) a Paixão de Jesus deveria servir de estímulo para que as pessoas aprendessem desse exemplo a suportar os sofrimentos e dificuldades da vida. (...) A espiritualidade da devoção ao Bom Jesus gira ao redor dos temas: paixão e compaixão, Cristo não é apenas um sofredor da paixão mas através dela manifesta a sua compaixão pelo povo. (Azzi, 1992:10) Para a maioria dos devotos de Lola sua santificação iniciou-se quando ela caiu da jabuticabeira, o que fez dessa arvore um elemento essencial em tal processo. 143 Depoimento escrito, disponível na Associação dos Amigos da Causa de Lola, em Rio Pomba. 144 Somando 180 questionários, 30 entrevistas, 80 depoimentos escritos (vários destes foram realizados pela ‘Associação dos Amigos da Causa de Lola’ e se encontram na residência do casal Myriam e Severino, junto à documentação organizada para o processo de canonização de Lola, já em andamento, o que justifica a existência de depoimentos com datas anteriores ao período de realização de minhas pesquisas. Todos os depoimentos citados tiveram sua divulgação autorizada, por escrito, pelos informantes). 94 Para termos uma noção da importância da jabuticabeira para os devotos ressalto que nem a raiz da árvore sobreviveu ao ataque dos mesmos. Iniciada a romaria à casa de Lola, tão logo a notícia de sua paralisia e sobrevivência sem alimentos e remédios se tornou pública, os romeiros queriam também um pedaço da árvore de onde ela caíra. Nas palavras do Sr. Raul, devoto e ex-funcionário de Lola: “O povo avançava para o quintal para ver o pé de jabuticaba de onde ela tinha caído. Quebravam galhos e a própria raiz 145 para fazer remédios.” Os depoimentos recolhidos demonstram que muitas pessoas acreditavam que a jabuticabeira era de certa forma sagrada por causa de seu papel na vida de Lola, como exposto nos depoimentos seguintes: As pessoas iam até a casa dela por fé e acreditavam que ela tinha poderes, as pessoas que iam lá arrancaram até a raiz do pé de jabuticaba, eles achavam que se levava alguma coisa dela, o pé de jabuticaba era como uma parte dela, se eles precisavam de alguma coisa recorriam aquela raiz, aquela 146 casca, era uma forma de conseguir uma graça dela. Minha fé em Lola foi movida pela sua santidade em vida e devoção ao Sagrado Coração de Jesus e pela jabuticabeira de onde ela caiu. Todos aqueles que iam à sua casa levavam as folhas e as cascas da jabuticabeira para fazer chá 147 e eram curados. Eu era criança de sete anos quando ouvi falar nela, e veio uma vontade de conhecê-la. As romarias eram feitas de caminhão. Eu fiquei muito emocionada com ela, parecia uma santa deitada em uma esteira coberta com lenços brancos. Ainda trouxe casca da jabuticabeira, do pé que ela caiu para 148 remédio. Este fato é também mencionado na reportagem de Mendonça Neto, em 1968: “A menina subira numa jabuticabeira – hoje arrancada até a raiz pelos crentes – e caiu.” (Revista O Cruzeiro, 1968) A jabuticabeira tornou-se instrumento da santificação de Lola afinal, ainda que Lola fosse portadora de algum poder especial antes, foi somente a partir do acidente que eles se manifestaram aos olhos de todos. Sendo assim, a queda da jabuticabeira tornou pública sua santidade. Em contrapartida, ela própria foi consagrada, tornada excepcional pelo contato direto estabelecido com Lola e por sua importância na sua santificação. Este fato remete à ideia de contagiosidade do caráter sagrado, apresentada por Durkheim, segundo a qual o sagrado é visto como possuidor de uma natureza tal que: 145 Depoimento Ser Antônio Raul Gonçalves, técnico agropecuário que cuidou dos animais de Lola durante os últimos 20 anos de sua vida, 2006. 146 Depoimento de Maria Imaculada Albino Dias, março de 2006. 147 Depoimento de José Sales Neto, abril de 2006. 148 Depoimento de Emília das Dores Silva, abril 2006. 95 tende a se propagar sobre o mundo profano que, por outro lado, exclui: ao mesmo tempo que o repele, tende a derramar-se sobre ele assim que se aproximam. (...) Longe de ficar preso às coisas que trazem a sua marca, é dotado de uma espécie de fugacidade. Até o contato mais superficial ou mais mediato basta para que ele se propague de um objeto a outro. (...) é sobre esse princípio da contagiosidade do sagrado que repousam todos os ritos de consagração (Durkheim, 1989: 384-385). Enquanto ser sagrado Lola comportava essa possibilidade de consagração daquilo com que mantivesse contato, como ocorrido com a jabuticabeira. Esse poder se estendia também aos livros que distribuía, ao óleo que recolhia da lamparina (e usava para curar), às imagens do Sagrado Coração de Jesus que doava às pessoas que lhes eram próximas e até mesmo às suas orações. É comum nos dias atuais que os devotos procurem um contato mais próximo com as pessoas que conviveram com Lola, que a acompanharam diretamente e, por isto, são investidas de certa autoridade para dar conselhos, distribuir os livros religiosos, fitas do Sagrado Coração de Jesus, terços, santinhos com orações e fotos dela. Essas pessoas são reconhecidas como autorizadas, mediante legitimação dos devotos, a manter hábitos e ações que Lola realizara em vida. Merece destaque neste ponto a distribuição de remédios - como o óleo bento, que era distribuído por Lola e continua sendo procurado por várias pessoas, para a cura dos mais diferentes problemas de saúde, só que agora recorrem à Sr.ª Myriam, uma pessoa referência quando queremos saber sobre Lola em Rio Pomba, devota e dedicada à manutenção dos ensinamentos de Lola e à sua beatificação. Em minhas visitas à Sr.ª Myriam, presenciei o atendimento a várias pessoas que buscavam o óleo bento para filhos com dores de barriga, outros que tinham torções, ou febres, e perguntei sobre os poderes do óleo, bem como sua origem. Ouvi então que o óleo bento é resultante do azeite queimado no lampião que iluminava a imagem do Sagrado Coração de Jesus que ficava no quarto de Lola e por isso era abençoado. A Sr.ª Myriam guarda consigo garrafas de azeite que a própria Lola recolhera em vida e sempre o renova, aumentando-o com o azeite queimado em sua própria casa, também diante de uma imagem do Sagrado Coração. Dessa forma o óleo bento nunca se acaba. Novamente a ideia de contagiosidade do sagrado se faz presente. O óleo sagrado – ou seja, aquele recolhido diante da imagem do Sagrado Coração por Lola, é misturado ao recolhido atualmente em casa de Dona Myriam, consagrando-se também este último, tornando-o capaz de promover curas, segundo nossa informante, “naqueles que têm fé.” 96 Alguns devotos de Lola relatam curas conseguidas mediante a aplicação do óleo do Sagrado Coração de Jesus oferecido por Lola. Entre eles há o depoimento do Sr. Geraldo Luz. De acordo com ele sua sobrinha de um ano de idade contraiu crupe – obstrução aguda da laringe – e após ter sido atendida por um médico, em três consultas, ela continuava piorando. Todos que a viam achavam que ela iria morrer. Desesperado, levou-a até a casa de Lola e pediu ajuda. Lola “pegou um vidro de óleo bento e mandou pingar uma gota na garganta 149 dela.” Assim foi feito e “no outro dia ela se levantou da cama como se não tivesse nada.” Outro caso de cura mediada pelo óleo bento é apresentada por um professor universitário, o Sr. José Furtado. Tendo sofrido um acidente na década de 1960, ele teve o tornozelo esquerdo praticamente decepado, ficando ligado à perna somente pelo tendão. Em busca de recuperar seu tornozelo, passou por hospitais de Juiz de Fora e do Rio de Janeiro, onde se manteve internado por seis meses, sendo operado por várias vezes. Entretanto a 150 osteomielite crônica não cedia e os médicos decidiram amputar sua perna um pouco abaixo do joelho com urgência, sob o risco de precisar-se amputá-la acima do joelho caso a cirurgia não fosse realizada rapidamente. Tendo sido liberado do hospital temporariamente, para preparar a família para a cirurgia de amputação, o Sr. José Furtado decidiu, juntamente com sua esposa, procurar Lola e pedir sua ajuda. Mesmo sabendo que ela não fazia mais atendimentos dirigiu-se até sua casa, acompanhado do Padre Gladstone Galo. Lá chegando foi surpreendido pela decisão de Lola em falar com ele. Contou-lhe sua história, ao que Lola ouviu com atenção e, a seguir, forneceu-lhe um “frasquinho com óleo para colocar nos ferimentos (dois, um de cada lado do tornozelo esquerdo)”. Retornando para casa, logo após a segunda troca de curativos, que ele mesmo fazia, percebeu que não havia secreções nem fragmentos ósseos saindo dos ferimentos. Uns curativos a mais e as feridas já não existiam. Alguns meses se passaram e o Sr. José foi submetido a uma cirurgia para retirar um parafuso do tornozelo, ocasião em que ficou constatada sua total “sanidade óssea. Estava curado, e sem amputação da perna!” Os médicos não souberam explicar a razão da repentina cura e a atribuíram a uma reação natural do próprio organismo do Sr. José, argumentando que isto era raro, mas não impossível. No entanto, para aquele professor, sua cura era devida, sem dúvida alguma, à intercessão de 151 Lola. 149 Depoimento do Sr. Geraldo Luz, 11 de abril de 2006. 150 Cf. definição Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa – ‘Inflamação da medula dos ossos’. 151 Depoimento do Sr. José Furtado Pereira, abril de 2006, relatado por escrito, consta no arquivo da Associação dos Amigos da Causa de Lola, em Rio Pomba. 97 Embora a questão da cura seja muito citada, o mais marcante traço da excepcionalidade de Lola reside no seu martírio, ou seja, a vida que levou após o acidente. Este dado foi o primeiro a atrair os romeiros e o que mais gerou polêmicas em torno de Lola, aparecendo em todas as entrevistas como sinal de sua santidade. Os jejuns prolongados associados à santidade foram comuns em quase toda a história da devoção aos santos. Na Idade Média, em especial, as práticas religiosas excepcionais ligadas à alimentação eram precisamente o jejum e a eucaristia, como ocorrido com Lola. Suas raízes remontam à Igreja Primitiva, mas foi a partir do século III que o jejum ganhou importância religiosa, e no século IV, para os cristãos do mundo mediterrâneo, os banquetes e jejuns definiam a pertença dos fiéis à Igreja. (Bynum, 1994:57-60) Na espiritualidade ocidental dos séculos XIII e XV, a alimentação e a privação de alimentos são símbolos poderosos de religiosidade. Não obstante, mesmo o valor simbólico da alimentação sendo onipresente, ele é atestado como um símbolo de mais importância para 152 as mulheres do que para os homens. Elas levavam mais longe ainda a significação religiosa da comida, isto é, não satisfeitas em ancorar sua devoção na abstinência e na eucaristia, elas radicalizaram a prática dos jejuns, prolongando-os às vezes por anos, ocupando sua vida em êxtases e arrebatamentos sublimes.( Bynum, 1994:164) Vários autores concordam que a alimentação é um campo de maior domínio das mulheres. São elas que têm a capacidade de alimentar os filhos e, em geral, preparam os alimentos para toda a família. Isso faz da alimentação prerrogativa feminina, enquanto para os homens ela aparece como algo relativamente misterioso. Tal qual ocorrido com Lola que não se propôs ao jejum prolongado como forma sacrificial, outras mulheres santificadas também passaram anos sem se alimentar, alegando que os alimentos lhe causavam incômodos. Entre elas destaco Santa Catherine de Sienne que, aconselhada a abandonar seus jejuns para proteger a Igreja contra uma eventual heresia obedeceu por um tempo, mas como se sentia muito mal com os alimentos decidiu não comer mais. Para se justificar junto à Igreja alegou que morreria de qualquer maneira, nesse caso, preferia morrer de fome. (Bell, 1999:33) Alguns estudos demonstram que a “abstinência milagrosa” aumenta à medida que cresce o fervor eucarístico das mulheres e este fervor repousa na convicção de que “receber a 152 Caroline BYNUM. Jeûnes et Festins Sacrés – Les femmes et la nourriture dans la spiritualité médiévale p. 107-108, 1994. Ainda conforme Bynum, se no campo religioso o jejum é mais comum entre mulheres, no campo das questões científicas e protestos políticos são mais comuns entre homens. Como exemplos mundialmente conhecidos temos Gandhi e os membros do IRA (1994:272). No Brasil, temos o recente exemplo de Dom Luiz Flávio Cappio (Bispo da diocese de Barra/Ba) que, opondo-se às obras de transposição das águas do Rio São Francisco, fez uma longa greve de fome. 98 eucaristia é se nutrir do corpo de Deus” (Bynum, 1994:280). No caso de Lola o fervor eucarístico também se fez presente. Inquirida pela necessidade de se alimentar ela sempre dizia que já recebia o melhor dos alimentos, que era o Corpo de Cristo, reafirmando que não 153 sentia fome, sede ou sono. 154 Outro ponto interessante a se observar é que a anorexia santa permite às mulheres relativa autonomia sobre o contato com o sagrado. Abre-se uma possibilidade de um contato com Deus sem a intermediação de um padre, numa “reunião psíquica e mística com Deus”. A ideia de uma mulher, quase sempre vista como objeto, desprovida de autoridade religiosa, de espiritualidade interior, perde espaço para uma “mulher-sujeito”, criadora do seu destino. Nesse sentido as práticas alimentares de santas mulheres lhes permitem escapar da autoridade dos homens da Igreja, não para questionar ou assumir as funções sacerdotais, mas para que Cristo ou o Espírito Santo possam se expressar através delas (Bynum, 1994:317). Fenômeno encontrado no caso de Lola, cuja intimidade com o Sagrado Coração de Jesus é indicativo de sua santidade. Mas, os mistérios de Lola não se encerram na abstinência alimentar e os fenômenos a ele relacionados. Faz-se presente ainda a exemplaridade (Lola teve uma vida católica modelar e dedicada a divulgar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus); a capacidade de prever o futuro; a capacidade de promover curas; e o exalar de perfume de flores, em especial de rosas, mesmo após sua morte. Levando em conta que 100% dos informantes identificam como sinal de santidade de Lola sua sobrevivência excepcional e penosa, realizei uma nova quantificação dos depoimentos sobre a santidade de Lola tomando como referência os outros indicativos de santidade, chegando aos resultados expostos no gráfico seguinte: 153 Fala constante nos depoimentos do Sr. Raul, da Sr.ª Myriam Rodrigues, Sr. Severino e do Padre Paulo Dionê – seu confessor nos últimos 13 anos da vida de Lola. 154 Ao final do século XIX e início do XX, médicos e teólogos católicos passaram a estudar com bastante afinco o fenômeno das mulheres que vivem sem se alimentar. O discurso científico passou a tentar entender e explicar estes casos fora do contexto religioso, onde o fenômeno é denominado “anorexia mental”. Os estudos indicam paralelismos entre essa e a “anorexia santa”, que seriam: Da Idade Média ao século XX as anoréxicas são hiperativas; perfeccionistas – nunca estão satisfeitas com o resultado de seus esforços para serem santas ou mudar a aparência, respectivamente; para elas as relações humanas ordinárias não são interessantes e buscam, de formas semelhantes, outras relações, fora do contexto social convencional. Cf. Rudolph M. BELL. L’anorexie sainte – jeûne et mysticisme du Moyen Age à nos jours, p. 257-258, 1994. 99 Gráfico 2 - Proporção dos sinais de santidade de Lola Exemplo de Fé no Sagrado Coração 11% 2% de Jesus Capacidade de Promover Curas 17% Previsibilidade 70% Exalar Odores Perfumados Como demonstrado pelo gráfico, a maneira como Lola viveu após o acidente, o modo como aceitou suas limitações e relacionou-se com o mundo, com as pessoas e mesmo com Deus é o segundo dado mais apontado para justificar a devoção e a crença na sua santidade. Como exposto, aparece em 70% do total de questionários e entrevistas realizados. Lembrando que a vida sofrida e cheia de privações compõem o sinal de santidade citado por todos os entrevistados, o segundo sinal – exemplaridade – pode ser entendido como seu derivado. Melhor dizendo, os devotos encantam-se com o fato de que Lola viveu por mais de 50 anos sobre uma cama sem colchão, alimentando-se apenas da hóstia eucarística, sem apresentar atividade intestinal, sem dormir e apesar de todas estas provações não se transformou em uma pessoa revoltada, amarga ou infeliz. De acordo com os depoimentos ocorreu exatamente o contrário disso. Lola apresentava-se sempre tranquila, serena, pronta a dar conselhos para os mais diversos problemas que lhe apresentassem e a divulgar a fé na Igreja Católica, em especial ao Sagrado Coração de Jesus. Por isso mesmo, Lola é interpretada como dom de Deus, conforme indicam os depoimentos seguintes: Lola é um Dom de Deus à humanidade. Um sinal muito forte de Deus que eleva os humildes. Em Lola nós admiramos o milagre de sua vida, pois sua vida já é um milagre: tantos e tantos anos, aproximadamente 60, sem comer, sem beber, sem dormir, mas, sobretudo, sua fé, sua oração contínua, seu amor ao Sagrado Coração de Jesus, à Igreja, ao povo, aos humildes e sofredores. Vivia para Deus, espalhava o mais que podia a devoção ao Sagrado Coração de 155 Jesus. Lola para mim é uma pessoa de profunda fé no mistério Eucarístico, de modo especial. Ela necessitava da Sagrada Comunhão, diariamente. Uma pessoa que sempre partilhou sua fé e alegria. (...) a todos edificava com a 155 Depoimento do Padre José Antero B. de Macedo, março de 2006. 100 simplicidade de sua vida, sua austeridade e seu prolongado jejum de sólido, 156 alimento e sono. Os problemas de Lola eram imensos, apesar disto, ela não se queixava e, mais ainda, dava atenção aos problemas dos outros que, muitas vezes, eram “coisas miúdas”, corriqueiras se comparados aos problemas dela. Nas palavras de Sr.ª Myriam: Às vezes as pessoas chegavam lá desesperadas com seus problemas e aí ela sempre tranquila, naquela situação que ela vivia, ela ouvia e dizia assim prá gente: calma isto não é nada, não tem nada que o Sagrado Coração não possa resolver. E resolvia mesmo, de um jeito ou de outro resolvia. Vendo ela daquele jeito a gente ficava até sem graça e via que nossos problemas realmente não eram nada, eram 157 bobagens. Para os que nela creem, Lola teve uma vida de martírio iniciada com o acidente e a consequente paralisia quando ela era ainda uma jovem, no ápice de sua vitalidade. Em tais circunstancias apenas os seres iluminados seriam capazes de manter a paz e a serenidade, como fez Lola, e dedicar sua existência à prática do bem e do trabalho na divulgação da fé no Sagrado Coração de Jesus, transformando sua existência em um exemplo de fé, resignação e devoção. Essas informações são recorrentes tanto em depoimentos recolhidos para esta pesquisa, quanto nos depoimentos registrados há muitos anos, transcritos dos livros e jornais antigos aos quais tive acesso, como o que apresento abaixo, do ano de 1957: - Em 1943 comecei a dar a comunhão a Lola, mas nessa época ainda espaçadamente. Mais tarde amiudei as visitas. Ia-me interessando pelo caso, verificando a sinceridade de seu voto de perfeita católica. Lola tinha pobreza, obediência e castidade. (...) Apesar de suas privações Lola não aparenta uma histeria que seria natural em um caso comum. É equilibrada e calma. E não dorme. Seus olhos 158 limpos estão abertos, dia e noite. Por volta dos dezoito anos, caiu de um pé de jabuticaba, vindo a ficar paralítica. Ao invés de se tornar depressiva e revoltada por se ver excluída de todos os prazeres da juventude, acreditava que aquela era a condição permitida por Deus para que gozasse de alegrias maiores do que as proporcionadas pela 159 natureza humana. Lola não estava definhando e muito pelo contrário, a cada dia, revelava- se mais lúcida e até bem disposta, aquela disposição que só os consagrados conseguem ter. (...) as dores já não eram um obstáculo, mas até encaradas com certa alegria (...) (Reis, 2000:04) 156 Monsenhor Miguel Falabella de Castro (JF), 2006. 157 Depoimento da Sr.ª Myriam Rodrigues Vieira, 2006. 158 Depoimento do Pe. Galo à Revista Manchete, nº 289, Hóstia é receita para Lola ser santa, 02 de novembro de 1957. 159 Pequeno Tesouro – livro produzido pela Associação dos Amigos da Causa de Lola, p.08, 2006. 101 O olhar de Lola é o que mais me marcou. Ele transmitia uma paz tão grande, ela não era desde mundo, havia sim algo de sagrado nela, na sua 160 serenidade diante da vida que tinha. Além de uma vida exemplar, Lola somava aos seus atributos o dom da cura. Mesmo dizendo que quem curava era Jesus e que qualquer um podia fazer o que ela fazia, para os devotos, ainda que a cura viesse de fato em nome de Jesus e pela graça de Deus, Lola era “sua 161 embaixatriz aqui na terra.” Eram a partir de suas orações, da imposição de suas mãos ou pela aplicação do óleo bento que as curas aconteciam. 162 Segundo depoimento de devotos e do responsável pelo cemitério onde Lola está sepultada, muitas curas acontecem diante do túmulo. As provas citadas são as muletas, 163 bengalas, óculos, roupas das pessoas curadas, além das cartas e bilhetes de agradecimento que os devotos depositam junto ao túmulo. Segundo a Sr.ª Myriam existem casos de cura comprovados por documentos médicos que são atribuídos à intercessão de Lola, eles estão arquivados ao processo de beatificação da mesma, iniciado em 01 de julho de 2005, por Dom Luciano Mendes de Almeida, então Arcebispo de Mariana, diocese à qual pertence a Igreja de Rio Pomba. Em reportagem divulgada no jornal Tribuna de Minas (2005/Juiz de Fora), intitulada Fiéis se mobilizam para beatificar religiosa, encontramos alguns depoimentos sobre curas que teriam sido realizadas por intervenção de Lola. Entre eles destaco o depoimento da professora Maria Elizabeth Canônico, que credita a sobrevivência do marido às orações realizadas por Lola. Segundo ela, o próprio médico que atendia o marido reconheceu o fato como extraordinário. Ele passou mal e foi levado às pressas para o CTI. Depois de operado, foram mais de nove horas na mesa de cirurgia, o coração não voltava. Nós ficamos desesperados, e minha filha ligou para Rio Pomba. A sogra dela tinha contato com a Lola e foi prá lá. Ela disse que não deveríamos nos preocupar, porque o Romeu ficaria bem. Na última tentativa da equipe médica o coração voltou a bater. Nunca me esquecerei disso. O próprio médico disse que só foi possível porque alguém 164 rezou mais forte. Isso marcou nossas vidas. 160 Depoimento de Pedro Paulo Espíndola de Aguiar Sobrinho, psicólogo, advogado, estudante de filosofia e devoto de , março/2007. 161 Depoimento da Sr.ª Maria Teixeira de Oliveira, junho de 2002. 162 José Geraldo Jacinto é funcionário no cemitério Municipal de Rio Pomba há mais de 20 anos. É ele quem cuida dos túmulos, em especial o de Lola, que todo dia 09 de abril recebe pintura nova e está sempre florido, e mantém os queimadores de vela sempre limpos. Além disto, recolhe “as coisas que os devotos deixam nos túmulos” , como ex-votos, e as guarda na capela do cemitério. Cf. entrevista concedida em março de 2006. 163 Não tive acesso a estes objetos e cartas, tudo é recolhido e guardado na Casa de Lola. 164 Depoimento da Sr.ª Maria Elizabeth Canônico, divulgado no Jornal Tribuna de Minas, Fiéis se mobilizam para beatificar religiosa, 2005. 102 O depoimento acima deixa à mostra outro dom de Lola, o dom da previsibilidade. Mais um de seus atributos especiais, expresso na fala: “Ela disse que não deveríamos nos preocupar, porque o Romeu fiaria bem.” Fazendo uso desse dom, sempre falando em nome do Sagrado Coração de Jesus, Lola teria acalmado muitos aflitos que a ela recorriam movidos por preocupações variadas. Esta capacidade de falar sobre o porvir reforça a devoção em Lola e, em alguns casos, é mesmo a base da devoção, como explícito no depoimento da Sr.ª Nair Yuri (04/2006): “Minha fé em Lola se explica por coisas que ela me disse que iriam acontecer e aconteceram.” A análise dos dados pesquisados indica que Lola antevia o retorno de pessoas ao lar, falava sobre tratamentos que podiam ser abandonados, pois a cura viria sem eles, sobre cirurgias que seriam realizadas com sucesso ou que não iriam ocorrer, curas que seriam ou não concretizadas, aprovações escolares, grandes tempestades, entre outros. O depoimento seguinte é ilustrativo dessa capacidade de Lola em falar sobre o futuro: Em 1958 minha mãe adoeceu seriamente e a junta médica a desenganou. Disseram que tudo que podiam fazer foi feito, não havia mais nada a fazer. (...) lembrei-me de Lola. Tomei ônibus e fui até a casa dela. Era difícil a estrada sem asfalto. Cheguei tarde, era noite escura e atravessei longo trecho no meio de bois bravos; chorando cheguei a casa dela. Contei tudo para ela. Lola me acalmou dizendo que minha mãe ia sarar e viver por muitos anos. (...) Minha mãe sarou. Comecei pagando minha promessa fazendo o 165 Apostolado da Oração. Outros acontecimentos envolvendo Lola são igualmente indicados como excepcionais pelos devotos. As pessoas que conviveram mais intimamente com Lola garantem, por exemplo, que ela não tinha necessidade de tomar banho e, mesmo assim seu quarto nunca teve odores desagradáveis, ao contrário, havia sempre um perfume suave no ar, como o perfume das flores: (...) nunca precisei dar um banho nela... ela nunca precisou tomar um banho porque eu nunca dei, e olha que eu era a pessoa mais próxima dela, principalmente nos últimos dois anos de vida dela (...) sabe como era o banho que eu dava nela? Quando às vezes tinha muita gente lá e ela tava sentindo muito calor, e as dores eram muito fortes, ela me pedia para passar um paninho com álcool, ela gostava que eu usava pano de saco mas, às vezes pano de saco tava tão difícil que eu usava mesmo era pano de fraldas, de algodão. (...) ela não gostava de água por que ela sentia muito frio, o álcool esquentava. ela não tomava banho, mas ela era cheirosa, era cheiro de flor, quando lavava as mãos 166 usava sabão de coco. 165 Depoimento Sr.ª Cleonice Carvalho, setembro de 2006. (A mãe da Sr.ª Cleonice faleceu somente em 1980, 22 anos depois). 166 Depoimento da Sr.ª Myriam Rodrigues Vieira, 2006. 103 Outro depoimento que remete ao cheiro do quarto de Lola vem do Sr. Geraldo. Rememorando seu primeiro encontro com Lola ele diz: Com medo de me comportar de maneira inadequada, adolescente que era, olhava de soslaio, respeitosamente o lençol branco que cobria a cama de madeira sem colchão, sobre a qual se via aquela imagem igualmente toda de branco, se oferecendo em sacrifício. Absorto, enlevado pelo perfume de rosas que tomava o ambiente, a ouvir dizer, dirigindo-se a mim: - Você vai passar de ano! Ainda hoje, quando me recordo daquele momento, junto com a emoção, 167 vem o perfume das flores. Esta questão de cheiros e odores em torno de Lola também é significativa em seu post mortem. Em minhas visitas ao cemitério de Rio Pomba, para acompanhar a reza do terço - que ocorre regularmente em seu túmulo nas tardes da primeira sexta-feira de cada mês, encontrei 168 o Sr. José Geraldo , funcionário daquele cemitério há mais de 20 anos. Em seu depoimento o Sr. José Geraldo contou que trabalhou no enterro de Lola e lembra-se que o túmulo dela não pôde ser adequadamente vedado no dia do funeral devido ao grande número de pessoas que se avizinhava dele, apesar de todo esquema de segurança organizado para o dia. Somente depois de alguns dias ele pode fechar completamente o túmulo e, apesar disto, diferente do ocorrido com qualquer outro túmulo, mesmo os devidamente lacrados, não havia mosquitos no de Lola, e o cheiro que exalava dele era agradável. Para o Sr. José Geraldo, acostumando com a rotina dos cemitérios e funerais, este foi um acontecimento único, indicativo da santidade de Lola, impressões expressas em seu depoimento: Eu trabalho aqui prá mais de 20 anos e tava trabalhando no enterro de Lola. Tinha muita gente, ela foi carregada pelo carro de bombeiros porque não tinha jeito de tanta gente que tinha. Eu nem consegui colocar os tijolos direito no túmulo dela tive que deixar para voltar depois e terminar, só fechei mais ou menos (...) Uns dias depois é que eu pude voltar para arranjar direito o túmulo e não deu cheiro ruim, nem mosquito tinha perto do túmulo. Esses túmulos todos aí, mesmo os que a gente fecha direitinho, sempre tem mosquito voando é normal nos primeiros dias. (...) no dela não deu mosquito, o cheiro era bom, por isto não deu mosquito, ela é santa mesmo, todo dia tem gente rezando aí prá ela, 169 agradecendo milagre. 167 Depoimento do Sr. Geraldo dos Santos Pires, cronista do jornal O Imparcial, de Rio Pomba, transcrito in: Roberto Nogueira FERREIRA. O Sagrado Coração de Lola – a ‘Santa de Rio Pomba’, p.147. 168 José Geraldo Jacinto é funcionário no cemitério Municipal de Rio Pomba há 20 anos. É ele quem cuida dos túmulos, em especial o de Lola, que todo dia 09 de abril, recebe pintura nova, está sempre florido, e tem os queimadores de vela sempre e limpos. Além disto, recolhe “as coisas que os devotos deixam nos túmulos”, como ex-votos, e as guarda na capela do cemitério. (09/04/2006) 169 Depoimento de José Geraldo Jacinto, funcionário do cemitério municipal de Rio Pomba, abril, 2006. 104 4.1.3: Lola apresentada pela Imprensa Retomando nessa narrativa a questão da popularidade de Lola, não demorou muito tempo para que, os acontecimentos ligados a ela associados à forma como ela lidava com eles, atraíssem a atenção das pessoas, que começaram a vê-la como um ser extraordinário e como tal, portadora de capacidades especiais, senão milagrosas, o que fez com que sua casa se transformasse em um verdadeiro centro de romarias. Na tentativa de aproximar-se de Lola, falar com ela, ouvir suas orações, conselhos ou previsões, as pessoas formavam filas constantes, neste sentido, intermináveis, na entrada do sítio Lindo Vale. Durante vários anos contavam com autorização de membros da Igreja. Em virtude das visitas a Lola, por volta de 1948, Rio Pomba recebeu cerca de 30 mil 170 pessoas, quase todas em busca de sua ajuda. Em 1951 foi aberto o primeiro livro de registro de visitas a Lola e, em suas 100 páginas, constam o registro de cerca de 10 mil visitantes, oriundos de cidades próximas a Rio Pomba, como Ubá, Juiz de Fora, Senador Firmino, bem como de outros Estados. Já em 1957, de acordo com uma matéria publicada na revista Manchete, existia quatro livros de registros de visitas a Lola, aos quais os jornalistas tiveram acesso e, segundo os mesmos, somavam 32.980 assinaturas. A reportagem da época assim se refere às romarias na casa de Lola: Em 1951 a fama das virtudes de Lola extravasou do pequeno município de Rio Pomba (que no seu perímetro urbano tem 6400 habitantes) e alcançou outros Estados. À sua vida ascética atribuía-se um poder extraordinário, e começou uma romaria à fazenda, de doentes e desajustados que vinham lhe pedir cura ou conselhos. Durante 34 dias chegavam caminhões despejando gente. O pároco, embora a contragosto do bispo D. Helvécio, de Mariana, oficializou a romaria, e praticamente burocratizou a visitação à santa. Cordões de isolamento foram cedidos pela prefeitura, policiamento, e convocação de professoras para anotar, em livros de presença, o número de pessoas que acorriam ao local. Em quatro livros massudos registraram o total de 32.980 pessoas, sendo que, no último dia, apareceram 4.800 postulantes das graças de Lola. (...) Na cidade correm histórias de curas e conselhos de Lola. São pouco revelados os personagens. E um ar de mistério cerca os milagres de Lola. (Revista Manchete, 1957) Lola atendia aos que podia oferecendo orações, conselhos e, às vezes, ajuda material – quase sempre doando roupas que ela mesma fazia ou reformava. Junto da ajuda material Lola 170 Atualmente esse livro, autenticado pelo Pe. Gladstone Batista Galo, consta entre os documentos anexados ao processo de beatificação de Lola. 105 oferecia também santinhos com orações ao Sagrado Coração de Jesus, divulgando assim sua fé e devoção. Como pude perceber com a leitura das reportagens e depoimentos, ao grupo de necessitados que recorriam a Lola agregavam-se também os curiosos, aqueles que queriam apenas vê-la, chegar perto daquela mulher que passava a vida sobre uma cama sem comer ou dormir e ainda fazia milagres. É natural que a notícia da existência de Lola e divulgação de sua história para além dos limites da pequena cidade de Rio Pomba tenham chamado a atenção da imprensa, que enviou jornalistas para investigar e escrever sobre ela. De acordo com vários devotos de Lola, entre eles o ex-administrador do sítio Lindo Vale - Sr. Raul; o sobrinho de Lola, Sr. Severino e sua esposa Sr.ª Myriam, a imprensa teve grande responsabilidade pela clausura assumida por Lola ao final da década de 1950. Na ocasião, uma reportagem não autorizada, divulgada na revista Manchete, periódico de grande circulação nacional, teria criado constrangimentos a Lola, deixando-a magoada, o que teria incentivado sua quase total reclusão até o fim de sua vida. A primeira vez que Lola foi citada pela imprensa não religiosa foi no ano de 1951, no jornal O Imparcial, da cidade de Rio Pomba-MG. Até então a fama de Lola se espalhara principalmente através do popular boca-a-boca, salvo por referência encontrada em 171 periódicos religiosos, como é o caso do Santuário do Bom Jesus , de 15 de julho de 1951, cuja reportagem afirmava que, àquela época, a “jurisdição da Arquidiocese de Mariana” era “no Brasil, o local mais fértil em fatos extraordinários”, o que atraía a “atenção dos mais displicentes e cépticos”. Um dos fatos extraordinários mencionados seria a experiência de Lola, comparada no texto do periódico a figuras tradicionais do santuário católico, como Santa Ludovina e Santa Catarina de Siena, que viveram por muitos anos em abstinência alimentar, não ingerindo nada além da hóstia, como ocorria com Lola. De acordo com a notícia em questão: muitos prelados, sacerdotes e fiéis têm feito longas viagens a fim de presenciar de visu o fenômeno da estigmatizada Tereza Neumam, da Baviera, que não se alimenta desde 1921. Entretanto, temos nas circunvizinhanças da cidade mineira de Rio Pomba, em menores proporções, um fenômeno análogo apresentado por uma simples camponesa – Floripes Dornelas de Jesus que não se alimenta há mais de 8 anos. A notícia sobre Lola publicada no Imparcial cita-a como “donzela prodígio de Rio Pomba”. O autor da mesma, o jornalista José de Assis Vieira, também diretor do jornal, 171 A transcrição desta notícia do Santuário do Bom Jesus pode ser encontrada no jornal O Imparcial, vinte e um de julho de 1951, no Museu Histórico de Rio Pomba-MG, ou ainda, em FERREIRA, p. 99, 2007. 106 aponta que não havia ainda publicado nada sobre o caso de Lola para não interferir na fé nem aguçar a curiosidade do povo sobre ela, como cito abaixo: Um fato extraordinário está ocorrendo nesta cidade há muitos anos e o acontecimento é tão transcendental que a própria ciência médica, manifestando- se sobre ele, não tem explicações para justificá-lo. O Imparcial ainda não havia se referido ao “caso” singularíssimo de Lola, deixando que as atenções, a fé, ou simples curiosidade do povo fossem atraídas naturalmente, espontaneamente como até agora, sem os efeitos da propaganda que, muitas vezes, exagera e acaba despontando os crentes, os sequiosos da graça de Deus. (Jornal O Imparcial, 22/07/1951) Em 1955 as romarias a Rio Pomba para visitar Lola tornaram-se maiores e mais frequentes. As notícias sobre ela se espalhavam cada vez com maior rapidez e alcance. 172 Naquele ano, na edição de 21 de maio, O Jornal - Órgão dos Diários Associados, do Rio de Janeiro, publicou uma pequena, mas significativa notícia sobre Lola, incluindo uma foto, chamando a atenção para a “verdadeira agonia” em que Lola se encontrava, anunciando sua provável morte - o que de fato só ocorreu em 1999. A maneira como Lola vivia era classificada pelo citado jornal como sendo um “estado de transe” que já durava mais de quatorze anos, e motivo que levavam muitos a considerarem uma santa. A primeira grande reportagem sobre Lola, publicada em órgão de circulação nacional ocorreu em 1957, na edição 289, de 02 de novembro, na Revista Manchete. Trata-se de uma longa matéria intitulada Hóstia É Receita Para Lola Ser Santa, onde o jornalista Carlos Alberto Tenório fala sobre Lola e seu cotidiano, para alguns de forma a denegri-la. Em uma casa larga e descascada que se nota ao fundo, envolta numa atmosfera mística e de aparente tranqüilidade, está a moça cuja vida ascética o povo consagrou como de uma santa. Até que o padre chegue a porta fica cerrada. E os romeiro eventuais que vão pedir graças espalham-se ansiosos pelo momento de entrar. (...) O padre deposita sua bolsa, retira os paramentos, lava-se e atravessa a sala, com a caixa de biscoitos na mão. Uma porta abre silenciosamente, dando comunicação para um outro aposento. Nele há um altar de proporções médias revestido de linho branco. No canto esquerdo uma cama. O padre começa a missa. Ajoelha-se, oficia, volta-se com a hóstia na mão, enquanto uma voz repete, surdamente, orações ininteligíveis. O padre deposita a eucaristia entre os lábios fios da mulher. Lola está alimentada, depois de um ritual que, desde março de 1951, acontece diariamente. Depois desse ato, ela ouve e aconselha inúmeras pessoas. E assegura a tradição oral da localidade que não se alimenta, não bebe água, não desassimila, nem dorme, mantendo o corpo magro sobre as tábuas (que são sua cama) numa posição em que ela contempla indefinidamente o Sagrado Coração de Jesus – que a protege, orienta e aconselha. 172 Disponível no Museu Histórico de Rio Pomba. 107 Estes fatos cercaram-na de uma aura de virtudes, dando-lhe o cognome pelo qual é agora conhecida: a Santa de Rio Pomba. (Revista Manchete, 2/11/1957) De acordo com as informações recolhidas para esta pesquisa, a reportagem da Revista Manchete teria influenciado no isolamento em que Lola passou a viver nos anos seguintes, embora ninguém diga exatamente o que foi dito na reportagem que a tenha incomodado tanto, assim selecionei alguns trechos que, a meu ver apresentam Lola de forma diferente daquela que seus devotos tentam descrever. Segue as informações apresentadas pelo jornalista em seu primeiro encontro com Lola: Depois que o último romeiro é atendido, sigilosamente por Lola, o padre entra no quarto fala alguma coisa e me acena com a mão chamando-me. Entro procurando não fazer barulho. (...) Na cama, sobre um estrado de madeira coberto por um pano branco, recostada sobre vários e amplos travesseiros, está Lola. (...) É tomada de um pânico aparente quando sabe que está diante de um repórter. E repele as primeiras perguntas com a informação de que não deseja qualquer espécie de propaganda. - O Sagrado Coração de Jesus – diz com meio sorriso não quer. Ela manda que haja humildade. - Insisto em saber pormenores do fenômeno de sua atual existência e ela recomenda que ouça o padre. Depois torna-se inabordável, tranca-se olhando firme e silencia. Não quer falar. E termina por oferecer um santinho. (Revista Manchete, 1957) Na descrição do segundo encontro as informações que os devotos consideram inconvenientes começam a aparecer mais claramente: (...) por uma sala contígua, entrei no quarto. Lola Recompôs a fisionomia, aparentando tranqüilidade e falou novamente sobre a inconveniência da entrevista. - O Sagrado Coração acha que não é hora. - Mas o Sagrado Coração comunicou isso à senhora de que maneira? - Eu sinto. Tento convencê-la e ela ameaça: - Proponho ao senhor que espere. Quando chegar a hora de uma palavrinha minha, eu falo. Até lá o senhor não fala nada. Só quando eu morrer é que podem fazer alguma coisa sobre mim. E quando eu estiver para morrer mando chamar o senhor. Lola agora está loquaz . Nota-se que existe nela a convicção de que é detentora de um poder extraordinário. Nessa hora seus olhos vão ficando duros, e ela ameaça: - O senhor me obedeça que será muito feliz. Uma vez um fotógrafo não fez isso e foi muito infeliz. (...) (Revista Manchete, 1957) 108 Além das ameaças veladas que, segundo o jornalista, foram feitas por Lola, ele publicou ainda uma entrevista com uma das suas irmãs, a Sr.ª Dolores de Jesus, que reclamava judicialmente a divisão das terras em que Lola residia, alegando que elas eram antes patrimônio da família e Lola não poderia doá-las à Igreja, como pretendia. Fez ainda declarações acerca da santidade de Lola e do papel do padre nas romarias e administração das doações recebidas: Minha irmã não é santa coisa nenhuma – diz com irreverência, sentada num banco, ao lado do marido, descalça e mal vestida. – Ela tem ganho verdadeira fortuna e nós estamos na miséria porque o padre leva tudo que ela ganha. (Revista Manchete, 1957) 173 Essa reportagem causou um impacto muito ruim em Lola e seus amigos. Se antes da publicação Lola não gostava de receber a imprensa, a partir de então ficou quase impossível ter acesso a ela e, a partir de 1958, como já mencionado anteriormente, ela afastou-se em definitivo do convívio com as pessoas. Apenas em 1968, outra revista de circulação nacional, a Revista Cruzeiro, voltou a publicar matérias sobre Lola. Para os devotos, essa nova reportagem foi mais uma infelicidade para Lola. Logo na introdução da matéria o jornalista deixava claro o objetivo de suas investigações que seria descobrir sobre o mistério que era Lola: São muitos os depoimentos sobre Florípes Dornellas de Jesus (Lola). Um acidente ocorrido em 1936 causou-lhe paralisia quase total e prostou-a na cama, de onde não se levantou uma única vez, durante trinta e dois anos. Gente de todas as classes leva a ela seus problemas de saúde, finanças e até de amor. Ela vive na cidadezinha mineira de Rio Pomba, a 270 Km do Rio. Toda a cidade protege a lenda que se formou a sua volta. Há mistério, medo, encantamento e paixão em torno dela. Mas quem é, afinal, essa mulher? (Revista O Cruzeiro, 1968) Sobre o comportamento dos moradores, dos amigos de Lola e dela própria, o jornalista afirma: A dona de uma pequena loja de roupas em Rio Pomba fica subitamente irritada conosco. Na soleira da porta da casa de Lola, nos trataria a pontapés, se pudesse. Quer proteger o mistério, quer guardá-lo para si e para os outros habitantes da cidade. Além do fumo e do queijo, Lola é uma atração de Rio Pomba. Sua gente não gosta de alarido, de publicidade sobre suas coisas. A palavra certa é alvoroço, que ali é muito usada. (Revista O Cruzeiro, 1968) Também nesta reportagem são mencionadas ameaças recebidas pelos jornalistas, desta vez teriam sido feitas pelo Padre Galo, confessor de Lola. Segundo consta na revista: 173 Em dias atuais o historiador Roberto Ferreira também critica a reportagem da Revista Manchete de 1957, referindo-se à mesma como “A Fantasiosa reportagem da Revista Manchete”, ver: Roberto Nogueira FERREIRA. O Sagrado Coração de Lola – a ‘Santa de Rio Pomba’, p. 103, 2007. 109 Para os quase fanáticos que a crêem santa, tocar no seu caso é um crime. O padre Galo, irritado com nossa insistência sobre Lola, acabou por dizer que ela não deseja o mal para ninguém, mas todos os repórteres que a molestaram tiveram má sorte na vida. Uma ameaça velada, uma sugestão declarada. (Revista O Cruzeiro, 1968) Além das já citadas, outra reportagem da Revista Manchete publicada em 1998, também causou insatisfação, lembrada ainda pelos devotos de Lola. Logo de início a reportagem apresenta a cidade de Rio Pomba como parada no tempo, de onde todos os jovens querem sair para conseguir melhores condições de vida, um verdadeiro “grotão” (Revista Manchete, 1998). A situação econômica da cidade é citada como justificativa para a crença em Lola: “Em um ambiente desses, não chega a surpreender a existência de um mito como Lola, a mulher que se alimenta exclusivamente de hóstias há 55 anos” (Revista Manchete, 1998). O jornalista se surpreende com o que chamou de “força monolítica” da fé em Lola, que “une praticamente todos os habitantes da cidade.” A seu ver, mesmo entre os mais jovens, não havia quem duvidasse da veracidade da história. Os jornalistas escreveram novamente sobre ameaças que teriam recebido em Rio Pomba. Desta vez a Sr.ª Myriam Rodrigues seria a responsável, e apelidada de “guardiã-mor” de Lola. Segundo a reportagem seria dela a seguinte afirmação: “Ela está doente, e piora só de pensar em repórter. Não faz esta história não, bobo. A oração dela é muito forte e você tem mãe, tem 174 pai. Não mexe com isso não. A gente não quer publicidade.” Neste mesmo ano, Lola fez uma escritura Declaratória, registrada em cartório, no dia 06 de abril, onde especificou como queria viver: (...) queria continuar até o fim da sua vida terrena mantendo silêncio, sem divulgação de sua vida, sob qualquer forma, especialmente pela imprensa falada ou escrita, como direito assegurado a todo ser humano, tanto pela lei de Deus como pela lei dos homens. (...) era feliz, vivia da forma que queria, e que tinha direito, orando por todos, recebendo todo tipo de assistência material e espiritual por um grupo de pessoas que lhe dedicava todo carinho e afeto, de forma gratuita, uma vez que seus pais e irmãos já haviam falecido. (...) Queria viver em paz, carregando sua cruz, fazendo-o com muita 175 alegria e fé no Sagrado Coração de Jesus. 174 Revista Manchete, n.º 2391, A Santa de Rio Pomba, 31 de janeiro de 1998. Em conversa comigo a Sr.ª Myriam nega não só as ameaças apresentadas como suas, mas todas as demais citadas pelas reportagens, como destaquei. Para ela, o que houve foi uma intenção de criar histórias, vender notícias, que isto jamais poderia ocorrer até mesmo porque Lola era uma pessoa muito boa. Embora, realmente não quisesse divulgação sobre si mesma não faria nada contra ninguém. 175 Informação disponível no endereço página de divulgação da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, São Caetano do Sul, acessada em abril de 2007. 110 Ainda hoje muitos devotos de Lola criticam os jornalistas que publicaram tais noticias sobre ela, sobre a maneira como se comportavam e se referiam aos devotos, como visto às 176 vezes, chamados de “fanáticos”. No entanto, apesar da publicidade negativa produzida por algumas reportagens, a imprensa tem significativo papel na divulgação da devoção a Lola, antes e depois de sua morte. Revistas, jornais, reportagens televisivas, on line ou transmitidas via rádio, anunciam anualmente os dias marcantes para a devoção, o movimento na cidade em torno de tal devoção, entre outros dados. É, em grande parte, a partir dessas fontes que 177 consegui muitas das informações sobre a devoção a Lola. Merece destaque, por exemplo, a cobertura jornalística ocorrida durante o velório de Lola. Sua morte foi manchete em vários periódicos de circulação nacional, entre eles O Estado de Minas, O Tempo, Hoje em Dia, Diário Regional, O Imparcial, todos de Minas Gerais; e Jornal O Globo, a Folha de São Paulo, Extra, de São Paulo e do Rio de Janeiro. Muitas das reportagens referiam-se a ela como Santa Lola e traziam textos repletos de 178 reverencia e respeito. Houve inclusive transmissão ao vivo pelas TV Globo, SBT, TV Alterosa e TV Tiradentes. Figura 4 – Matéria de capa: morte e funeral de Lola Fonte: 176 Cf. Depoimento Sr.ª Myriam Rodrigues Vieira, 2006. 177 Exemplos: Periódico Testemunho de Fé – Simples e profundamente Bela, agosto de 1999; O Imparcial, Lola – Serva de Deus: Mobilização para a sua beatificação e canonização, abril de 2004; Tribuna de Minas, Fiéis se mobilizam para beatificar religiosa, novembro de 2005; Informativo da AACL - Associação dos Amigos da Causa de Lola – matérias variadas sobre Lola, suplemento do jornal O Imparcial, dezembro de 2006; jornal O Imparcial, O Sagrado Coração de Lola – a Santa de Rio Pomba, março de 2007; jornal O Imparcial, Oito anos de saudade, abril de 2007. 178 Como ilustração, apresento alguns dos títulos das reportagens: Enterro de Santa Lola comove milhares de fiéis, 11 de abril de 1999; Uma grande santa no céu, Diário Regional, 11 de abril de 1999; Mulher considerada santa morre em MG, Folha de São Paulo, abril de 1999; Por meio século, a fé como alimento, Jornal Extra, 18 de abril de 1999. Muitos destes jornais estão arquivados no Museu Histórico de Rio Pomba, ou disponíveis nas páginas on line, citados também por Roberto Nogueira FERREIRA. O Sagrado Coração de Lola – a ‘Santa de Rio Pomba’, pp. 42-46, 2007. 111 O velório de Lola foi mesmo muito marcante. A cidade de Rio Pomba quase não comportou a quantidade de pessoas que lá compareceram. Para atuar nas celebrações 179 180 religiosas contou-se com a participação de 25 religiosos , aproximadamente 27.300 pessoas estiveram na cidade e cerca de 15.000 acompanharam o seu sepultamento. Figura 5 – Corpo de Lola em viatura do Corpo de Bombeiros Fonte: A imprensa teve mesmo um papel atuante no caso de Lola. Além dos eventos já relatados, existem casos de pessoas que se tornaram devotas a partir de reportagens sobre Lola como é o caso do Sr. José Carlos. Ele estava doente e internado por cauda de uma hepatite crônica em fase de cirrotização no dia 10 de abril, dia do sepultamento de Lola. Como ele foi transmitido pela televisão o Sr. José Carlos assistiu e ouviu o que os repórteres narravam, tomando conhecimento sobre quem era ela, em especial suas capacidades de cura. Pediu então que Lola o ajudasse, o deixasse sobreviver, pois tinha dois filhos gêmeos ainda muito pequenos, com apenas 5 anos de idade. 179 Entre estes estavam o Mons. Miguel Falabella , Côn. Maurício Saraiva, Pe. Luiz Duque Lima, Pe. Nilson Ghetti, Pe. Geraldo Magella Dutra, Pe. Nicolau Caetano, Pe. Pedro Lamya, Pe. João Boaventura Leite e Mons. Vicente de Paulo Penido Burnier, todos de Juiz de Fora – município localizado a 70 Km de Rio Pomba. Da cidade de Alfredo Vasconcellos (MG) veio o Pe. José de Oliveira Valente, ex-pároco de Rio Pomba; de Governador Valadares (MG) o Pe. Francisco Vidal; de Barbacena (MG) Pe. Alvim Valério; de Pará de Minas (MG) o Pe. Francisco de Assis Pereira; de São João Del Rey (MG) o Frei José da Cruz; de Ubá (MG) o Pe. Antônio Firmino Lopes; de Contagem (MG) o Pe. Paulo Arrithi Franco; de Limeira (SP) veio o Pe. Padre Cláudio da Silva; de Rio das Flores (RJ) o Pe. Joel Martins de Almeida. 180 Para se chegar a este número foi feita uma medição entre 7:30 horas do dia 09 de abril até as 9:00 do dia 10 de abril, e levou em conta o fluxo pleno – horário de maior público; o meio fluxo e fluxo zero. A soma de cada um destes momentos foi: - 25.036 pessoas no fluxo pleno, 2.304 no período de meio fluxo. Na operação final temos 27.340 pessoas, que estiveram na Igreja Matriz de São Manoel . Ver. Roberto Nogueira FERREIRA. O Sagrado Coração de Lola – a ‘Santa de Rio Pomba’, p. 34, 2007. 112 De acordo com seu depoimento, a partir daquele momento não sentiu mais nenhum sintoma da doença. Relatando ao médico a ausência de dores, passou por novos exames e o resultado foi negativo, a lesão desaparecera por completo. O médico não acreditou que o exame estivesse correto e pediu que novos exames fossem realizados em laboratórios particulares, o que ocorreu, repetindo-se o resultado negativo da doença. O Sr. José Carlos relatou o pedido feito a Lola para o médico que o assistia, esse afirmou que não acreditava no sobrenatural, mas a medicina não explicava o fato dos exames darem negativo, tampouco sua repentina cura e, não tendo mais nada a fazer por ele, deu-lhe alta. Daí em diante o Sr. José Carlos não sentiu mais nada e constatou que a cura fora completa. Resolveu então ir ao túmulo de Lola, em Rio Pomba, para agradecer-lhe o milagre 181 do restabelecimento de sua saúde. A imprensa é sempre ávida por notícias e tem o papel de oferecê-la a todos a todo tempo. No caso do culto à “Santa de Rio Pomba” a postura inicial de alguns jornalistas foi de duvidar e até mesmo negar as capacidades excepcionais de Lola. No entanto, nos últimos anos tem se tornado grande aliada na divulgação deste mesmo culto. Segundo Sáez (1996) a escrita jornalística é muito presente no cotidiano das pessoas, isto porque não se opõe à oralidade, como ocorre com a escrita acadêmica. Por sua forma e cotidianidade o jornalismo aproxima-se da tradição oral conferindo-lhe o prestígio da escrita e parte de sua retórica, favorecendo uma expansão de temas e registros maior que a permitida pela memória coletiva. Por outro lado, ele depende da oralidade para conseguir a parte fundamental de sua informação e se molda aos paradigmas simbólicos embutidos nela. Em 182 resumo, trata-se de um “meio de comunicação híbrido entre o oral e o escrito.” Por essa característica o discurso jornalístico encontra grande espaço de atuação na construção e divulgação das crenças nos “santos do povo” e, uma farta inspiração religiosa pode ser encontrada em jornais e tevês, não só nas páginas especializadas voltadas para a religião, mas, sobretudo, nas páginas de notícias, onde o culto aos santos se difunde e se molda, em boa parte de acordo com elas. (Sáez, 1996:101-102) 181 Este depoimento foi-me apresentado por escrito, em 2006, fazendo parte do acervo de documentos selecionados para anexar ao processo de Beatificação de Lola, tendo sido feito sob juramento ao Padre José Macedo – atuante na Igreja Nossa Senhora da Glória, em Juiz de Fora. O tratamento do Sr. José Carlos Neto de Campos foi realizado no Hospital Universitário de Juiz de Fora, sendo o número do prontuário 234955. O diagnóstico positivo da doença foi realizado em fevereiro de 1999, no laboratório da UFJF. Os exames posteriores, que deram um resultado negativo para a doença, foram realizados no Laboratório Carlos Chagas, em 20 de maio de 1999 e no laboratório Diagnosis, em 16 de julho de 1999. Todos estes documentos foram anexados ao depoimento do Sr. José Carlos. 182 Oscar Calavia SÁEZ. Fantasmas Falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro, pp. 101-102, 1996. 113 No caso de Lola, bem como nos de Palmyra e Nhá Chica, como será exposto posteriormente, a imprensa tem papel significativo na divulgação das devoções. Especificamente, no caso de Lola, o atrito com a imprensa é entendido como motivação para reclusão desta “santa do povo” e, mesmo não sendo o único motivo para tal reclusão, é a mais fortemente registrada na memória dos devotos. Atualmente, opondo-se ao que ocorria quando Lola era viva, a imprensa é bem-vinda, pois a divulgação de sua história tornou-se interessante para os devotos, em especial aqueles envolvidos no processo de seu reconhecimento oficial como santa: Eu me sinto na obrigação de falar aquilo que eu sei, eu acho que a imprensa, a pessoa que sabe a verdade tem que falar, a imprensa tem que divulgar e as pessoas tem que falar o que sabem senão outros vão falar o que 183 não sabem vão inventar coisas. 4.1.4: Os devotos e os rituais para “Santa Lola” A devoção a Lola, inegavelmente alterou a história da cidade de Rio Pomba e a sua rotina. Lola se transformou numa referência que ultrapassou as fronteiras do Estado de Minas. Quando se chega àquela cidade em busca de informações sobre Lola, é difícil encontrar alguém que esteja disposto a falar abertamente sobre ela, mas há sempre indicação de alguém que sabe mais sobre Lola. Em geral as pessoas indicadas são aquelas que viveram na época de Lola, tiveram acesso a ela, conheceram-na efetivamente. O endereço para qualquer um que queira pagar uma promessa ou fazer pedidos é o Cemitério Municipal da cidade. Lá chegando percorre-se um caminho central até chegar à porta da Capela e, colocando-se de frente para ela, é só virar à esquerda e facilmente identifica-se o túmulo de Lola. Está sempre florido, com velas acesas e limpo. Além disto, quase sempre tem alguém rezando diante dele. Os rituais que são realizados pelos devotos de Lola estão quase sempre associados a seu túmulo, embora haja ainda uma procura pela casa onde ela viveu e a outra, onde nasceu. Iniciemos por descrever os encontros em torno do túmulo de Lola. Em primeiro lugar, é importante dizer que a visita ao túmulo é livre, em qualquer dia do mês ou da semana. Nos dias 02 de novembro, 09 de abril e nas primeiras sextas-feiras o fluxo de visitantes se amplia. Nas duas primeiras ocasiões os devotos se reúnem aleatoriamente. Nas primeiras sextas-feiras ocorrem orações coletivas, presididas pela Sr.ª Myriam, sempre das 13:30 às 14:30. Nesta 183 Depoimento da Sr.ª Myriam Rodrigues Vieira, 2006. 114 ocasião reza-se a novena de casa, o terço e a oração para beatificação de Lola, o que não impede a visitação individual ou de grupos de devotos em outros horários. Figuras 6 e 7 – Túmulo de Lola Fonte: Foto de minha autoria em visita para pesquisas, abril 2006 A novena de casa tem como princípio a oração regular ao Sagrado Coração. Ela era distribuída por Lola que orientava as pessoas sobre como rezar e como anotar, no verso do santinho, os dias em que foi realizada a reza (ver anexo 2.4). Terminado o período de nove sextas-feiras os devotos retornavam para devolver o santinho com as datas anotadas, juntamente com a assinatura do devoto. Este era um meio usado por Lola para divulgar sua fé, e incentivar a fidelidade dos que a procuravam ao Sagrado Coração de Jesus. Realizava, com isso, uma ação pedagógica e missionária, bem comum às santidades da época moderna. Nos dias atuais a distribuição dessa novena permanece sendo realizada pela Sr.ª Myriam, seguindo os mesmos padrões estabelecidos por Lola. A reza do terço é outro momento imprescindível no ritual das primeiras sextas-feiras, perpetuando-se um hábito cultivado também por Lola. Nos vários livretos que ela dedicou-se a distribuir ao longo de sua vida, além das orações e orientações para o trato com o Sagrado Coração de Jesus, havia a orientação para a reza do Santo Rosário. Para ela, assim como as sextas-feiras eram dedicadas ao Sagrado Coração de Jesus, os sábados eram para devoção a Nossa Senhora. A terceira oração regular dos encontros no túmulo é a oração pela beatificação de Lola. Ela aparece tanto nos livretos quanto nos santinhos de Lola que são distribuídos aos devotos regularmente, conforme mostra a transcrição a seguir: 115 Deus pai que revelastes as maravilhas do Reino aos pequeninos, nós vos agradecemos pelos tesouros de virtude e sabedoria que em vida concedestes a Vossa filha Florípes Dornelas de Jesus, Lola. Nós pedimos, pela força do vosso Espírito, exaltai sua humildade elevando Vossa fiel serva à honra dos altares. Concedei-nos a graça da oração e total confiança no Sagrado Coração de Vosso Filho, e na proteção materna de Maria, para que um maior número de 184 pessoas possa tê-la como intercessora e modelo de vida cristã. Amém. Após as orações, o grupo se dirige para a Igreja, onde é celebrada a missa às 15 horas. Outro dia especial é o dia 02 de novembro, época em que o cemitério também recebe muitos visitantes, mas não há nenhuma celebração específica para Lola. Muitas pessoas que não podem visitar o túmulo de Lola em 09 de abril, que é feriado apenas em Rio Pomba, visitam no dia 02 de novembro. Além disto, o dia 09 de abril é bem mais concorrido, o que dificulta as orações e rituais que querem realizar. Assim me disse um dos visitantes interpelados: “Vim hoje trazer minha mãe, ela é devota de Lola e todo ano tem que vir, hoje ou no dia da morte dela. Hoje é melhor, tem 185 menos gente, a gente pode vir de carro até o cemitério.” No dia 09 de abril, conhecido na cidade como Dia de Lola, Rio Pomba recebe romeiros de várias localidades, tanto das cidades circunvizinhas – Ubá, Barbacena, Divinésia, Tocantins, Senador Firmino, Juiz de Fora -, quanto de outras mais distantes, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. O cemitério fica ainda mais movimentado, mas não há controle dos visitantes, nem dos rituais por uma pessoa em especial, como ocorre nas primeiras sextas-feiras. Neste dia a missa rezada é em intenção da alma de Lola, mas não se faz nenhuma outra celebração especial por causa da data. Os padres locais, embora recebam muito bem os romeiros, não incentivam a divulgação da devoção a Lola, nos termos que os devotos querem, ou seja, são cautelosos ao falar dela, não usando a palavra santa, segundo as orientações canônicas. Sobre este ponto, percebe-se pelos depoimentos que os padres que atuam em outras cidades têm mais tranquilidade em falar sobre Lola associando-a a uma santa, como ocorre com o Padre Paulo Dionê, pároco de Barbacena e grande divulgador de Lola. Discorrendo sobre o dia da sua morte ele afirma: “Foi uma mistura de tristeza, de despedida, mas, de 186 alegria também, pois foi o dia em que o céu recebeu uma nova santa”. 184 Oração que conta com a aprovação eclesiástica, através da Cúria Arquidiocesana – Mariana/MG. 185 Depoimento Sr. Valmir, novembro de 2006. 186 Depoimento feito no programa Tribuna Independente, Rede Vida, 13 de maio de 1999. 116 Em outro momento, ao falar sobre a vida que Lola levou por aproximadamente 60 anos, e o que a ciência tem a dizer sobre isto, o Pe. Dionê disse: “Ela não sentia necessidade de alimentar-se, viveu só da eucaristia, ainda que a ciência prove que seja normal alguém 187 viver assim, não vai diminuir o teor de santidade de Lola.” Exemplo semelhante vem do depoimento do Mons. Miguel Falabella, pároco da Catedral de Juiz de Fora/MG, que conheceu Lola pessoalmente. Para ele Lola era “uma santa 188 e merece ser canonizada”. Durante a conversa com a Sr.ª Myriam eu digo que é normal que a Igreja tenha cuidado com a questão da devoção a Lola, pois ela não foi canonizada, e os padres locais são os representantes desta instituição. Mediante minha observação ela argumenta que, os padres que estão em Rio Pomba hoje não conheceram a Lola, não presenciaram sua santidade, então não sabem lidar com a situação. E, depois de relutar um pouco se deveria ou não continuar expondo sua opinião sobre a recusa da Igreja local em aceitar a construção de uma Igreja nas terras doadas por Lola, para não chatear ninguém, a Sr.ª Myriam diz: A resistência existe mas a gente está lutando para isto (...) Existem regras para a beatificação e canonização dela mas, para o atendimento do testamento não. Existe o testamento que pede, o que nós queremos continuar lá, não é para dizer que ela é santa não, o nosso pedido de abertura lá não é mostrando para o povo que ela é santa e nem canonizada, é para divulgar o que ela pede em seu testamento, ela pede que continuem a divulgar, como eu divulgava, e ela fazia a divulgação dia e noite, a adoração, ela fazia a adoração dia e noite, nós não estamos dizendo que ela é santa não (...) A gente às vezes não é entendida, (...) a Igreja lá não vai chamar Igreja de Lola vai chamar Igreja 189 do Sagrado Coração de Jesus. A ideia da divulgação da santidade de Lola é para Sr.ª Myriam e os devotos que ela representa através da Associação dos Amigos da Causa de Lola, essencial para que a verdade apareça. Mas não há um consenso entre os devotos sobre este ponto. Para alguns a manutenção do silencio em torno da santidade de Lola tem sua razão de existir, tomando como referencia as posturas da própria Lola. O que explica o fato de muitos se recusarem a dar entrevistas ou deixar divulgar a devoção que tem a ela. Este é um ponto de conflito. Na fala de D. Myriam Rodrigues, percebemos o quanto esta questão gera descontentamento: 187 Depoimento feito no programa Tribuna Independente, Rede Vida, 13 de maio de 1999. 188 Depoimento publicado no Jornal Extra, Rio de Janeiro, 18 de abril de 1999. 189 Interessante esse argumento de D. Myriam, entretanto, precisamos admitir que o receio dos representantes clericais pode estar pautado em fatos, e assim tendo suas razões. Apenas como exemplo, veremos no subcapítulo dos estudos sobre Nhá Chica (4.3), que a Igreja que ela construiu em honra à Nossa Sr.ª da Conceição acabou sendo conhecida e transformada na “Igreja de Nhá Chica” pela força da fala e hábitos dos devotos. Poucos se referem à Igreja de Baependi como sendo de Nossa Sr.ª da Conceição. 117 (...) depois que ela morreu o silêncio foi com ela, mas o povo acha que não, e os padres também, acham que deve guardar silêncio para não causar alarde no povo senão as pessoas acham que já está canonizando, mas não, eu não faço isto para dar alarde, eu preciso dar o testemunho daquilo que eu vi. As pessoas daqui guardam silêncio, eu já não sei se porque é isto que os padres pedem, as pessoas entendem que é isto que eles pedem ou se é por causa dela 190 mesmo. Fica evidente que há respeito em relação às questões das regras da Igreja, referentes ao reconhecimento oficial da santidade, mas uma grande insatisfação quanto à maneira como se realiza o controle da Igreja sobre o destino da herança de Lola, tanto material quanto simbólica. A Igreja administra-a a seu modo e tempo, ao passo que os Amigos de Lola querem acelerar o processo, se não de oficialização da santidade, ao menos o das obras que julgam ser necessárias para manter viva a missão de Lola. Não há um conflito aberto e a obediência de Lola à Igreja é lembrada em vários depoimentos, tanto de devotos leigos quanto dos sacerdotes que tinham mais acesso a ela e que creem em sua santidade. Retomando a exposição sobre os rituais dedicados a Lola, resta mencionar ainda os encontros realizados no sítio Lindo Vale. Esses são retiros espirituais que ocorrem aos domingos, das 13:00 às 17:00. É possível participar destes retiros somente no último domingo de cada mês, pois existe uma escala, e só é permitida a inscrição de 50 pessoas por domingo. O primeiro domingo é reservado para as pastorais de Rio Pomba; o segundo ao Apostolado da oração masculino da Paróquia do Rosário; o terceiro para Apostolado da Paróquia de São Manoel e o quarto domingo é aberto para as romarias de outras cidades. Os retiros são coordenados pelos padres da Paróquia de São Manoel, em Rio Pomba. Tendo como referência a ideia de que aquilo que faz a santidade de uma coisa é “o 191 sentimento coletivo de que ela é objeto, expresso especialmente no rito” , os momentos citados são essenciais para investigar os parâmetros da santidade de Lola, quem são seus devotos, como se organizam e como vivenciam sua devoção. Uma constatação é evidente quando analisamos os devotos de Lola atualmente. Em primeiro lugar, eles não chegam mais nos caminhões, como nos anos 50, nem são tantos quantos eram na época em que Lola era viva. A capacidade de renovação do grupo de devotos de Lola parece bem reduzida, ocorrendo uma maior frequência de pessoas idosas aos cerimoniais a ela dedicados, em geral pessoas que viveram na mesma época que ela. Fato comum mesmo nos dias de maiores movimentos na cidade. 190 Depoimento da Sr.ª Myriam Rodrigues Vieira, 2006. 191 Martine SEGALEN, Ritos e rituais contemporâneos, p. 20, 2002. 118 A partir dos depoimentos e questionários aplicados foi possível traçar os seguintes gráficos sobre as características dos devotos. Em relação à idade temos o seguinte: Gráfico 3 - Proporção dos devotos de Lola em relação à idade 3% 8% 0 a 20 anos 11% 21 a 30 anos 31 a 40 anos 13% 65% 41 a 50 anos Acima de51 anos Conforme exposto no gráfico há uma supremacia de devotos acima dos 51 anos e um índice muito pequeno nas faixas etárias anteriores. Entre os devotos de Lola a presença de homens é bem significativa, especialmente entre os mais velhos. O gráfico seguinte apresenta a proporção dos devotos em relação ao gênero: Gráfico 4 - Proporção dos devotos de Lola em relação ao gênero 43% Mulheres 57% Homens Segundo depoimentos, isto pode ser explicado porque ela sempre se preocupou em trazer os homens para Igreja. Fundou o apostolado da oração masculino, e cuidava de fazer pessoalmente as fitas dos homens, a quem recebia regularmente para orientar e ouvir deles como estavam os grupos. Muitos depoimentos afirmavam que, na opinião de Lola, as mulheres já iam para a Igreja sozinhas os homens não, por isto ela se dedicava mais a 192 conquistá-los para o Sagrado Coração de Jesus. De acordo com o Pe. Roque Schneider, Lola realizou um verdadeiro milagre neste ponto, pois, na maioria dos lugares a presença de mulheres é sempre superior à de homens nos 192 Informação encontrada nos depoimentos do Pe. Dionê, da Sr.ª Myriam, do Sr. Raul, do Sr. Severino, entre outros. 119 apostolados da Oração, ao passo que em Rio Pomba, o número de homens supera o de 193 mulheres. No gráfico seguinte apresento a proporção dos devotos a partir do gênero e da idade, aí fica mais perceptível a eficiência da ação de Lola. Entre os mais idosos a proporção dos devotos do sexo masculino é superior em 8%. Considerando que estes devotos foram contemporâneos de Lola a superioridade masculina reflete o sucesso de suas ações voltadas para arregimentar os homens para a Igreja e para o Sagrado Coração de Jesus, eles se tornaram também seus devotos. Gráfico 5 - Proporção de devotos (as) de Lola em relação a gênero e idade 69% 61% mulheres homens 10% 12% 1310% 12% % 5% 7% 1% 0 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 Acima de anos anos anos anos 51 anos Quanto à questão da escolaridade, e origem social, os devotos de Lola são formados por pessoas de diferentes profissões e grau de escolaridade, temos entre eles, trabalhadores rurais, comerciantes, advogados, médicos, religiosos, donas de casa, policiais militares, professores e funcionários públicos variados. Vejamos o gráfico resultante da análise dos questionários sobre o grau de escolaridade: Gráfico 6 - Proporção dos devotos de Lola em relação à escolaridade 8% 1º grau incompleto 5% 25% 1º grau completo 18% 2º grau incompleto 2º grau completo 20% 3º grau incompleto 24% 3º grau completo 193 Depoimento realizado no programa Tribuna Independente, Rede Vida, A força da Eucaristia, 13 de maio de 1999. Passados 9 anos deste depoimento, o número de homens no Apostolado da Oração em Rio Pomba ainda é superior ao de mulheres. 120 O gráfico exposto aponta um maior número de devotos entre os que têm 1º e 2º graus, no entanto, é válido considerar que, sendo a maioria dos devotos de Lola bem idosos (a maioria acima de 60 anos), ter acesso à escola na época de juventude deles, na região onde moravam, era privilégio para pouquíssimos. O 2ª grau era o máximo que se obtinha sem precisar deslocar-se para cidades mais distantes e era já muito oneroso. O seguinte depoimento deixa isto bem claro: Na década de 50, mais precisamente nos anos de 1952 a 1953, eu, Jair e meu irmão Jésus, éramos estudantes internos do então Ginásio Pombense. Nossa família morava e Silverânia. Foi quando começamos nossas visitas a Lola. (...) Neste referido ano, cursávamos o admissão, para ingressarmos no Ginásio. (...) quando chegou o final do ano, fomos aprovados. O Jésus em primeiro lugar e eu em terceiro lugar. (...) Nosso pai nos tirou do Ginásio, pois, as despesas eram muitas, pois, era tudo particular e tinha as despesas com 194 alimentação, alojamento, roupas e os estudos. Os senhores e senhoras entrevistados têm um vocabulário riquíssimo, como se percebe pelos depoimentos. Os filhos dos mesmos, em geral, são todos estudados, como eles dizem, ou seja, foram para faculdade e se formaram. Alguns deles estão entre os devotos mais jovens de Lola, como é o caso da advogada Mariana, de 31 anos de idade, filha e neta de devotos de Lola. Além das classificações já feitas (homens x mulheres; jovens x idosos), os devotos 195 podem ser divididos em grupos distintos a partir da relação estabelecida com a devoção à Lola. Assim, existe o grupo dos devotos que cuidam do túmulo e do patrimônio de Lola; o grupo dos que frequentam regularmente seu túmulo, onde ocorre a reza do terço todas as primeiras sextas-feiras dos meses; o grupo daqueles que visitam o túmulo no Dia da Lola, 09 de abril e 02 de novembro, dia de finados, e o grupo daqueles que visitam o túmulo esporadicamente para pedir algo ou pagar promessas, mas, não mantêm um vínculo mais duradouro e próximo com a devoção. No primeiro grupo estão os devotos mais diretamente envolvidos nas manifestações pró-reconhecimento oficial da santidade de Lola, os fundadores da Associação dos Amigos da Causa de Lola (19 de setembro de 2006), e dedicados a fazer cumprir o que Lola deixou em testamento. 194 Silverânia é uma localidade próxima a Rio Pomba, os pais do Sr.ª Jair tinham um sítio lá na época. Depoimento do Sr. Jair Coelho, 2006. 195 Esta divisão em grupos a partir da relação com o objeto da devoção é inspirada no trabalho de Maria de C. Nascimento FRADE, Santa de Casa – A devoção a Odetinha no cemitério S. João Batista, 1987. 121 O primeiro e o segundo grupos são os que permitem um acompanhamento mais sistemático, são deles a maior parte dos depoimentos conseguidos. São formados por pessoas que, em sua maioria, residem em Rio Pomba e, em geral pertencem aos apostolados da oração. Muitos dos membros destes dois grupos são comuns, como é o caso da Sr.ª Myriam e 196 do Sr. Severino , responsáveis pessoais pela manutenção do túmulo de Lola e também atuantes na manutenção das visitas ao cemitério nas primeiras sextas-feiras. Não importando a que grupo pertença, as atitudes dos devotos é sempre de grande respeito à Lola e seus ensinamentos. As relações estabelecidas são baseadas nas promessas e seu pagamento, semelhante ao ocorrido com os santos em geral. De acordo com o zelador do cemitério Lola faz muitos milagres. As pessoas deixam no túmulo coisas que remetem às graças alcançadas: - roupas de criança em agradecimento pela superação de alguma enfermidade; bengalas e muletas para representar cura de doenças nos membros inferiores; chapéus, quando as curas foram de doenças nesta parte do corpo; gessos variados (retirados dos braços, pernas, mãos, e demais partes do corpo, etc.); velas flores, cartas e santinhos com a imagem de Lola, onde se lê a oração para sua beatificação e a oração ao Sagrado Coração de Jesus, que ficam à disposição dos visitantes, funcionando como meio de divulgação da fé em Lola e, como ela mesma instruía ao Sagrado Coração de Jesus, reproduzidos em retribuição a outras modalidades de graças, em geral não divulgadas 197 publicamente. Cabe aos componentes do primeiro grupo além das atribuições listadas acima coordenar as orações no túmulo nas primeiras sextas-feiras, recolher as cartas que são depositadas em caixas coletoras anexas ao mesmo, recolher e guardar os ex-votos deixados a seu lado, e transportar tudo isto para a casa de Lola, onde são guardados. Os do segundo grupo são aqueles que regularmente vão ao túmulo nas primeiras sextas-feiras, mesmo que não se more em Rio Pomba, como demonstram alguns dos depoimentos, como os seguintes: 196 O casal, Myriam e Severino é uma referência quando o assunto é Lola. É para a residência dos mesmos que os organizadores de romarias ligam para avisar da visita que pretendem fazer ao túmulo de Lola; quando querem participar das vigílias que acontecem na casa onde Lola morou, ou quando querem realizar algum trabalho de investigação científica ou jornalística sobre Lola. 197 Estes objetos são retirados tão logo são deixados no túmulo pelo funcionário do cemitério, e guardados na capela, à qual não tivemos acesso. As informações sobre que objetos são deixados no túmulo e o significado de cada um é resultante das informações deste mesmo funcionário e da Sr.ª Myriam. Em conversa com esta senhora pedi que tivesse acesso a estes objetos, que são levados para a casa onde Lola viveu, e ela, educadamente, disse que não era bom, pois se tratava de ‘coisas’ muito pessoais das pessoas que deixaram lá, achava que não era certo expô-las, portanto. Em virtude disso, nas fotos que consegui aparecem apenas as flores e as velas do túmulo. O interior da casa não pôde ser fotografo, aliás, a visita a ela só é permitida nos dias de retiro, mas, só na sala onde o retiro ocorre, ou seja, extremamente limitado. 122 Toda primeira Sexta-feira de cada mês, nós fazemos uma peregrinação ao túmulo de Lola. Tenho muita fé na alma dela e no Coração de Jesus, que sempre tem me dado muita força para visitar o túmulo dela. (...) Há seis anos visitamos o túmulo dela. Eu estou pedindo a ela uma operação que vou fazer; 198 para levar este pedido até Jesus para que nada de mal me aconteça. (...) Conheci Lola pelo meu irmão (...). Minha vida mudou, sou muito feliz e nunca mais me esqueci dela. Ela é tudo para mim. Santa, Santa Lola. Todas as primeiras sextas-feiras eu vou visitá-la, e assistir a Missa na Igreja de São 199 Manoel. Rezo todos os dias para ela. Para mim ela já é uma santa. Os devotos de Lola se identificam como católicos praticantes. Embora já reconheçam a santidade de Lola, muitos falam da questão da canonização como necessidade urgente para que ela seja cultuada publicamente e por todos, embora isto não seja uma exigência para que continuem a crer nela, como disse a Sr.ª Nair: “Para mim ela já é uma Santa.” Alguns depoimentos mencionam a questão do reconhecimento oficial, entre eles selecionei os seguintes: Para a beatificação acontecer, o processo ainda precisa cumprir algumas etapas. (...) Mas esse é um título que Lola Merece. É o mínimo que Deus pode oferecer a uma pessoa que dedicou sua vida a orar pelo próximo, que viveu em 200 função dos outros, sem medir esforços. Lola significa para mim uma grande pessoa de Deus. E Deus me permite, chamo-a Santa Lola. Qualquer problema que me aparece eu digo: Santa Lola! Pede ao Sagrado Coração de Jesus que me ajude, amém. Todos nós estamos ansiosos por sua beatificação. Se Deus quiser, 201 dentro de algum tempo Rio Pomba será a terra de uma Santa. O comportamento relativamente discreto, de grande parte dos devotos de Rio Pomba, em assumir a devoção a Lola pode ser entendida como respeito às instruções da própria Lola, e com a foça de controle da Igreja na região, apesar desta ser uma cidade pequena (fato que contraria a ideia que o catolicismo tradicional ou popular permaneceu forte nas zonas rurais, apesar do trabalho dos reformadores que, por sua vez, teria sido mais efetivo nos grandes centros). Não é possível dizer se a existência de Lola contribui para uma maior atenção do clero com relação à cidade, mas a divulgação da devoção ao Sagrado Coração de Jesus é típica do movimento reformador e, além disto, em vários momentos o culto a Lola recebeu interferências direta da Igreja, sendo clássico o fato dela parar de receber romeiros em sua casa no final dos anos 50. Apesar dos problemas com a imprensa, como já citado, a decisão 198 Depoimento da Sr.ª Fé Silva Peluso, oriunda da cidade de Ubá/MG, de 77 anos, depoimento arquivado na AACL. 199 Depoimento da Sr.ª Nair Miguel Yuri, também oriunda de Ubá/MG, de 70 anos, 2006; depoimento arquivado na AACL. 200 Depoimento de Sr.ª Myriam Rodrigues, publicado no jornal Tribuna de Minas, 03 de novembro de 2005. 201 Depoimento da Sr.ª Maria da Conceição Lamas, março de 2006. 123 definitiva de Lola em não atender mais romeiros surgiu a partir da orientação do Bispo daquela época, mantendo contato com pouquíssimas pessoas de sua extrema confiança. Comprovação evidente de que o culto aos “santos do povo” não estão completamente alheios às interferências da Igreja e suas regras. É digno de nota que no caso de Lola estão em evidencia símbolos cruciais da Igreja Católica, como a eucaristia e Sagrado Coração de Jesus, que atravessam e se interiorizam no fenômeno Lola. As interpenetrações e imbricações são aqui bem fortes e nítidas, realçando novamente a não existência de polaridades estanques entre oficial e popular como já enunciado. Embora cada pessoa entrevistada tenha uma relação própria com Lola, explicada a partir de eventos e fatos às vezes diferenciados, a pouca distância de sua morte e os registros documentais existentes, colaboram para que as narrativas sobre sua existência sejam relativamente controladas, não havendo espaço para muitas recriações. Situação inversa à ocorrida com o próximo caso a ser apresentado, o culto a Palmyra, “santa do povo” cultuada em Juiz de Fora. Veremos que, em relação à Palmyra, a construção e reconstrução do mito alimenta a devoção. Pouco se tem de dados históricos rastreáveis por documentos ou registros oficiais. Os devotos vão criando as narrativas em torno da existência, vida e morte de Palmyra, dando novos contornos e renovando o culto à Santa de Juiz de Fora. 4.2 – Palmyra Pessoa: A “Santa de Juiz de Fora” Palmyra Pessoa, a Santa de Juiz de Fora tem sua história vinculada à história do Cemitério Municipal da cidade. É nele que encontramos seu túmulo, onde ocorrem os rituais a ela dirigidos. A fundação desse cemitério remonta ao século XIX e está associada ao projeto de urbanização da cidade seguindo padrões modernos, primordialmente europeus. Atendia também à necessidade de ampliar os espaços destinados a receber os mortos, até então circunscritos aos pátios das Igrejas, no caso de Juiz de Fora o pátio da Matriz, situada em área central da cidade. O desejo dos moradores da cidade em ter um cemitério que não fosse administrado pela Igreja Católica foi expresso pela primeira vez no ano de 1853, quando Juiz de Fora ainda era a Vila de Santo Antônio do Paraibuna. Data desta época a primeira subscrição pública em favor da construção do cemitério, entretanto essa ideia não foi acolhida pelos representantes do poder público até o ano de 1855 quando, em função do agravamento de uma epidemia de 124 cólera que acometia a cidade, a Câmara Municipal passou a preocupar-se com a necessidade de um lugar mais adequado para enterrar os seus mortos. (Oliveira, 1966:32-33) Destarte a mudança de postura dos representantes públicos somente em 1863 as obras do cemitério foram iniciadas e concluídas em junho do ano seguinte, onze anos depois que a Câmara Municipal enviou ao vigário da Vila um ordem para que não realizasse mais sepultamentos no terreno próximo à Matriz, em função da epidemia de cólera. (Oliveira, 1966:32-33) Localizado em região central da cidade, à rua Osório de Almeida, s/n, no bairro Poço Rico, o Cemitério Público Municipal de Juiz de Fora passou a ser efetivamente utilizado em 1864. Inicialmente os túmulos eram separados de acordo com o morto, quer dizer, as crianças eram sepultadas em lugares distintos dos adultos, os católicos distantes dos que professavam outra religião, os batizados dos pagãos, os cidadãos nobres dos cidadãos comuns. Separações ainda visíveis diante de um olhar mais atento, mas que deixaram de ser uma regra, à medida que a cidade cresceu, aumentando o número de sepultamentos realizados. Em dezembro de 1877 foi sepultada Palmyra Pessoa, num local hoje conhecido como área histórica do cemitério, onde há muito tempo não se realizam mais sepultamentos. Mas quem é Palmyra Pessoa? Por que detém tanta atenção sobre si? Em que se pauta o interesse do povo e sua santificação? Estas são questões pertinentes sobre uma personagem que todos os anos atrai centenas de devotos ao Cemitério Municipal de Juiz de Fora, principalmente no dia 02 de novembro, e em menor número, mas com relativa frequência, nas segundas-feiras, dia devotado às almas de acordo com a crença de alguns devotos. Em busca de informações consultei jornais locais e livros sobre a cidade, acompanhei o culto à Palmyra nos dias 02 de novembro dos anos de 2004, 2005 e 2006, além de acompanhar encontros realizados nas segundas-feiras e visitar esporadicamente o seu túmulo. Nessas ocasiões foram realizadas entrevistas com os devotos e presentes, aplicados 202 questionários , realizadas anotações e fotografias. Contei com a colaboração direta dos funcionários do cemitério, que me avisavam das atividades dos devotos, facilitaram o contato com alguns deles. Recolheram material do túmulo para que eu analisasse e disponibilizaram a documentação do cemitério para eventuais consultas, embora pouco tenha conseguido com tais documentos. 202 Em média foram aplicados 100 questionários e realizadas 5 entrevistas em profundidade por ano, além das várias anotações a partir da observação. Para realização desta tarefa contei com a colaboração de dois historiadores, voluntários, que também me acompanharam na pesquisa de campo e análise dos demais casos estudados - Geraldo Magella da Cruz Junior e Ademildo Walguimar Ferreira. 125 A dificuldade documental relaciona-se com o fato de que o cemitério passou por reformas, foi informatizado, com isto muitos dados se perderam, os registros que mantêm por lá, ainda em papel e, de acordo com os funcionários responsáveis, sem condições de serem consultados, sem lugar e organização adequados a um arquivo. Além disso, correspondem a um período bem posterior ao do sepultamento de Palmyra. A partir do material coletado é que pude produzir o texto que se segue, dedicado a delinear a identidade e principalmente os paradigmas da santidade de Palmyra Pessoa. 4.2.1: Construções e Representações sobre Santa Palmyra Na tarde fria de 22 de dezembro de 1877, o cemitério municipal recebia os restos mortais de Palmyra Pessoa, para guardá-los eternamente. Conta a tradição que a moça era linda como uma noite de São João. Toda de branco, deitada em seu caixão azul, nem parecia morta! Parecia que dormia o sono calmo e tranqüilo das criaturas boas e predestinadas. (Diário Mercantil, dezembro, 1940) Quem ela realmente foi, como viveu ou morreu é impossível precisar. Os relatos se multiplicam e todos são feitos como se comportassem uma verdade incontestável. A cronologia dos fatos também se perde, ficando certo apenas que tudo ocorreu no século XIX, partindo da informação encontrada na lápide do túmulo, onde consta a data de sua morte. A história conhecida sobre esta “santa do povo” é construída basicamente a partir de fontes orais, de narrativas nem sempre coincidentes, tal como ocorre com a maioria dos santos cultuados em cemitérios. Claramente a força do mito supera os registros históricos. As narrativas mais comuns apresentam Palmyra como uma jovem moça, “muito boa”, que morreu quando tinha dezessete anos, num desastre de trem, quando viajava acompanhada pelo pai da cidade de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro. A morte prematura e trágica 203 comoveu muitas pessoas e seu enterro foi acompanhado por uma verdadeira multidão. Ah, foi uma coisa muito triste. Ela estava indo pro Rio de Janeiro, aí, mais ou menos perto de Marmelos, a antiga usina de força, você conhece? Pois é, aí teve o acidente e ela morreu. [Só ela? Perguntei] Só ela que morreu, não sei direito como foi, mas foi um acidente, mas só 204 a Palmyra que morreu coitada! 203 Informação encontrada em vários depoimentos, como os de José Wantuil, Ruteval Silveira, Roberto dos Santos, Juliana Santos, Luíza Ramos... 204 Sr.ª. Maria Barbosa, novembro de 2005. 126 Nestes relatos o acidente não é explicado em detalhes, ficando a cargo de quem ouve imaginar o que realmente aconteceu, como se a palavra acidente fosse um termo suficiente para esclarecer as circunstâncias da morte. Diante de minha pergunta sobre como teria sido tal acidente, as respostas caminham em variadas direções, desde o descarrilamento do trem até uma simples queda de Palmyra no interior do trem. Outros relatos repetem a informação da existência de um acidente envolvendo o trem, a morte prematura de Palmyra e sua bondade, no entanto, a viagem seria do Rio para Juiz de Fora, onde seu pai trabalhava, e ela era acompanhada por um senhor, amigo da família. Ela vinha para passar com o pai as festas de fim de ano. Esta história é contada por vários devotos 205 e aparece também nas páginas do único jornal encontrado que tentou expor detalhadamente esta história, em 1940. Segundo consta no jornal, na tarde de 22 de dezembro, Palmyra foi sepultada no Cemitério Municipal após morrer num acidente durante a viagem de trem que fazia na companhia do juiz de direito Joaquim Barbosa Lima, vindo ao encontro do pai, o construtor do edifício do fórum local, o engenheiro Cyrillo Eloy Pessoa de Barros. (Diário Mercantil, dez., 1940) Mais do que detalhar os nomes do pai e do seu acompanhante, a reportagem cita como teria ocorrido o tal acidente. Verifica-se por este relato que não se tratou de um acidente do trem e sim de um acidente no trem. Palmyra é que caíra quando surpreendida por um solavanco mais forte, quase chegando a Juiz de Fora. Na queda, Palmyra que estava comendo uma maçã para evitar o enjôo, não conseguiu se segurar e bateu a cabeça em uma guarnição de ferro e morreu em decorrência dos ferimentos que sofreu, apesar das tentativas de socorro. (Diário Mercantil, dez., 1940) Uma versão bem próxima desta indica que Palmyra morreu no trem, não se tratando de um acidente de trem. Ela estaria na janela, acenando para alguém que a observava partir quando, distraída que estava, bateu a cabeça em um poste fixado na estrada, provavelmente 206 algo parecido com os postes de iluminação pública atuais. Já em outra versão da morte de Palmyra ela é apresentada como uma jovem noiva que 207 saiu para passear com seu companheiro e foi atropelada pelo trem, “morrendo na hora”. 205 Foram pesquisados os jornais locais mais antigos (O Pharol e o Diário do Comércio), além do Diário Mercantil, todos disponíveis no Centro de Memória da Biblioteca Murilo Mendes e Arquivo Histórico Municipal de Juiz de Fora. 206 Depoimento de Mônica Sabará, 2004. 207 Depoimento da devota Tereza Santana, 2005. 127 Em todos os relatos citados até o momento é forte a presença do trem, meio de transporte comum da época e que, ainda hoje, atravessa ruas e avenidas centrais de Juiz de Fora, figurando nas construções culturais locais não apenas por ser um meio de transporte do qual se tem saudades, mas também, e talvez ainda mais, por representar um grande perigo, tendo sido personagem de muitas tragédias, onde várias pessoas perderam a vida ou sofreram graves mutilações. A lembrança do trem povoa a memória dos juizforanos como um misto de saudosismo e temor. Sobre a morte de Palmyra, há ainda uma quarta versão, citada poucas vezes, mas que repete um dado significativo desta devoção, que é a presença de uma morte trágica e prematura. Quando perguntada sobre o que conhecia da história de Palmyra, uma devota afirmou: O que eu sei é que Palmyra era uma moça muito bonita, e tinha um noivo. O noivo dela era muito ciumento, e ela era muito bonita mesmo. Ela morreu novinha, acho que tinha assim... uns 15 anos. Foi o noivo dela, um dia ele pôs fogo nela. Ela morreu queimada! sofreu muito mesmo! Aí as pessoas começaram a rezar para ela, pedi as coisas, prá ela ajudar a gente, e ela faz 208 muitas coisas boas, muitas graças. Essas narrativas incluem Palmyra no rol das santificações populares que se pautam no sofrimento na hora da morte. A última versão citada, particularmente, aproxima-a do universo das santas mulheres, assassinadas por seus companheiros, maridos ou amantes, semelhante à história da Maria Degolada, cultuada num bairro periférico de Porto Alegre. Diferente do que dizem os relatos sobre Palmyra, Maria Degolada era uma prostituta, mas tal qual Palmyra, morreu em decorrência dos ciúmes do homem que amava, no caso dela, um cabo da Brigada Militar, que a enganou, atraiu-a para uma armadilha e degolou-a num ato de fúria. (Sáez, 1996:32) Apesar da proximidade com as santificações ocorridas em virtude da morte trágica, no caso de Palmyra não foi este o elemento que efetivamente deflagrou sua santificação, embora ele seja importante para compor as representações e construções que os devotos fazem a respeito dela. Em verdade, a morte trágica e prematura é citada para justificar e reforçar o acontecimento que explica a origem da devoção e ratifica a santidade de Palmyra. Durante toda a pesquisa, ninguém se declarou devoto de Palmyra apenas por causa da maneira como ela morreu, mas as informações sobre sua morte aparecem como motivadores da comoção social, responsável por chamar a atenção das pessoas para a ela, como se esses já 208 Depoimento de Maria José, 2004. 128 fossem indícios precedentes da sua santidade que, efetivamente, foi comprovada posteriormente pela não decomposição do seu corpo. De fato, os devotos de Palmyra que dizem saber a respeito da origem do culto prestado a ela, se remetem sempre à questão da incorruptibilidade do seu corpo após muitos anos de sepultamento como o sinal visível de que ela era especial, embora essa não seja uma informação passível de ser comprovada. Em verdade, não tive acesso a nenhum registro que comprovasse efetivamente as circunstâncias da morte de Palmyra, menos ainda a registros documentais sobre a possível exumação do seu corpo. Além da tradição oral, os registros jornalísticos, mais precisamente as reportagens do Diário Mercantil, publicadas em outubro e dezembro de 1940, contendo informações sobre identidade de Palmyra, relatos sobre sua morte e sepultamento, são as fontes que tenho para escrever sobre sua existência. De acordo com a reportagem mencionada, foram realizadas muitas pesquisas na época em que resolveram falar sobre Palmyra, buscando “focalizar todos os seus aspectos, a tradição que corria de boca em boca sobre a moça a quem a crença popular emprestava poderes divinos.” (Diário Mercantil, dez., 1940) Na edição de outubro de 1940, o mesmo jornal apresentou o depoimento de uma senhora que dizia ter viajado com Palmyra, na ocasião de sua morte, a Sr.ª Rosa M. Viana Teixeira. Na época da reportagem D. Rosa contava com 90 anos aproximadamente, tendo perto de 07 anos na época do acidente. É dela o depoimento de que Palmyra morrera caindo no trem e batendo a cabeça, quando comia uma maçã. (Diário Mercantil, out., 1940) O jornalista, nos anos 40, afirma que tentou “fixar a origem da tradição” do culto e, encontrou como ponta do novelo o fato de que, há alguns anos antes correra a notícia de que o túmulo de Palmyra Pessoa havia sido aberto e que os “coveiros recuaram espantados diante do corpo da moça que apareceu intacto” (Diário Mercantil, dez., 1940), fato sobre o qual ele não conseguiu comprovações, mas corresponde aos depoimentos recolhidos durante minhas pesquisas. Conclui-se então, segundo as fontes analisadas, que Palmyra era uma moça bonita, gentil, muito boa e morreu jovem e de maneira abrupta, um conjunto de referências digna de muitos santos, mas foi a partir da constatação da não decomposição de seu corpo, que ela passou a figurar entre as santas do povo, recebendo pedidos, orações e conquistando vários devotos que atribuem à sua atuação muitas graças alcançadas. 129 Segundo o apurado, o corpo de Palmyra permanecera intacto, perfeitamente preservado, como se o tempo não tivesse passado. Esta ocorrência é que foi o estopim para que se iniciassem as visitas a seu túmulo e a crença em sua santidade. A preservação do corpo é uma ocorrência mais comum entre mulheres santificadas, interpretada como distintiva dos seres especiais, sendo comum a outras santas do povo e a alguns santos das devoções 209 oficiais. Entre as santas do povo que se destacaram pela incorruptibilidade do corpo, estão: Santa Filisbina Müller, cultuada em São Paulo; a “Menina Milagrosa”, de Santa Catarina 210 (Pereira, 2005:85-86); e Santa Odetinha , do Rio de Janeiro. Em todos esses casos, o fator que justifica a santificação é a crença na não decomposição do corpo, que teria sido comprovada e anunciada por funcionários dos cemitérios, por ocasião de traslados de restos mortais, semelhante ao ocorrido com Palmyra. A história da Igreja Católica inclui vários casos semelhantes aos citados em suas hagiografias oficiais. Um dos primeiros documentos que relatam casos de preservação data do século IV, citando o corpo do mártir Nazário. O texto informa que em seu túmulo foi encontrada a cabeça que havia sido decepada, em perfeito estado, como se tivesse apenas sido colocada junto ao corpo, do qual emanava sangue vivo e uma fragrância que superava todos 211 os perfumes. Nesta época haviam sido transcorridos 200 anos do seu martírio. Outro caso é o de Madre Inês de Jesus, priora de Langeac. Seu corpo foi sepultado em outubro de 1634. Passados alguns anos, em vista do processo de sua beatificação, seus restos foram exumados. O corpo foi encontrado sem sinal de decomposição. Transladações e verificações foram realizadas até o ano de 1770. Em 1698 e 1770 cientistas, cirurgiões e 212 médicos declararam que humanamente, a preservação do corpo era inexplicável. São Vicente de Paula também figura entre os santos cujos corpos não se decompuseram. Ele faleceu em 1660 e, a exumação do seu corpo foi feita em 1712, mais de 50 anos depois. Aberto o túmulo “tudo estava como quando foi enterrado". Pesquisas científicas atestaram que o corpo não podia ter sido preservado por meio natural durante tanto 213 tempo. 209 Cf. informações encontradas no endereço www.oepnet.hpg.ig.com.br. 210 Segundo as pesquisas realizadas por Frade (1987), os devotos contam que passados vinte e quatro anos de seu sepultamento, o túmulo de Odetinha foi aberto para receber o corpo se seu pai, ocasião em que encontraram em perfeito estado o corpo da menina. Maria de Cáscia Nascimento FRADE, Santa de Casa – A devoção a Odetinha no cemitério S. João Batista, p. 29, 1987. 211 Cf. informações encontradas no endereço www.oepnet.hpg.ig.com.br 212 Idem. 213 Ibidem. 130 Os exemplos citados confirmam a hipótese de que as construções biográficas dos “santos do povo” encontram muitas das suas referências nas narrativas sobre os santos oficiais da Igreja Católica e são pautadas, quase sempre, na manifestação do maravilhoso, do extraordinário. Voltando à exposição sobre o caso de Palmyra, segundo consta no jornal Diário Mercantil, decorridos 63 anos da sua morte, mesmo sem que nenhum parente dela frequentasse o cemitério, seu túmulo mantinha-se sempre florido e limpo. “Velas ardiam, ininterruptamente ao pé da sepultura e numerosos pedidos escritos eram depositados sobre a pedra mármore.” (Diário Mercantil, dez., 1940) Como explicar tal acontecimento? - A mesma reportagem nos informa: o cuidado com o túmulo foi iniciativa de seu primeiro devoto, o pintor Jocelino Índio do Brasil, que trabalhava no cemitério. Ele acreditava no milagre da conservação de seu corpo e, mais ainda, conhecera Palmyra e sabia que se tratava de uma moça muito boa. Resolveu, por isto, cuidar do túmulo dela. Posteriormente ele pediu e foi atendido por ela, tornou-se então seu devoto. (Diário Mercantil, dez., 1940) Na memória coletiva, expressa nos vários depoimentos recolhidos, foi exatamente o estado de abandono de seu túmulo que tirou Palmyra do anonimato, expondo sua excepcionalidade. Isto porque, anos depois de seu sepultamento, como o túmulo não tivesse sido cuidado por ninguém e não houvesse registros adequados sobre ele, foi autorizado pelos órgãos municipais que ele fosse aberto, provavelmente para reaproveitamento do mesmo, já 214 que este é um cemitério público. O resultado desta empreitada foi a descoberta de seu corpo, perfeitamente preservado. Desde então ocorrem romarias ao túmulo de Palmyra, o depoimento seguinte representa bem essa construção: As pessoas falam que Santa Palmyra ficou enterrada muito tempo aqui, sem ninguém saber direito quem estava enterrado aqui. Só quando foram mexer no túmulo é que acharam o corpo dela direitinho, como uma santa, aí viram que era ela, inteirinha, até a roupa dela estava lá. Depois ela começou a fazer milagre. 215 Eu já pedi muita coisa e ela me atendeu, é uma santa muito boa. 214 Não há referência a datas nestes depoimentos. Tentei averiguar sobre o traslado de corpos no cemitério e não há nenhum registro documental sobre ele. Consegui informações sobre traslados de restos mortais observando os túmulos próximos ao de Palmyra, existem anotações em algumas das lápides informando sobre este fato, no entanto, trata-se do transporte dos restos mortais do Cemitério da Matriz para o Cemitério Municipal (ex. da Sr.ª Rita Maria de Jesus, falecida a 19 de dezembro de 1862 e transportada para o jazigo do Cemitério Municipal, vindo da Matriz, em 30 de maio de 1868.). 215 Depoimento de Helena Ribeiro, 2006. 131 Outro depoimento sobre a preservação do corpo de Palmyra busca no discurso oficial informações para comprovar suas informações. Novamente encontramos sinais da apropriação do discurso produzido pela instituição eclesiástica para legitimar o discurso sobre as santificações populares. Dona Aparecida, católica praticante – segundo sua própria definição, teve um filho com vários problemas de saúde. Soube da existência da “Santa Palmyra” por uma prima e resolveu pedir a ela a graça de curar o seu filho. Fez a novena, cumpriu corretamente as orientações das orações e teve o filho curado. A partir de então é devota “fiel” de Palmyra. Quando falou sobre a história da santidade de Palmyra, foi categórica ao afirmar que: Ela era uma menina linda, que morreu num acidente de trem. Não sei direito contar do acidente não, mas sei que o corpo dela não apodrecia. Depois de muito tempo ela ainda estava bonita do jeito que enterrou. Então os padres vieram ver, viram e levaram o corpo lá pro Vaticano. Ele ficou lá, não voltou 216 não. Ela é santa mesmo, o Vaticano aceitou. Esta fala demonstra como o tema da canonização, dos poderes do Vaticano em determinar a veracidade das santificações se difundiu nos discursos fora das Igrejas e círculos eclesiásticos. Apropriando-se dos termos institucionais, mas mantendo suas experiências religiosas particulares, os devotos criam suas narrativas. Se essas narrativas são fruto de sua imaginação ou são resultantes de uma interpretação pessoal sobre os fatos, não é o mais importante, o que merece destaque aqui é a fé e a certeza de que há uma aceitação e comprovação divina da santidade em questão, que até o Vaticano reconhece e que é confirmada pelas graças concedidas aos devotos, realizadas por ela ou mediante sua intercessão junto a Deus. A imprensa, assim como ocorrido no caso de Lola, tem também o seu papel na divulgação desta devoção. Ao que indicam as pesquisas até os anos de 1940 não há referências ao culto a Palmyra, a não ser no dia de finados, quando aparecem algumas menções ao grande afluxo de pessoas ao túmulo de Palmyra somente no ano de 1940, em função da grande veneração que se manifestava no cemitério O Diário Mercantil publicou entrevistas e uma grande reportagem sobre tal devoção. Os jornais encontrados posteriormente traziam pouca ou nenhuma referência ao culto, ocorrendo uma significativa mudança a partir dos últimos 15 anos, quando se tornou regular a publicação em jornais e divulgação pela imprensa falada do culto a Santa Palmyra. Nesse período, tanto o texto escrito quanto o falado não varia muito quanto ao conteúdo. Há sempre 216 Depoimento de Dona Aparecida da Costa, 2005. 132 referências aos fatos que teriam dado origem à devoção, publicação de relatos sobre graças alcançadas, divulgação do número de visitantes, mas nenhuma opinião de apoio ou repúdio à fé em Palmyra. A constante repetição da história contribui para divulgá-la, pois atinge os não visitantes do cemitério, atraindo mais pessoas a cada ano. Em 2005, o jornal local Tribuna de Minas, exibiu como manchete a frase: “No Cemitério Municipal, o túmulo da adolescente Palmira Pessoa, para muitos católicos a Santa Palmira, recebeu cerca de dois mil visitantes”. As redes de TV estiveram filmando o lugar, entrevistando os devotos, exibindo o túmulo, as flores, velas e placas de agradecimento. A história de Palmyra também aparece na internet, onde já existe um altar virtual em sua homenagem. Evidenciamos pois a utilização de modernos meios de comunicação para cultuar e divulgar a devoção a ela. Também nas páginas da internet lê-se um texto sobre o juizforano Jarbas de Lery, cuja autoria é atribuída ao cronista e historiador Paulino de Oliveira. Nele a história de Palmyra e da devoção existente em torno da mesma é citada como uma lenda, uma invenção que foi publicada pelo Sr. Jarbas de Lery, político e jornalista desta cidade. Ele inventara a história e ela caíra na crença do povo. Assim conta Paulino de Oliveira: Foi ele (Jarbas de Lery) quem inventou "Santa Palmyra de Juiz de Fora", instituindo, sem querer, o culto que a ela prestam os ingênuos da cidade. Guardo ainda na memória a história por ele então publicada. “Palmyra, mocinha de dezessete anos, veio do Rio com seu pai, contratado pelo Dr. Barbosa Lima para a construção do Fórum. Regressando a família à Corte, em 1878, houve um desastre de trem, na estrada do túnel dos Marmelos. Palmyra morreu e foi sepultada no Cemitério Municipal. Muitos anos depois, como seu túmulo não tivesse inscrição e não houvesse registro dele, a Prefeitura abriu-o e lá estava Palmyra em carne e osso.” 217 Jarbas fez alusão a milagres, e a veneração veio depois. Santificações como a de Palmyra são fenômenos mais corriqueiros do que podemos supor a primeira vista, no entanto, é um tipo de uma devoção que não se divulga a não ser em ocasiões muito específicas, em geral para alguém que esteja necessitado de ajuda. Talvez o silêncio, ou melhor, a discrição em relação aos santos cultuados no cemitério se deva ao fato de que os devotos queiram se poupar de ouvir opiniões negativas sobre suas devoções, semelhantes a que aparece no trecho citado acima, onde, de acordo com Paulino de Oliveira, Jarbas de Lery usa a expressão: -“ingênuos da cidade”, para identificar os devotos de Santa Palmyra. 217 Paulino de OLIVEIRA, Jarbas de Lery. Disponível no endereço: . 133 Contrariamente o espaço do cemitério, talvez por ser um lugar onde todos se igualam ainda que simbolicamente, permite uma maior desenvoltura para expressão da crença nos santos constituídos pela devoção do povo, sem necessidade de racionalização, justificativas mais elaboradas ou aprovações institucionais. Em relação à Palmyra, pude testemunhar a vontade dos devotos em expressar a crença, compartilhá-la com alguém que estivesse interessado verdadeiramente em ouvir a respeito da mesma. Esse interesse ficou evidente com a fila que se formou diante do meu gravador, debaixo de uma chuva forte e intermitente, no dia 02 de novembro de 2005. Um verdadeiro mar de sombrinhas circundava o túmulo de Palmyra e, quando informados de minha presença e o que eu fazia ali, a maioria dos devotos antes de deixar o cemitério procurava registrar seu testemunho sobre a fé em Palmyra e os milagres alcançados por sua intercessão (anexo 3.1). As análises dos dados coletados durante as pesquisas deram origem ao gráfico seguinte sobre os sinais de santidade indicados pelos devotos: Gráfico 7 - Sinais de santidade de Palmyra Proteção 9% 13% Capacidade de 43% promover curas Morte trágica/sofrida 35% Corpo incorruptível O gráfico demonstra que a proteção e a capacidade de curar encabeçam a lista dos sinais de santidade de Palmyra. Com quase não existem registros escritos sobre ela, a transmissão boca-a-boca sobre seu poder de intercessão é o instrumento mais importante e eficaz na divulgação de sua santidade. Percebi com as pesquisas que a preservação do corpo de Palmyra foi essencial para fomentar a devoção, ajudando a justificar sua origem, mas não é o motivo mais importante para que a devoção permaneça. A devoção a Palmyra se propaga principalmente a partir da divulgação dos milagres que realiza, dos pedidos que atende. Muitas pessoas recorrem a ela sem saber absolutamente nada sobre sua vida e morte, às vezes nem sabem sobre a questão da preservação do corpo ou qualquer outra manifestação extraordinária a ela relacionada. Sabem 218 apenas que ela atende aos pedidos, “por mais difíceis que possam parecer”. 218 Expressão constante na oração feita a Palmyra nas novenas que acontecem no túmulo. 134 Em muitos dos depoimentos ouvidos, os informantes afirmam ser devotos de Palmyra porque ela realizou graças para eles. Indagadas sobre como souberam de Palmyra e o que conheciam de sua história, eles respondiam que conheciam alguém que havia sido socorrido por ela e, num momento de precisão, resolveram recorrer a ela também. É o que afirma o devoto seguinte: Eu sou lá de Matias, venho todo ano rezar prá Palmyra. Gosto de vir no dia de finados, mas às vezes não dá, aí eu venho quando posso. (...) sou católico, e prá mim Palmyra é uma Santa. Tudo que eu peço eu sou atendido (...) não sei quase nada sobre ela, só que ela é uma santa. (...) foi um conhecido meu que me falou dela, ele conseguiu uma graça e eu tava precisando, então vim, pedi ajuda 219 e ela me atendeu. Simples assim, a relação com a Santa aparece como direta e eficiente. Os devotos pedem, confiam, fazem as preces devidas e a santa atende. É sobre os milagres, graças e rituais que envolvem Palmyra que passo a falar no tópico seguinte, onde a relação santa- devotos aparece de forma mais explícita. 4.2.2 - Cultos a Palmyra: Um túmulo como Santuário para preces, oferendas e peregrinações Semelhante a uma gama de outros santos do povo, Palmyra tem como lugar materializado para as oferendas, realização de orações e feitura de pedidos, o seu túmulo. No caso de santificações como esta, os túmulos abrigam corpos que contam histórias de sofrimentos, privações, sacrifícios, dores e que se transformaram em fontes de vida, de bênçãos e de curas para as aflições de outros corpos. (Gaeta, 1999:64) Sempre em torno do túmulo é que se organizam orações, novenas, e correntes de pedidos. Livres de hierarquias institucionais, os devotos que criam seus santos, participam da privatização do sagrado, associando-o ao seu cotidiano, a partir de suas necessidades e preferências. O dia mais importante desta devoção é o dia 02 de novembro, época em que quase não há espaço para tantos devotos em torno do túmulo de Palmyra. A preparação do túmulo para o grande dia começa dias antes, quando sua pintura é renovada, as placas de mármore de 220 agradecimento são limpas, algumas lavadas, e empilhadas de forma ordenada. 219 Depoimento do Sr. Roberto de oliveira, 2004. Muitos outros depoimentos repetem situações como estas. 220 A informação sobre as placas foi fornecida por A. M., quem cuidava do túmulo até o ano de 2005, ano em que se converteu a uma Igreja Pentecostal. 135 Embora não seja um túmulo imponente, o túmulo de Palmyra é facilmente identificado quando entramos pelo portão principal do cemitério e caminhamos para a direita. Está sempre repleto de flores, cercado por uma tela de proteção, que é utilizada pelos devotos para encaixar seus bilhetinhos de pedidos, agradecimentos e as orações destinadas à Palmyra, tornada santa pela devoção popular. Figura 8 – Túmulo de Palmyra e bilhetes dos pedidos Fonte: Foto de minha autoria realizada durante pesquisa em 2004 Até onde pude perceber, os bilhetes são uma maneira que os devotos criaram para manter contato com Santa Palmyra, reproduzindo um hábito tradicional da comunicação entre as pessoas em seu cotidiano, ou seja, utiliza para comunicação com a santa o mesmo recurso que usam no dia-a-dia, a escrita de pequenos recados em pedaços de papel. Para realização desta pesquisa os recados para a santa representaram riquíssima fonte de informação sobre os devotos, suas necessidades e esperanças, além de permitir perceber a maneira como os devotos se relacionam com Palmyra. Pela aparência dos bilhetinhos, pode-se inferir que são, em sua maioria, improvisados, escritos em pedaços de papel cortados de forma irregular, às vezes em folhas de orçamento conseguidas nos estabelecimentos comerciais próximos ao cemitério, outras vezes em folhas de cadernos arrancadas e partidas com as mãos, sem o cuidado de retirar as apararas do papel que o prendia ao arame da encadernação. Em 2004 quando estive no cemitério e tentei falar ela, de dentro do túmulo, enquanto organizava as placas de mármore, ajeitava as flores, e orientava um funcionário para limpar um lugar e outro, me disse que nem se o governador aparecesse naquele dia ela o atenderia, estava muito atarefada. “Dia 1º é impossível, dia 2, pior ainda, não dá falar com ninguém!”. 136 A escrita revela uma caligrafia difícil de ser lida, com alguns vícios de ortografia e vocabulário bem simples, o que sinaliza para a simplicidade e pouca instrução dos devotos. O gráfico sobre a proporção do grau de escolaridade dos devotos ajuda a entender estas características. Vemos então que o maior número de devotos de Palmyra está entre os que têm primeiro e segundo graus. Entre os poucos devotos que tem curso superior, estão professores, historiadores e cientistas sociais. Quanto ao conteúdo dos bilhetes pode ser dividido em: agradecimentos, pedidos e orações. Eles dizem respeito a questões variadas: encontramos pedidos de emprego, de proteção para a família, de resolução para questões burocráticas, de liberdade do vício – drogas e álcool, pela volta do ser amado, realização de cirurgias, para conseguir realizar construções (muros, cômodos), vender coisas, curas diversas e até para ficar mais bonita: “Peço a Santa Palmyra que me conceda a graça de arrumar um emprego e que eu consiga 221 botar a minha barriga e cintura reta (...)” Os pedidos são livres de qualquer restrição e representam as mais diversificadas urgências dos devotos. Prova disto, é a repetição das expressões: “Minha Santa Palmyra, peço-lhe encarecidamente que me dê esta graça que tanto necessito (...)”; “Oh! Minha Santa Palmyra, venho pedir encarecidamente para iluminar os meus caminhos.”; “Me ajuda a conseguir esta graça urgente!”; “Preciso muito de sua ajuda, urgentíssimo.” Existem pedidos que são tipicamente femininos, como os pedidos de proteção para filhos e para a família, que quase sempre são realizados por mulheres, mas há os que são exclusivamente femininos, como os pedidos de retorno do ser amado ou para conseguir um 221 Pedido realizado em novembro de 2004 (as identidades das pessoas foram preservadas). 137 amor verdadeiro e um casamento feliz, todos desta categoria, aos quais tive acesso, foram realizados por mulheres. O seguinte depoimento é exemplar neste quesito: Meu sonho era casar de véu e grinalda na Igreja, eu já era mãe solteira, tinha duas filhas e pedi para ela que se arrumasse uma pessoa boa para mim eu viria todo ano fazendo sol ou chuva, eu consegui, aí eu venho. Casei com um namorado de quando eu era mais nova, eu fui embora ele também, e casamos 222 agora, foi ela que fez isto pra mim. Não é possível fazer este tipo de associação entre pedido e devoto no universo dos devotos homens. Embora grande parte deles peça por bons empregos isto não é uma prerrogativa masculina, várias mulheres também pedem a mesma coisa, um bom e seguro emprego. A presença feminina entre os devotos de Palmyra é visivelmente significativa, superando em 20% a quantidade de homens, como demonstra o gráfico seguinte: Gráfico 9 - Proporção de devotos de Palmyra em relação ao gênero 40% Mulheres Homens 60% As associações feitas entre pedidos e gênero são conclusões de minhas observações que só foram possíveis porque, no caso dos pedidos escritos, que são a maioria, os devotos assinam seus nomes ao final da redação do pedido. Até onde pude notar na perspectiva do devoto isto é muito importante, é como se a identificação fizesse diferença para a santa na hora de atendê-los. Essa conclusão é reforçada pelos depoimentos de algumas pessoas que estiveram visitando o túmulo de Palmyra durante o período de pesquisa. Ainda que não tenham me esclarecido sobre os pedidos que fizeram me apresentaram uma lista com os nomes das pessoas para as quais estavam pedindo: Eu hoje vim agradecer as coisas que ela fez prá mim. Ah! É muita coisa que ela já fez, não dá nem prá falar todas. 222 Depoimento Maria de Fátima, 2007. 138 Mas hoje eu vim pedir para ela prá outras pessoas, [atender outros] que 223 estão aqui na lista, prá deixar lá nos pés dela. Após seu depoimento, Dª. Maria me mostra a sua listinha como três nomes de uma mesma família. Perguntei por que ela iria deixar os nomes escritos no túmulo, se não bastava apenas dizer para a Palmyra os nomes das pessoas, ou mesmo em pensamento, esclarecer sobre o que elas precisavam, para que Palmyra as atendesse. Ao meu questionamento ela respondeu: “Mas é muita gente aqui pedindo, se a gente não deixa escrito ela não vai lembrar de todo 224 mundo.” O hábito de deixar pequenas listas junto aos pés de Palmyra é um ato corriqueiro. Nestes casos, geralmente o pedido não vem junto com os nomes, entretanto, quando ocorre a anotação dos nomes dos beneficiados com o milagre, ele diz respeito à harmonia familiar. Mantendo novamente os padrões de comunicação estabelecidos no cotidiano, na relação com a “santa Palmyra” também é necessário se identificar afinal, quando escrevemos para alguém e esperamos uma resposta ela só virá se deixarmos bem claro, o que queremos e quem somos. Os bilhetes escritos e assinados são provas da concretização da comunicação estabelecida com Santa. Palmyra. Existe a certeza de que Ela receberá o pedido porque ele é colocado junto dela, escrito de forma direta e, o mais importante, está explícito quem pede a graça. A santidade de Palmyra não é posta em dúvida em momento algum por seus devotos, tampouco a sua capacidade de atender aos pedidos. No entanto, alguns devotos sugerem que ela recorra também a outros santos para ajudá-la a atender ao pedido em questão, como visto no seguinte pedido: “Minha Santa Palmyra peço-lhe encarecidamente que me dê esta graça que tanto necessito. Peço que peça a todos os santos para ajudar e traga o meu 225 (...) para sempre prá mim. (...)” Os santos que poderiam auxiliar Palmyra em sua tarefa não estão especificados no texto do devoto. A sugestão para que ela una seus poderes aos de outros santos, é uma demonstração nítida de que, para os devotos, os santos não concorrem entre si, ao contrário, estão todos trabalhando para atender a todos que a eles recorrem, unindo-se numa rede de proteção, quando necessário. 223 Depoimento Sr.ª. Maria das Dores, 2006. 224 Depoimento Sr.ª. Maria das Dores, 2006. 225 Pedido realizado em novembro de 2006. 139 A relação de intimidade com Palmyra fica explícita na redação dos pedidos. São comuns as expressões: “Minha querida Palmyra”; “Minha Santinha”; “Santinha Palmyra”; “Graças a minha santa Palmyra”. Às vezes os pedidos parecem uma conversa direta e íntima com Palmyra, insinuando inclusive uma cobrança velada do atendimento ao pedido que se faz, o que não significa ausência de reverência: Minha gloriosa Santa Palmyra, peço para a senhora tirar o vício do (...) de fumar e beber. Peço esta graça, estou esperando! Vou levar um buquê de flores para a senhora e uma missa em ação de 226 graças para a Santa Palmyra. (...) “Estou esperando!”, com essa afirmação a devota deixa clara sua posição de vigília em relação à ação da Santa Palmyra, e logo a seguir, indica qual será o retorno que a santa terá ao atendê-la: um buquê de flores e uma missa. Temos representados nesse pedido alguns dos elementos básicos da relação estabelecida entre a Palmyra e os devotos. O devoto pede; aguarda e, recebendo a graça, presta homenagens à Santa. Retribui ao favor concedido oferecendo-lhe flores, velas e orações. A juventude de Palmyra quando morreu é motivo para que ela seja associada aos jovens. Às vezes a aproximação inicial com ela ocorre por vias inusitadas. Uma jovem devota, diz em seu depoimento: Eu perdi uma colega com a idade dela, vim ao enterro que foi aqui perto, aí fiquei sabendo dela que era, tipo assim, nova como a minha colega, então fiquei devota dela. Pedi pra ela me ajudar a continuar estudando, eu tava 227 com vontade de parar, mas ainda não parei, ela me deu força de vontade. Mesmo que os adolescentes não compareçam ao cemitério para participar das homenagens oferecidas a ela, vários dos pedidos dirigidos à Santa Palmyra têm como beneficiados adolescentes. Pedidos em geral realizados pelas mães, avós, pais ou irmãos destes jovens. Os pedidos para ajudar na escola, para afastar das drogas ou proteger da violência, são os mais comuns nestes casos. Em seu depoimento uma devota me explica porque pede a Palmyra que cuide de seu filho: Eu sou devota desde criança. A Santa Palmyra já me curou de um câncer, eu rezo sempre prá ela. Hoje eu vim pedir pra ela afastar meu filho das 226 Pedido realizado em 2006. 227 Depoimento de Jéssica Coelho, 2007. 140 drogas. Peço muito a ela, porque ele é nova, e ela por ser uma santa assim 228 jovem, ela entende. A gente tá vendo né, que ela é quase uma menina. (...) Quando me diz que a gente tá vendo, esta senhora aponta para a imagem do túmulo para confirmar sua opinião. A aproximação com a juventude não significa que ela seja uma santa de adolescentes, ou seja, que entre os seus devotos figurem mais representantes deste grupo do que pessoas de outras faixas etárias. Como demonstra o gráfico seguinte o maior número de devotos de Palmyra está na faixa etária de 41 a 50 anos. Por outro lado, a juventude de Palmyra não impede que ela seja comparada a uma mãe e, por conseguinte, com Nossa Senhora, ou “as Marias”, como demonstram as seguintes falas: Ela é uma pessoa que tá acima de tudo, uma mãe muito maravilhosa, 229 uma mãe santa. Nós somos muito católicos temos devoção em todas as santas, as Marias 230 em geral, mas ela, em especial porque tá aqui tão pertinho da gente né! A promessa também é expressa nos bilhetes. Em geral estão associadas à realização da graça e se dividem em missas, ofertas de velas, de flores, terços e confecção de placas de mármore para agradecimento das graças. As placas de mármore, que se amontoam aos pés da imagem lá fixada, cobrem o túmulo por completo, somando um total de, aproximadamente, 5000 placas, segundo funcionário do cemitério. Nelas não encontramos menções à graça alcançada, apenas a data e o nome, ou as iniciais do beneficiado. O túmulo de Palmyra não é luxuoso, mas está sempre limpo, com a pintura retocada, havendo um funcionário específico para cuidar dele. Nele encontramos uma imagem que geralmente é associada à Palmyra, como se fosse uma representação dela, embora se aproxime de imagens de Nossa Senhora. 228 Depoimento Sr.ª. Suzana Leite, 50 anos, 2006. 229 Depoimento da Sr.ª. Maria das Graças, 2005. 230 Depoimento da Sr.ª. Luzia Morais, 2005. 141 A imagem apresenta uma mulher branca, de traços finos, vestida por uma túnica azul e coberta por um manto branco. Os cabelos são escuros, os olhos claros e voltados para cima. A mão esquerda colocada na direção do coração e à direita um pouco mais elevada, um pouco abaixo do queixo, tendo os dedos fechados como se segurassem alguma coisa. Esta imagem é muito significativa na devoção. Ela é considerada sagrada pelos devotos que querem tocá-la, avizinhar-se dela e assim, conseguir sua proteção, esta necessidade ocasiona pequenos tumultos e empurra–empurra, e um emaranhado de mãos que disputam espaço nessa demonstração de fé. Figura 9 – Imagem existente no túmulo de Palmyra Fonte: Foto de minha autoria, realizada durante pesquisas, 2005 Aproveitando da característica relativa às mãos da imagem, os devotos insistem em subir nas beiradas do túmulo, segurando-se na tela de proteção e depositar nelas as flores que levam em especial lírios brancos e rosas, além dos terços. Com a mesma insistência dos devotos os responsáveis por cuidar do túmulo de Palmyra recolhem regularmente essas oferendas, a fim de preservar a imagem. Por seu turno, os devotos parecem não se atentarem para este risco e querem apenas que suas ofertas sejam colocadas o mais próximo possível da santa e vão amontoando flores, umas sobre as outras, forçando o encaixe das mesmas nas mãos e braços da imagem. Em algumas ocasiões, não havendo condições de manter as flores nas mãos da santa elas são encaixadas entre a cabeça e o ombro da mesma. A necessidade de proximidade com a santa às vezes levam os devotos a cometerem atos ainda mais danosos para a preservação do túmulo e da imagem, entre essas destaco o hábito de escrever no manto as mensagens destinadas à Palmyra, como mostra a foto: 142 Figura 10 – Mensagens no manto da imagem Fonte: Foto de minha autoria, realizada durante pesquisas em 2005 Se o túmulo de Palmyra acaba sofrendo danos em função da ação dos devotos, pior ainda ocorre com os túmulos circundantes dele. Estão quase todos danificados, com rachaduras nas estruturas de cimento e/ou mármore que os cobrem; sujos por serem pisados, posto que, são usados como apoio para ver melhor o túmulo de Palmyra em dias de maior movimento ou simplesmente para reduzir o caminho até o túmulo dela; estão ainda repletos de manchas resultantes da queima de velas destinadas à Palmyra, dentre outras avarias. Figura 11 - Túmulo próximo ao de Palmyra Fonte: Foto de minha autoria, realizada durante pesquisas, 2005 143 Anexo ao túmulo de Palmyra há um crematório para queima das velas de forma segura e organizada. O crematório foi ampliado e coberto em 2005, ainda assim, precisa ser limpo constantemente nos dias 02 de novembro, pois, as velas são muitas e a cera derretida se acumula rapidamente, impedindo que novas velas sejam acesas no lugar. Mesmo havendo esse lugar específico para a queima das velas e os funcionários trabalhem para mantê-lo em condições adequadas, às vezes não é o bastante e velas são acesas em vários pontos ao redor do túmulo de Palmyra. Mas, não só a falta de espaço ou a pressa são justificativas para que os devotos deixem as velas nos túmulos vizinhos ao Palmyra ou no seu próprio túmulo. O motivo mais mencionado está relacionado à humanização da imagem que fica sobre o túmulo de Palmyra. Os devotos levam em consideração a posição do crematório em relação ao túmulo e argumentam que ele não fica ao lado de Palmyra e sim na sua frente, de maneira que não é possível a ela ver as velas acesas por causa da parede. Neste caso, questionados sobre o hábito de não usar o crematório, os devotos se justificam dizendo que: Eu sei que aqui não é o lugar certo. As pessoas até reclamam, mas lá onde é para colocar as velas, às vezes está muito cheio, e também se elas forem colocadas lá não dá para Palmyra ver as velas do lugar que ela está. A parede 231 tampa. Neste caso muitos devotos colocam as velas fora do crematório, optando por lugares 232 “onde os olhos da Santa Palmyra podem ver”. Figura 12 – Crematório para velas de Santa Palmyra Fonte: Foto de minha autoria, realizada durante pesquisas, 2005 231 Depoimento de Tereza Santana, 2005. 232 Depoimento de Tereza Santana, 2005. Esta mesma justificativa se repete em mais 15% dos depoimentos. 144 Os devotos de Palmyra realizam outros rituais além das visitas no dia 02 de novembro, existem novenas durante todo o ano, realizadas sempre nas segundas-feiras. É uma ocasião especial para agradecer as graças alcançadas e reforçar os pedidos feitos. As novenas acontecem quase sempre no horário da tarde. Os devotos chegam, dirigem-se para o túmulo, fazem o sinal da cruz e iniciam a reza do terço. Às vezes as orações são silenciosas, balbuciadas, introspectivas, às vezes, dependendo do número de devotos, acontece a reza do terço coletivamente. Cada devoto que participa da novena tem que deixar no túmulo uma cópia da oração que fazem a Palmyra. Por isto é comum que durante todo o ano a tela que protege o túmulo fique repleta de papeizinhos. Diferente do verificado na análise dos bilhetinhos de pedidos, as orações são escritas com mais cuidado, às vezes digitadas em papel selecionado para este fim, quer dizer, sem os traços indicativos do improviso encontrados nos papéis dos pedidos. Existem duas orações que circulam entre os devotos, ambas incluem espaço para realização de pedidos e o momento em que devem fazê-lo, indicam quais rezas devem ser oferecidas a Palmyra e as obrigações que o devoto deve cumprir. Fazem referência a traços da imagem presente no túmulo, ao mesmo tempo em que afirmam a capacidade de Palmyra para realizar todas as graças. Vejamos a primeira oração: Oh! Minha Santa Palmyra, vós que, tendes os olhos voltados para o céu, rogai a Deus por mim, para que eu consiga obter esta graça de que tanto preciso. Rezar: 03 Pai Nosso; 03 Ave Maria; 03 Salve Rainha e 03 Glória ao Pai. Fazer esta novena durante 9 segundas-feiras no túmulo de Santa Palmyra, deixando 01 vela acesa e uma cópia da novena. Sua graça será alcançada por mais difícil que pareça. Na Segunda oração há uma especificidade. Nela fica claro o desejo de que Palmyra venha a alcançar a glória dos altares: Oh virgem socorrei-me com a luz que irradia da vossa bondade, com o consolo que brota de vosso coração, com a paz que vossos olhos transmitem, dignai-vos agora em conceder a graça que com tanto ardor vos pedimos a fim de que certos de sua eficácia intercessão junto a vós possamos vê-la um dia na glória dos altares. Reza-se 03 Pai Nosso; 03 Ave Maria; 01 Glória ao Pai. Peça a graça com muita fé e receberá, por mais difícil que seja! Santa Palmyra, rogai a Deus por nós. Reze por 03 dias começando numa Segunda-feira, acender 01 vela no túmulo e divulgar a oração. 145 Nas orações, nos pedidos, e nos depoimentos os devotos deixam claro que eles são católicos e incluem, com toda naturalidade, a devoção a Palmyra entre os atos de suas obrigações religiosas. A observação e o acompanhamento dos devotos em suas ações rituais junto ao túmulo de Palmyra permitem perceber que as devoções construídas pelo povo, cristalizadas na memória coletiva, pautadas no mito e na oralidade, possibilitam uma experiência do sagrado independente e relativamente autônoma. Tais ocorrências demonstram que “os homens de Deus”, na interpretação do povo, escapam às conformações, permitindo que os fiéis inventem o seu próprio cotidiano e que esses processos de santificações são tão eficazes e legítimos quanto os efetuados pela Igreja, pois aos olhos do devoto, os milagres acontecem, e são tão válidos quanto os realizados por qualquer outra entidade sagrada (Gaeta, 1999:72). Esses são dados e comprovações que compõe, de forma semelhante, também a devoção a Nhá Chica, a “Santa de Baependi”, cujo estudo é apresentado adiante. 4.3 - Nhá Chica (1810-1895): A “Mãe dos Pobres” e “Santa de Baependi” O culto a Nhá chica tem grande abrangência espacial, mas o centro devocional é localizado ao Sul de Minas Gerais, na cidade de Baependi. É para lá, principalmente, que se dirigem os devotos para pedir, agradecer e homenagear esta santa do povo. Baependi é a cidade que recebeu Nhá Chica quando ela era ainda uma criança, tendo vindo do povoado de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, hoje Rio das Mortes, distrito de São João Del Rey. Neste lugar ela cresceu, fez a sua história e alterou visivelmente a história do pequeno povoado. Hoje, depois de mais de 100 anos de sua morte, continua agindo sobre o destino e a história de Baependi, onde se aguarda ansiosamente por seu reconhecimento oficial, mas desde já, sua santidade já é atrativo citado em folhetos turísticos, em propagandas de pousadas, em panfletos, sites, e demais meios de divulgação da cidade. Em um destes panfletos, o da prefeitura municipal de Baependi, a cidade é apresentada como “Paraíso ecológico da Estrada Real, perfeito para quem quer tranquilidade, perfeito para quem quer ação”, destacam-se as paisagens, o eco turismo e o sossego do interior. Entre os atrativos estão o Morro do Chapéu, a Serra da Careta, a Cachoeira da Itaúna, o artesanato, as Igrejas e, Nhá Chica. 146 Baependi, conhecida pela produção de artesanato diversificado, em bambu, palha e embira, é terra também de Francisca de Paula de Jesus, a Nhá Chica, filha de escravos que viveu na cidade no século XIX e que poderá se 233 tornar a primeira santa leiga, genuinamente brasileira. Nhá Chica, expressão resultante de abreviações de Senhora Francisca, nasceu no início do século XIX, havendo uma dúvida quanto ao ano, se 1808 ou 1810. Recebeu de batismo o nome Francisca de Paula de Jesus Isabel e sendo filha e neta de escravas foi declarada também escrava. Além de sua mãe, a escrava Isabel Maria, propriedade do senhor Costodeo Ferreira Braga, Nhá Chica teve como parente conhecido apenas um irmão, Theotonio Pereira 234 do Amaral. A família de Nhá Chica se transferiu para o Arraial de Santa Maria de Baependi, hoje cidade de Baependi, quando ela era ainda bem pequena, no ano de 1818, não se sabe por qual motivo. Nesta cidade ela passou o resto de sua vida. Na mudança a família levou uma pequena imagem da Nossa Senhora da Conceição, feita em barro, diante da qual se reuniam em orações (Palazzollo, 1973:60-63) Segundo depoimentos transcritos na obra do Frei Jacinto do Palazzollo (1973), foi com sua mãe que Nhá Chica aprendeu a ser católica e a dedicar toda sua devoção a Nossa Senhora da Conceição. Ficou órfã aos 10 anos, restando-lhe como família apenas o irmão e o senhor Félix, um negro, citado como ex-escravo de Nhá Chica em seu testamento, que cuidou dela e do irmão, que contava apenas com 14 anos na época da morte da mãe. A existência de Félix e a menção a ele no testamento como herdeiro e ex-escravo de Nhá Chica é muito interessante, posto que, Nhá Chica é divulgada como ex-escrava, tanto pela mídia, quando por eclesiásticos e devotos. Há muitos pontos obscuros sobre a origem de Nhá Chica e sua real pobreza e escravidão, mas estes são dois elementos fortíssimos nos discursos construídos sobre ela para destacar sua santidade, que teria florescido entre os pobres, os humilhados, os subjugados e oprimidos. A comprovação de que ela não era escrava e mais, que era proprietária de escravos destrói grande parte do mito que é Nhá Chica. Talvez, por isto mesmo, as biografias lidas sobre ela transcrevem o testamento, mas não destacam a expressão “e dou ao Félix, que foi 233 Propaganda da Prefeitura Municipal de Baependi - MG, pode ser visualizado no site . 234 Todas estas informações foram conseguidas mediante pesquisa da Comissão Histórica, que atua na organização de documentos para beatificação de Nhá Chica, a partir da consulta a documentos do Arquivo Paroquial de São João Del Rei, e constam na obra CANDORIN, Irmã Célia S. - e (org.). Nhá Chica, a Pérola de Baependi, pp. 28-30, 2004. 147 meu escravo, um terreno (...)” (Candorin, 2004:75). Assim a história é relegada e o mito pode prevalecer. De acordo com as narrativas, foi atendendo a uma promessa, um pedido da mãe feito no leito de morte que Nhá Chica dedicou sua vida à religião, à Nª Senhora, ao cuidado com o próximo, mantendo a castidade e a vida solitária, para que melhor pudesse realizar estes 235 desígnios. As pesquisas realizadas indicam que Nhá Chica prestou serviços, como escrava, até que seu irmão se tornasse adulto e pudesse assumir a família. Apesar da insistência dele para que ela o acompanhasse em sua morada, Nhá Chica preferiu continuar vivendo na casa onde passara toda sua vida até então. Assim, Nhá Chica Cresceu isolada do mundo, que a cercava, dedicando-se à caridade e à fé. (...) Rapazes de seu tempo pediram-na em casamento; recusou a todos, sem se mostrar contrariada; tornou-se até muito amiga do que mais insistira, grata pelas boas intenções (...) Tinha porém uma missão a cumprir: Moça ainda, Nhá Chica já era a mãe dos pobres; pouco a pouco foi se estendendo a sua fama, porque os seus conselhos eram sempre muito ajuizados. (Monat, 1894:93) Quanto a Theotonio, o irmão de Nhá Chica por parte de mãe, estudou e teve boa colocação na sociedade da época, chegando a ser Juiz da Vintena da Aplicação de Santo Antônio de Piracicaba, localidade rural de Baependi. Foi ainda cadastrado na Guarda Nacional do Império, membro da Irmandade da Senhora da Boa Morte (1833) e vereador em Baependi. Em 1853, aos 49 anos, era ainda solteiro e negociante. Quando morreu, em 1861, havia contraído matrimônio com a senhora Leodora Maria de Jesus, mas não tinha filhos, tinha uma outra irmã, por parte de pai, no entanto, declarou como sua herdeira universal a irmã Francisca de Jesus. (Candorin, 2004:28-32) A herança do irmão era bastante para deixar Nhá Chica em boa situação financeira, entretanto, ela optou por doar todos os seus bens para a Igreja e para os pobres. Parte foi utilizada para dourar o Altar-mor da Igreja Matriz N. Sr.ª. De Montserrat, o restante dividiu entre doações aos necessitados e a compra de um terreno para construir uma Igreja para N. Sr.ª. da Conceição (Candorin, 2004:47). A partir destas informações conclui-se que Nhá Chica nasceu pobre, mas, permaneceu na pobreza por opção. 235 Ver PALAZZOLLO, A Pérola escondida, 1973 e CANDORIN, Irmã Célia S. - e (org.), Nhá Chica, a Pérola de Baependi, 2004. 148 Viveu numa casinha simples de apenas quatro cômodos e chão de terra batida. O interior da casa estava sempre pouco iluminado, as janelas e a porta nunca estavam totalmente abertas. Por opção tinha uma vida de semi-reclusão, o que não significa dizer que se fechara para o mundo. Apenas gostava de se isolar para realizar suas orações, mas recebia amigos para conversar, aconselhar e presentear com frutas que nasciam no seu quintal. (Monat, 1894:93) Esta pesquisa sobre Nhá Chica tem como fonte as biografias, as publicações em periódicos e documentos referentes a ela – livros de registro de graças e de visitas, os registros de romarias e os registros civis de Nhá Chica (certidão de nascimento, testamentos, doações, atestado de óbito), estes últimos se encontram aos cuidados das Irmãs Franciscanas do Senhor, responsáveis pelo Santuário e pela Associação Beneficente Nhá Chica, desde 1955. 236 Às fontes citadas foram somados questionários e entrevistas realizadas durante minhas 237 visitas às cidades do Sul de Minas. A participação da imprensa, falada e escrita é muito significativa na divulgação dos milagres, das celebrações e da devoção a Nhá Chica, sendo bem-vindas diante da campanha 238 pró-beatificação de Nhá Chica. São ainda ricas fontes de informação para pesquisadores. Ao longo dos anos, várias foram as publicações em âmbito regional e nacional. Foi criado até 239 um jornal Órgão Oficial da Associação Beneficente Nhá Chica, em julho de 2006. 236 Para levantamento dos dados que serão apresentados contei com a colaboração dos já citados Geraldo Magella Junior e Ademildo Walguimar, também historiadores. Além deles, recebi a colaboração do professor Erick Carvalho, à época ligado ao curso de turismo da Faculdade Santa Marta. Outro professor, neste caso de informática, Rodrigo Campos, funcionário da Associação Beneficente Nhá Chica, responsável pelo controle das romarias também muito colaborou com esta pesquisa, permitindo acesso aos registros por ele realizados. Tendo em vista o grande contingente de devotos, toda esta ajuda foi fundamental. 237 Foram cinco viagens a Baependi e região, com duração variada, distribuídas entre maio de 2005 e junho de 2007, incluindo as datas: 01 de maio de 2005; 14 a 18 de junho de 2005; 14 a 18 de junho de 2006; 08 de dezembro de 2006 e 01 de maio de 2007. 238 O processo de beatificação de Nhá Chica foi aberto em 1993, tendo passado por todas as fases: levantamento histórico, reunião de documentos para atestar virtudes e fama de santidade; depoimentos de graças alcançadas; reconhecimento dos restos mortais; aprovação do milagre. Todo o material está reunido no Positio, livro de registro oficial da Igreja Católica para esse tipo de pesquisa histórica, científica e religiosa, impresso em 2002. Cf. depoimento de Maria José Turri Nicoliello, pesquisadora e Presidente da Comissão Histórica de Beatificação. 239 Este periódico surgiu tendo como jornalista responsável a Sr.ª. Fafate Costa, sob o título ‘Nhá Chica – Notícias do Santuário’. A ideia funcionou, as tiragens ganharam um vulto considerável, sendo enviados exemplares a vários lugares, surgiu uma versão on line do jornal, foram criados concursos, colunas para os devotos se expressarem, etc. Tudo isto foi modificado em dezembro de 2007, quando sem maiores explicações, a jornalista foi demitida e o jornalista Sérgio Monteiro assumiu a direção do ‘Informativo Nhá Chica – Notícias do Santuário e da Associação Beneficente Nhá Chica’, como o periódico passou a se chamar. Basicamente, ele assumiu uma postura mais institucional, cuidando para realçar mais a Nª Senhora da Conceição e não tanto a devoção a Nhá Chica. Fafate e seus companheiros fundaram um novo jornal, desta vez sem o crivo institucional, denominado ‘Jornal Nhá Chica – A Santinha do Brasil’, contando com a doação de devotos para mantê-lo. Não houve tempo para maiores investigações sobre este tema, mas os primeiros exemplares dos novos jornais deixam à vista a insatisfação de ambos e significativas diferenças entre os discursos de um e de outro. Basicamente, um deles focaliza o Santuário e a devoção a Sr.ª. da Conceição, apresentando Nhá Chica como sua devota e Serva de 149 240 Os órgãos de divulgação dedicam espaços para divulgar a santidade de Nhá Chica e os eventos a ela relacionados e, paralelamente, ajudam a afirmar epítetos como santa de Baependi, a mãe dos pobres, a santa negra, a primeira santa leiga do Brasil, ao mesmo tempo em que reforçam detalhes da vida de Nhá Chica, considerados singulares para alguém que alcançou a fama e respeitabilidade dela, com ênfase em sua origem humilde, como demonstra a citação: “Analfabeta, filha e neta de escravos, a mineira nascida em 1808 (...) Sua bondade e os conselhos sempre acertados da menina que nem sabia ler romperam os domínios de Baependi (...) e logo se espalharam por todo o país.” (Jornal Extra, 07/2006) Há também programas de rádio (Radio Serrana FM – Baependi), transmissão de missas via internet (Radio Serrana FM Web), altares virtuais, sites, programas de TV, atuando 241 na divulgação de Nhá Chica. Os integrantes da comissão pró-beatificação e os devotos sabem da importância da divulgação, e valem faixas - como a que foi levada na missa campal de canonização de Frei Galvão, com os dizeres “Nhá Chica, Canonização Já” e que foi notícia em jornais (O Globo, Estado de Minas, O Tempo), TVs (Gazeta e Canção Nova), sites (UOL, Terra, Último Segundo, G-I), ou a que foi transportada por um ônibus de devotos do Rio de Janeiro a Baependi, em setembro de 2006, anunciando graças alcançadas - “Obrigado Nhá Chica, pela saúde de Isabel e Janete” (Jornal Nhá Chica, dez., 2006); a organização de concursos como o Minha História com Nhá Chica; organização de Ongs como o Movimento pró-Nhá Chica; realização de congressos, como o Encontro de estudos sobre Nhá Chica, organização de museus – como o Memorial de Nhá Chica; a venda de objetos com a imagem de Nhá Chica; isto tudo além das festas, dos panfletos de divulgação das mesmas, enfim, variadas formas de divulgação que acabam por atingir um grupo de pessoas cada vez maior e mais diversificado. Divulgar a história dos devotos em sua relação com Nhá Chica, como pretendido pelo 242 concurso Minha História com Nhá Chica é importante pela participação e divulgação de sua santidade, algo que é de interesse também dos envolvidos na causa da beatificação, já que Deus, informando sobre romarias e o processo de beatificação cuidando de tornar isto secundário, enquanto o outro, o dos devotos, já anuncia no próprio título escolhido sua postura de destaque a Nhá Chica, referida como ‘santa’, colocada no centro das atenções, contando com a colaboração de leigos e de religiosos tanto financeira quanto intelectualmente. Não há uma oposição clara e direta, mas os textos de apresentação dos dois jornais tentam demarcar espaços, tentando ser reconhecidos como portadores das verdades sobre Nhá Chica. 240 Entre jornais e revistas divulgadores de Nhá Chica cito: Revista Veja - Nossos Santos de Casa, 11/1981, Jornal Esotérico (BH), de 06/05/2003 – Devoção a Nhá Chica, - a mãe dos pobres’; jornal Extra, 24/05/2004 – Em nome da fé: Brasil poderá ter uma nova santa; jornal Extra, 04/07/2006 – Uma mineira a caminho do altar; Revista Caras on line (caras.uol.com.br/embaixada) - Ed. 662; ano 13; nº. 28; 14/07/2006. 241 Revista Veja, ; , maio de 2007; Altar virtual http://istoe.terra.com.br/planetadinamica/altar. 242 Concurso iniciado em 2007, organizado pela jornalista Fafate Costa. 150 são fundamentais os registros de graças alcançadas por intermédio de Nhá Chica, para prosseguir no processo de oficialização da devoção. Aproveitar todos os canais disponíveis para divulgação é o ideal, assim, a venda de obras e objetos que remetem a Nhá Chica que é uma atividade já tradicional, assumiu caráter de novidade quando as vendas passaram a ser realizadas pelos correios via internet. 243 Acessando a página de Nhá Chica , tem-se visualização de alguns dos objetos e, mediante depósito bancário, pode-se adquiri-los. Os Jornais de Nhá Chica, trazem ofertas, preços e condições de vendas destes produtos, cujas rendas são revertidas para as obras sociais das Irmãs Franciscanas. Os momentos em que a mídia está interessada na questão dos santos e das canonizações são aproveitados para que Nhá Chica ocupe lugar neste espaço, como mostra esta notícia veiculada pela Canção Nova: Nestes tempos em que a mídia tem tocado muito no assunto da canonização de Frei Galvão, filho de Guaratinguetá (SP), faz-se importante situar os leitores sobre um outro processo de Beatificação que corre adiantado no Vaticano. Depois do nosso primeiro santo efetivamente brasileiro, podemos esperar que se cumpra o desejo do saudoso Papa João Paulo II, quando mencionou que o "Brasil precisa de santos, muitos santos"! A expectativa, agora, é pelo reconhecimento da vida de santidade de uma mulher leiga, humilde, filha e neta de escravas, que levou uma vida monástica na pequena 244 Baependi-MG, do séc. XIX. Destacar os devotos famosos, como o caso do escritor Paulo Coelho, é também um hábito entre os devotos. O trecho abaixo faz parte de uma declaração do escritor sobre sua viagem a Baependi, onde justifica sua devoção a Nhá Chica, texto que fica em exposição no Memorial Nhá Chica: (...) Comecei a passear pelos arredores e terminei entrando na humilde casa de Nhá Chica, ao lado da igreja. Dois cômodos e um pequeno altar, com algumas imagens de santos, e um vaso com duas rosas vermelhas e uma branca. (...) Fiz um pedido: se algum dia eu conseguir ser o escritor que queria ser e já não quero mais, voltarei aqui quando tiver 50 anos e trarei duas rosas vermelhas e uma branca. (...) Ali começava minha jornada de volta aos sonhos, à busca espiritual, à literatura, e um dia eu me vi de novo no Bom Combate, aquele com o coração cheio de paz, porque é resultado de um milagre. Nunca me esqueci 245 das três rosas. 243 244 Disponível no endereço http://noticias.cancaonova.com/noticia , 7 de maio de 2007. 245 Entrevista de Paulo Coelho, ao Jornal do Brasil, 1998, época em que pagou sua promessa de retornar a Baependi. 151 Não há registro de impasses entre imprensa e devotos ou dela com a igreja. Nhá Chica é geralmente apresentada de forma respeitosa, senão carinhosa, sem se colocar em dúvida suas qualidades santificadoras. A biografia construída de Nhá Chica, assim como ocorrido com as santas do povo já apresentadas, oferece base para as construções narrativas que surgem sobre ela, em geral, exaltando características extraordinárias, capacidades excepcionais, sua bondade, a abnegação e dedicação aos necessitados, enfim, sua vida virtuosa e devotada a Deus e N. Sr.ª. da Conceição. Os milagres são citados como partes de sua vida, de sua morte e do post mortem, como veremos a seguir. 4.3.1: Narrativas sobre os milagres de Nhá Chica Uma “pessoa muito especial”, essa é a definição mais comum sobre Nhá Chica. Se para a Igreja ela ainda é uma Serva de Deus, para os milhares de devotos que se deslocam até Baependi, ela já nasceu uma santa. Os milagres que protagonizou são as provas concretas desta constatação. Perguntados sobre por que Nhá Chica é uma santa, as respostas são imediatas: “Já quando viva fazia milagres. Sabia sempre o que falar e falava com Nossa 246 247 Senhora” , “Ela é uma mãe, a Nossa Senhora desse lugar” , “Se dedicou a cuidar dos 248 pobres” . Conforme alguns registros são “inúmeros os milagres operados por intercessão daquela piedosa mulher, que levou sua vida na prática do bem.” No entanto, o milagre permanente de Nhá Chica, consiste em ter ela “anulado a inexorável ação do tempo”, mais de 249 um século, “sem abalar, sequer, sua fama.” Nhá Chica é lembrada como capaz de levitar, fazer com que as laranjas se multiplicassem na laranjeira, distribuir alimentos aos necessitados, mesmo sem ter posses para tanto. Além disto, era capaz de promover curas, antes mesmo de sua morte, sendo apontada como portadora de grande humildade, amor aos pobres e fé cristã, em especial à Virgem da Conceição. É bem comum a referência dos devotos ao milagre do pomar, ocasião em que Nhá Chica teria levitado diante de crianças que colhiam laranjas em seu quintal. O depoimento abaixo é um dos que citam este milagre: 246 Depoimento Sr.ª. Maria Luiza Rodrigues, 2005. 247 Depoimento Luis Cláudio, maio de 2005. 248 Depoimento Jamile da Cruz, junho 2006. 249 Depoimento de Assis Memória, jornalista - Jornal do Brasil, 1958. 152 As crianças estavam na árvore catando laranjas, Nhá Chica sempre deixava que elas fizessem isto. Neste dia ela ficou debaixo da laranjeira rezando e de repente os meninos viram que ela estava flutuando, voando na altura do pé de laranja. Eles fugiram correndo porque ficaram com medo, não sabiam o que estava acontecendo, ela era uma Santa, por isto podia voar, mas eles não sabiam 250 disto. De acordo com as produções consultadas, Nhá Chica possuía ainda outros dons especiais: a humildade, a premonição e clarividência, por isso era dotada de visão profética. Não sabia ler, nem escrever, no entanto, escrevia e recitava poemas de cunho religioso. Gostava de ouvir as Sagradas Escrituras e sempre pedia a alguém que lesse para ela. Dava 251 opiniões sobre a política, mesmo nunca tendo saído de Baependi. De acordo com Pellúcio (1942) “com sua piedade, suas virtudes, as graças que alcançava junto à Mãe de Deus foram sendo conhecidas, os fatos iam sendo repetidos e à casinha humilde de Nhá Chica afluíam pessoas de partes várias, pedindo-lhe orações, conselhos, uma palavra de conforto”.( Pellucio, 1942:146) A construção da Capela de N. Sr.ª. de Conceição, iniciada quando Nhá Chica já contava com 50 anos de idade é também visto como uma obra milagrosa. Na fala dos devotos, foi “(...) N. Sr.ª. que disse prá ela construir a Igreja, sem dinheiro ela pediu esmolas e 252 conseguiu cumprir o desejo de sua Sinhá, era assim que ela chamava Nossa Senhora (...)”. Muitas histórias são contadas sobre a construção da capela e eventos relacionados a ela, reconhecidas como milagres de Nhá Chica, resultantes de sua íntima relação com a Virgem da Conceição. Um deles se refere aos adobes, que são uma espécie de tijolos, usados para construir as paredes da capela. Segundo contam depois de já iniciada a construção, o pedreiro responsável pela obra avisou que faltariam adobes. Não havia dinheiro para comprar mais materiais, então Nhá Chica respondeu: “-Nossa Senhora é quem sabe”. Recolheu-se em orações, avisando que iria consultar a sua Sinhá, sobre o que fazer. Algum tempo depois retornou afirmando que podiam continuar o trabalho que os adobes seriam suficientes, não faltaria nem sobraria nenhum, 250 Depoimento Luis Cláudio, maio de 2005. 251 Ver: José A. PELLUCIO. Templos e crentes, 1942; CANDORIN, - e (org.), Nhá Chica, a Pérola de Baependi, 2004; Mons. José do Patrocínio LEFORT. Francisca de Paula de Jesus Isabel – Nhá Chica, 1995; Henrique MONAT, “Caxambu”, 1894. 252 Depoimento Sr.ª. Maria Guedes, maio de 2005. 153 conforme dito pela Senhora da Conceição. E assim ocorreu, ela não precisou comprar mais 253 nenhum adobe, tampouco sobrou algum. Ainda ligado à capela de Nª. Sr.ª. da Conceição, existe o milagre do órgão. Os relatos informam que ela recebeu um pedido de Nª. Sr.ª. da Conceição para comprar um órgão para a Capela. Ela não sabia o que era um órgão e pediu ajuda ao pároco da época, o Mons. Marcos Nogueira. Só aí soube que se tratava de um instrumento musical. O pároco tentou, em vão, dissuadi-la, alegando o quanto era difícil conseguir um órgão naquela época. Nhá Chica conseguiu efetuar a compra e o órgão chegou a Baependi em 1877, ano em que ela organizou a primeira festa para Nª Sr.ª. da Conceição. Era uma quinta-feira e várias pessoas se reuniram para ouvir o som do novo instrumento, mas para decepção de todos que o aguardavam, ele não tocou. Diante do aparente fracasso Nhá Chica teria dito que tudo era o desejo de “Sua Sinhá”, que o órgão só tocaria no dia seguinte, sexta-feira, às 3 horas da tarde, hora que se cantava a ladainha na capela. Ocorreu como previsto por ela, no dia seguinte o órgão tocou às 3 da tarde, só parando de funcionar no ano de 1940, quando estava muito 254 deteriorado. A humildade é qualidade muito destacada quando se fala nela. Como prova indicam que Nhá Chica nunca atribuía a si nenhuma capacidade especial. Dizia sempre que nada 255 fazia além de ouvir os conselhos e pedidos da Virgem da Conceição, a quem denominava “Minha Sinhá” (minha senhora); “(...) eu repito o que me diz Nossa Senhora e nada mais (...). Eu rezo a Nossa Senhora, que me ouve e me responde (...)” (Candorin, 2004:65) Atuando na solução de situações corriqueiras, como o sumiço de gado, ou sobre tratamentos que deviam ou não ser realizados, Nhá Chica teve uma vida cercada de acontecimentos extraordinários. Segundo as fontes pesquisadas, essa característica ultrapassou sua vida, acompanhando-a em sua morte e permanece até os dias atuais. Ela conviveu por anos com fortes dores reumáticas, o que a deixava debilitada para realizar suas atividades de devoção e cuidados com a Capela da Conceição, embora nunca 253 Informações presentes em vários depoimentos. Aparece também em obras sobre Nhá Chica, ver: O milagre dos adobes, Jornal Nhá Chica – Notícias do Santuário, novembro de 2006, p. 5; CANDORIN, - e (org.), Nhá Chica, a Pérola de Baependi, p. 55, 2004. 254 Este milagre também aparece nas conversas com os devotos, especialmente porque em 2002 o citado órgão foi restaurado e devolvido a Baependi, compondo hoje o coro do Santuário da Conceição. Ver. OS milagres de Nhá Chica Jornal Nhá Chica – Notícias do Santuário, novembro de 2006, p. 8; CANDORIN, - e (org.), Nhá Chica, a Pérola de Baependi, p. 58, 2004. 255 Semelhante ao ocorrido com Lola, que atribuía ao Sagrado Coração de Jesus as graças que se realizavam. 154 tenha deixado de zelar por ela. Morreu já bem velhinha, passando dos 80 anos, devido a uma 256 forte anemia, em 14 de junho de 1895. Seguindo a tradição seu sepultamento deveria ocorrer no dia seguinte, porém, de acordo com registros da época, sua aparência não apresentava os sinais da morte, pondo em dúvida até mesmo o médico da cidade, o Dr. Manoel Joaquim Pereira de Magalhães, que 257 optou por aguardar algumas horas a mais. Ocorreu porém que o médico foi chamado para um atendimento urgente numa cidade próxima, onde ficou retido por causa do mau tempo. Diante disto, o corpo de Nhá Chica ficou exposto por mais três dias, sem, no entanto, apresentar sinais de decomposição. Contrariando as expectativas, conforme os depoimentos registrados na obra de Monsenhor Lefort (1995), o que se espalhou pela nave da capela onde era velado o corpo de 258 Nhá Chica foi um agradável perfume de rosas. A demora no sepultamento é citada por vários entrevistados, mesmo porque, a festa que acontece todos os anos, entre os dias 14 e 18 de junho, rememoram a morte, o velório e o sepultamento de Nhá Chica. Os registros médicos e da Igreja comprovam a demora no sepultamento, os motivos são repetidos oralmente e sofrem algumas variações. Em alguns casos ela não foi enterrada porque o povo queria se despedir dela, para outros foi o médico que assim resolveu a fim de ter certeza do óbito. Depois de “mais de três dias sendo velada, a família de Nhá Chica não agüentava mais 259 de cansaço e realizou seu enterro, de manhã, sem que ninguém visse.” Atendendo ao 260 pedido expresso em seu testamento , Nhá Chica foi sepultada no interior da Capela de Nª Sr.ª. da Conceição, local que se transformou em centro de devoção. A morte de Nhá Chica não a afastou do povo, ela continuou cuidando dos necessitados e de todos que a ela recorriam. Em alguns casos aparecendo para as pessoas para indicar soluções para seus problemas. Como narrado no depoimento seguinte: 256 De acordo com o registro no Livro de Óbitos da Matriz, exposto no Memorial de Nhá Chica, inaugurado em 08 de dezembro de 2005, sobre o qual volto a falar. 257 CANDORIN, - e (org.), Nhá Chica, a Pérola de Baependi, p. 80, 2004; Mons. José do Patrocínio LEFORT. Francisca de Paula de Jesus Isabel – Nhá Chica, pp.65-66, 1995. 258 Este fenômeno é denominado ‘osmogenesia’ que etimologicamente designa o ato de exalar perfumes ou odores, provindos de corpos vivos ou falecidos. O perfume de rosas seria típico em velórios de pessoas ‘piedosas’, traços de santidade. Registrado no velório de Santa Edwiges, Santa Rita de Cássia, São João da Cruz, dentre outros. Ver Mons. José do Patrocínio LEFORT. Francisca de Paula de Jesus Isabel – Nhá Chica, p.111, 1995. 259 Depoimento Sr.ª. Maria Evangelina, 2005. Interessante lembrar que não há registros de parentes de Nhá Chica que tenham sobrevivido a ela. A mãe já havia morrido há muito e o único irmão também, este sem deixar filhos. 260 O testamento de Nhá Chica está atualmente sob a guarda da Associação Beneficente Nhá Chica, em Baependi. 155 Moro em Niterói e nunca tinha vindo a Baependi, mas, meu filho estava muito doente e mesmo no hospital não conseguia melhoras. Numa noite, saí para caminhar e uma senhora apareceu e me disse para ter fé que tudo ia se acertar. Primeiro eu achei estranho porque nunca tinha visto ela antes, parecia mesmo uma mendiga. Depois percebi que ela era a Nhá Chica, a partir daí tive 261 certeza que o Miguel ia ficar bom e vim agradecer. Histórias como essa que narram aparições de Nhá Chica são bem comuns entre os 262 devotos. Muitas estão registradas nos livros de registro de graças , que ficam no Santuário de Nª Sr.ª. da Conceição, em Baependi. Outras são publicadas no Jornal de Nhá Chica, como o caso de Francisca Isabel, narrado por ela: Eu era uma criança de mais ou menos um ano e meio. Como mamãe vivia atarefada com os meninos, escola e afazeres da roça, eu ficava aos cuidados de uma ajudante – que sabendo que eu gostava de milho verde, assava (...) e me dava de comer. Segundo mamãe, esse milho mal assado, meio cru, provocou mais tarde um desarranjo intestinal que foi evoluindo para uma diarréia que não parava. (...) a noite eu já estava desidratando. Quando meu pai chegou minha mãe foi correndo contar o problema, falando de procurar um médico. Meu pai cansado e nervoso, disse não ser rico para ir ao médico e que devia tratar com chá e ervas da horta. E minha mãe, cansada, não sabe dizer se adormeceu e sonhou, mas viu no quarto uma senhora de idade, com um pano na cabeça que dizia: Pede prá ele amanhã passar na farmácia do seu Nequinho em Caxambu, explicar como a Belinha está e pedir para ele fazer uma poção para ela. (...) Meu pai concordou (...) o remédio chegou, após algumas colheradas, o 263 problema foi passando. Entre os devotos que encontrei em Baependi vários estavam lá agradecendo ou fazendo pedidos. Em sua maior parte os pedidos são pela recuperação da saúde ou superação de dificuldades e proteção das relações familiares e profissionais. A senhora Maria Luiza é artesã, cuida da Capela de Nhá Chica, em São Lourenço, tem muitas histórias para contar sobre os milagres de Nhá Chica. Em suas palavras, “Nhá Chica é muito poderosa, esses dias mesmo uma senhora veio agradecer um milagre. Ela foi curada de 264 câncer.” Nhá Chica já é considerada Serva de Deus pela Igreja. Este é considerado o primeiro passo para o reconhecimento oficial de sua santidade. O próximo passo seria a beatificação, 261 Depoimento Adilan de Morais, 2006. 262 O primeiro livro de registro de graças foi ‘aberto’ em 1937, até o início de 2006 havia o registro de 16.158 graças alcançadas. 263 Relato apresentado ao Jornal Nhá Chica – Notícias do Santuário, novembro de 2007, por Francisca Isabel, Concurso Minha História com Nhá Chica. É digno de nota o fato de que a devota tem o mesmo nome de Nhá Chica, Isabel Francisca, algo bem comum na região. Bem como a nominação de estabelecimentos comerciais, por exemplo, a pousada em que me hospedei era ‘Pousada Nhá Chica’, tomei café na ‘Padaria Nhá Chica’, havendo ainda sorveteria, posto de gasolina, armarinhos e pequenos restaurantes, denominados ‘Nhá Chica’. 264 Depoimento Sr.ª. Maria Luiza Rodrigues, 2005. 156 265 cujo pedido e processo já está em andamento desde 1993. Havia muita expectativa de que esta beatificação fosse anunciada durante a visita do Papa Bento XVI ao Brasil, para a canonização de Frei Galvão, em 2007, o que não se confirmou. Um dos milagres de Nhá Chica foi selecionado pelo Tribunal Eclesiástico e pela Comissão Histórica pela causa de Beatificação de Nhá Chica, para análise dos peritos médicos do Vaticano e já foi aceito. Trata-se do milagre da cura da professora Ana Lúcia Meirelles. Estive com ela no Santuário em Baependi, quando, muito simpática, contou-me sobre o milagre com que foi agraciada. Calma, de voz suave, muito sorridente, ela é procurada o tempo todo por algum devoto que quer conhecê-la, ser fotografado ao lado dela, pela imprensa, e por pesquisadores. É mesmo um ícone no caso da santificação de Nhá Chica, sendo vista como uma prova concreta e reconhecida publicamente desta santidade. Enquanto conversávamos muitas pessoas se aproximaram e queriam tocá-la, como se fosse um elo com Nhá Chica, como se a representasse ou tivesse um canal aberto para contato com ela. Muitas destas pessoas diziam a ela o que esperavam de Nhá Chica, para que ela (Ana Lúcia) intercedesse por eles. As irmãs franciscanas que cuidam do Santuário e da Associação Beneficente Nhá Chica, também atuantes na organização da festa de Nhá Chica que ocorre em junho, sabem desse papel desempenhado pela Ana Lúcia. Pude perceber isto diante da aflição delas com o atraso de Ana Lúcia no dia da missa campal em 2005. Como eu a aguardava num espaço mais reservado, ouvi e vi a inquietação das irmãs. Imaginei que Ana Lúcia tivesse alguma função muito importante na festa, mas não passava por minha cabeça que seria apenas estar lá, a simples presença dela era o indispensável para as organizadoras. Em relação ao milagre, Ana Lúcia diz que desde 1995, quando ele ocorreu, sua vida mudou por completo, ela nem sabe mais quantas entrevistas já deu. Mas, com a sua já mencionada calma e simpatia, contou que tinha um problema congênito no coração, que fazia com que o sangue tomasse um caminho errado quando saía do coração, causando hipertensão pulmonar. Quando tinha 50 anos, foi acometida por uma pressão pulmonar altíssima e os médicos que a acompanhavam decidiram por uma cirurgia, que era muito arriscada. No dia marcado para a cirurgia ela teve muita febre e a cirurgia precisou ser adiada. Ela sempre teve muita fé em Nhá Chica e rezava há muito para que Ela a protegesse. Para realização da cirurgia, em 265 Sobre os processos de canonizações católicas, ver anexo 1. 157 outra data, seriam necessários novos exames e a Prof. Ana Lúcia demorou meses para fazê- los. Segundo ela, porque estava se sentindo muito bem: É que eu estava me sentindo bem, não tinha dúvida de que Nhá Chica iria cuidar de mim. Quando eu fiz um novo exame, que foi marcado em Belo Horizonte, seis meses depois da data que seria a operação, era uma sexta-feira, às três da tarde. Hora e dia que Nhá Chica costumava fazer suas orações para Nossa Senhora. Aí eu fui e o exame que costumava demorar cerca de meia hora, levou mais de duas horas para ficar pronto. Eu achei que tinha piorado, fiquei com muito medo. Para minha surpresa quando os médicos voltaram me perguntaram onde eu tinha me operado. É que meu problema não existia mais. Eles achavam que eu tinha sido operada, e muito bem operada, eu estava curada. Saí correndo, gritando pelos corredores que minha Santinha tinha me curado... [Dona Ana faz uma pausa para conter sua emoção] (...) Entrei na primeira Igreja e ajoelhei para rezar e agradecer a ela pela minha vida. Nhá Chica é tudo pra mim, eu nem tenho palavras, o que puder fazer para ser seu instrumento, para que minha vida seja um testemunho de seus milagres, eu farei. Peço todos os dias que ela me dê mais esta graça – ficar viva 266 tempo o bastante para ver sua beatificação. Registrado nos livros de graças da Associação Beneficente Nhá Chica encontramos vários depoimentos. Outro que chama a atenção foi feito por um técnico agrícola do Paraná, J. W., de Serranópolis do Iguaçu. Quando tinha 23 anos ele retirou um melanoma maligno na altura das têmporas, mas o câncer já havia se espalhado pela região do pescoço. Depois da cirurgia os médicos disseram que ele ficaria sem falar e perderia os movimentos dos braços. Ele não conhecia a história de Nhá Chica, mas, tinha uma relíquia dela que havia ganhado de um amigo. Pediu então: “Nhá Chica eu não te conheço direito, mas me prometa me dê um sinal de que você vai me ajudar”. Este registro foi feito em 2006, ele está casado e desde que foi curado, segundo o registro há mais de cinco anos, não ficando nenhuma sequela da doença, viaja até Baependi para agradecer pela graça alcançada. Neste mesmo ano, em setembro, foi registrada no livro de graças a história de I. M., uma menina que aos cinco anos havia ficado cega em virtude de um tumor no cérebro. Os médicos atestaram que mesmo se ela fosse operada não recuperaria a visão. Depois de um ano sem enxergar, I. M. foi curada sem uma explicação médica. A avó da menina, que hoje mora no Rio de Janeiro, morou muitos anos em Caxambu, cidade vizinha a Baependi, e sempre foi devota de Nhá Chica e a ela credita a cura da neta. 266 Depoimento Ana Lúcia Meirelles Leite, 2005. 158 Toda a família esteve em Baependi para agradecer a graça alcançada, viajando em um ônibus 267 com mais de 60 pessoas, todas devotas. Outros depoimentos também relatam milagres de Nhá Chica, alguns ligados a fatos mais corriqueiros. Este que destaco abaixo me foi relatado por uma avó que veio rezar pelo neto e fez questão de dar seu depoimento: Tenho um neto de 20 anos e ele entrou numa confusão, numa briga, e um outro rapaz se machucou muito. Aí chamaram a polícia pra ele. Eu tenho certeza que foi Nhá Chica que protegeu ele. Ele passou no meio de todo mundo e ninguém viu ele. Foi Nhá Chica que ajudou, a gente não tinha como fazer nada pra ele e foi uma briga né, ele nem tava errado, por isso tenho 268 certeza que foi ela que ajudou. As salas dos milagres, onde os ex-votos são depositados, também nos informam sobre as graças alcançadas por intermédio de Nhá Chica, de acordo com os devotos. Além dos agradecimentos pela cura de adultos e criança, há ainda agradecimentos pela aprovação em concursos, por conseguir entrar na faculdade, pela libertação do vício, pela interseção no nascimento de crianças – um destes está sendo analisado pela comissão da beatificação-, pelo retorno de pessoas ao lar – como um soldado que retornou dos campos de batalha, tendo participado da segunda guerra mundial-, pela felicidade matrimonial, pela proteção dada a vítimas de acidentes, entre outros. O poder de proteção de Nhá Chica exerce um papel singular na estrutura desta devoção. Ela é reconhecida como atuante em todos os momentos da vida do devoto, agindo antes mesmo do protegido estar efetivamente em perigo, como no caso de algumas possíveis vítimas de acidentes, que se consideram salvas pela interseção de Nhá Chica e nem estiveram envolvidas diretamente nos mencionados acidentes. Quer dizer, em suas concepções, elas foram poupadas, sendo afastadas dos locais ou dos veículos por ocasião dos acidentes por graça de Nhá Chica. Como forma de exemplificar esta informação, cito a história contada por Patrícia da Rocha que se identifica como sendo uma sobrevivente e que encontrei no Santuário, agradecendo a Nhá Chica por sua vida. De acordo com sua narrativa ela estava de viagem marcada e desistiu na última hora: No dia de viajar acordei com muita vontade de ficar em casa. Ninguém acreditou que eu não fui, porque eu era a mais animada de todos. Alguma coisa me disse para não ir naquele dia. Depois do acidente, que o carro bateu na estrada e todo mundo que estava nele morreu, vi que não era a toa que não tinha 267 Foram anexados ao registro os documentos e diagnósticos médicos, atestando a ‘cura milagrosa’ de Isabel. 268 Depoimento Sr.ª. Marlene Joaquim Silva, 2006. Ela deixa claro que o neto não era o culpado, o que justificaria , a seus olhos, a ajuda de Nhá Chica. 159 ido. Foi aí que eu tive certeza que Nhá Chica tinha me salvado. Eu sou devota desde criança, rezo toda noite pra ela me proteger, foi ela que não deixou eu 269 ir. É como se Nhá Chica estivesse sempre de olho, cuidando e protegendo as pessoas de todos os males, chegando a antevê-los e afastar deles os seus protegidos. Existem ainda os devotos que acreditam na santidade de Nhá Chica por causa da proximidade que ela tinha com Nª Sr.ª. da Conceição, e por sua certeza de que todos podiam conseguir milagres, desde que tivessem fé. O Senhor Antônio Moreira é um desses. Encontrei-o logo após o fim de sua peregrinação em maio de 2007 e ele me disse: “-Já consegui muitas coisas que eu prefiro guardar para mim. Mas acredito em Nhá Chica porque ela defende a fé em Nossa Senhora. Defende que depende de si próprio, é só acreditar naquilo 270 que se quer e merece. Quem acredita consegue mesmo”. O exalar de perfume de rosas que, de acordo com as narrativas da época, marcou o velório de Nhá Chica, se fez presente novamente em 18 de junho de 1998 quando, atendendo 271 a necessidade do processo de beatificação, foi realizada a exumação dos restos mortais da Santa de Baependi, sendo trasladados do túmulo original para uma urna de mármore, também mantida dentro do Santuário de Nª Sr.ª. da Conceição, ponto frequente de orações. É de Dom Diamantino Prata de Carvalho, Bispo de Campanha/MG, realizado em 30 de julho de 1998 o seguinte depoimento: (...) no dia 18 de junho de 1998, ao entrar na Igreja de Nossa Senhora de Conceição de Nhá Chica para exumação dos restos mortais da Serva de Deus, senti a igreja impregnada de um perfume forte e suave. Perguntei à Irmã Célia B. Candorin se ela estava perfumada. Respondeu-me: Gosto de perfume, mas esse vem de lá, - apontando para o túmulo de Nhá Chica. Interroguei depois a Irmã Miriam (Supervisora da Casa), se ela tinha derramado perfume na igreja. Negou e declarou que vinha do túmulo da Serva de Deus. Também eu me rendi ao fato inédito que era notório a todas as pessoas presentes: os componentes do Tribunal, o Postulador da Causa alguns 272 sacerdotes, alguns fiéis presentes, os operários e o engenheiro. (...) A irmã Magda também fala deste exalar de perfume que teria acontecido no enterro e na exumação dos restos mortais de Nhá Chica. No entanto, embora muito destacado pelos 269 Patrícia da Rocha, 2005. 270 Depoimento do Sr. Antônio Moreira, 2007. 271 A exumação dos restos mortais de Nhá Chica aconteceu em 18 de junho de 1998 e envolveu um pequeno grupo que acompanhou todo o processo, entre padres, Dom Diamantino, as Irmãs Franciscanas, alguns devotos e o postulador da causa da beatificação, designado pelo Vaticano, o Pe. Paulo Lombardi. Depoimento Irmã Magda, 2006. 272 Declaração realizada logo após a exumação, registrada no Santuário e transcrita na obra de CANDORIN, - e (org.), Nhá Chica, a Pérola de Baependi, p. 91, 2004. 160 representantes eclesiásticos como sinal de santidade, durantes as conversas e nas celebrações, a questão do perfume exalado por Nhá Chica após sua morte e exumação não aparece muito nos relatos dos demais devotos entrevistados, nem nos questionários, como indicativo de sua santidade. Em verdade entre os sinais de santidade de Nhá Chica o mais citado é sua capacidade de promover curas, seguida pela a dedicação aos pobres, a intimidade/proximidade com Nª Sr.ª. da Conceição, a capacidade de proteção e a exemplaridade (especialmente por sua opção de vida simples, devotada à Sr.ª. da Conceição e aos pobres). As suas capacidades de levitar, fazer previsões e de exalar perfumes ocupam pequeno espaço na memória dos devotos. O gráfico abaixo representa o resultado da análise das declarações dos devotos, nele o item ‘outros’ representa as últimas características citadas. Gráfico 11 - Sinais de santidade em Nhá Chica 4% Capacidade de curar 5% Dedicação aos Pobres 16% 34% Intimidade c/Nª Senhora Proteção 18% Exemplaridade 23% Outros 4.3.2: Sobre os devotos e os lugares de honras à Santa Nhá Chica Nhá Chica, a Santa de Baependi, é cultuada durante todo o ano, por pessoas de várias regiões do país, e alguma de outros países. Os devotos chegam a Baependi integrando excursões em ônibus, em grupos ou sozinhas, a cavalo, de carro particular ou a pé. Entre os lugares mais visitados pelos devotos, na cidade de Baependi, está o Santuário de Nª Sra. da Conceição construído na Rua da Conceição 165, no mesmo lugar onde antes ficava a Capela construída por Nhá Chica e onde seu corpo está sepultado. Nhá Chica dedicou-se por 30 anos à construção da capela, esmolando promovendo atividades para levantar fundos para tal obra, que foi iniciada em 1865 e concluída pouco antes de sua morte. Depois de pronta a Capela foi doada por Nhá Chica à Paróquia de Nossa Senhora de Montserrat e, somente em maio de 1955, a Mitra Diocesana de Campanha fez a 161 doação da mesma para a Congregação das Irmãs Franciscanas do Senhor. A partir de então as Irmãs assumiram a direção da Capela, promovendo várias reformas e ampliações. (Candorin, 2004:56) Hoje o Santuário de Nª Sr.ª. da Conceição tem capacidade para acolher aproximadamente 500 pessoas, 300 sentadas e outras 200 em pé nos corredores. Por causa de suas dimensões, nos dias de maior frequência as missas são realizadas no pátio externo do Santuário. Falta-lhe ainda estrutura pra receber tanta gente quanto recebe. O que vem sendo sanado com realização de novas obras, como por exemplo, a pousada, construída em 2005, colocando a disposição dos visitantes banheiros, alojamentos e refeitório. Não é muito ampla e por isto é necessário fazer reservas antecipadamente para usufruir de suas dependências. Anexa ao Santuário, ao fundo, está a casa onde Nhá Chica viveu que é um local especial para os devotos fazerem suas orações. Esta construção já passou por reformas, mas apenas em sua estrutura física, tentando manter suas características originais. É composta por cozinha, sala e dois quartos, os quais foram transformados em sala dos milagres onde os ex- votos são abrigados. As escadarias do Santuário também precisam ser mencionadas como local de orações, principalmente após ser instalada nelas a imagem de Nhá Chica, em tamanho natural. Como parte integrante do Santuário, importante na divulgação da devoção a Nhá Chica, está a lojinha do Santuário, onde são vendidos artigos religiosos em geral e tantos outros relacionados a Nhá Chica: livros, imagens em gesso, fotos, cópias de orações, escapulários, medalhas, fitas e DVDs, CDs, revistas, relíquias - pedaços do véu que a cobria quando foi enterrada – recolhido por época da exumação, e outros objetos a ela associados. Na lojinha, são distribuídos panfletos sobre a história de Nhá Chica, com sua foto na capa, e no interior aparecem fotos da casa onde ela morou, as salas dos milagres, a capela que construiu, o túmulo, as dependências do orfanato (ABNC), e os objetos que são vendidos na loja. Nele encontramos ainda uma oração por sua beatificação, de onde transcrevo uma parte: Ó Pai, que mostrais a Bondade e a Sabedoria do Vosso Filho Jesus, naquelas pessoas que O procuram seguir, e que “ocultais as novidades do Reino aos sábios e inteligentes, e as revelais aos pequeninos”, nós Vos pedimos que a Igreja possa reconhecer oficialmente as virtudes de amor ao próximo, de fé profunda e de grande sabedoria de vida que concedestes à Vossa filha e 273 servidora Francisca de Paula de Jesus Isabel, Nhá Chica. 273 Oração pela Beatificação de Nhá Chica, autoria de Dom fr. Diamantino Prata de Carvalho, ofm, Bispo Diocesano de Campanha, Mg, 04/10/1998. 162 Existem outras preces dirigidas a Nhá Chica, pedindo sua proteção e intercessão, estas são publicadas no verso de alguns santinhos (fotografias) de Nhá Chica e vendidas na loja do Santuário. A que transcrevo a seguir é assinada por Cesmeira e destaca o papel maternal e protetor de Nhá Chica para os devotos: (...) Ó Mãe caridosa. Pedimos suas Bênçãos para os desvalidos. O seu consolo para os que sofrem, O seu perdão, para os que pecam. Nós a invocamos como refúgio dos pecadores Suplicamos o amparo para nossas famílias. Ajude-nos a resistir às tentações! Divina Mãe benevolente e misericordiosa! Agradecemos o que temos e o que somos. (...) Protege-nos contra todos os perigos e contra os algozes, Na certeza que um dia, a graça e a paz se estenderão a todos os seus filhos, e à humanidade. Entre as dependências do Santuário resta ainda citar o orfanato da Associação Beneficente Nhá Chica, que as Irmãs Franciscanas do Senhor administram desde 1955. Atualmente atendem mais de 100 crianças carentes, oferecendo educação, alimentação e acompanhamentos especializados. É um lugar de interesse dos devotos que enxergam nele a continuidade da obra de Nhá Chica em favor dos pobres. Há também o Memorial de Nhá Chica, fundado em 08 de dezembro de 2005. Nele estão apresentados, de forma organizada, objetos e fatos relacionados a ela e, claro, colabora para informar aos visitantes sobre quem foi Nhá Chica. A exposição foi organizada em cinco momentos que representam: A origem/nascimento de Nhá Chica, sua vida, as demonstrações de fé e as publicações sobre ela. A montagem permite ao visitante acompanhar visualmente a vida de Nhá Chica, através da observação dos objetos e documentos que pertenceram a ela. Algumas coisas não eram conhecidas dos devotos, até a inauguração do Memorial, como a cadeira e a sombrinha de Nhá Chica que aparecem na única foto existente dela. A associação do Santuário da Conceição com Nhá Chica é inevitável. Quase ninguém no lugar se refere àquele templo de outra maneira que não seja “Igreja de Nhá Chica”. Possivelmente o fato do túmulo de Nhá Chica estar abrigado no interior do Santuário tem grande responsabilidade nessa associação. É por causa dela, para vê-la, que a maioria das pessoas sobe a íngreme Rua da Conceição, até mesmo no dia dedicado à Virgem da Conceição, o dia 08 de dezembro. Neste dia a festa é para a Nossa Senhora, mas os romeiros 163 que chegam usam blusas com a foto de Nhá Chica, e carregam uma Bandeira/Estandarte com a estampa desta santa do povo. Figura 13 – Romeiros de Nhá Chica Fonte: Aproximei-me deles e conversei com um dos romeiros, o Sr. Paulo de Almeida. Ele vinha da cidade Heliodora, com mais 40 pessoas. Perguntei se eles vinham sempre à festa da Sr.ª. da Conceição, se era devoto, gostava da festa, enfim, queria que ele falasse sobre o que o movia até Baependi. Propositalmente não mencionei Nhá Chica, mas já havia reparado na roupa e na Bandeira que carregavam, mesmo assim me surpreendi quando ele me respondeu com a maior naturalidade: “-Sempre que é possível viajamos à Baependi para agradecer a Nhá 274 Chica.” A referência a Nhá Chica já era esperada. Imaginei que me dissesse que estava ali para homenagear a Senhora da Conceição como fizera Nhá Chica, como Ela pedira, e ensinara, mas, a indicação de que Nhá Chica era aquela a quem vinham agradecer naquele superou minhas expectativas. Estes depoimentos deixam claro que os romeiros estão ali naquela festa para agradecer à Nhá Chica. Muitos dos entrevistados sequer mencionaram Nossa Senhora da Conceição. A festa do dia 08 tem leiloeiro, festeiro, aos moldes das festas de santos bem tradicionais. Em depoimento sobre o trabalho realizado em 2007, o Presidente da Festa de 274 Depoimento Sr. Paulo de Almeida, 2007. 164 Nossa Senhora da Conceição, o senhor Francisco, afirma que “esta festa é uma tradição de muitos anos. Eu dirijo essa festa há pelo menos 20 anos. (...) fazemos tudo com muito prazer, 275 pois trabalhar para Nhá Chica você sente gratificado. Sente a alma leve (...).” Novamente os esforços empreendidos são devotados à Nhá Chica. Lembrar Nhá Chica nos festejos do dia 08 de dezembro não é prerrogativa apenas dos visitantes. Na capa do órgão de divulgação oficial da Associação Beneficente Nhá Chica consta a seguinte nota sobre a festa: “A Igreja de Nhá Chica ficou lotada para a missa festiva das 09 horas da manhã no dia de Nossa Senhora da Conceição. Certamente a Serva de Deus 276 se alegra em ver sua casa tão cheia de filhos.” Assim, embora construído para ser de Nª Sr.ª. da Conceição este templo tornou-se, após sua morte, a “Igreja de Nhá Chica”. Uma associação tão forte que acaba sendo assumida também por representantes eclesiásticos. Haja vista que os cartazes confeccionados pelas religiosas para anunciar a festa em homenagem a Nhá Chica, na indicação do local aparece o nome Santuário de Nossa Senhora da Conceição acompanhado pela referencia entre parênteses (Igreja de Nhá Chica), outras vezes já é mencionado como Santuário de Nhá Chica, como aparece no cartaz da festa de 2006. (ver anexo 4.1) 277 Uma assimilação que o pároco local cita, mas tenta amenizar, sempre que possível, em especial nas missas para os romeiros. A recepção dos romeiros quase sempre segue o mesmo ritual e ele diz: “Bem-vindos ao Santuário de Nª Sr.ª da Conceição, a Igreja de Nhá Chica, a nossa Nhá Chica, a serva de Deus, inteiramente devotada a Nª Senhora e aos pobres”. Percebe-se em sua fala um esforço singular, compreensível dada a sua posição institucional, em demarcar que aquele santuário é de direito da Nª Sr.ª da Conceição e, a referência feita a Nhá Chica deve ser fruto de sua dedicação, de seu trabalho em prol da devoção à Nossa Senhora. Procura-se frisar que o Santuário é também a “Igreja de Nhá Chica” porque representa um projeto da Nhá Chica, foi ela quem iniciou sua construção não para seu próprio louvor ou benefício, mas para honrar a Sr.ª da Conceição; ou ainda, é “Igreja de Nhá Chica” porque lá se encontram seus restos mortais, mas, a Santa para qual o Santuário é efetivamente devotado e a quem devem os fiéis prestar homenagens, é a Sr.ª da Conceição. Em meio aos comentários das leituras evangélicas o sacerdote volta a frisar que, reconhecendo o Santuário como da Sr.ª da Conceição, prestando-lhe o culto, os devotos de 275 Depoimento Sr. Francisco Joaquim, dezembro de 2007. 276 Jornal Nhá Chica – Notícias do Santuário, janeiro de 2007, p. 8. 277 Pe. Afonso Henrique Alves. 165 Nhá Chica estariam atendendo a vontade da própria Nhá Chica, que dedicou sua vida à devoção a Nossa Senhora. O túmulo de Nhá Chica é, dentro do Santuário, o local mais reverenciado pelos devotos. Não por acaso, na parede próxima ao túmulo da Santa Nhá Chica está um grande painel, onde aparece a mais divulgada de suas imagens. Nela Nhá Chica está em uma cadeira, apoiando-se em seu guarda-chuva e vestida como seu costume, com roupas longas e os cabelos cobertos por um véu. Ao lado da imagem, escrito em letras grandes e destacadas por purpurina prateada, li os seguintes dizeres: Salve Nhá Chica, a Serva de Deus. Nhá Chica não era Santa, em sua humildade nada atribuía a si mesma, dizia sempre: (...) É o Espírito Santo que me inspira, porque tenho fé viva (...) Ou é a Minha Sinhá que responde ou é o Espírito Santo que inspira. Mesmo acolhendo os romeiros, organizando a festa em homenagem a Nhá Chica, a postura oficial da Igreja é reverenciar Nhá Chica como Serva de Deus, enquanto aguardam os resultados do processo canônico de sua beatificação. Uma questão que não afeta a devoção do povo que visita o Santuário embora, muitos rezem por tal reconhecimento. Quanto aos devotos de Nhá Chica que vão ao Santuário, participam das missas, ouvem as recomendações do sacerdote, integram-se aos rituais realizados, e muitas vezes são também devotos de Nª Sr.ª da Conceição, eles não estabelecem distinções entre a Virgem da Conceição e Santa Nhá Chica, em relação à santidade. A propósito desta observação, um dos 278 devotos entrevistado se refere à Nhá Chica como “a Nossa Senhora da região” . Assim, Nhá Chica é a Serva de Deus, mas é também Santa de Baependi, a mães dos pobres, a Nossa Senhora. Observando o movimento dos devotos, ouvindo-os, percebe-se que não há nenhuma confusão, ou desvalorização de uma santa em detrimento da outra. De fato, as pessoas vão ao Santuário por devoção a Nhá Chica e se referem a ela como “Santa”. É para ela que fazem seus pedidos, em quem depositam sua confiança, a quem rendem homenagens, especialmente nos dias de peregrinação, e nos dias em que se comemora o aniversário de sua morte. No entanto, nota-se que há sempre muito respeito e devoção à Senhora da Conceição. Em boa medida, resultantes do carisma e da influência de Nhá Chica sobre os seus devotos. Há uma espécie de complementaridade entre uma devoção e outra, como se ao serem devotos 278 Expressão usada por um jovem de 24 anos, do grupo com quem fiz a peregrinação no ano de 2005. Ele se declara devoto de Nhá Chica, participa das peregrinações desde 2001, 01/05/2005. 166 de Nhá Chica os fiéis se sentissem conduzidos a ser devotos também de Nª Sr.ª da Conceição, sendo esta postura quase um pré-requisito do devoto de Nhá Chica, seguidor do seu exemplo. Não é de se estranhar, portanto, que um dos sinais de santidade de Nhá Chica realçado pelos devotos seja a intimidade com a Senhora da Conceição, como já demonstrado no gráfico Sinais de Santidade. Retomando a exposição acerca dos lugares de devoção, é preciso citar a Capela de Nhá Chica, localizada na cidade de São Lourenço, próxima a Baependi. Essa cidade tem também papel importante no desenvolvimento desta devoção, primeiro porque nela está a única Capela construída para Nhá Chica, segundo porque surgiu aí a ideia do Caminho de Nhá Chica, como um movimento organizado de peregrinos, o que explico posteriormente. São esses lugares citados os locais em que Nhá Chica é regularmente homenageada. Mas os devotos não se limitam a eles, rezando em suas casas, homenageando-a em altares virtuais, criando novos espaços e condições para expressar e vivenciar sua devoção. Os devotos não representam uma massa uniforme que se guia pelos mesmos sinais em suas crenças na santidade de Nhá Chica. Da mesma forma são também diversificados em relação à origem, gênero, formação escolar e idade, como demonstram os gráficos seguintes: Gráfico 12 - Proporção dos devotos de Nhá Chica em relação à idade De 0 a 20 anos 23% 10% De 21 a 30 anos 13% De 31 a 40 anos 23% De 41 a 50 anos 31% Acima de 51 anos 167 Gráfico 13 - Proporção dos devotos de Nhá Chica em relação ao gênero Mulheres 48% 52% Homens Gráfico 14 - Proporção dos devotos de Nhá Chica em relação à escolaridade 7% 1º grau incompleto 22% 1º grau completo 11% 2º grau incompleto 15% 2º grau completo 29% 3º grau incompleto 16% 3º grau completo A maioria dos devotos vem das cidades mineiras e dos demais Estados da região sudeste – São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Alguns chegam de Estados mais distantes – Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, Goiás, Sergipe, Ceará, Distrito Federal, etc. Outros, em menor quantidade, vêm de mais longe ainda, de outros países, entre eles Portugal, Peru, França, Inglaterra e Argentina. O gráfico seguinte, construído a partir da consulta do livro de registro de visitas no período entre maio de 2005 a maio de 2007, demonstra a amplitude do raio de ação exercido pela santidade de Nhá Chica. 168 Gráfico 15 - Proporção dos devotos em relação à origem 3% 15% Minas Gerais São Paulo 4% 45% Rio de Janeiro 12% Espírito Santo Outros Estados 21% Outros Países 4.3.3: Missas, orações, festas e peregrinações: rituais para a Santa de Baependi Embora o trânsito de devotos de Nhá Chica se dê durante todo o ano, existem épocas especiais em que Baependi recebe grande número de devotos e que são centrais em minhas observações. O primeiro momento de destaque no culto a Nhá Chica é representado pelos festejos que ocorrem na data comemorativa de seu falecimento, velório e sepultamento, incluindo os dias 14 a 18 de junho, época em que a cidade de Baependi fica em festa, e quando o maior número de devotos comparece para louvar Nhá Chica. A segunda data especial é o dia 01 de maio, quando acontecem, de forma mais concentrada, as peregrinações a Nhá Chica. Neste dia, em especial, muitos devotos chegam a Baependi a pé, após longas caminhadas, de até 72 km. No Santuário, são celebradas várias missas especiais para os peregrinos, e são distribuídas bênçãos aos devotos. Em média, o Santuário recebe 600 visitantes por mês, no entanto, durante os dias 14 a18 de junho este número chega a 5000 visitantes. No ano de 2005, apenas para a missa campal, no encerramento da festa, compareceram aproximadamente 2000 pessoas no 279 Santuário para assistir esta celebração. Embora não seja uma data, a princípio, voltada para culto a Nhá Chica, o dia 08 de dezembro também é data significativa para esta devoção e minha presença na cidade permitiu- me acesso a algumas informações interessantes, que expus no tópico anterior. Só para lembrar, esta é uma data especial em Baependi, pois é dia de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, a quem Nhá Chica era devotada. Nesta ocasião acontece uma grande festa, e 279 Estes números foram obtidos a partir da consulta aos arquivos e controles de visitantes registrados pelo Santuário. Estes números correspondem a uma estimativa, pois nem todos os romeiros se registram ou assinam o livro de visitas, e não há catracas para controle mais exato do número de visitantes. 169 muitos devotos comparecem à cidade e como já apresentei, estão ali para homenagear, em primeiro lugar, a Santa Nhá Chica. Além dos rituais citados há as missas semanais, as rezas do terço no túmulo, as orações na Casa de Nhá Chica e diante da imagem na escadaria do Santuário, as orações e novenas na Capela de Nhá Chica (em São Lourenço). Em primeiro lugar, optei por mencionar as missas dedicadas a Nhá Chica e aos romeiros que vêm prestar-lhe culto, agradecer pelas bênçãos e fazer os seus pedidos. Elas ocorrem semanalmente, sempre às quartas-feiras às 18h, e aos domingos às 9h e às 11h. Estas missas não diferem muito das outras celebradas no Santuário, a não ser pela menção a Nhá Chica e aos devotos na fala inicial do celebrante e da bênção especial aos “romeiros de Nhá Chica”, que acontecem ao final das missas. A assistência é sempre mais alta aos domingos, dia em que devotos de outras cidades têm mais facilidade para comparecer ao Santuário. Nestes dias, é comum não sobrar espaço nos bancos, e muitos devotos se mantêm de pé para assistir à celebração. Logo após o término das missas dominicais ocorre a bênção aos romeiros, como citei. É um momento muito emocionante, onde as pessoas extravasam suas dores, angústias e gratidão. Não raro ocorrem crises de choro entre os assistentes e muitos aproveitam para anunciar graças alcançadas. É no domingo também que acontece a reza do terço diante do túmulo de Nhá Chica. Dezenas de pessoas se juntam em orações. Muitas entre estas, dizem que rezam pela beatificação de Nhá Chica, para que ela seja elevada aos altares da Igreja, “já que ela está no 280 altar dos corações de todos”. De acordo com a Sr.ª. Terezinha, quem sempre inicia a oração do terço, cada um pede o que for de sua necessidade, mas todos rezam pela beatificação porque “queremos ver a nossa santinha no altar. Sabemos que em vida através de suas orações e caridade ela fez muito por nosso povo e continua a fazer ainda mais, intercedendo junto a Nossa Senhora por seus 281 filhos”. A reza do terço é um momento que já se tornou tradição em Baependi, a Sr.ª. Terezinha já ‘puxa o terço’ faz treze anos, segundo conta, ajudando a firmar e manter este ritual. Por reconhecer Nhá Chica como santa, as pessoas que frequentam o Santuário têm o seu túmulo como objeto central de atenção. Antes de irem até o altar principal do Santuário 280 Depoimento Sandra Moreira, da cidade de Ubatuba, SP, 2006. 281 Depoimento Sr.ª. Terezinha Serra, 2007. 170 onde está a imagem de Nª Sr.ª da Conceição, isto quando vão até ela, prostram-se diante do túmulo de Nhá Chica e, ali fazem suas orações, agradecimentos, pedidos e depositam flores, 282 pacote de velas apagadas e outras pequenas oferendas (ver anexo 4.5). Outro lugar também eleito pelos devotos para realizar suas orações são as dependências da Casa de Nhá Chica, diante dos seus pertences, especialmente imagem da Virgem da Conceição – uma atenção que não é dispensada para a imagem do altar do Santuário. As orações são mais individuais e silenciosas, bem intimistas. Na Casa de Nhá Chica ficam as salas dos ex-votos, são duas. Numa delas ficam flores, placas de agradecimentos, fotos, cartas e livros; na outra, representações de membros do corpo esculpidos em cera ou gesso e instrumentos de uso pessoal que os devotos deixam para lembrar as graças que alcançaram, tais como bengalas e muletas, além de velas, algumas enormes, e objetos que são associados a Nhá Chica, como guarda-chuvas, além de pinturas e esculturas desta santa (anexo 4.6). Apesar de haver lugares específicos para alocar os objetos que são trazidos para Nhá Chica, muitos devotos optam por deixá-los em lugares inusitados. Um desses lugares é o interior do fogão da casa (anexo 4.3). Trata-se de um fogão a lenha, e os objetos são colocados onde ficaria o fogo, ou sobre o fogão, no caso de flores. Este fogão já precisou ser reformado e hoje tem sempre alguém vigiando o cômodo onde ele fica, porque os devotos costumavam quebrar e carregar pedacinhos dele como relíquia. A Casa de Nhá Chica fica aberta aos visitantes todos os dias, das 08 às 18 horas. Quando não há muita gente é possível entrar em todos os cômodos, fotografar e o zelador, o Sr. José, tem tempo para conversar mais calmamente. Foi ele quem explicou como funciona a Casa, porque a vigilância da cozinha e o que fica em cada um dos cômodos. Disse ainda que é preciso vigiar para ninguém acender vela dentro da Casa, e que “as pessoas fazem estas coisas sem pensar, então a gente tem que ter cuidado, aqui não é lugar para colocar velas, só pode lá 283 no Santuário, lá dentro tem lugar”. Explicou-me também que nos dias de festa e peregrinações a “Casinha” fica aberta, mas os cômodos ficam protegidos por grades para 284 preservação do acervo. 282 Esta questão das vela apagadas é bem interessante. O lugar para acender velas fica próximo à imagem de Nª Sr.ª. da Conceição, então os devotos preferem deixa-las no túmulo de Nhá Chica, ainda que apagadas, e , às vezes dentro dos pacotes, já que as velas são para Nhá Chica. (Ver anexo 4.5) 283 Depoimento do Sr. José, um dos funcionários que cuidam da Casa de Nhá Chica, 2006. 284 Em junho de 2005 eu havia estado na cidade e não consegui entrar nas salas. O número de visitantes era enorme e mal consegui chegar perto das grades. Nesta ocasião pedi ao zelador, não sei mais se era o Sr. José, para abrir só um pouquinho para eu fotografar, ele não cedeu a meu pedido, e disse que antes ficava aberto, mas as pessoas são muitas e eles não conseguiam controlar o acesso aos objetos expostos. Segundo esse zelador nos dias de festa eles nem ficam com as chaves, são as Irmãs que guardam tudo. 171 As orações e oferendas realizadas nas escadarias, diante da grande escultura de Nhá Chica representada em tamanho natural, sentada e com o seu guarda-chuva, são ocorrências rotineiras. Por ser tão significativa cabe falarmos um pouco sobre esta imagem. Assim como a organização do Memorial de Nhá Chica a confecção de uma estátua que a representasse faz parte do projeto de divulgação da devoção, sendo ações importantes e voltadas para o sucesso da sua beatificação. Os dois projetos foram desenvolvidos simultaneamente e inaugurados em 2005, época em que iniciei minhas pesquisas de campo. A estátua de Nhá Chica foi construída pelo artista plástico Hildebrando Lima e foi centro de uma grande pesquisa e longas discussões, isto porque raramente os santos são representados de outra forma que não seja de pé, as raras exceções incluem Nossa Senhora de Montserrat e SantAna Mestra. No caso de Nhá Chica, a imagem divulgada, e a forma como os devotos acostumaram a vê-la, é na posição sentada, como aparece na foto reproduzida no livro Caxambu (1894), escrito pelo médico Monat, quem retratou várias personalidades da região na época, incluindo Nhá Chica. (Monat,1894) Além da imagem retratada no livro de Monat não se sabe da existência de nenhuma outra fotografia de Nhá Chica, então esta era a única referencia visual que se tinha dela e esta deveria ser, portanto, modelo para a escultura. Figura 14 – Reprodução da mais antiga fotografia de Nhá Chica Fonte: Santinhos distribuidos na Igreja de “Nhá Chica”, 2005 172 A imagem do santo tem grande importância, não só para os devotos como para o reconhecimento oficial das santidades. Para o processo de beatificação era preciso unificar a imagem de Nhá Chica e aplicá-lo em todas as peças (medalhas, livros, orações, cartazes, e outros). Por isto se tornou importante para a Comissão Histórica de Nhá Chica conseguir localizar a foto original. Para surpresa dos envolvidos na busca pela foto, ela foi encontrada entre vários outros documentos sobre Nhá Chica guardados num vão da parede, um tipo rústico de sótão, rente ao teto da Casinha de Nhá Chica. Em verdade depois de ter sido guardada por quatro gerações de uma mesma família, a foto havia sido doada à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, pela senhora Marlene Giglio em 1981. Somente 16 anos depois da doação é que ela foi descoberta, isto porque não havia na Associação uma catalogação dos materiais relacionados à Nhá 285 Chica, que estavam sob seus cuidados. Encontrada a foto, manteve-se a discussão sobre a estátua de Nhá Chica. As opiniões sobre como ela deveria ser representada continuavam divergentes por isto, Zezeth 286 Nicoliello , Presidente da Comissão Histórica Pela Causa de Beatificação de Nhá Chica, pediu ajuda aos especialistas do IEPHA – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, para uma decisão definitiva. Daí veio a informação de que a formação da iconografia de um santo é um processo lento e gradativo que deve ter como agentes essenciais para a sua consolidação a fé e o 287 devocionário popular e, “nunca pode ser imposta.” Diante dessa resposta, atendendo também à tendência dos envolvidos no processo e o desejo dos devotos, optou-se por 288 reproduzir a imagem de Nhá Chica sentada, exatamente como aparece na foto. 285 Esta história sobre a foto me foi contada por Ana Lúcia Meirelles (Senhora que teve ‘Milagre reconhecido’), em 2005. Posteriormente foi publicada no Jornal Nhá Chica – Notícias do Santuário, setembro de 2006. 286 Maria José Turri Nicoliello. 287 Correspondência enviada à Associação Beneficente Nhá Chica, pela Historiadora, especialista em Iconografia Religiosa, Silvana Cançado Trindade, em 2003. Arquivo da Associação Beneficente Nhá Chica. 288 Depoimento Zezeth Nicoliello (Maria José Turri Nicoliello), 2006. Esta história sobre a construção e inauguração da escultura de Nhá Chica pode ser lida no Jornal Nhá Chica – Notícias do Santuário, edição de outubro de 2006. 173 Figura 15 – Imagem de Nhá Chica nas escadarias da Igreja Fonte: Foto realizada por mim durante pesquisas, 2005 A obra foi inaugurada em junho de 2005, durante as comemorações do 110º aniversário de morte de Nhá Chica. Para que ela fosse instalada foi necessário que doze homens se unissem com muito trabalho e força. Ela está localizada na escadaria em frente ao Santuário, na metade dos vários degraus. Houve uma grande festa, acompanhada de orações, queima de fogos e muitas palmas da multidão que acompanhou a missa do domingo, em 13 de junho. A imagem de Nhá Chica é mesmo uma escultura que impressiona pelo tamanho e pelos detalhes do rosto e das vestes. Tornou-se rapidamente mais um local de demonstração de devoção. Diante dela muitos se emocionam, choram, rezam e depositam flores. A necessidade de tocá-la é visível e, quase todo o tempo em que estive observando-a, várias mãos deslizaram sobre ela, entre afagos e tentativa de abraços dos devotos. Devido às suas proporções é comum que alguns pais coloquem seus filhos nos braços de Nhá Chica, num ritual que sugere a busca pela proteção e bênção para as crianças. 174 289 Continuando a narrativa sobre os rituais para Nhá Chica, foi com a Irmã Magda que consegui algumas informações sobre a organização da Festa que acontece nos meses de junho, aniversário de morte de Nhá Chica. Segundo ela é um momento para refletirmos sobre o importante papel de Nhá Chica como “mulher de Deus” e suas lições para todos nós. É o momento em que as pessoas se reúnem para rezar por ela, agradecer pela intercessão junto a Nossa Senhora da Conceição e organizar estudos, ações e orações pela beatificação de Nhá Chica. Por isto mesmo, nestes dias acontecem os maiores festejos religiosos da cidade de 290 Baependi, conforme a fala de um devoto, a cidade se transforma “num mar de gente”. A partir deste encontro com a Irmã, soube que elas organizam a festa do mês de junho, um trabalho que iniciam meses antes. Para a divulgação são confeccionados mais de 100 cartazes para serem distribuídos na região, enviados para outras dioceses. Correspondências do tipo mala direta são enviadas aos chefes de romarias, cadastrados no Santuário, além da divulgação em jornais da região e no jornal de Nhá Chica, através de correspondência eletrônica e do site de Nhá Chica. Acompanhei as festividades em junho de 2005 e 2006. Em 2005 o grande marco da festa foi a inauguração da estátua de Nhá Chica, citada anteriormente. Em 2006, foram as atividades do 2º Encontro de Estudos sobre Nhá Chica – Mulher de Deus e do povo no 291 contexto da História. As Irmãs Franciscanas são responsáveis por toda organização da festa de junho, em relação ao que ocorre nos limites do Santuário e que contam com a participação eclesiástica. A programação consiste em missas, ladainhas, procissões e outros atos de cunho religioso. Entre as atividades realizadas neste período, as mais concorridas são a Missa e Bênção dos Enfermos, quando todos que assim desejarem, são ungidos por óleos bentos. A procura é enorme. Outro momento é a vigília da morte de Nhá Chica, que é encerrada por uma longa e 292 bela queima de fogos. Nos dias de festa em junho a cidade acorda como repicar dos sinos bem cedinho. É uma época de muito frio, a região é muito fria, e mesmo assim as pessoas acordam cedo e muitas vão à Igreja de Nhá Chica antes de irem para o trabalho. Nestes dias a vida em 289 A Irmã Magda, da Ordem das Irmãs Franciscanas do Senhor, é atualmente a diretora a Associação Beneficente Nhá Chica. Neste momento indaguei sobre as crianças e o que elas aprendem sobre Nhá Chica. Em resposta soube que elas conhecem a história de Nhá Chica, sabem que estão ali sendo atendidas por que Nhá Chica assim deseja, “ela sempre se preocupou com os mais necessitados”. 290 Definição de um devoto, 36 anos, professor universitário, residente em São Lourenço, 01/05/2005. 291 Este encontro não é anual, é bem restrito quanto aos expositores – massivamente padres, irmãs, bispos e outros representantes clericais; visa divulgar a história de Nhá Chica e sua relação com a história da Igreja, mais especificamente a Igreja no Brasil e em Minas Gerais, e com a escravidão e os negros no Brasil. 292 Para verificar os tipos de atividades realizadas consulte o anexo 4.1, convite da festa de 2006. 175 Baependi se altera, passando a ser marcado pelo ritmo das atividades desenvolvidas em louvor a Nhá Chica, havendo celebrações durante todo o dia. No ano de 2006, quando a festa foi unida ao Encontro de Estudos sobre Nhá Chica, o movimento foi ainda maior, unindo pesquisadores, jornalistas, devotos e representantes do poder público municipal, além de membros da Igreja. O ponto alto deste encontro foi a conferencia proferida pelo presidente de honra do evento, Dom Serafim Cardeal Fernandes de Araújo. Mesmo sendo organizada sob o controle das Irmãs Franciscanas e contando com o apoio do poder público, esta festa é um acontecimento que extrapola os domínios da Igreja e a própria questão religiosa. Nestes dias acontecem eventos de pura diversão, organizados para atrair mais turistas do que devotos, ou devotos-turistas. Como o forró na praça, uma tradição tão antiga e forte que o calçamento da praça tem representações de casais dançando e uma placa anunciando que aquele é o salão do forró ao ar livre. A música é ouvida por quase toda a noite e as bebidas típicas, como o quentão, ajudam a “aquecer o corpo pra não congelar no 293 frio que faz em Baependi no mês de junho”. Além do forró, são comuns nesta época festas juninas, serenatas e, em toda parte externa da Igreja, na Rua da Conceição, aglomeram-se diferentes barracas de camelôs, com os mais diversos produtos. Encontramos desde artesanatos, objetos eletrônicos, roupas, comidas típicas de quermesses (cachorro-quente, canjica, churrasquinhos...) a artigos religiosos que remetem a Nhá Chica – neste caso exercendo uma concorrência aberta com a lojinha do Santuário. Numa tentativa de divulgar os seus produtos e diminuir tal concorrência, as mercadorias da lojinha são anunciadas no altar do Santuário durante as celebrações, lembrando-se sempre que a renda conseguida é revertida em obras na Associação Beneficente Nhá Chica, no Santuário e suas dependências, para benefício do próprio devoto e para divulgar Nhá Chica e sua obra. Em verdade, nem a igreja nem a prefeitura consegue delimitar as atividades particulares que são organizadas na cidade por ocasião da Festa de Nhá Chica. Ela é um produto cada vez mais atraente, que está sujeito a variadas apropriações e usos. É especialmente em nome do turismo, da divulgação da própria região do Sul de Minas, que é transformada em ícone para organização de eventos cada vez com maior frequência. 293 Fala de um senhor que mora em Baependi há anos, participa de algumas missas para Nhá Chica, mas não perde ‘mesmo’ a festa na praça. 176 O caso das peregrinações é um exemplo precioso desta apropriação e adequação, embora peregrinações e romarias a Baependi para festejar Nhá Chica existam desde quando 294 ela era viva , a organização de peregrinações coletivas, centralizadas em datas específicas, aos moldes dos caminhos espirituais contemporâneos, surgiu como uma iniciativa para fomentar o turismo na região do Sul de Minas, mais explicitamente na cidade de São Lourenço. Antes de expor minhas considerações sobre a peregrinação, preciso voltar-me para o lugar de maior concentração de devotos em São Lourenço, que é um símbolo da devoção à Nhá Chica, refiro-me à Capela de Nhá Chica, como já afirmado, o único templo conhecido, exclusivamente devotado a Ela. Figura 16 – Capela de Nhá Chica em São Lourenço-MG Fonte: Foto de minha autoria, produzida durante pesquisas, 2005 A Capela de Nhá Chica é uma obra do artista plástico Marco Aurélio Rodrigues. Ele iniciou sua construção em 1996, como forma de agradecer Nhá Chica pela graça de poder 295 viver da sua arte. A Capela se situa às margens do anel rodoviário de São Lourenço, está 294 Informações constantes nas obras que relatam a história de Nhá Chica apontam que sua fama de vidente, sua intimidade com Nossa Senhora e sua bondade era fato conhecido por toda a região, por isto mesmo, desde muito cedo se tornou comum a peregrinação à sua casa, para ouvir conselhos, pedir ajuda, ou para agradecê-la. Após a sua morte as romarias e peregrinações ficaram mais frequentes. Ver Dr. Henrique MONAT. Caxambu, 1894, Frei Jacinto de PALAZZOLO, A Pérola Escondida: Nhá Chica, a Serva de Deus, 1973. 295 O Senhor Marco Aurélio é membro da Ordem dos franciscanos Leigos de São Lourenço, dedica grande parte de seu tempo a divulgar a ‘santidade’ de Nhá Chica, cuida pessoalmente da capela e recebe os devotos que lá chegam orientando-os e narrando as histórias de milagres e virtudes de Nhá Chica. Foi um constante colaborador na realização desta pesquisa, fornecendo informações bastante valiosas, bem como se dispondo a acompanhar- me na peregrinação em 2005. Marco Aurélio morava no Rio de Janeiro até 1980, quando se mudou para São Lourenço, nesta época parou de pintar e passou a trabalhar como vendedor numa loja de artesanato. Às vezes desenhava algumas coisas e um dia um turista se interessou por um de seus desenhos e o comprou pelo preço que Marco Aurélio 177 sempre aberta, segundo seu construtor, e é um dos locais de onde saem os peregrinos de Nhá Chica em direção a Baependi, no mês de maio. É toda ornamentada por pedaços de azulejos e cerâmicas, possui pequena torre com sino, um pequeno altar central ao lado de uma fonte, de cuja torneira jorra água que se acredita ser milagrosa. Ao redor desta fonte estava cheio de copinhos plásticos, nas duas vezes em que visitei a capela. Figura 17 – Fonte Nhá Chica, localizada dentro da Capela em São Lourenço-MG Fonte: Foto de minha autoria, produzida durante pesquisas, 2005 De acordo com depoimento de Sr.ª. Maria Luiza, esposa do Marco Aurélio, muitas pessoas levam água em garrafinhas para casa, e várias já foram curadas após beber a água da 296 “fonte espiritual”, inclusive de câncer de medula, que seria um milagre bem recente. Temos aqui um elemento marcante da tradição religiosa ocidental, muito forte no cristianismo e ligado à ideia de purificação: - a água. Neste caso vista como instrumento de purificação diante da doença, para os que assim creem. Ela é fonte de energia espiritual, como bem realça o nome que a fonte recebeu Fonte Espiritual. sugeriu, sem questionar. Foi aí que ele resolveu investir na arte como carreira profissional. A partir de 1995, decidiu viver da venda de seus quadros e pediu a Nhá Chica que o ajudasse nesta tarefa. Diante do sucesso, considerou que devia a ela seu reconhecimento. Comprou um terreno e em 1996 começou a construir a capela para Nhá Chica. Atualmente ela é um dos pontos turísticos da cidade de São Lourenço, ponto de referencia para devotos de Nhá Chica. (Informações fornecidas pelo próprio Marco Aurélio, com quem realizei a Peregrinação de Nhá Chica em 2005, quando o conheci pessoalmente. Já havia sido informada sobre ele logo que comecei esta pesquisa, por pessoas de Baependi, contatei-o por telefone e nos encontramos em 2005). Marco Aurélio pinta basicamente imagens de Nhá Chica, do Padre Vítor (primeiro sacerdote negro ordenado pela Igreja católica brasileira, no início dos anos 1850, também cultuado no Sul de Minas) e de Lázaro de Freitas (um portador de hanseníase da região que, após falecer nos anos 1950, adquiriu fama de milagreiro), deixando clara sua opção pelas representações de santos do povo, embora às vezes os retrate junto com a imagem de Jesus Cristo e/ou Nossa Senhora da Conceição. São dele as únicas representações de Nhá Chica na posição de pé. 296 Segundo esta senhora o milagre da cura de um câncer teria ocorrido a aproximadamente um mês antes de minha visita em maio de 2005. 178 Localizada em um ponto elevado, a Capela é rodeada por caminhos sinuosos que nos levam da parte central da Capela às outras dependências que lhe são anexas, como o ateliê de Marco Aurélio. Estes caminhos são enfeitados com esculturas do artista, representações de 297 Nhá Chica, de pássaros e outros animais. Em seu depoimento Marco Aurélio me informou que a Capela foi abençoada na sua inauguração pelo Frei Luiz, e que foram realizadas duas missas ali, uma em 2000 e outra em 2001. Depois desta última o Frei Luiz foi transferido para o Rio de Janeiro, não se sabe bem o porquê e nenhum outro padre quis rezar lá. Atualmente não acontecem mais missas no local, mas ocorrem orações organizadas pelos devotos, novenas, inclusive as de Natal. A Igreja Católica não participa de nada, tudo é organizado pelos devotos de Nhá Chica. É de autoria dos devotos a oração distribuída e rezada na Capela, que remete aos milagres de Nhá Chica, sua relação com Nossa Senhora e capacidade de agir em favor de cada um, mediante sua necessidade. Dela destaco as seguintes passagens: Oração a Santa Nhá Chica (...) Nossa Senhora, seja bendita a minha casa, porque nela entrou esta oração de Nhá Chica. A serva de Deus, em nome de Maria, multiplicava laranjas e pode multiplicar a felicidade de minha casa. (...) por Maria Santíssima curava os doentes e pode curar as minhas enfermidades também. (...) em nome de Maria, alimentava os pobres e pode alimentar-me sempre na necessidade... Amém. Não somente pela existência da Capela, São Lourenço merece destaque na devoção a Nhá Chica. Desta cidade partem centenas de devotos todas as semanas para rezar diante de Nhá Chica, em Baependi. Além disto, foi em São Lourenço que surgiu a ideia de organizar a peregrinação a Nhá Chica, colaborando pra transformar uma tradição esporádica em evento regular e, relativamente, sistematizado, embora, a intenção primeira não fosse penas homenagear a Santa Nhá Chica. A ideia era realçar o percurso realizado por alguns devotos de forma esporádica, em geral como um meio de pagamento de promessas, destacando-o como um caminho que leva à santidade, ao encontro com Nhá Chica, ao mesmo tempo em que se revitalizava o turismo 297 Nhá Chica é muito associada a São Francisco, por isto aparece nos quadros e neste ‘jardim’ rodeada por animais e com roupas marrons. Uma associação presente na fala de conferencistas no 2º Encontro de estudos sobre Nhá Chica: “(...) levando em conta todas as diferenças de tempo e cultura, notamos muitas semelhanças entre a vida de São Francisco e a de Francisca de Paula de Jesus, nossa Nhá Chica.”, Pe. José Roberto Nogueira PEREIRA, Os movimentos religiosos: Beatos e Beatas do século XIX. Nhá Chica – Uma Leiga Extraordinária no Compromisso com os excluídos, p. 103, 2006. 179 298 local , uma atitude cada vez mais comum no âmbito dos municípios pequenos e médios. (Steil, 2003a:36) A primeira peregrinação foi organizada em 2000 e já está na sua oitava edição, tendo como trajeto o caminho que une São Lourenço a Baependi. O crescente interesse em participar de peregrinações e romarias a pé, fez com que novos grupos fossem organizados nos últimos anos. Um desses novos grupos reúne devotos de Três Corações, cidade que fica a 72 km de Baependi. Nesta romaria a pé os devotos saem de casa no dia 29 de abril e chegam ao Santuário de Baependi por volta das 10 horas do dia 1º de maio. A primeira Romaria a Pé – Peregrinos de Nhá Chica (Três Corações-Baependi), aconteceu em 2006, reunindo 57 romeiros. Na segunda edição, em 2007, o número de participantes subiu para 100 romeiros. A precisão quanto ao número de participantes é facilitada por todos usarem camisas iguais e, além disto, é uma romaria onde os participantes precisam se inscrever para participar (pagando taxas que, em 2007, foi de R$ 30,00, não 299 incluindo transporte de volta para a cidade de origem). Diferente do ocorrido em outras peregrinações, onde alguns peregrinos optam por percorrer o caminho sozinho, não encontrei nenhum romeiro solitário vindo de Três Corações. Em seus estudos sobre romarias e peregrinações, Steil (2003), indica que as peregrinações seriam jornadas longas de um lugar de origem a um centro sagrado. Estando associadas ao encontro com o outro, físico ou espiritual, o que é capaz de promover grandes transformações no peregrino, permitindo um retorno renovado ao seu cotidiano. A peregrinação pode ser também “busca mística de si”, “jornada de santificação que encontra seu ponto de chegada no reconhecimento de uma divindade que se manifesta no interior de cada devoto” (Steil, 2003a:30). Quanto às romarias, seriam deslocamentos mais curtos, que envolvem uma participação comunitária e combinam aspectos festivos e devocionais (Steil, 2003a:33). Suas considerações aproximam-se do que diz Sanchis (1983), que define as romarias como celebrações organizadas em torno da “memória de um santo”, onde o movimento dos envolvidos aponta para um lugar “tornado sagrado pela presença especial de um santo”. Comparadas à peregrinação, as romarias, para Sanchis, também são entendidas como possuidoras de um cunho mais comunitário, onde por vezes prevalece a autonomia da devoção tradicional popular a um determinado santo e, em outras, ocorre a complementação 298 Cf. Depoimento Sr. Raul, secretário de turismo de São Lourenço em 2005. 299 Informações conseguidas com o organizador da Romaria a pé, Sr. Heloizio, 2007. 180 com a autoridade institucional e clerical, que atuam no controle e oferecendo suporte para sua efetiva realização (Sanchis 1983:39-40). Seguindo esse raciocínio, haveria maior possibilidade de interferência da instituição religiosa nas romarias do que nas peregrinações. O que não ocorre no caso que investiguei. O que se percebe no caso das peregrinações a Nhá Chica é que, apesar de haver participação de vários seguimentos na organização e apoio aos peregrinos, até 2007, nenhum representante eclesiástico participou das decisões ou reuniões preparatórias. Em verdade, a única participação, que pode ser considerada como integração institucional religiosa às peregrinações são as missas realizadas no Santuário. Outro dado a se destacar em minhas pesquisas é que no caso da peregrinação e da romaria a pé, realizadas para homenagear Nhá Chica, as diferentes denominações de peregrinos e romeiros são produzidas pelos participantes nestes eventos. Particularmente, a partir da minha observação e das definições acima citadas, entendo as atividades realizadas nestes dois grupos como similares, localizando a diferença apenas na distancia percorrida pelos grupos das suas cidades de origem até Baependi, neste caso as diferenças nominativas parecem indicar mais um recurso utilizado para demarcar um evento em relação ao outro. Tanto a peregrinação, quanto a romaria a pé são rituais que acomodam diversos sentidos e práticas, refletindo a variedade de agentes que atuam em ambos. Somados aos já citados rituais de deslocamento, existem ainda os devotos de Nhá Chica que fazem uma peregrinação a Baependi no dia 08 de dezembro para homenageá-la, embora esta seja data da festa de Nossa Senhora da Conceição. O grupo que conheci viaja da cidade de Varginha a Baependi a cavalo. Em 2006 realizaram a 3ª Romaria a Cavalo, unido um grupo de 32 pessoas, incluindo homens, mulheres e crianças, que viajam dois dias até chegar a Baependi, o que não os desanima, nem mesmo as crianças que se divertem com a viagem e a visita ao Santuário. Segundo um dos participantes, “é sempre uma honra visitar 300 Nhá Chica e participar de sua festa” (grifo nosso). Dentre todas as peregrinações existentes, ousei participar apenas da primeira delas, a que sai de São Lourenço. Ainda assim temi não dar conta de todo o percurso que é de 33km. É sobre esta peregrinação que consegui mais informações e é sobre sua origem e transformações no decorrer do tempo que passo a falar. A ideia inicial de estruturar as peregrinações a Nhá Chica em um caminho com data e percurso predefinidos partiu do grupo responsável pelo movimento “Viva São Lourenço Viva”, uma iniciativa da Sociedade Civil Terra das Águas, organização não governamental 300 Sr. João Michelleto, 2006. 181 formada por membros da comunidade de São Lourenço preocupados em revitalizar o turismo na cidade. Nesta perspectiva a concepção inicial do Caminho Santo de Nhá Chica fazia parte de um projeto organizado para impulsionar o desenvolvimento da cidade, pautando-se na religiosidade já existente, uma atividade que foi re-significada, atendendo também a estes novos interesses. A primeira peregrinação no Caminho Santo de Nhá Chica aconteceu em 22 de outubro de 2000. Naquela data cerca de 300 pessoas realizaram o percurso que une São Lourenço a Baependi. A partir daquele ano a história das peregrinações de Nhá Chica foi reescrita, passando a contar com o apoio organizado das prefeituras das cidades de São Lourenço, Baependi, Soledade de Minas e Caxambu, que trabalharam num esquema intermunicipal de apoio aos peregrinos, bem como desenvolveram projetos para melhor aproveitamento do evento, explorando o seu aspecto turístico, buscando recursos e benefícios para suas respectivas cidades e para a região de modo mais amplo. O Caminho Santo de Nhá Chica, nome dado inicialmente à peregrinação transformou- se em um projeto turístico-religioso homologado pela Embratur já em 2000, constando no Roteiros da Fé Católica do Brasil, um projeto em que foram catalogados mais de 50 destinos religiosos do país. Segundo os levantamentos da Embratur, 15 milhão de pessoas se deslocam anualmente no país por motivos religiosos, movimentando, no mínimo, R$ 6 bilhões por 301 ano. Comparando as principais festas religiosas brasileiras e os respectivos pontos turísticos entre si, Vitarelli (2000), ressalta o caso de Minas Gerais, afirmando que “(...) é especificamente em Minas Gerais, onde se comemoram datas religiosas como a Semana Santa, Corpus Christi, os jubileus, as festas de padroeiros e demais santos, que o turismo religioso pode conseguir um avanço condizente com uma de suas vocações” posto que, Minas Gerais, além de ser o Estado onde se concentra o maior número de católicos, possui uma 302 grande riqueza em manifestações religiosas. 301 Essas pessoas e esse dinheiro têm alguns destinos conhecidos. Em Belém, no Pará, os quinze dias da festa do Círio de Nazaré reúnem anualmente 1,5 milhões de pessoas. Aparecida, em São Paulo, recebe nada menos que 7 milhões de pessoas todos os anos. Em Juazeiro do Norte, Ceará, o Padre Cícero continua arrastando multidões. Em entrevista ao Jornal do Brasil, o Padre Murilo Sá Barreto afirma que não é raro uma missa reunir 15 mil devotos de Padre Cícero, no interior do Ceará ou de Pernambuco. (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10 de set. de 2000, Caderno de Turismo, p. 8). 302 De acordo com Vitarelli (1997), podemos descrever, superficialmente, um mapa destas manifestações religiosas em Minas Gerais, expondo-o assim: “Ao Norte encontramos uma forte presença de rezadeiras, curandeiros, crenças em milagres, às vezes atribuídos a Nossa Senhora e demais santos; - Ao Leste, “romeiros fazem penitência, carregando pedras na cabeça, pedindo chuva”; - No Triângulo, a presença do médium Chico Xavier encarna a expressão máxima do Espiritismo; - Na Zona da Mata, “a aparição de santas movimenta multidões”; - No Sul, encontram-se representadas várias crenças e dois ‘santos populares’ são indicados para 182 A mudança do dia da peregrinação para o dia 1º de maio foi feita para aproveitar o feriado, e isto ocasionou um aumento imediato no número de participantes, saltando dos 300 303 do primeiro ano de sua realização, para 500 peregrinos na segunda edição, em 2001. E o número de participantes aumentou ainda mais, passando para 800 peregrinos em 2002, na terceira grande caminhada, quando O Caminho Santo de Nhá Chica passou a receber apoio financeiro da Embratur e de outro patrocinador do setor privado, a Faculdade Santa Marta, através do curso de Turismo e Hotelaria, que iniciou seu apoio à organização da peregrinação, visando a profissionalização do evento. A peregrinação começou a contar com o apoio logístico da Faculdade principalmente através da ação dos seus alunos, que desenvolveram projetos operacionais e ainda, passaram a realizar pesquisas, para identificar, 304 entre outras coisas, o perfil dos peregrinos. O número de participantes continuou crescendo e em 2004 chegou a mais de 1000 peregrinos. Em 2005, na sexta edição da peregrinação, reuniram-se cerca de 1500 pessoas na 305 caminhada. Esta peregrinação tem como ponto inicial a cidade de São Lourenço, dividindo-se em vários grupos. Uns partem da Matriz de São Lourenço entre 5 e 6 horas da manhã, após receberem a benção do padre; outros se reúnem na praça da cidade e outros partem da Capela de Nhá Chica. Diante do que pude perceber a escolha por um ou outro ponto de saída dos peregrinos não tem um motivo mais específico, os devotos optam por se reunirem nos lugares que melhor lhe convierem, alguns se esforçam por sair da capela de Nhá Chica porque a homenagem da caminhada é para ela. Não importando de onde saiam o destino dos peregrinos 306 é o Santuário de Nª Sr.ª da Conceição, na cidade de Baependi. O ano de 2005 trouxe muitas novidades para os peregrinos. Uma delas de grande importância para a região, sob o ponto de vista do desenvolvimento do turismo, tratando-se da inclusão do Caminho Santo de Nhá Chica na rota da Estrada Real. A partir de então, passou a chamar-se Peregrinação de Nhá Chica: O Caminho da Fé na Estrada Real. O termo Estrada Real se refere aos caminhos trilhados pelos colonizadores a partir da descoberta do ouro em Minas Gerais, utilizados para seu transporte e escoamento até os beatificação - Nhá Chica e Padre Victor. F. VITARELLI, Turismo Religioso - Jubileu do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, p. 25, 1997. 303 Informações obtidas junto à secretaria da cultura de São Lourenço, em 2005. 304 Em 2003 a Embratur destinou R$ 9.000,00 para custear a produção da logomarca do evento, do certificado do peregrino, do guia da peregrinação e o aluguel de carro para dar suporte, além de água e camisetas distribuídas aos participantes. Cf. Erick Carvalho PINTO, Terras Bentas por Nhá Chica: Um Estudo de Caso de Turismo Religioso, p. 70, 2002. 305 Pesquisa realizada pelos alunos de Turismo e Hotelaria da Faculdade Santa Marta, informação disponível no endereço . 306 Depoimento Sr. Raul, secretário turismo de São Lourenço, no ano de 2005. 183 portos marítimos no Rio de Janeiro. A Estrada Real abrange dezenas de municípios mineiros e está dividida em três setores principais: Caminho Velho - Liga Parati a Ouro Preto; Caminho Novo - Liga o Rio de Janeiro a Ouro Preto; Rota dos Diamantes - Liga Ouro Preto a Diamantina (ver mapa nos anexos). Iniciado em julho de 1999, pelo Senac Minas, o Projeto 307 Estrada Real é um marco na exploração do potencial turístico destas rotas históricas. A inserção da peregrinação a Nhá Chica no roteiro da Estrada Real aumentou a sua divulgação e atraiu mais participantes. Em 2005 foram inaugurados os marcos de sinalização 308 da Estrada Real e, no percurso dessa peregrinação, somam 26 marcos. A peregrinação a Nhá Chica é hoje um produto a ser vendido, incluso em pacotes turísticos da região, já bastante visitada e com tradição em receber turistas devido às conhecidas fontes de águas minerais, principalmente as cidades de São Lourenço e Caxambu. A peregrinação de Nhá Chica tornou-se mais um dos atrativos turísticos da região. Por isto mesmo há um grande empenho em divulgá-la por parte das instituições governamentais e privadas, bem como, em criar redes de sistematização, de institucionalização e, porque não dizer de controle efetivo sobre a mesma. As pousadas da região citam a caminhada do dia 1º de maio como “a rota religiosa que liga São Lourenço a Baependi – Peregrinação Caminho Místico de Nhá Chica” e a incluem 309 nos boletins de propaganda como uma das atrações para os visitantes. A outra novidade que merece destaque, iniciada em 2005, é o Kit do Peregrino. Este kit é composto por: - uma camiseta de malha onde estão estampados o mapa do percurso e os logotipos das prefeituras envolvidas na organização da peregrinação, do Instituto da Estrada Real, e demais patrocinadores; - um cartão de papel contendo o mapa do trajeto da peregrinação; - o passaporte do peregrino, que é uma espécie de carteirinha onde se registram as participações de cada peregrino com um carimbo, assim que eles chegam ao Santuário em Baependi. Todos os peregrinos que completarem com carimbos anuais suas cartelas, participando das próximas peregrinações até 2009, serão incluídos em um sorteio e irão concorrer a prêmios ainda não divulgados. Nos anos anteriores já se distribuíam camisetas e mapas aos participantes da peregrinação, mas em 2005 houve uma produção maior em torno dos kits, a distribuição foi mais abrangente e organizada, incluindo a novidade do passaporte do peregrino que, de certa 307 A LEI 13173 1999 de 20/01/1999 dispõe sobre o Programa de Incentivo ao Desenvolvimento do Potencial Turístico da Estrada Real: Parágrafo único - Para os efeitos desta Lei, consideram-se Estrada Real os caminhos e suas variantes construídos nos séculos XVII, XVIII e XIX, no território do Estado. (http://www.descubraminas.com.br). (ver mapa, anexo 4.7) 308 Informações da SERVTUR – Serviço Autônomo de Turismo de São Lourenço, 2005. 309 Ver, por exemplo, o endereço www.hotelcentralparque.com.br, de São Lourenço. 184 maneira, é um desafio e, mais ainda incentiva a participação dos peregrinos nos próximos anos, acenando-lhes com a possibilidade de que venham a ser premiados quando completarem suas cartelas, atrelando-se a possível premiação à frequência regular à peregrinação. Figura 18 – Passaporte do Peregrino Fonte: Cópia produzida por mim durante pesquisa, 2005 A melhor organização do kit do peregrino pode ser vista como uma estratégia da proposta de sistematização do Caminho de Nhá Chica e como uma maneira de buscar o controle sobre os participantes, mais exatamente sobre o possível retorno deles nos anos seguintes, o que gera rendas para os locais envolvidos, em diferentes seguimentos, face ao crescente número de visitantes. Somadas a isto, as camisetas distribuídas, quando usadas em outras localidades transformam-se em eficazes veículos de divulgação não só da peregrinação bem como de todo aparato organizacional estabelecido em torno da mesma, um elemento chave para lhe dar visibilidade e também confiabilidade, mediante o envolvimento de empresas e órgãos governamentais conhecidos. Da mesma maneira, as instituições envolvidas na organização do evento são beneficiadas com a divulgação e a associação das mesmas à peregrinação, numa via de mão dupla, já que suas logomarcas aparecem estampadas nas camisetas doadas aos peregrinos. Além de tentar manter o peregrino envolvido com o evento da peregrinação não só neste ano e colaborar para sua divulgação, outro ponto merece ser destacado em relação aos kits do peregrino diz respeito à questão da assistência social associada à peregrinação. A troca dos kits por alimentos não perecíveis reverte-se em ajuda para as organizações de assistência social dos municípios envolvidos, tais como a Associação Beneficente Nhá Chica de Baependi. 185 Em 2005 foi minha primeira participação na peregrinação. Antes mesmo de dirigir-me para São Lourenço, visitando a página da FIEMG – Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, e tomei conhecimento da existência do Kit do Peregrino e de como agir para obtê-lo, os postos de trocas distribuídos pelas cidades envolvidas no projeto, e as entidades assistenciais selecionadas pelas respectivas Secretarias de Desenvolvimento Social de cada cidade para serem beneficiadas com as doações. Embora minha ideia fosse hospedar-me em Baependi, resolvi ir a São Lourenço garantir o meu Kit do Peregrino, até mesmo para saber do que se tratava (não havia postos de troca em Baependi). Após conseguir minha sacola com o Kit do Peregrino, trocando-o num supermercado, passei a ter mais acesso às pessoas da cidade. É como se a posse daquele pacote me credenciasse a ser confiável. Algumas pessoas se dirigiam a mim como se já me conhecessem, embora tivessem acabado de ver, o que ocorreu em situações diversas 310 envolvendo moradores e outros visitantes da cidade, como eu. Por ocasião das festividades organizadas em torno da figura de Nhá Chica, em Baependi e nas cidades próximas a ela, outros eventos são organizados visando atrair mais e mais visitantes, esta é uma região que tem o turismo como elemento significativo de sua base econômica. Em 2005, concomitante à peregrinação aconteceu em São Lourenço um encontro de motoqueiros. Retomando a questão da participação institucional na peregrinação a Nhá Chica, além do envolvimento com a produção e distribuição do kit do Peregrino, são também as prefeituras que se encarregam de disponibilizar acompanhamento médico para os participantes. Assim é comum encontrarmos carros oficiais e ambulâncias, equipadas com materiais de primeiros socorros e profissionais adequados distribuídos pelo Caminho de Nhá Chica, oferecendo atendimento médico quando necessário, medindo a pressão arterial dos participantes nos postos de apoio, enfim, tentando garantir, dentro do possível, que nenhuma eventualidade traga risco para os peregrinos e que estes cheguem ao Santuário de Baependi, em boas condições de saúde. Muitos não conseguem fazer todo o trajeto, neste caso são 310 Apenas para ilustrar a questão da confiabilidade e proximidade adquirida com a posse do Kit do Peregrino, foi por intermédio de uma dessas pessoas que consegui lugar onde hospedar-me, visto que, quando soube com certeza a hora em que as pessoas iniciavam a caminhada decidi pernoitar em São Lourenço, cancelando minha hospedagem em Baependi. Aconteceu que São Lourenço estava cheia de visitantes tanto por causa da peregrinação, quanto em virtude de um encontro de motoqueiros realizado naquele fim de semana. A moça que me ajudou fez várias ligações para diferentes hotéis e onde consegui vaga foi porque insistiu muito e disse que eu era uma amiga dela. 186 levados pelos carros oficiais que acompanham o cortejo, ou ainda por voluntários que fazem o trajeto de carro e também prestam socorro aos que precisam. Como já enunciado, além da prefeitura, outras instituições e pessoas também se envolvem neste evento, traçando novos estilos de viver esta experiência, a priori religiosa, fruto da devoção à Nhá Chica. Destacamos entre eles os comerciantes que colocam à disposição seus estabelecimentos para servirem de ponto de distribuição dos kits dos peregrinos, instituições de ensino, como a Faculdade de Turismo Santa Marta, cujos alunos e alguns professores se envolvem na peregrinação ajudando na distribuição de água, aos que percorrem o caminho, ao mesmo tempo em que realizam trabalhos de pesquisa sobre os peregrinos. Resta ainda mencionar as várias pessoas da região que colaboram no preparo de cafés e alimentos que ficam disponíveis para os peregrinos, nos postos de apoio, instalados em determinados pontos do caminho. Ao recebermos o Kit do Peregrino recebemos panfletos de orientação que inclui o mapa do trajeto, conforme figura seguinte. Nele o destaque para o marco inicial que é a Capela de Nhá Chica seguida de todos os pontos por onde os peregrinos deverão passar: Figura 19 – Mapa do Percurso da Peregrinação de Nhá Chica Fonte: Cópia produzida por mim durante pesquisa, 2005 Foi este o caminho que percorri em 2005, na companhia de meu marido Junior e de Marco Aurélio, o construtor da Capela de Nhá Chica, que levava consigo um estandarte com a imagem de Nhá Chica. 187 A companhia dos outros peregrinos era importante não só porque não conhecíamos o caminho, mas, além disto, porque poderia conversar com eles por um tempo maior, e foi quando consegui muitas das informações expostas neste texto. Saímos de São Lourenço por volta de meia noite, éramos um grupo de 15 pessoas a maioria jovens, numa viagem que demora em média de 7h a 8 horas de caminhada. Os primeiros quilômetros da caminhada foram bem animados, as pessoas falavam sem parar, algumas rezavam o terço e eu ouvia as estórias que se cruzavam. Após as duas primeiras horas no Caminho, o barulho dos pés no chão e os sons vindos do mato eram os únicos sons que se ouvia. Seja pelo cansaço ou pela introspecção as pessoas ficaram em silêncio. Em nosso grupo, além de mim e Junior, um rapaz de 29 anos (Robson Costa), uma senhora de 53 (Maria Evangelina) e uma moça de 27 anos (Angélica Silva) faziam a peregrinação pela primeira vez, cada um por motivos diferentes, mas todos eles se declaravam devotos de Nhá Chica. Tínhamos entre nós um adolescente de 16 anos, o Acácio que já havia feito a peregrinação uma vez e se dizia “católico praticante” e devoto de Nhá Chica por causa do “exemplo de vida que ela deixou”. Aproveito para informar que dentre os devotos de Nhá Chica, todos os pesquisados se declararam católicos e a expressão católico praticante apareceu como resposta em 47% dos questionários que foram aplicados durante os trabalhos de campo. Durante a caminhada fomos encontrando outros grupos de peregrinos e já éramos mais de 20 quando fizemos nossa primeira parada, que aconteceu após 10 km de caminhada ininterrupta, ao chegarmos à Igreja de São José do Mato Dentro. Este é um dos pontos de abastecimento e apoio aos peregrinos. Ali pudemos ir ao banheiro, tomar água e, querendo, medir a nossa pressão arterial. Foi uma parada rápida, os 15 minutos mais curtos da minha vida, já estava cansada, os pés doíam de tanto andar e fazia muito frio. A preocupação com acidentes e impossibilidades dos peregrinos em continuar o percurso fica clara quando percebemos que em vários pontos do caminho estão ambulâncias e agentes de saúde apostos para as emergências. Há uma preocupação especial com a questão da pressão arterial. De acordo com um dos enfermeiros, muitas pessoas vão fazer a peregrinação sem ter preparo físico para tanto, ou ainda, fazem jejum junto com a caminhada e não aguentam o esforço. 188 Era presença frequente no caminho estudantes que anotavam dados sobre os peregrinos, distribuíam água mineral e alguns jornalistas que fotografavam e entrevistavam os participantes. Muitas pessoas se esforçam para registrar a peregrinação. Durante a caminhada viajou próximo a nós um senhor que levava uma filmadora nos ombros, registrando todos os momentos de sua viagem. Viajou a nosso lado, mas não quis saber de conversa, estava muito centrado no que fazia, às vezes falava consigo mesmo, assoviava ou cantarolava baixinho. Durante o percurso havia também algumas pessoas preocupadas em recolher o lixo que outros deixavam pelo caminho e orientavam as pessoas que passavam por eles para a necessidade de manter o lugar por onde passassem limpo. Além dos pontos pré-estabelecidos para as paradas dos peregrinos alguns moradores nos ofereciam água, café e broa de fubá. Só pelo carinho já valia a pena, nestes momentos em que recebemos ajuda sem estar esperando nosso ânimo era renovado. Estudiosa sobre os “sentidos de uma peregrinação”, a partir da análise do Caminho de Santiago de Compostela, Sandra Carneiro (2003) ressalta a questão da fraternidade que se cria no contexto da peregrinação, definida como uma noção de fraternidade que parece adquirir “um valor em si mesma e, para a qual a igualdade é uma condição universal” resultando, sobretudo em relações afetivas e íntimas, distintas das relações fundadas em interesses materiais. (Carneiro, 2003:243) Durante todo o percurso não faltaram sinais desta aproximação entre as pessoas, seja no cuidado com outro – mesmo desconhecido, ajudando-o a cumprir seu projeto de fazer a peregrinação, incentivando; na facilidade com que falavam sobre suas vidas, seus interesses e motivos para participarem da peregrinação; na preocupação para que ninguém ficasse perdido ou deixado para trás, além, é claro, do apoio dos que não estavam fazendo a caminhada. Além das ambulâncias alguns carros particulares também se colocavam às margens da estrada. Em um deles uma jovem grávida colaborava com os que caminhavam e nos disse que sempre fazia a peregrinação, mas, naquele ano não poderia caminhar tanto por causa da gravidez, então, resolveu ir de carro, acompanhando outras pessoas que iam a pé. As estradas que passamos eram no meio rural e havia muita poeira vermelha e buracos enormes, resultantes da ação das chuvas de anos. Inacreditável pensar que alguém pudesse passar por ali de carro. Em alguns lugares os buracos na estrada engoliam minhas pernas até quase os joelhos, não caí nem me machuquei porque a noite estava clara, em verdade apenas entrei nos buracos 189 para verificar a profundidade, mas este era um risco iminente no percurso. Além das bolhas nos pés, quase inevitáveis, havia o risco de torções e quedas. Às vezes subíamos por um longo tempo, e eram os pontos mais demorados e difíceis para todos. A segunda parada regular aconteceu em Caxambu, já eram quase cinco horas da manhã e o sol começava a nascer. A parada é também rápida, ficam faltando ainda 9 km para terminar nossa viagem. Neste ponto muitos outros peregrinos, que saem de Caxambu e vieram de Soledade de Minas, engrossaram as fileiras dos caminhantes. Chegamos a Baependi por volta de 8 horas, e no Santuário começava os ritos iniciais para a primeira missa dos peregrinos de Nhá Chica. O Santuário logo ficou cheio e faltavam lugares para todos se sentarem. Por isto, muitos se deixavam sentar no chão, exaustos e empoeirados, depois de tão longa caminhada. Apesar da missa já ter iniciado, muitos dos peregrinos queriam mesmo é se aproximar do túmulo de Nhá Chica, depositar ali seu cansaço, seu sacrifício e outras oferendas. Alguns se prostram diante do túmulo e ali ficam em silenciosa oração, alheios ao que acontece ao redor. Figura 20 – Devotos Peregrinos em oração Fonte: Foto produzida por mim durante pesquisas, 2005 No ano de 2006 não participei da caminhada, nem estive em Baependi na data. Segundo estimativas da Polícia Militar de Minas Gerais, aproximadamente 2000 peregrinos partiram de São Lourenço para a caminhada até Baependi. Neste ano, além da organização 190 mais presente das prefeituras e suas secretarias de turismo e de saúde, os peregrinos contaram com o apoio da Polícia Florestal, da Polícia Militar e do Grupo de Escoteiros de São 311 Lourenço. Em 2007 novamente não participei da caminhada, optei por acompanhar a saída do grupo da Igreja Matriz, no centro de São Lourenço, sob as bênçãos do Pe. Edvar Rodrigues, às 5 e às 6 horas da manhã e depois me desloquei até Baependi para aguardar os peregrinos que começaram a chegar a partir das 8 horas (lembrando que alguns saem de São Lourenço a meia noite). Com a ajuda de dois colegas historiadores, os questionários foram aplicados aos peregrinos na escadaria do Santuário, entre 08h e 17h. Em 2007 os postos de apoio foram ampliados para 13. Os cuidados com a segurança e a saúde dos peregrinos, bem como a preservação ambiental, permaneceram como centrais, havendo reuniões para discutir melhor o tema, com participação do Grupo de Escoteiros São Francisco de Assis, Grupo Madre de Proteção Ambiental, Unimed, COPASA, prefeituras 312 municipais, Polícia Ambiental e alguns voluntários. A presença de diferentes seguimentos envolvidos na peregrinação é notória desde sua primeira edição nos moldes atuais, iniciado em 2000. Por outro lado, até 2007 não há registros do envolvimento das Igrejas locais na organização das peregrinações, exceto pelas bênçãos aos romeiros que iniciaram em 2006 e pelas missas do peregrino celebradas na Igreja de Baependi. A partir destas informações reconhecemos em Baependi e região uma tendência geral dos eventos religiosos similares às peregrinações a Nhá Chica, ou seja, aqueles que se transformam também em atrativos culturais e turísticos. Sobre eles, Andrade (2000) conclui que se multiplicam, à medida que surgem boatos ou fatos de aparições de seres celestiais ou de realizações de milagres e curas efetuados por algum religioso ou místico. As notícias, o marketing direto ou indireto e as ações de promotores e comerciantes instalados nas micro-regiões ou nos locais onde acontecem os fatos extraordinários acionam os agentes turísticos, que, em geral, antecipam-se a qualquer manifestação de autoridades religiosas. (Andrade, 2000:79) 313 A análise e tabulação dos dados coletados em 2005 e 2007 permitiram a construção de gráficos demonstrativos sobre os motivos dos peregrinos e a proporção dos mesmos a 311 Cf. informações na página da Polícia Militar de Minas Gerais, . 312 As prefeituras mais envolvidas foram as São Lourenço, Soledade de Minas e Caxambu. . 313 Novamente vale a pena lembrar que os dados relativos a 2005 foram coletados em conjunto com alunos da Faculdade Santa Marta e o Prof. Erick, em 2007 eu e meus colaboradores (Junior e Ademildo) assumimos a tarefa. Foi aplicado o mesmo número de questionários para realizar os gráficos nos diferentes anos. 191 partir do gênero e da idade, o que permite novas inferências sobre a peregrinação e seus participantes. O primeiro dos gráficos traz a proporção em relação ao gênero dos participantes na peregrinação, realçando uma superioridade feminina, em 6%: Gráfico 16 - Proporção de Peregrinos de Nhá Chica em relação ao gênero Mulheres Peregrinas 47% 53% Homens Peregrinos No gráfico construído a partir do gênero dos devotos (incluindo não participantes nas peregrinações), já exposto anteriormente, percebe-se a repetição da superioridade feminina. Ocorre, porém, que naquele primeiro gráfico as mulheres superam os homens em 4%, ao passo que no gráfico produzido em relação ao gênero dos devotos participantes na peregrinação a superioridade feminina pulou para 6%. Um dado que surpreende diante da dificuldade física imposta pela peregrinação. Apesar disto, não considero que seja uma diferença suficiente para dizer que a devoção a Nhá Chica seja tipicamente feminina. Quando pensamos a cerca da faixa etária dos peregrinos percebemos que há prevalência, embora por uma margem bem pequena, de pessoas entre 31 e 40 anos, conforme mostra o gráfico seguinte: Gráfico 17 - Proporção dos devotos peregrinos em relação à idade Até 20 anos De 21 a 30 12% 11% Anos De 31 a 40 25% 24% Anos De 41 a 50 Anos 28% Acima de 51 anos 192 As análises dos dados coletados foram essenciais para percebermos também as motivações dos peregrinos, assim temos para 2005 o seguinte demonstrativo: Gráfico 18 - Motivos para participação na peregrinação em 2005 15% Devoção 19% 45% Pagto. Promessas Pedidos Outros 21% Algumas mudanças são percebidas analisando os dados de 2005 e 2007, especialmente, o crescimento no número de pessoas que não se declaram devotas e que fazem o caminho por outros motivos, tais como se divertir, entrar em contato com a natureza - na linha dos passeios ecológicos, conhecerem a região rural destas cidades e realizar pesquisas 314 ou matérias jornalísticas. A seguir apresento o gráfico referente ao ano de 2007: Gráfico 19 - Motivos para participação na peregrinação em 2007 18% Devoção 42% Pagto. Promessas 18% Pedidos Outros 22% As peregrinações vão assumindo o caráter de lazer, associada à questão das belezas ambientais, do clima, da busca por si mesmo. Segundo Camurça (2005) uma tendência atual. 314 Como exemplo cito o ‘JB Ecológico’, que em 2004 enviou uma repórter para percorrer o Caminho de Nhá Chica, acompanhada por sua equipe. Nem sempre eles fazem a peregrinação, na maioria dos casos, colocam-se às margens da estrada para entrevistas. O JB tem versão on line, disponível no endereço . 193 Para ele, as tradicionais peregrinações e romarias, vão dando lugar ao turismo religioso e às “peregrinações do self”, cujo caso emblemático seria o Caminho de Santiago de Compostela. (Camurça, 2005:04) Os resultados obtidos reforçam concepções como as de Camurça (2005), e de outros estudiosos desta questão, como Steil (2003b), quem considera que as peregrinações podem ser lidas como acontecimentos que se colocam fora da ordem cotidiana e, por isto, se associam também à “ordem do lazer e do ócio”. (Steil, 2003b:260) Além disto, confirmam a proposição de que os rituais e devoções, enquanto fatos sociais, não têm mecânica própria, não são independentes das transformações que afetam a sociedade em que se inserem. Em verdade, as peregrinações se produzem e se reproduzem dentro da lógica do mercado, incluindo divulgação, marketing, organização de atrações culturais como shows, bailes, campeonatos esportivos, em datas próximas ou coincidentes com a peregrinação. Para Carneiro (2003:79) a interface da peregrinação com o turismo produz uma re- semantização dos eventos e rituais religiosos, onde o consumo que surge em seu redor promove rendas e desenvolvimento dos locais onde ocorrem em decorrência do aumento de visitantes e consumidores, associados à peregrinação. Segundo ela, não “é possível considerar as peregrinações à margem da prática turística, mesmo que a motivação fundamental que move o peregrino tenha origem religiosa, na prática se reveste de um comportamento turístico.” (Carneiro, 2003:81) Estudioso dos temas ligados ao turismo, Andrade(2007) diz que: (...) ressalvados o turismo de férias e o turismo de negócios, o tipo de turismo que mais cresce é o religioso, porque – além dos aspectos místicos e dogmáticos – as religiões assumem o papel de agentes culturais importantes, em todas as suas manifestações de proteção a valores antigos, de intervenção na sociedade atual e de prevenção no que diz respeito ao futuro dos indivíduos e das sociedades. (Andrade, 2000:79) Ainda que haja uma possibilidade de distinguir de forma analítica os campos da peregrinação e do turismo, como informa Steil, no nível empírico eles se misturam, aparecem imbricados, com fronteiras indefinidas e fluidas, resultando em lógicas e arranjos sincréticos que dão aos eventos diferentes configurações e sentidos. (Steil, 2003b: 250-254) Objeto de vários estudos, o turismo religioso é interpretado por Steil como lugar onde se privilegia o indivíduo e sua identidade, produzida pela “lógica do distanciamento” em relação ao religioso que é festejado. (Steil, 1998:6) De acordo com Camurça (2005) é preciso que se pense o “turismo religioso como uma expressão contemporânea da experiência religiosa, quando a atividade do turismo é 194 incorporada como mediação do sagrado junto com os elementos mercadológicos e de consumo a ele associados.” O turismo associado ao religioso não deve ser entendida como profanação do sagrado, ou o seu fim, as contaminações são mútuas, desta forma, o consumo e o lazer podem ser tomados como a experiência religiosa dos indivíduos turistas através de uma religiosidade “difusa e eclética, muito de acordo com a sensibilidade new age” contemporânea. (Camurça, 2005:04-05) Observando os gráficos sobre as motivações para a peregrinação a Nhá Chica nota-se que, apesar das mudanças, a peregrinação a Baependi ainda é, antes de tudo, um ritual de devoção a Nhá Chica. Alguns devotos já realizam este caminho há vários anos, mesmo antes de todo este aparato em torno da peregrinação, e é preciso mesmo ter um propósito muito forte para vencer os 33 km de caminhada. Exemplos desta determinação são encontrados todos os anos, representados por pessoas como o Sr. Adilson Levenhagem, um senhor de 61 anos, que vinha agradecer pela cura de problemas renais e percorreu todo o Caminho de Nhá Chica em 2005. Assim como ele, o que move a maior parte dos peregrinos é caminhar para Nhá Chica, seja para agradecer, pedir ou simplesmente expressar sua devoção. Em síntese, em relação ao que ocorre com a peregrinação e demais festas e rituais realizados para Nhá Chica, é possível afirmar, como o fazia Sanchis (1983) a respeitos das romarias portuguesas, que se trata, “para os peregrinos, de encontrar alguém que pisou os caminhos dos homens, conheceu a sua experiência e viveu os seus sentimentos – e ao mesmo tempo ultrapassa o quadro da sua experiência imediata e é investido de um poder que lhe permite dominar o cosmo, a existência social, a vida.” (Sanchis, 1983:45) 195 5 - BREVE ESPAÇO PARA ENCONTRO E COMPARAÇÕES ENTRE AS SANTAS DO POVO Para esta pesquisa, tomei como orientação selecionar pessoas que despertaram a atenção e inspiraram a devoção popular por comportarem qualidades que remetem ao insondável, ao misterioso ou ainda que tenham inspirado tal devoção em função de suas vivências pessoais, atitudes em relação ao sagrado, ao próximo, às suas próprias vidas, sendo elas pessoas que eram apenas mais um dos membros das comunidades onde hoje são cultuadas. As pesquisas demonstraram que entre os “santos do povo” o número de santificações de figuras femininas é bastante expressivo. Somados aos motivos já mencionados (Capítulo 2), considero que os aspectos contemporâneos da religiosidade, apontados por estudiosos do campo religioso brasileiro, também colaboram para esta forte presença feminina entre as santificações. De acordo com tais estudos, encontramos atualmente a ampliação da presença de elementos relacionados à emoção, ao coração e às experiências pessoais nas questões de religião. Estes traços são culturalmente associados ao universo feminino. Para alguns destes estudiosos vivemos o século de expansão dos atributos femininos diante dos conceitos e tradições patriarcais tradicionalmente estabelecidos. Estas seriam mudanças lentas, posto que culturais, mas que estariam, entre outras coisas, abrindo espaço para uma concepção de Deus menos pai e mais mãe. Para ilustrar cito o teólogo Leonardo Boff: Tudo parece indicar que estamos assistindo à emergência de um dos arquétipos mais decisivos do inconsciente coletivo da humanidade, o arquétipo da Anima em suas múltiplas manifestações. Somente em milhares de anos ocorre semelhante irrupção. Resulta uma virada no eixo histórico em termos universais. O homem (varão e mulher) se auto-interpreta de novo; redefine suas relações para com os outros, o quadro institucional dos poderes e sua imagem de Deus. (Boff, 2003:15) As santas do povo, que ocupam hoje o imaginário e a devoção de várias pessoas alcançaram tal posição porque de alguma forma, em suas trajetórias, romperam as fronteiras do ordinário, seja através de acontecimentos místicos, incompreensíveis ou dificilmente explicáveis pela razão humana, seja por suas próprias ações e escolhas, no que tange ao direcionamento de suas vidas e condutas, não apenas em relação ao sagrado, mas a outras esferas do cotidiano inclusive. 196 Neste momento chamo a atenção para força e obstinação de duas das santas estudadas – Nhá Chica e Lola. Estas, contrariando a ideia de fragilidade e dependência das mulheres ainda vigentes na atualidade, e bem mais difundidas na época em que viveram – do início do século XIX e meados do XX -, assumiram a direção de suas vidas e escreveram por elas mesmas o curso de suas histórias. No caso de Nhá Chica (1810-1895), destaca-se nas narrativas sua condição social de escrava por nascimento. Ainda criança ficou órfã e tornou-se responsável por seu destino. Optou por manter-se solteira e sozinha, embora tenha recebido algumas propostas de 315 casamento, o fim mais comum para as mulheres de sua época. Escolheu viver na pobreza quando, mediante herança de seu irmão poderia ter tido uma vida confortável, ao invés disto, doou o que recebeu de herança à Igreja e aos pobres. Todas estas ocorrências geram status junto aos devotos. A partir de suas escolhas Nhá Chica dedicou-se ao que ela achava importante, optou por escrever sua história e construir sua identidade deixando para a posteridade o seu próprio nome. Obtendo grande êxito neste empenho se tornou figura exemplar para a região, uma referência para homens e mulheres, antes e após sua morte, transformando a vida dos que habitam na região em que ela viveu. Em relação à Lola (1911-1999), a Santa de Rio Pomba, embora tenha sido vítima de um acidente que a tornou paralítica ainda jovem, não fez disto um motivo para revoltar-se contra o mundo, fechar-se em sua tragédia e transformar-se em um fardo para os que viviam com ela. Em lugar disto fez de sua vida um exemplo para os devotos, modificou a rotina religiosa do lugar onde viveu, conseguiu o respeito de muitas autoridades, políticas e religiosas. Dedicou-se a aliviar o sofrimento alheio e, dentro de suas possibilidades, dizem 315 Na obra Antropólogas & Antropologia, a autora Mariza Corrêa analisa a trajetória de três mulheres pesquisadoras no Brasil nos séculos XIX e XX. Ela chama a atenção para a formação da identidade feminina nesta época, citando casos como o da Sr.ª. Dina Lévi-Strauss, professora da Universidade de Paris, que residiu no Brasil acompanhando o marido Claude Lévi-Strauss, quando este foi nomeado professor da Universidade de São Paulo. Apesar de sua formação e atuação enquanto antropóloga e professora Dina sempre era citada como ‘a mulher de Lévi-Strauss’. Corrêa chama a atenção para a questão da “identidade atribuída” derivada dos casamentos. As mulheres eram notadas a partir dos ‘nomes’ dos respectivos maridos, algo comum às mulheres do tempo enfocado. Aquelas que ousavam construir a identidade de seu próprio nome eram incansavelmente desqualificadas como o caso de Ruth Landes – estudiosa do candomblé da Bahia - que foi acusada de ‘vender serviços sexuais aos negros’ quando fazia pesquisas de campo afinal tratava-se de “uma jovem mulher de menos de trinta anos e conspicuamente loura”. Concluindo, as mulheres estavam em grande medida sujeitas à desaparição, já que seus ‘nomes próprios’ eram ‘nomes de outros’, dificilmente elas poderiam ter uma ‘identidade social’ constante, duradoura e independente. Mariza CORRÊA, Antropólogas & Antropologia, pp. 19-25, 2003. 197 que ela consolou mais do que foi consolada, sendo lembrada por sua tenacidade. É a partir dela mesma que se escreveu sua história. Quanto a Santa Palmyra (1861-1877) é difícil inferências acerca de sua trajetória de vida. Ainda que alguns devotos mencionem que ela era uma pessoa muito boa, efetivamente pouco se sabe sobre sua existência, mas a “presença sensível da santidade coloca em segundo plano o valor da história”, conforme Fernandes (1989:09). O que há de mais concreto sobre a vida de Palmyra é a presença de seu túmulo, lugar onde hoje os devotos se encontram para suas orações e pedidos, em geral atraídos por sua capacidade de realizar milagres, excepcionalidade deflagrada pela descoberta da conservação do seu corpo anos após sua morte. Neste caso, a construção que os devotos fazem a seu respeito é que criam possibilidades para sua santificação, e para esta pesquisa. Já Nhá Chica e Lola são exemplos de autoridades femininas adquiridas pela intimidade com o sagrado em Minas Gerais. Reafirmam as teses de que a participação religiosa feminina deve ser estudada/entendida também em relação à habilidade que a religião tem em lhes prover espaço para atuação social, o que talvez não seria disponibilizado a elas em outra instancia, ou de outra maneira. Visando uma pesquisa mais ampla, ao investigar a participação feminina na religião é imprescindível ter conhecimento sobre os espaços sociais disponíveis para elas na sociedade em que se inserem, ou seja, a contextualização histórico-social não pode ser dispensada, sob pena de não proceder-se a uma justa avaliação e, com isto, o caráter também emancipador da religião acabar por ser negligenciado em função da prevalência de uma análise pautada na 316 alienação e opressão da mulher pela via religiosa. Durante todo o processo da pesquisa dispus-me a tentar ordenar, classificar e explicar, sob a forma escrita, fenômenos que remetem ao mais íntimo das emoções pessoais dos envolvidos. Mesmo ciente das limitações, as classificações e ordenações são recursos acionados na tentativa de tornar legível o que se passa na esfera da crença e da devoção às santas do povo. Ainda que as classificações representem, como apontam Mauss/Durkheim (2001), um “produto da atividade individual” e que em geral implicam também numa hierarquização dos elementos analisados, ela é um recurso didático do qual lançamos mão, todo o momento, neste estudo.(2001:400) 316 Sobre esta discussão ver: Ana Maria BIDEGAIN, Mulheres: Autonomia e controle religioso na América Latina, 1996; Dagoberto José da FONSECA, Clausura e silêncio, 1998. 198 As classificações e apontamentos sobre as diferenças criam linhas de distinção entre as Santas escolhidas para esta pesquisa e os demais santos do povo; entre estas e os santos oficializados pela Igreja Católica; bem como entre elas próprias. Ao mesmo tempo, permitem perceber que, reservadas as suas distinções, são personagens que possuem entre si estreitas ligações, a ponto de podermos também inseri-los num mesmo grupo, considerando-os como 317 iguais , todos são santos e exercem papéis semelhantes na relação com os devotos e vice- versa. Tanto quanto as biografias das santas oferecem base para a construção dos mitos e narrativas sobre elas, o catolicismo também fornece elementos importantes, senão essenciais, para as santificações populares em estudo. Em todos os três casos estudados a tradição oral é central para propagação das devoções e confirmação das santidades, bem como para realização desta pesquisa. É basicamente mediante relatos dos devotos, sobre a história das santas, os milagres e graças alcançadas que isto acontece. No campo das investigações histórico-culturais, de acordo com as observações de Gwyn Prins, as fontes orais têm grande importância, devem ser trabalhadas da mesma maneira como feito com as fontes escritas. É verdade que elas apresentam-se carregadas de emoção, de pontos de vista do narrador, mas, as fontes escritas não fogem desse mesmo padrão. As “fontes orais corrigem as outras perspectivas, assim como as outras perspectivas as corrigem” (Prins, 1992:66). Entre estudiosos da religião, destaco a observação de Steil (1996), a partir de seu estudo sobre os peregrinos do Senhor Bom Jesus. Segundo ele, a oralidade é basilar, afinal, os milagres não costumam acontecer nos lugares de devoção, nestes lugares somos informados sobre as graças e milagres já realizados, através das narrativas do beneficiado ou de terceiros, devotos dos santos ali venerados. (Steil,1996:105) Embora mantendo sinais semelhantes nas suas santificações, as santas do povo são resultados dos influxos socioculturais do meio e do tempo em que viveram. Desta forma, não representam fenômenos homogêneos, quer dizer, as santas do povo não são todas iguais, seja pelo grau de alcance, seja pela legitimidade diante da hierarquia católica, ou ainda pelos sinais de santidade indicados pelos devotos, pela maneira como os devotos se organizam em torno delas para os cultos e vivência da devoção, representam particularidades. 317 É preciso estar atento, pois há sempre o risco de destacarmos tanto os elementos que aproximam os objetos em estudo que se corre o risco de deduzi-los uns aos outros. Marcel MAUSS, Émile DURKHEIM, Algumas formas primitivas de classificação, p. 400, 2001. 199 O grupo selecionado pode ser novamente classificado e subdividido em três grupos, construídos a partir das referências, a priori, basilares para a construção de suas santidades. Estas referências são encontras nas narrativas construídas sobre elas, o que podemos chamar de seus mitos fundantes, e que remontam à maneira como viveram, como morreram e ao post mortem das mesmas. De acordo com estas premissas, num primeiro subgrupo estariam Lola e Nhá Chica. Estas duas santas do povo têm a santidade construída a partir das narrativas sobre suas histórias de vida. Ambas são apontadas como modelos exemplares de fé, resignação e dedicação ao próximo, embora cada uma tenha assumido seu próprio caminho. Somado ao citado, ambas apresentam grande intimidade com o sagrado, envoltas por grande misticismo, lembradas como portadoras de dons e capacidades especiais para se comunicarem com o divino. Sendo ainda reclusas, tendo optado por uma vida ascética, novamente, cada uma a seu modo, o que interfere nas relações estabelecidas com os devotos e na maneira como a devoção é vivida. No segundo subgrupo incluo as santificações baseadas na questão do sofrimento, onde figuram Lola e Palmyra, embora em versões diferenciadas de sofrimento: Na primeira o sofrimento se manifesta no curso da vida; na segunda relaciona-se à sua morte e, mais precisamente, à maneira como ela ocorreu. O primeiro caso é o da santificação de Lola. Sua vida após o acidente é entendida como um martírio, uma provação para sua fé. Estes fatos são reconhecidos pelos devotos, que assinalam como sinal de sua santidade a sua exemplar devoção ao Sagrado Coração de 318 Jesus. Lola representa as pessoas que superam um grande sofrimento a elas imposto e transformam completamente suas vidas sem perder a fé e a vontade de viver. Por isto são santificadas pelo povo. Na visão dos devotos, “(...) só alguém especial, abençoado por Deus 319 poderia viver tanto tempo como ela viveu, do jeito que ela viveu”. Sua debilitação é reconhecida como uma prova santificante. A dor e o sofrimento, acompanhado de sua passiva aceitação, se transformam em valor espiritual, em força divina, presente apenas nos seres especiais, conforme dito pelo devoto acima citado. 318 Correspondendo a 70 % das indicações. É importante lembrar que neste caso realizei duas contagens, na primeira 100% dos devotos citam a sobrevivência de Lola sem alimentação por mais de 50 anos como sinal incontestável de sua santidade, numa segunda análise, excluindo-se este dado, a devoção ao S. C. de Jesus, sua dedicação a tal devoção, ficou em 1º lugar nas indicações. 319 Depoimento Sr. Antônio Raul Gonçalves. 200 A situação de Lola remete à ideia da “purificação passiva”, que é associada à doença e ao sofrimento não provocado deliberadamente. Em conformidade com a lógica deste sacrifício, a vítima assegura o caminho para a mediação com o “outro mundo” e acaba por beneficiar a todos os demais com os benefícios adquiridos. (Albert,1996:332-333). Lola é lembrada por ser capaz de comunicar-se com o Sagrado Coração de Jesus, pedindo e ouvindo suas recomendações e conselhos, tendo utilizado deste seu dom, para ajudar e orientar as pessoas. Neste segundo subgrupo estaria também Santa Palmyra, considerada santa também a partir de acontecimentos relacionados à sua morte, entendida como trágica e causadora de sofrimento. Os devotos não usam o termo martírio, não há esta relação. O que os afeta é a tragédia de um acidente de trem, sobre o qual existe mais de uma versão, como já demonstrado, mas prevalece a ideia de um acidente onde a força, a velocidade e o peso do trem são colocados em contraste ao tamanho, a delicadeza e fragilidade de uma jovem de 16 anos. É a partir desta construção que a morte de Palmyra ganha contornos de tragédia, de algo que rompe com uma existência tranquila de forma abrupta e sofrida. No imaginário dos devotos, sofrimento e santidade andam de mãos dadas, o sofrimento é entendido como uma via para a santificação e para a salvação. “Ela sofreu muito coitada, por isso a gente sempre 320 lembra dela pra ajudar a gente também. Ela é uma santa que atende mesmo(...)” No terceiro e último subgrupo figuram as três santas pesquisadas, posto que, nele estão as santificações marcadas por fenômenos extraordinários, centrados nos corpos destas santas. Em Palmyra estes acontecimentos assumem grande proporção, pois, a preservação de seu corpo teria sido o gatilho para a devoção inicial, já que para os devotos esta ocorrência só é possível aos santos. Embora os túmulos de Lola e Nhá Chica sejam pontos de manifestações devocionais, no que tange a Palmyra este é o lugar sagrado e o único onde os devotos podem se reunir e reverenciar sua santa. Neste caso, Palmyra é por excelência o que alguns pesquisadores 321 denominam de “santas de cemitério”. Em relação à Lola e Nhá Chica, os depoimentos sobre perfume exalado por seus corpos, e, no caso de Nhá Chica, a permanência por quatro dias sendo velada, sem que seu corpo apresentasse sinais de decomposição são os fenômenos mais destacados. 320 Depoimento Dona Aparecida da Costa, 2005. 321 Sobre isto ver José Carlos PEREIRA, Devoções Marginais: interfaces do imaginário religioso, 2005; Maria A. J. V. GAETA, “Santos” que não são santos: estudos sobre a religiosidade popular brasileira, 1999; Oscar Calavia SÁEZ, Fantasmas Falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro, 1996. 201 Episódios como os de Palmyra, Nhá Chica e Lola, fazem parte das histórias e lendas sobre os santos. A questão de corpos que são preservados, ou que exalam perfumes, se liga à concepção de que, enquanto “receptáculos privilegiados das manifestações do Espírito”, os corpos dos santos escapam aos limites comuns da matéria. (Albert, 1996: 198) Segundo Jean-Pierre Albert (1996), o exalar de perfumes designa um “corpo superior”, capaz de ultrapassar as vias “impuras que marcam aqueles dos simples mortais.” A emissão de odores, em especial, ocorre nas situações de passagens – morte do santo, traslado dos seus despojos ou intervenção milagrosa de suas relíquias. (Albert, 1996: 168, 198) O que corresponde às narrativas dos devotos sobre os momentos em que as santas do povo manifestaram tais fenômenos. Quase sempre os devotos mencionam detalhes sobre a existência extraordinária de suas santas, no entanto a maior ou menor procura por elas estão diretamente ligadas à capacidade que têm de oferecer proteção, e à proximidade que os devotos mantêm com elas. A junção dos dados referentes à proporção dos devotos de Palmyra, Lola e Nhá Chica permite notar as variações do número de devotos em cada faixa etária. Nos traços referentes a Palmyra e Nhá Chica percebemos mudanças menos bruscas, o que indica relativa estabilidade de renovação dos devotos e da devoção, já no caso de Lola percebe-se uma grande queda em relação aos devotos abaixo dos 50, o que pode indicar crise na renovação da devoção. Gráfico 20 - Comparativo devotos em relação à idade - Nhá Chica, Lola e Palmyra Palmyra Lola Nhá Chica De 0 a 20 De 21 a De 31 a De 41 a Acima de 30 40 anos 50 anos 51 anos Entre os casos estudados, a devoção a Lola é a que menos atrai devotos entre os mais jovens. Sua santidade tem como forte referência o fato de sua sobrevivência por mais de 50 anos sem se alimentar, vivendo apenas da eucaristia, acompanhada por sua exemplar devoção ao Sagrado Coração de Jesus. 202 Temos, portanto, o maior número de devotos de Lola concentrados na faixa acima de 51 anos, com um índice muito baixo nas gerações mais jovens, o que pode indicar duas coisas: - Esta é uma devoção em crise, alimentada pela falta de memórias sobre Lola; ou ainda, por suas características Lola tem mais carisma junto aos idosos - ela dedicou-se à divulgação do Apostolado da Oração, grupo católico onde se reúnem senhores e senhoras. Alguns elementos podem ser mencionados como explicativos dessa situação da devoção a Lola. Inicialmente lembro que, embora haja casos de curas realizadas pela interseção de Lola, quando comparada aos outros dois casos selecionados, fica evidente que Lola é mais exemplo do que proteção e acolhimento. Conforme demonstrou a análise dos depoimentos, há pouco espaço para ocorrências demonstrativas de uma relação mais estreita com os pobres, sobre a caridade de Lola, excetuando-se os depoimentos dos amigos mais íntimos e dos que remetem à década de 1950. Outros fatos e opções de Lola, em especial em sua relação com as pessoas, colaboram para sua crise de popularidade. Por exemplo, o fato de Lola ter se tornado uma reclusa e seu desejo de ser esquecida pelo mundo, o silêncio que ela mesma pediu que se fizesse sobre ela, seu afastamento do mundo, e a convivência com algumas poucas pessoas refletem na capacidade de atrair novos devotos. Além da ausência de memória sobre ela, a disputa pelo controle sobre Lola exercida por religiosos, de um lado, e pelos devotos especialistas – aqueles que conviveram intimamente com ela – de outro, gera tensão e inibe a divulgação explícita da devoção. Mesmo que alguns entrevistados como a Sr.ª. Myrian, o Sr. Raul, que foram pessoas que conviveram com Lola, digam que ela era muito boa, que se dedicava muito aos pobres, era muito carinhosa com todos e muito caridosa, esta informação não é frequente em outros depoimentos. As ações públicas de Lola também não caminharam nesta direção. Todo seu desprendimento era em favor da Igreja Católica, e da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Lola é exemplo de fé e abnegação e, essencialmente por isso é respeitada e venerada, diferente das outras duas santas do povo estudadas que, têm a proteção e a proximidade com os devotos como elementos mais evidentes. Apenas como exemplo e meio de comparação com o caso de Nhá Chica – outra “santa do povo” entre as três estudadas que é serva de Deus, como Lola, e também se dedicou a divulgar uma devoção oficial, cito a seguir eventos relacionados aos testamentos das duas. Lola deixou em seu testamento, de forma bem definida, o destino dos seus bens. A Igreja foi a única beneficiada. Todas as formas de aplicações e usos da herança foram pré- determinadas e, de acordo com o desejo de Lola, tudo deveria ser convertido em ações para 203 divulgar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Vejamos o que consta no texto do testamento: (...) os mencionados bens pertencerão à Congregação dos Padres Jesuítas do Brasil, (...); os bens terão a seguinte destinação: os representantes da Congregação deverão conservá-los, podendo construir nas terras, convento, seminário, casa de retiro, mas utilizar referidos bens, principalmente para propagar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, na mesma medida em que a outorgante testadora propagada, a fim do eu o Sagrado Coração de Jesus seja conhecido e amado; e deverão ser distribuídos, anualmente, vinte e quatro imagens do Sagrado Coração de Jesus, quadros para entronização, quarenta mil exemplares da novena eficaz ao Sagrado Coração de Jesus, trinta mil exemplares do livrinho Grande Promessa, trinta mil exemplares do santinho de anotar novenário e, fitas para os homens do apostolado do Sagrado Coração de Jesus de Rio Pomba, sendo a distribuição gratuita. (...) se for necessária a alienação de seus bens, que seja feita de maneira que nunca seja interrompida a propagação do Sagrado Coração de Jesus (...) Disse finalmente a testadora que todos os demais bens que possuir por ocasião de seu falecimento e que não foram expressamente mencionados neste instrumento, ficarão pertencendo à 322 Congregação dos Padres Jesuítas do Brasil (...) A devoção e cuidado dirigidos à Igreja, e ao Sagrado Coração de Jesus, associada ao fato de Lola não falar com ninguém, a não ser seus poucos amigos e alguns padres, preferencialmente de outras cidades e não de Rio Pomba, também colaborou para a criação de uma espécie de barreira entre Lola e os outros. Barreira que foi mais reforçada ainda pelo silêncio que se fez a seu respeito. Esta questão do silêncio ainda inibe a reprodução de narrativas sobre Lola em Rio Pomba. É habito, as pessoas se esquivarem de dar entrevistas sobre ela e, em geral indicam a Sr.ª. Myrian, Dona Cizinha ou outras amigas de Lola, como as pessoas que sabem direito sobre Lola. Outro dado significativo para entender esta situação de poucos novos devotos de Lola, que precisa ser frisada é o fato de que Lola é associada à devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Esta devoção não encontra grande espaço fora dos limites institucionais, sendo mais associada à introspecção, além de remeter à romanização, época em que as devoções tradicionais e populares foram perdendo espaço nas celebrações oficiais, neste caso, de certa forma pode ainda ser interpretada como uma devoção imposta. A devoção a Lola é mais cercada de regras e tabus do que as outras duas estudadas. O acesso aos devotos é mais difícil, os ex-votos são recolhidos e levados para a casa onde Lola morou e não ficam acessíveis. 322 Documento registrado no Segundo Ofício de Notas, Rio Pomba, 07 de fevereiro de 1983. Disponível para consulta na Associação dos Amigos da Causa de Lola. 204 Volto a lembrar que o carisma dos santos em geral está mais ancorado na sua proximidade com os devotos, na maior ou menor presença dele entre os devotos, do que na excepcionalidade que se apresenta nele, e isto não é diferente no caso dos santos do povo. Os devotos militantes em prol da causa da santidade de Lola, mesmo não declarando abertamente, têm consciência das questões acima expostas. Reuniram-se numa associação, a “Associação dos Amigos da Causa de Lola” e, embora tenham convidado os representantes eclesiásticos para participarem, não tiveram uma resposta positiva dos mesmos. Trabalham para divulgar a obra de Lola, torná-la conhecida, para isto reúnem documentos, enviam correspondências, distribuem livros e santinhos com a foto de Lola, e tentam manter vivas as tradições iniciadas por ela. Procuram perpetuar as ações e a lembrança viva de Lola. No documento produzido pela Associação e registrado em cartório em 19 de setembro de 2006, destacam-se como seus objetivos: Acompanhar o processo de beatificação; Zelar para que o testamento seja rigorosamente cumprido; Distribuir os objetos de devoção segundo a vontade de Lola; Trabalhar para obter recursos para revitalização do espaço físico onde se situa a casa de Lola; Construir uma Igreja consagrada ao Sagrado Coração de Jesus no sítio onde Lola morou; Cuidar para que as terras sejam usadas para que o Sagrado Coração de Jesus seja mais conhecido e amado. Em outros termos, estão decididos a trabalhar para fazer cumprir as determinações de Lola, feitas em testamento, o que inclui a construção de um lugar para orações na casa em que ela viveu. Ações que poderão despertar a atenção das novas gerações para Lola. A presidente da associação, Sr.ª. Myrian deixou claro seu descontentamento com a forma como os desejos de Lola estão sendo negligenciados pela Igreja, fato expresso em 323 depoimentos transcritos anteriormente. A inquietação se justifica, pois a preservação da casa onde Lola viveu, da sua história e a divulgação de sua fé, são importantes para que sua santidade não seja esquecida. Os devotos reunidos na Associação dos Amigos da Causa de Lola iniciaram um movimento para levantar fundos para as obras na casa de Lola, e para dar andamento ao reconhecimento oficial da sua santidade sem o aval da Igreja. Estas atitudes representam o 323 A resistência existe mas a gente está lutando para isto (...) Existem regras para a beatificação e canonização dela mas, para o atendimento do testamento não. Existe o testamento que pede, o que nós queremos continuar lá, não é para dizer que ela é santa não, o nosso pedido de abertura lá não é mostrando para o povo que ela é santa e nem canonizada, é para divulgar o que ela pede em seu testamento, ela pede que continuem a divulgar, como ‘eu divulgava’ (...) - Depoimento Sr.ª. Myriam Rodrigues Vieira, 2006. 205 Tendão de Aquiles na relação entre a Igreja e estes devotos. Há uma relativa disputa entre a 324 Igreja e os amigos de Lola sobre quem coordena de fato tudo que se refere a ela. Nesta tensão os devotos lembram que foi aos jesuítas que Lola deixou a responsabilidade de administrar sua herança. Ocorreu que os jesuítas não poderiam realizar as obras sugeridas por Lola, então, transferiram para a Arquidiocese de Mariana a posse das doações de Lola, que agora é pressionada pelos devotos para efetuar as obras sugeridas por Lola. Questão que reforça a tensão entre as partes envolvidas. Os devotos reunidos na Associação dos Amigos da Causa de Lola querem que as obras aconteçam e afirmam que “caso a Arquidiocese não possa cumprir o testamento, nós temos outras congregações que 325 querem assumir a obra de Lola”. Os devotos da Associação dos Amigos da Causa de Lola querem também construir uma Igreja nas terras deixadas por Lola, em lugar da casa de orações, para que mais pessoas possam ter acesso ao espaço. O que não é bem visto pelos representantes clericais, visto que essa Igreja poderia ser associada à Lola, como se ela fosse uma santa, oficialmente reconhecida. O que, como vimos, é passível que aconteça, haja vista que os devotos poderão, assim como ocorrido no caso da devoção à Nhá chica em Baependi que nominam a Igreja construída para Nª Sr.ª da Conceição de Igreja de Nhá Chica, denominar a Igreja construída para a adoração ao Sagrado Coração de Jesus como a Igreja de Lola. Apesar da preocupação evidente, até mesmo alguns representantes da Igreja reconhecem que as obras são necessárias, como demonstrou declaração de Dom Luciano Mendes de Almeida, da Arquidiocese de Mariana, a qual pertence Rio Pomba: História nenhuma se preserva com porteiras fechadas, acesso negado aos visitantes, riscos de uso indevido do local que o esquecimento, de um lado, 326 e a centralização do poder, de outro, podem estimular. No entanto, logo a seguir, este mesmo religioso destaca que cabe à Igreja direcionar as ações sobre o destino de Lola: Compete aos párocos, tendo a seu lado os assessores do Tribunal Eclesiástico de Mariana, levar adiante o processo assegurando a recepção de depoimentos, sua classificação, os tempos de oração e os serviços de 324 As relações existentes em torno de Lola, acerca do ‘controle’, assemelha-se ao enunciado por Fernandes (1988) sobre os conflitos que surgiam na história dos santuários brasileiros, na época da romanização, que podiam ser classificados com uma “entrada dupla – disputas entre o episcopado e notáveis locais pelo controle administrativo; confrontos devocionais entre missionários com uma mentalidade tridentina e os romeiros portadores dos costumes nativos.” FERNANDES, 1988, p. 92. 325 Depoimento Sr.ª Myriam Rodrigues Vieira, 2006. 326 Declaração constante na Comunicação às Comunidades e Paróquias da Arquidiocese de Mariana, junho de 2005. 206 conservação da propriedade de Dª. Lola, assim como a difusão por ela solicitada de preces e imagens do Sagrado Coração de Jesus. (...) Agradeço as diligências e iniciativas até hoje manifestadas em benefício do maior conhecimento das virtudes de Dª. Lola e permito-me nesta nova fase, de acordo coma as orientações canônicas, determinar que todo empenho e ulteriores iniciativas sejam feitos sob condução dos responsáveis acima 327 indicados. Lola é hoje Serva de Deus para a Igreja Católica, e o processo para sua beatificação foi iniciado em 2005. De acordo com as regras institucionais a beatificação permite a veneração pública local, só a canonização permitirá a veneração universal. Tal qual Lola, Nhá Chica também tem já encaminhado seu processo de beatificação, e já é Serva de Deus. A devoção a Nhá Chica abrange um grande número de pessoas, de diferentes lugares e idade. Os resultados das pesquisas refletem uma renovação mais estável no quadro dos devotos. Nhá Chica tem sua santidade pautada especialmente na sua capacidade de proteção e na caridade para como os necessitados. Também ela deixou seu testamento pronto, mas diferente de Lola, tudo o que tinha foi dividido entre a Igreja, para ser usado em favor de Nossa Senhora da Conceição e entre os pobres. Esta é uma lembrança forte entre os devotos, por isto e por fatos citados nas narrativas de sua vida, eles transformaram-na na “mãe dos pobres”. Assim está escrito em seu testamento: (...) dou ao Félix, que foi meu escravo um terreno que fica para baixo do portão que entra para a Capela, (...) a quem também deixo a minha louça e os trastes de casa, a excepção das cadeiras e de dois tachos, que serão distribuídos em esmolas aos pobres. Deixo um vestido de nobreza para uma órfã virgem. Outros cortes de vestidos e roupas, para também serem vendidos e distribuídos aos pobres (...) Do remanescente de meus bens, deixo à Nossa Senhora da Conceição (...) (Candorin, 2004:75) A maneira dos devotos se relacionarem com esta santa deixa entrever a intimidade que têm com ela. As demonstrações públicas de devoção são muito frequentes e os devotos falam dela não apenas com um modelo de vida a ser seguido. Inúmeras vezes fazem relação de Nhá Chica com a figura materna e/ou com Nossa Senhora. A devoção marianista é muito forte na região de Baependi, tanto que entre as cinco Igrejas locais apenas uma não é consagrada a Nossa Senhora, isto sem falar das várias capelas de Nossa Senhora que encontramos na cidade. No Brasil a devoção a Nossa Senhora encontra, desde o inicio da colonização portuguesa, grande espaço no imaginário religioso católico. Nossa Senhora é a Mãe que a 327 Comunicação às Comunidades e Paróquias da Arquidiocese de Mariana, junho de 2005. 207 todos protege, é a Compadecida que nos socorre na vida terrena e após a morte, a Cheia de 328 Graças, que roga por nós pecadores. A devoção a Maria bem como o respeito que a Ela é dirigido aproxima-a da própria imagem de Deus. A devoção Mariana ajuda a entender o crescimento de devoções a figuras femininas e no grupo pesquisado, em especial, o grande número de devotos de Nhá Chica. No que tange à relação com a instituição Católica, o ponto mais delicado da devoção a Nhá Chica está na postura dos devotos que já a veneram como santa, algo que os padres e as Irmãs Franciscanas tentam conter embora, muitas vezes os próprios representantes clericais a chamam de Nossa Santinha. Outro ponto a ser mencionado, é a identificação do Santuário de Nossa Senhora da Conceição como se ele fosse a Igreja de Nhá Chica. Novamente, os representantes da Igreja dão sinais de aceitação, acatando tal denominação, como pode ser comprovado pelo anúncio da festa de Nhá Chica do ano de 2006 (ver anexo 4.1). As concessões realizadas pela Igreja, diante do fervor dos devotos de Nhá Chica, aproximam-se daquilo que Steil (1996) qualificou como alargamento da religião, ou seja, diante da necessidade imposta pela força e presença dos devotos, os padres tendem a “alargar os limites da religião e a buscar interpretações que integrem o seu discurso heterodoxo dentro da ortodoxia institucional.” Também em Baependi ocorre algo como o sugerido por Steil em seus estudos, lá “o culto nos santuários se caracteriza particularmente por sua capacidade de acomodar a diversidade dos discursos, rituais e das práticas (...)” (Steil, 1996:50) A capacidade de curar, a dedicação aos necessitados e a aproximação com Nossa Senhora são os principais sinais de santidade destacados em Nhá Chica, por seus devotos. Da mesma forma como ocorrido com Lola, que se dedicou a divulgar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, Nhá Chica foi dedicada a divulgar a devoção à Nossa Senhora a Conceição. Estas duas se aproximam das novas beatas e enclausuradas típicas do século XIX, quando a reclusão ou o afastamento do mundo foi associado à dedicação a uma devoção. A partir do século XIX, as mulheres santas são mais destacadas pela caridade e pelos ensinamentos cristãos, e não mais pelas mortificações (Bell, 1994:252), que eram mais 329 comuns até o século XVII. 328 Citando Fernandes (1988): “Seu nome é lembrado em cada momento de dificuldade, e a expressão ‘Valha- me, Nossa Senhora!’ é sem dúvida uma das nossas invocações preferidas. Nesta forma, ainda que por caminhos diversos ela é importante tanto para o clero quanto para o conjunto dos fiéis. Com efeito, é ela quem mais tem feito paras aproxima-los, apesar de tantos mal-entendidos.” FERNANDES, 1988, p. 95. 329 Luis Mott escreve sobre casos de reclusas em casa, que teriam vivido no Brasil do século XVII e que se submetiam a longos e dolorosos sofrimentos para acompanhar o sofrimento de Cristo. Em Pernambuco destaca as irmãs Vicência e Helena de Castro, que passavam a maior parte do tempo em orações diante do crucifixo, de 208 A maneira como os devotos interpretam as relações entre as santas do povo – Lola e Nhá Chica - com os personagens de quem Elas eram devotas, está representada nas fotos que consegui sobre cada uma delas. No caso de Lola, em sua relação com o Sagrado Coração de Jesus, há a predominância Dele em relação a Ela, tanto que em sua santidade é basilar a exemplar dedicação e divulgação do Sagrado Coração de Jesus. Em relação a Nhá Chica há uma equiparação de valores, tanto Ela quanto a Senhora da Conceição são definidas pelos devotos como santas, como mães e protetoras. Existem situações, como as ocorridas na festa do dia 08 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, em que se percebe até uma supremacia na preferência por Nhá Chica. As fotos mencionadas destas santas do povo refletem a simbiose resultante da relação das mesmas com os representantes sagrados de suas preferências, respectivamente Lola com o Sagrado Coração de Jesus e Nhá Chica com a Senhora da Conceição. Nas duas primeiras, Lola está envolta pelo Sagrado Coração de Jesus, como se pertencesse a ele, uma dependente dele. Há uma primazia da devoção oficial em relação à Lola. Estas fotos são distribuídas aos devotos, uma delas aparece no túmulo de Lola, na caixa de vidro onde são colocados os pedidos dos devotos, a outra estampa santinhos com orações e os livrinhos de divulgação do Sagrado Coração de Jesus: Figuras 21 e 22 – ‘Santinhos’ distribuídas aos devotos de Lola Fonte: Imagem reproduzida por mim durante pesquisas, 2006 joelhos e com os braços abertos; eram muito rigorosas nos jejuns e nas mortificações; No Recife, sete irmãs órfãs da família Mendes de Oliveira são lembradas, junto com outras seis irmãs da família Rodrigues da Fonseca, exemplares pela “pobreza voluntária, silêncio perpétuo e vida anacoreta.” Cada uma destas desenvolveram maneiras particulares para suas mortificações, como por exemplo, o contínuo choro da beatriz, que acabou por cegá-la; ou ainda da Maria Pinta, que se refugiou num cubículo de barro, no fundo do quintal, e era ‘guardada’ por uma cascavel que só para ela era mansa, a todos os outros afugentava. 209 A foto de Nhá Chica, divulgada no Santuário da Conceição, por outro lado, coloca-a em primeiro plano, tendo ao fundo a imagem da Senhora da Conceição e do Santuário. Há grande destaque a Nhá Chica: Figura 23 – Imagem de Folhetos de Nhá Chica Fonte: Imagem reproduzida por mim durante pesquisas, 2006 A opção de apresentar Nhá Chica assim, colocada em primeiro plano, pode ser percebida também quando vamos ao Santuário. Ao chegarmos, antes mesmo de entrar nele, nos deparamos com a grande imagem de Nhá Chica nas escadarias. É importante lembrar que aos olhos da oficialidade as duas são Servas de Deus, embora a abertura para a ação dos devotos de Nhá Chica no Santuário da Conceição seja infinitamente maior do que na Igreja de São Manoel em Rio Pomba. Em relação à devoção a Palmyra não ultrapassa muito os limites da cidade de Juiz de Fora, mas há uma estabilidade no número de devotos que frequenta regularmente o cemitério, participando das novenas e rezas do terço das segundas-feiras, e uma grande frequência no dia 02 de novembro. Na devoção a Palmyra a relação com Nossa Senhora também ocorre, mas em menor grau, justificado pelo fato dela ser uma santa jovem. No caso de Palmyra são os devotos os únicos responsáveis pela devoção, sua divulgação e realização dos cultos. Mesmo ciente disto, procurei junto aos representantes da Igreja informações sobre o culto. Os interpelados preferiram não se manifestar, alegando não 210 saberem quase nada da história de Palmyra, mas se dispuseram a falar sobre as outras duas santas em questão - Lola e Nhá Chica, as quais têm grande aceitação entre os religiosos. A opinião dos representantes clericais consultados sobre o culto a Palmyra é mais discreta do que a assumida e divulgado em 1940, como sendo de Dom Justino de SantAnna, bispo de Juiz de Fora naquela época. De acordo com a publicação no Jornal Diário Mercantil, de 21 de dezembro, ao ser interrogado sobre o que achava da questão, o bispo manifestou-se dizendo: “Deus na sua infinita misericórdia sabe o que faz. Se a linda moça possuía virtudes e predicados cristãos não seria difícil que pudesse ser a intermediária do céu na concessão de graças”. Com Palmyra os devotos ficam inteiramente à vontade para fazer qualquer tipo de pedido: cura de doenças graves ou não; empregos; proteção para família, para o namoro, resolução de questões litigiosas, entre outros. A questão da proteção e da cura, além da identificação dos devotos com ela são as principais justificativas para a devoção. A questão da imagem é muito significativa nos três casos. Confirmando o que já foi dito por vários estudiosos, a imagem dos santos “atua no duplo registro de uma presença e uma ausência” (Aumont,1995:120), representam o santo estando ele em outro nível, ou ainda, operam sobre a capacidade de imaginar coisas distintas dos objetos existentes, bem como sobre a necessidade de visualização determinada pela presença de objetos, pela apreensão de suas propriedades ou pela ausência de sua manifestação. (Lopes, 2000: 2-6) As imagens são veículos que incorporam propriedades simbólicas complexas. Através da imagem o santo deixa de ser entidade abstrata encarnando-se nela. Ao figurar a santidade, ao mesmo tempo em que representa também um modelo de humanidade associado com o santo, as imagens religiosas são construções “materializáveis de concepções sagradas” e também, “catalisadoras de outras concepções” do sagrado. Desta forma, conforme Lopes (2000), a imagem está sempre sendo construída e reconstruída, posteriormente à sua criação plástica há uma constante recriação mística. (Lopes, 2000: 7) É esta concepção que nos ajuda a entender como a imagem instalada no túmulo de Palmyra é, para os devotos, a própria Palmyra, a sua representação materializada, mesmo não havendo nenhuma prova de que aquela imagem de fato tenha sido construída à sua semelhança, ou mesmo para representá-la. Ao contrário, a imagem se aproxima de outras representações de Nossa Senhora, e a tradição da colocação de imagens de santos nos túmulos reforça esta possibilidade. A revelia destas minhas observações é diante e para a imagem constante no túmulo que os devotos se revezam em devoção à Santa Palmyra. Neste caso cabe a observação de 211 Eliade (2001) sobre o fato de que, quando alguns homens veneram pedras e árvores, estas não são adoradas porque são pedras ou árvores, “mas justamente porque são hierofanias, porque revelam algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado (...)”. As hierofanias é que permitem a um objeto ser transformado em outra coisa, e, no entanto, continuar a ser ele mesmo. (Eliade, 2001:17-18) Não há divulgação de santinhos com a imagem de Palmyra, tampouco existem representações em esculturas de gesso, barro ou outros materiais. Lola tem sua imagem divulgada basicamente por santinhos, onde são publicadas as orações ao Sagrado Coração de Jesus ou oração para sua beatificação. Diferente das duas citadas, Nhá Chica é representada em estatuetas, de gesso e outros materiais, e suas imagens são comercializadas nas lojas do Santuário, nas barracas de camelôs durante as festas, e em lojas de artesanatos da cidade de Baependi. Além destas existem a escultura que a representa na escada do Santuário, esculturas menores nas dependências da ABNC e inúmeras medalhinhas e pequenos relicários, vendidos na loja do Santuário, todos com a reprodução de sua imagem. 330 As “trocas simbólicas” inerentes aos cultos às santas do povo são inúmeras, com destaque para os ex-votos, ou seja, a realização de promessas e o pagamento dessas. As promessas são muito importantes e respeitadas pelos devotos, não se deve deixar de cumpri-las, sob a pena de perder a proteção. Elas estão sujeitas aos pedidos, e os ex-votos variam de uma santa para outra. Em todos os três casos é comum a peregrinação ao túmulo como forma de 331 agradecimento e pagamento por uma graça alcançada. Quando aos objetos que são deixados como ex-votos, no caso de Palmyra há uma predominância de flores, velas, placas, bilhetinhos e terços. Na devoção à Lola são comuns também flores, velas e bilhetes, mas o mais corriqueiro são os objetos pessoais deixados junto à grade do túmulo. As flores, placas, objetos pessoais e cartas marcam também os ex-votos de Nhá Chica, no entanto, chamam a atenção, as variadas representações de partes do corpo em cera, e gesso. Os pedidos feitos às santas do povo mantêm alguns padrões perceptíveis. Numa primeira versão, busca-se a intercessão do santo junto a Deus para que se realize um pedido, como mostra o seguinte gráfico: 330 Pierre BOURDIEU, A economia das Trocas Lingüísticas, p. 102, 1998. 331 Os termos graça e milagre são utilizados pelos devotos com a mesma conotação, que é designar a intercessão benéfica das santas. 212 Gráfico 21 – Caminhos para pedidos 1a O devoto 1º O devoto agradece a pede à santa graça recebida Deus atende A santa pede ao pedido por a Deus pelo intercessão devoto da santa Em outra possibilidade, a própria santa é vista como capaz de atender aos pedidos dos devotos: Gráfico 22 – Caminhos para pedidos 1b O devoto 1º O devoto agradece a pede à santa graça recebida A santa atende ao pedido Os pedidos e a realização dos mesmos podem ainda seguir outros caminho que se tacam pela participação de outros santos, chamados para ajudar no pedido dirigido a Deus ou para a realização do pedido. Assim temos no primeiro destes casos: 213 Gráfico 23 - Caminhos para pedidos 2a O devoto 1º O devoto pede agradece a graça à santa que o recebida. atenda A santa pede ajuda a outros santos e juntos atendem ao pedido Ou ainda, numa outra opção o pedido dirigido à santa do povo sugere que ela se associe a outros santos para que juntos eles mesmos possam realizar o milagre esperado: Gráfico 24 - Caminhos para pedidos 2b O devoto 1º O devoto agradece a pede à santa graça recebida. que o atenda Deus atende ao A santa pede pedido por ajuda a outros intercessão de santos e juntos todos os santos pedem a Deus Nos últimos casos percebemos o hábito dos devotos de recorrer com naturalidade a mais de um santo, sendo enfim, em certa medida, devoto de todos. Reforçando a constatação de que para eles não há concorrência nem desqualificações de um santo em relação a outro. Este não é um hábito restrito aos santos do povo, como já exposto anteriormente. A relação entre devotos e as santas do povo são entendidas como mais estreitas, por causa da proximidade da história e cotidiano do devoto com as santas, e sua existência. Mesmo reconhecendo, como indica Menezes (1996:76) que a relação de devoção se 214 estabelece como uma reciprocidade assimétrica, no caso das santas do povo essa assimetria é amenizada, a partir do momento que o devoto tem consciência da necessidade que as santas têm deles acreditarem nela para que sua santidade seja concretizada. O devoto age tanto na construção quanto no reconhecimento da santidade das Santas do Povo. Durante nossas pesquisas encontramos vários registros em que os devotos prometem rezar para que Deus abençoe a santa e, na maioria das vezes, pede para que sua santidade seja ampliada e reconhecida por todas as pessoas. Nos casos de Nhá Chica e Lola, pedem o reconhecimento adequado advindo da Igreja Católica. Nestas circunstâncias, as orações dos devotos são instrumentos também de fortificação da santa. As orações são realizadas em favor de uma graça para a própria santa, que, neste contexto, também precisa ser agraciada. Neste ponto Santas e devotos se igualam, ainda que minimamente, numa relação e dependência mútua. A relação estabelecida entre os devotos e as santas do povo nem sempre se encerra no 332 atendimento do pedido e pagamento da promessa , existem muitos devotos que se mantêm fiéis frequentadores, como confirmam as expressões: “todo o ano eu venho”, “toda primeira sexta-feira eu venho”. Não se tratando de uma devoção utilitarista e/ou temporária. A abrangência geográfica das devoções varia de uma santa para outra. Palmyra é que atinge o menor raio de atuação, concentrado na cidade de Juiz de Fora e as cidades próximas; Lola tem devotos concentrados em Rio Pomba, cidade onde viveu e expande sua atuação para cidades vizinhas, cidades mais distantes em Minas Gerais e cidades de outros Estados da Região Sudeste, em especial do Rio de Janeiro; Nhá Chica, dentre as santas estudadas, é a que possui o maior raio de atuação, a devoção a ela ultrapassa os limites do Estado de Minas, da Região Sudeste e do País. Essas informações estão representadas no próximo gráfico. Partindo do centro para as bordas do desenho, cada círculo corresponde a um limite territorial: 1º círculo (verde) se refere à cidade centro da devoção e cidades circunvizinhas; 2º círculo (azul) se refere às cidades mais distantes das cidades centros, mas ainda no Estado de Minas; 3º círculo (rosa) se refere aos demais Estados da Região Sudeste; 4º círculo (amarelo) se refere aos demais Estados brasileiro; 5º círculo (cinza) se refere a outros países: 332 Situação registrada também por C. A. STEIL, O Sertão das Romarias, p. 103, 1996. 215 Gráfico 25 – Abrangência geográfica das devoções Lola; Palmyra; Nhá Chica Lola; Nhá Chica Lola; Nhá Chica Nhá Chica Nhá Chica A leitura de Marc Augé (1994), dentre outros estudiosos da questão do espaço, nos leva a entender que toda sociedade humana age sobre o espaço em que se situa, simbolizando e re-simbolizando, mediantes suas construções mentais e simbólicas. Nos casos estudados é a presença das santas do povo, a associação dos lugares com elas, o que promove a sacralização destes novos espaços. Segundo Eliade (2001): “Todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e o torna qualitativamente diferente.” (Eliade, 2001:17-18) Os espaços são importantes não somente pela questão dos limites que impõem à sociedade, pelas possibilidades econômicas, ou outros particularismos. É importante levar em conta a questão das implicações mentais nele representadas. Todas as transformações políticas, culturais, econômicas que afetam a humanidade deixam suas marcas no espaço. (Mata, 1998:13) No contexto contemporâneo são criados espaços sagrados inovadores. Devido ao avanço tecnológico e científico, o espaço entendido como construção existencial, lugar de uma experiência que dá margem a novas construções e consagrações espaciais. A devoção às santas do povo é responsável pela sacralização de túmulos e seus arredores conforme ocorre nos casos de Palmyra e Lola; e de caminhos, como os que unem as cidades circunvizinhas a Baependi, que se tornaram Caminhos de Nhá Chica, além do espaço virtual, onde são apresentados altares e lugares para orações e pedidos. 216 As santas do povo atuam e modificam os ambientes e a rotina dos lugares onde a devoção floresce. Nesses lugares surgem novos centros de peregrinação e as manifestações devocionais interferem no ritmo da vida das pessoas, mesmo das não devotas, promovendo o aumento nas rendas do comércio, atraindo turistas, entre outras coisas. Respeitadas as diferenças existentes entre elas, criam novas regras e normas para organização dos espaços e das comunidades onde são cultuadas. 217 6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Depois de tantas viagens, por diferentes lugares e meios também variados, incluindo ou não deslocamentos no espaço físico, às vezes, substituídos pelas páginas de livros e revistas ou ainda por cliques no teclado do computador, chega-se ao termo esta peregrinação por entre os temas das santificações populares. Todo o texto aqui apresentado é resultado de um esforço empreendido desde o início desta caminhada, iniciada com a construção de um projeto de pesquisa, antes mesmo da aprovação e minha inclusão no curso de doutorado do PPCIR/UFJF. Desde o início assumi como objetivo central identificar os paradigmas populares da santidade, tentando entender como surgem as devoções, em que se pautam e como se concretizam no meio social. Assumindo uma postura interdisciplinar, que permite uma interpretação mais ampla do fenômeno religioso recorri, sobretudo, aos instrumentais e produções dos campos da antropologia, da sociologia e da história, para embasar minhas investigações e análises. A opção pela interdisciplinaridade, como já citado, atende à sugestão de Montero (1999:338) sobre a importância e necessidade da concretização de uma proposta de trabalho que unisse diferentes especialidades disciplinares no estudo das manifestações religiosas, como método para interpretações mais abrangentes. O interesse pelo estudo das santificações populares, um tema classicamente associado ao catolicismo, unido à percepção da ligação dos devotos com o catolicismo, levou-me a recorrer às produções sobre ele, em especial sobre o catolicismo popular. Essas foram leituras fundamentais para as pesquisas e conclusões, ressalvadas as diversidades existentes entre a contemporaneidade e as décadas de 70 e 80. Em geral identificados como elementos da tradição religiosa, do catolicismo popular, a santidade e as devoções, objetos desta tese, ganharam novos espaços na contemporaneidade, tanto no âmbito da vivência religiosa quanto no meio acadêmico, permitindo mesmo que tais temas sejam identificados como tradições revisitadas. Sobre isso, é importante relembrar que, conforme discussões teóricas apresentadas no capítulo primeiro desta tese, a contemporaneidade religiosa caracteriza-se, entre outras coisas, pela convivência de elementos herdados da tradição, da modernidade e da pós-modernidade. Após selecionar os casos referenciais para este estudo, optando por partir da perspectiva dos devotos, do acompanhamento dos rituais, da observação do campo, ampliei as 218 questões a serem investigadas, dedicando-me a pesquisar como os devotos se relacionam com as santas eleitas e com a instituição católica; como se relacionam entre si; como vivem a devoção; por que acreditam na santidade das suas santas; quais os sinais entendidos pelos devotos como denotativos da santidade, identificados em Lola, Palmyra e Nhá Chica, e quem são os devotos. Optei por realizar uma pesquisa mais centrada no acompanhamento dos rituais que acontecem nos lugares referências das três devoções destacadas. As investigações foram concretizadas com a participação nas reuniões dos devotos, realização de entrevistas, observações dos atos e ambientes dos cultos, além da aplicação e análise de questionários, instrumentos objetivos para a identificação do perfil dos devotos. Além disto, foram realizadas pesquisas em arquivos, museus e associações ligadas às santas do povo. Tendo selecionado três casos como objeto de pesquisa é natural que encontrasse variações entre um caso e outro, no entanto, a diversidade é intrínseca a cada um dos casos. Cada uma das devoções comporta um micro-cosmo, construído a partir de diferentes parâmetros e atores sociais. Os lugares dos cultos são marcados pela presença de diversas ideias, conceitos e atitudes dos devotos, que são pessoas de várias classes econômicas, de lugares distintos, de nível intelectual também diferenciado, não compondo uma massa homogênea. A categoria popular comporta tanto devotos leigos quanto devotos religiosos, representantes da Igreja Católica como os padres e irmãs franciscanas devotos de Lola e Nhá Chica. Muitas vezes os devotos têm em comum apenas a devoção. Não são representantes de guetos que se reúnem, são pessoas que se encontram, transformadas em semelhantes pela participação nos eventos realizados em torno de devoções comuns, inspiradas por motivos nem sempre coincidentes. A partir das pesquisas consegui perceber que aos olhos do devoto a questão da excepcionalidade, especialmente a capacidade de proteger e promover curas, é elemento de destaque nas atribuições de santidade, em geral associada a uma história de vida exemplar e virtuosa, o que indica a existência de similaridades no surgimento dos santos do povo, confirmando proposições apresentadas por Sáez (1996:100), que sugere a existência de homeostase na origem dos santos. Conforme já afirmava Fernandes (1989:7-8), a precariedade e a fragilidade da existência humana são elementos singulares das devoções, fazendo da proteção em todos os âmbitos da vida, uma necessidade constante dos devotos, e um dos principais motores das crenças e devoções constituídas. 219 Esta constatação reafirma também as conclusões de Brandão (1980), que aponta a proteção como elemento chave no entendimento da relação santo-devoto. Para ele, muito mais do que milagre, os sujeitos esperam da religião proteção. Mesmo um fiel que nunca tenha recebido um milagre continua devoto “desde que se reconheça ligado ao sagrado e protegido por alguma de suas forças”. Os fiéis esperam da religião, do sagrado, “certezas fundamentais - mesmo quando vagas - sobre a vida, o mundo e as contradições das trocas entre ambos” (1980:140-141), uma concepção que faz dos santos atores singulares na estruturação da fé dos devotos. Alguns aspectos da vida humana são exemplares quanto à precariedade e fragilidade. O medo diante da doença, da proeminência da morte, do sofrimento nos afeta a todos, apesar de toda evolução que se tem percebido nas esferas médicas, científicas e tecnológicas. O momento de convivência com a doença é angustiante, principalmente se as possibilidades de 333 cura, às quais o doente costuma recorrer, não atendem às suas necessidades. No limite, as pessoas, por menos crentes que sejam, agarram-se a toda possibilidade de salvação e alívio, independe de parecerem demasiadamente exóticas ou irracionais aos olhos da razão científica, fato que pode ajudar a compreender a atração que a possibilidade de cura e proteção exerce sobre os devotos. Como demonstram os casos investigados, a maior ou menor proporção dos devotos está diretamente ligada ao reconhecimento da capacidade de proteção dos santos. A proteção permanece, portanto, como um elemento chave no entendimento da relação santo-devoto em diferentes tempo e lugares. A etnografia realizada permitiu-me perceber também que entre os devotos das santas do povo, denominados como populares estão pessoas de diferentes classes, idades e origens. Entre os devotos são incluídos também representantes eclesiásticos, apesar da manifestação pública destas devoções contrariarem, em certa medida, as posturas canônicas, reforçando a tese das “contaminações mútuas” e “circularidade cultural”, anunciadas na Introdução desta tese. A respeito desta questão, ela corresponde também às expectativas de Fernandes (1984:9-11), sobre a não existência de uma distinção rígida entre oficial e popular no âmbito do catolicismo, e sim uma “oposição complementar”, marcada por interpenetrações constantes destas esferas. 333 Sobre as relações entre curas e religião, ver: Delma Peçanha NEVES, As “Curas Milagrosas” e a idealização da ordem social (1984); Paula MONTERO, Da doença à desordem (1989); Miriam Cristina M. RABELO, Religião, ritual e cura (1993). 220 Assim, diante das realidades múltiplas não é possível reduzir as relações que se estabelecem em torno das santificações populares a conflitos entre letrados e rústicos, especialistas e subalternos, dominantes e dominados, folclore e religião verdadeira, dentre outras oposições rigidamente estabelecidas. Os papéis de cada integrante são construídos a partir do contexto e das interpretações que fazem dele. São registradas alianças e convergência de interesses entre devotos e instituições religiosas, o comércio, o lazer e fé, registrando-se em alguns momentos maior ou menor fragilidade destas alianças, o que permite a emergência de situações mais tensas, conforme descrito nos Capítulos 3 e 4. As produções históricas consultadas demonstram que as santificações populares, ou seja, a eleição de santos a partir da iniciativa de devotos é uma tradição que tem suas raízes firmadas no início do cristianismo. Quanto à tradição de eleger novos santos no Brasil esta é uma prática também antiga, como confirmam, entre outros, os estudos de Mott (1994). Para os fiéis, o que importa é que os santos são, antes de qualquer coisa, pessoas especiais que habitam o céu, estando junto de Deus, e por isso têm poderes sobrenaturais (Oliveira, 1983:913), sejam eles oficialmente aceitos pela Igreja ou não. Segundo reflexão de Fernandes, a tradição da Igreja é, em si mesma, generosa com a sua galeria de Santos mas os fiéis continuam a produzir novos Nomes Sagrados, alguns reconhecidos pelo clero, outros não. Não há, talvez, figura humana ou associação simbólica que não esteja de alguma forma representada nos altares do catolicismo. (Fernandes, 1988:101) Quando elegem novos santos os devotos deixam de ser somente espectadores no processo da santificação, realçando ainda mais a ideia de dependência mútua entre o santo e o devoto. Assumindo uma postura ativa na construção das santidades, estreitam-se ainda mais os laços entre eles e os santos. As santificações populares têm como característica essencial serem resultados de uma avaliação individual, resultando de uma relação direta do devoto com o santo, embora os devotos apropriem-se de preceitos e fórmulas institucionais católicas ao elegerem os novos santos. As definições sobre o que seria um santo são muitas e variadas, embora se apoiem quase sempre em narrativas construídas a partir de manifestações excepcionais relacionadas aos santificados; além, é claro, da religiosidade e exemplaridade dos mesmos. Não importando em que esfera ela ocorra, seja oficial ou não, a santidade está submetida à dinâmica sócio histórica. 221 Um dado significativo realçado também por este estudo, refere-se às questões de gênero e santidade. Entre as santificações populares leigas, a proporção de mulheres santificadas é superior à dos homens. Este fato indica a permanência de um traço identificado por Bynum (1994), que relaciona a expansão da santidade feminina com a laicização dos 334 eleitos à santidade, fato ocorrido a partir do ano 1305. As regras do relacionamento entre os devotos e as santas do povo são similares aos padrões estabelecidos entre os devotos e os santos canonizados. São comuns os pedidos, as promessas e os ex-votos, que variam de acordo com o pedido realizado e, os devotos das santas do povo também buscam manter junto a eles a imagem do santo, ou objetos que remetam a ele. Nos casos em estudo as referências e comparações com o campo do santoral católico foram necessárias não somente por ater-me na origem da devoção aos santos enquanto proposta mais forte do cristianismo, em especial do catolicismo. Tendo pautado minhas pesquisas nas falas dos devotos, nelas encontrei de forma constante as menções ao catolicismo, as comparações e as associações. Pode-se concluir que é no catolicismo que os devotos encontram referenciais para as santificações que elaboram, sendo ainda, a Igreja Católica, o lugar onde se incluem enquanto partícipes de uma instituição religiosa e se sentem à vontade para vivenciar suas crenças. Alguns termos, hábitos, orações e rituais religiosos associados às santas do povo são os mesmos, ou muito próximos daqueles que os devotos tomam como coerentes na relação com os santos institucionais, dos quais muitas vezes são também devotos. Em verdade as separações entre santos da Igreja e os que não são da Igreja só é mencionada quando os devotos são questionados sobre isto. Constatação que pode ser confirmada com a transcrição seguinte parte de um diálogo estabelecido entre mim e uma devota de Santa Palmyra (as falas da devota aparecem em itálico para destacarem-se das minhas): - Nos somos muito católicos, temos devoção em todas as santas, as Marias em geral, né, mas ela [dirigindo-se a Palmyra] em especial porque ta aqui tão pertinho da gente né! - É, mas ela nem é santa como as Marias, não é santa para a Igreja da senhora. 334 Conforme a autora, entre os santos laicos 50% são mulheres, no século XIII e chegam a 71,4% a partir do ano 1305. Caroline BYNUM. Jeûnes et Festins Sacrés – Les femmes et la nourriture dans la spiritualité médiévale, p. 39, 1994. 222 - Ah, não é né? Mas a gente pensa nas outras assim, é... Na imaginação, mas ela ta pertinho, a gente tá vendo ela aqui, isso dá assim, um conforto maior prá gente.335 São nos arquétipos cristalizados pela tradição cultural católica, difusos em nossa sociedade, que os devotos das santas do povo se inspiram para qualificar suas santas, muitas vezes comparando-as com representantes das personagens oficiais, em geral a Nossa Senhora, como já demonstrado pelas declarações dos devotos citadas em capítulos anteriores e no diálogo acima. Na contemporaneidade, contrapondo-se à expectativa difusa no século XIX, os santos permanecem como figuras marcantes da nossa história, componentes de nosso cotidiano. Basta um olhar mais atento para percebê-los ao nosso redor. Os santos dão nome a ruas, a estabelecimentos comerciais, bairros, cidades e pessoas. Estão ainda nos calendários, justificando feriados e festas que, por sua vez, em várias ocasiões, podem alterar totalmente a rotina de cidades inteiras. As santas do povo que investiguei também são responsáveis por festas, feriados e transformações nos ambientes onde são cultuadas: - O dia da morte de Lola se transformou em Dia de Lola na cidade de Rio Pomba; - As festas e peregrinações em devoção a Nhá Chica gera novas rotinas na cidade de Baependi; - O culto a Palmyra exige dos administradores e funcionários do Cemitério Municipal de Juiz de Fora mudanças de rotinas de trabalho, construções e reformas nos túmulos, tanto no de Palmyra quanto nos próximos dele. Estas duas últimas também emprestam seus nomes a estabelecimentos comerciais variados e a inúmeras pessoas. De maneira similar aos demais fenômenos religiosos, conforme descrito por Carvalho, os santos e as devoções podem parecer apagados num dado momento e logo a seguir voltarem a fazer sentido. De acordo com suas definições sobre o universo religioso, é “esse esquecer e ao mesmo tempo superar, e ainda estar presente, que é característica desse universo: num certo momento tudo parece apagado e de repente tudo é capaz, mais uma vez, de fazer sentido.” (Carvalho, 2000:15). Assim ocorre com os santos e as devoções, temporariamente foram esquecidos e novamente voltam à cena. A crescente visibilidade dos santos, dos milagres e das manifestações públicas de fé, contribuiu para o aumento das produções acadêmicas sobre a questão da santidade, seja ela oficial ou não. Este notável crescimento de estudos sobre temas 335 Depoimento da Sr.ª. Luzia, 2005. Mesmo não citando nos casos de Lola e Nhá Chica esta distinção entre santos canônicos e elas não aparecem, a não ser quando os devotos são chamados a falar do assunto. A menção a elas como sendo santas aparece em vários depoimentos, muitos já citados em outras passagens desta tese. 223 ligados à santidade nos últimos anos reforça as afirmações de Montero (1999) em relação às produções dos cientistas sociais sobre a religião. Segundo a autora: Os avanços nesse campo não se realizam por uma acumulação interna da reflexão teórica, mas se fazem a reboque dos acontecimentos: é o crescimento repentino de uma religião ou a emergência de novos cultos (...) que obriga a um rearranjo ou simples adaptação das ferramentas teórico- metodológicas. (Montero, 1999: 328-329). A presença dos santos em espaços alheios aos templos e demais lugares tradicionais de suas manifestações (santuários, igrejas, capelas), ocupando cada vez mais espaço na mídia; nas conversas cotidianas; em shoppings – reduto da modernidade contemporânea, onde as novas gerações se encontram e constroem seus estilos e modos de vida; nas telas de computadores e TVs; pelas ruas - tanto representados em roupas, bolsas e demais acessórios quanto em panfletos e santinhos que se espalham em lugares inusitados, como balcões de lojas não especializadas em produtos religiosos; indicam que este é um fenômeno em expansão e que atinge grande parte da sociedade, através de variados meios de divulgação. A teoria durkheimeana da contagiosidade do sagrado pode ajudar a entender o avanço do sagrado sobre os domínios tradicionalmente definidos como profanos, como percebemos na atualidade. O próprio Durkheim estabeleceu que sua teoria é válida “tanto para o totemismo quanto para as religiões mais avançadas”.(Durkheim, 1989: 386). Para ele, em virtude da “extraordinária força de expansão, o mais leve contato, a menor proximidade, material ou simplesmente moral, de um ser profano basta para trazer as forças religiosas para fora do seu domínio” e uma vez em contato com o profano, o sagrado não o abandona “sem contradizer a sua natureza”. Por isto mesmo, segundo Durkheim, o contato entre os domínios do profano e do sagrado deve ser evitado, sobretudo porque, opondo-se um ao outro, estes domínios tendem a se “confundir um no outro.” (Durkheim, 1989: 386). No contexto contemporâneo Carranza (2005) e Camurça (2007), também se dedicam ao estudo da inserção de elementos e instituições ligados ao sagrado no meio profano. Afastando-se, em parte, do que defende Durkheim, Carranza (2005) chama a atenção para o fato de que não é só o profano que se modifica neste contato com o sagrado; o sagrado também é alterado (2005:392-394). Como exemplo, cita a relação entre a Igreja Católica e o uso da televisão como meio de evangelização, o que expõe a doutrina e posturas da Igreja ao risco de sofrer interferências desse meio de comunicação de massa, tantas vezes combatido por esta mesma Igreja. 224 As discussões sobre espaços sagrados e profanos, reais ou virtuais, se justificam, pois nas devoções contemporâneas, diferente do ocorrido nas tradicionais, nota-se uma maior elasticidade em relação ao espaço de atuação dos devotos, inaugurando-se novos espaços para manifestação do sagrado ou mesmo a não distinção entre espaços sagrados e não sagrados. O movimento e dinamismo do meio urbano interferem e ditam as novas regras para a experiência devocional, diante disto, também os estudiosos da religião recorrem a novos termos, tomados de outras esferas do conhecimento, para referir-se aos santos e às devoções. A organização de novas devoções e, a revitalização de outras devoções mais antigas, promoveu também a busca por novas categorias e terminologias que se adequassem às novas roupagens adquiridas por tais fenômenos religiosos no ambiente plural, urbano e globalizado, característico do tempo contemporâneo. Estas novas circunstâncias permitem, por exemplo, que a antropóloga Menezes, ao se referir à grande presença dos santos e das devoções na sociedade contemporânea, o faça adotando expressões pouco comuns ao universo dos estudos sobre religião, até bem pouco tempo. Como exposto na Introdução desta tese, opinando sobre a questão dos santos e a contemporaneidade ela afirma que os “santos estão na moda, viraram fashion” (05/2005), uma expressão corriqueira entre críticos de moda, estilistas, ou consumistas atentos às variações de estilos e do mercado. Outro estudioso das devoções, Pereira (2005: 36-41) adotou conceitos antes utilizados na análise das relações de classes para identificar as devoções por ele estudadas. Desta forma denominou como “devoções marginais” aquelas devoções que não estão incluídas nas celebrações do calendário católico, as devoções não oficiais, e como “devoções emergentes” aquelas que foram resgatadas pelos devotos, colocadas no centro das celebrações católicas, tais como a devoção a Santo Expedito, Santa Edwiges e São Judas Tadeu, personagens de devoções antigas revitalizadas na atualidade. De forma análoga, os jornalistas também criam expressões para comentar o fenômeno dos santos na contemporaneidade. Destaco as expressões “lobistas de santos”, usadas para 336 denominar aqueles que se empenham no reconhecimento oficial dos “candidatos a santos”. Novamente presenciamos a adequação de teorias e conceitos aos fenômenos já instaurados, conforme destacado por Montero (1999:33). 336 Cf. reportagem veiculada no endereço . Nesta reportagem encontramos ainda as expressões “patricinhas católicas” e “tribos católicas”. Os termos ‘patricinha’ e ‘tribos’ são bem comuns ao universo dos jovens, em geral usados para classificá-los. 225 Mas, como podemos entender este retorno dos santos ao cenário religioso contemporâneo? Dentre outras questões, é correto afirmar que a abertura do oficial para o milagre permitiu maior interesse e exteriorização da devoção aos santos. Nos últimos anos o Vaticano, sob a direção do Papa João Paulo II, retomou a questão da santidade e da valorização da 337 devoção aos santos. Como já citado, foram efetivadas 482 canonizações, e realizado um grande trabalho em prol do entendimento e afirmação da santidade como meta para o caminho 338 pastoral. Identifico como significativo ainda, a defesa da santidade, realizada por João Paulo II na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte (2001), apontando-a como sendo um elemento dinâmico e um objetivo a ser alcançado pelas mais diferentes pessoas, manifestado de maneiras igualmente diversas, sem, é claro, afastar-se do necessário aval da Igreja: Os caminhos da santidade são variados e apropriados à vocação de cada um. (...) é claro também que os percursos da santidade são pessoais e exigem uma verdadeira e própria pedagogia da santidade, capaz de se adaptar ao ritmo dos indivíduos; (NMI, nº 31 – grifos meus) É visível que o discurso e as ações de João Paulo II trouxeram para o presente a questão da santidade, comumente circunscrita ao passado histórico do catolicismo, por obra desta mesma Igreja. Despertando também novos interesses. O antropólogo Steil, estudioso do campo religioso brasileiro considera que ao final dos anos 90, o catolicismo voltou a despertar o interesse dos estudiosos da religião, em virtude de dois eventos ocorridos no âmbito do próprio catolicismo e imbricados entre si. Seriam estes eventos a Renovação Carismática Católica e as aparições de Nossa Senhora. (Steil, 2001b:117). A estes dois sugiro que seja acrescentado um terceiro evento que é exatamente o movimento de resgate e/ou renovação das devoções aos santos. A meu ver tão significativo para o entendimento do catolicismo contemporâneo quanto os já mencionados. Como exposto no primeiro capítulo desta tese, o catolicismo tradicional, organizado no Brasil nos primeiros séculos da colonização, ofereceu condições para o amplo desenvolvimento das devoções aos santos transformados em figuras íntimas dos devotos, ordenadores até de sua rotina. A pouca atuação e organização da Igreja nos primeiros anos também permitiu, ou fez uso, da atuação de leigos, que eram responsáveis, em grande parte, 337 Dados disponíveis em . 338 Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte do Sumo Pontífice João Paulo II ao Episcopado, ao Clero e aos Fiéis no Termo do Grande Jubileu do Ano 2000, nº 30, disponível no endereço . 226 pela vida religiosa colonial. No contexto do catolicismo tradicional, os “lugares e as imagens” têm “um sentido particular e uma singularidade que ultrapassa qualquer tentativa de racionalização ou generalização”. (Steil, 2001a:15) Posteriormente vivemos dois momentos em que os santos e, mais ainda, a maneira de vivenciar as devoções se tornaram incompatíveis com os interesses da Igreja Católica e grupos que atuavam junto a ela, são eles os períodos correspondentes ao catolicismo romanizador e o libertador. A busca por uma postura mais racionalista no âmbito do catolicismo manteve-se até os anos 90, época em que ganhou força o movimento que deu origem ao Catolicismo Carismático. Movimento que, de acordo Steil (2001c: 22), teria surgido nas “franjas” da instituição e aos poucos foi se aproximando do centro do poder institucional, vindo a ser, no final dos anos 90, uma das mais visíveis expressões religiosas no campo religioso brasileiro. A partir do desenvolvimento e consolidação do movimento Carismático Católico, bem como da sua aceitação pela ortodoxia, o misticismo reencontra também seu lugar nas práticas institucionais. Este fato permite uma releitura da crença em milagres que, a meu ver, não se restringirá à ação do Espírito Santo, contribuindo para a revalorização dos santos enquanto instrumentos essenciais na operação de milagres. É neste sentido que considero que a revalorização ou mudança na forma de cultuar os santos recebe influencia dos moldes carismáticos, sendo uma espécie de efeito colateral. Tendo consciência clara sobre os distanciamentos existentes entre as devoções populares e os preceitos defendidos pela Renovação Carismática Católica, entendo que em certa medida, o estilo de ser católico impresso por tal movimento, entre outros aspectos, promove a valorização do carisma, do milagre, das possibilidades de cura pela via do sagrado, resgata a intimidade com o sagrado, a liberdade de ação diante dele, a expressividade corporal e da emoção. Através das pesquisas realizadas e expostas nesta tese, verifica-se que esta é também a maneira como o devoto lida com as santas do povo estudadas, com destaque para a liberdade na relação estabelecida com elas e o uso espontâneo das mediações e espaços institucionais, indicando que as devoções populares são vividas a partir do uso de um “conjunto das práticas e das representações católicas institucionais adotadas pelos devotos independentemente das 339 autoridades eclesiásticas.” 339 Tais posturas aproximam-se da definição de ‘catolicismo popular’ construída por Ribeiro de OLIVEIRA, p. 122, 1985. Sobre essa discussão ver também Eloísa MARTÍN, “Religiosidade popular”: revisando um concepto problemático a partir de la bibliografia argentina, 2003. 227 Alguns pesquisadores apontam para existência de uma tensão entre carismáticos e o 340 culto aos santos , no entanto, não proponho uma relação mecânica e automática entre a revalorização do culto aos santos e a Renovação Carismática, o que indico é que a forma carismática de viver o sagrado imprime aos rituais de devoção tradicionais novas maneiras estéticas e performáticas de experiência e expressão religiosa. Estudioso das Aparições Marianas, Steil (2001b) afirma que a mentalidade carismática, difusa na religiosidade contemporânea, além de promover o resgate do místico, do poder do milagre, concedendo-lhes lugar de destaque e prestígio. Atuam na promoção 341 social dos eventos religiosos, agindo como novo mediador entre estes acontecimentos e a sociedade. Através de uma ampla atuação junto à mídia, impede a redução dos fatos a uma localidade restrita, resgatando-os de um possível processo de invisibilidade, ou do espaço do folclórico, tornando-os acessíveis a um grande número de pessoas (Steil, 2001b: 119-120). A partir de minhas pesquisas e leituras, considero que haja uma similaridade no que tange à devoção dos santos, ou seja, as transformações operadas na maneira do catolicismo atuar, em relação aos aspectos místicos e mágicos das devoções marianas, e as consequências advindas destas transformações, podem ser estendidas às devoções aos santos em geral. A situação contemporânea vivida pelos santos, o crescimento visível das devoções e interesse em torno das mesmas, inclusive por parte dos pesquisadores da religião, também pode ter suas imbricações com o movimento carismático católico, sendo beneficiada pelo reconhecimento social, a credibilidade e a visibilidade características deste movimento. 340 Ver Emerson J. Sena da SILVEIRA, “Espírito vem sobre nós, transforma o que é velho e faz tudo de novo” – Tradição e Modernidade na Renovação Carismática Católica: Um Estudo dos Rituais, subjetividades e Mito de Origem, 2000. Embora considere essas ressalvas destaco que mesmo não sendo o centro das pregações carismáticas, é perceptível espaços para os santos nas pregações carismáticas. Exemplos para esta afirmação podem ser encontrados nos canais de TV, como a rede ‘Canção Nova’ que sempre destaca o santo do dia e, em alguns casos, dedica parte de sua programação narrando histórias, os milagres, a devoção e a importância dos mesmos para a divulgação do evangelho. Como exemplo no dia 13 de junho de 2006, o programa ‘Manhã Viva’ foi dedicado a Santo Antônio. Mas essa não é uma atitude que se restringe apenas aos santos oficiais da Igreja Católica, a santa do povo Nhá Chica também foi tema de um programa exibido em setembro de 2005. As bênçãos diárias do Padre. Marcelo Rossi, um ícone entre os carismáticos, realizadas todas as manhãs na ‘Rádio Globo’, têm também os santos como referencia. Entre elas existe, por exemplo, as bênçãos dedicadas aos animais, ocasião em que sempre são feitas alusões a São Francisco de Assis. O espaço para os santos entre práticas e hábitos carismáticos pode ser identificado também em sites da internet, dedicados a divulgar o movimento carismático e que inclui informações sobre os ‘santos do dia’, mantendo ainda arquivos on line sobre os santos da Igreja Católica, que podem ser consultados pelos visitantes interessados em saber suas histórias, milagres e demais informações. 341 Anteriormente, o papel de “agência mediadora” era restrito à ortodoxia católica e, o julgamento de veracidade destes eventos era realizado mediante investigações científicas onde a ciência aparecia como instrumento de controle interno sobre o evento. Os carismáticos, enquanto “novos agentes mediadores”, agem em sentido oposto, apostando na ciência como “mediação linguística da experiência religiosa”, assim, ao invés de agir segundo a lógica racionalista no campo religioso “acionando a ciência contra o milagre” a perspectiva carismática promove a “justaposição entre a ciência e o milagre” (Steil, 2001b: 127). 228 As romarias, as peregrinações e os cultos realizados em torno das santas do povo tornam-se acontecimentos sociais de grande alcance, são transformados em espetáculos e atrativos turísticos. Canais de TV e ondas de rádio tornam universais mesmo os pequenos e 342 localizados acontecimentos. O lazer e o consumo unem-se às devoções e a fé. As peregrinações a Nhá Chica, se tornaram eventos catalisadores de devotos, turistas, religiosos, comerciantes, políticos, artistas, enfim, uma heterogeneidade de atores sociais. O mesmo ocorre nas festas no mês de junho, quando também se encontram identidades e interesses diversos, agindo em torno da festa de Nhá Chica. A esta altura é possível afirmar que os casos de santificações populares estudados comportam elementos que têm sua origem no âmbito do catolicismo tradicional, remontam ao início do cristianismo e, ao mesmo tempo, são portadoras das inovações contemporâneas das devoções e demais experiências religiosas. As santas do povo reúnem muitos devotos, atendem pedidos, recebem promessas e, em maior ou menor escala, são cada vez mais relacionadas a atrativos turísticos, ao lazer e ao consumo. Encerro, por hora, minhas considerações ressaltando que no meio contemporâneo, mantendo uma tradição existente desde o início do cristianismo, o povo não cessa de criar divindades à sua imagem e semelhança. À revelia das soluções modernas e tecnológicas apresentadas como instrumentos para vencer as mazelas da vida, não importando o lugar ou a época, continua-se a eleger seres sagrados e intermediários entre a humanidade e o céu, papéis que os santos, oficiais ou do povo, assumem com maestria, aos olhos dos que neles creem. 342 Sobre este assunto ver as produções de CARRANZA (2004; 2005); STEIL (1996; 2003a; 2003b); CAMURÇA (2003; 2005; 2007) e SILVEIRA (2003; 2004a; 2004b). 229 BIBLIOGRAFIA PERIÓDICOS Periódico Testemunho de Fé, Simples e profundamente Bela, agosto de 1999. Informativo da AACL-Associação dos Amigos da Causa de Lola – matérias variadas sobre Lola, suplemento do jornal O Imparcial, dezembro/2006. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10 de set. de 2000, Caderno de Turismo, p. 8 Jornal Esotérico (Belo Horizonte), de 06/05/2003 – Devoção a Nhá Chica, - a mãe dos pobres; Jornal Esplendor - Ano II – Disponível em: . Jornal Extra, Rio de Janeiro, 18 de abril de 1999. 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( ) Sim - Qual? ___________________________________ ( ) Não 8 - É devoto de ( ) Palmyra ( ) Nhá Chica ( ) Lola ( ) Sim – Por que? __________________________________________________________ ( ) Não 9 – O que você sabe sobre a santa (nome)? ________________________________________ 10 – Já alcançou alguma graça? ( ) Sim – Qual? _____________________________________________________________ ( ) Não 11 – Sabe de algum milagre dela? ( ) Sim – Qual? _____________________________________________________________ ( ) Não 12 – Participa de alguma celebração/ritual para ela? ( ) Sim – Qual? _____________________________________________________________ ( ) Não Observações: a) No caso de Nhá Chica, foram acrescentadas as questões: - Participa da Peregrinação? ( ) Sim Por quê? ( ) Não - Já fez a peregrinação antes? ( ) Sim Quantas vezes? ( ) Não b) Sobre entrevistas: Não anexei roteiro das entrevistas, porque as questões variavam de acordo com o caso pesquisado, a ocasião e com o entrevistado. 251 2) Anexos relacionados à Santa Lola 2.1) Foto de Lola antes do acidente, ela é a moça da direita: Fonte: Reprodução minha da Capa do livro de Roberto Nogueira Ferreira (2007) 2.2) Lola diante da imagem do Sagrado Coração de Jesus, pouco tempo antes de seu falecimento: Fonte: 252 2.3) Altar do quarto de Lola: Fonte: 2.4) Oração de Casa – distribuída por Lola e seus ‘devotos especialistas’ 253 2.5) Modelo de questionário aplicado pela AACL 254 3) Anexos referentes à Santa Palmyra 3.1) Devotos em fila, sob a chuva, para darem seus depoimentos sobre Santa Palmyra: Fonte: Foto de minha autoria, produzida durante pesquisas, 2005 3.2) Devotos acedem velas para Santa Palmyra, o túmulo dela é o florido ao fundo: Fonte: Foto de minha autoria, produzida durante pesquisas, 2004 255 3.3) Túmulo de Santa Palmyra cheio de flores, de bilhetes com pedidos e agradecimentos, e placas de mármore também em agradecimento a graças alcançadas: Fonte: Foto de minha autoria, produzida durante pesquisas, 2004 3.4) Reprodução de parte da capa do Jornal Mercantil, Juiz de Fora, dezembro de 1940: Fonte: Foto de minha autoria, realizada durante pesquisas, 2006 256 4) Anexos referentes à Santa Nhá Chica 4.1) Programa da Festa de junho/2006: Celebração do 111º Aniversário de Morte de Nhá Chica 12 a 18 de junho SANTUÁRIO DE NHÁ CHICA - BAEPENDI - MG PROGRAMAÇÃO 2006 ... Nhá Chica, mulher de DEUS e do povo. "Levante-te, vem para o meio." (Mc. 3,3) dia 12 - Segunda Feira dia 13 - Terça Feira dia 14 - Quarta Feira Tema: Nhá Chica e os Tema: Nhá Chica e os Dia da Morte de Nhá Deficientes. Pobres. Chica (Feriado Municipal) 12h: Oração do Ângelus e 12h: Oração do Ângelus e repique de sinos. repique de sinos. Tema: Nhá Chica e os 15h: Bênção do 15h: Bênção do Idosos. Santíssimo Sacramento, Santíssimo Sacramento, oração do mistério da luz. oração do mistério da luz e 05h: Alvorada Festiva. 19h: Celebração Ladainha de Nossa 07h: Missa Festiva. Eucarística no Santuário. Senhora. 09h: Missa Solene. 18h30: Confissão 11h: Missa Festiva. Comunitária. 12h: Oração do Ângelus e 19h: Celebração repique de sinos. Eucarística no Santuário. 15h: Bênção do Santíssimo Sacramento. 18h: Procissão com a imagem da Imaculada Conceição e o estandarte de Nhá Chica. 19h: Missa Festiva dia 15 - Quinta Feira dia 16 - Sexta Feira dia 17 - Sábado dia 18 - Domingo 257 4.2) Salas de ex-votos, Casa de Nhá Chica, Baependi – MG: Fonte: fotos produzidas por mim durante pesquisa, 2005 4.3) Fogão a lenha de Nhá Chica com oferendas. Lugar também de oração dos devotos: Fonte: foto produzida por mim durante pesquisa, 2006 258 4.4) Missa Campal em junho de 2006 – Santuário de Nª Sr.ª da Conceição /Baependi: Fonte: foto produzida por mim durante pesquisa, 2006 4.5) Túmulo de Nhá Chica repleto de oferendas – destaque para as velas nos pacotes: Fonte: foto produzida por mim durante pesquisa, 2006 259 4.6) Mapa da ‘Estrada Real’ A Estrada Real abrange dezenas de municípios mineiros e está dividida em três setores principais: - Caminho Velho - Liga Parati a Ouro Preto - Caminho Novo - Liga o Rio de Janeiro a Ouro Preto - Rota dos Diamantes - Liga Ouro Preto a Diamantina Fonte: