0 Universidade Federal de Juiz de Fora Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários Lílian Cristiane Moreira NOS ENCALÇOS DE EMÍLIO MOURA: ENCRUZILHADAS DE UM ITINERÁRIO POÉTICO Juiz de Fora 2011 1 Lílian Cristiane Moreira NOS ENCALÇOS DE EMÍLIO MOURA: ENCRUZILHADAS DE UM ITINERÁRIO POÉTICO Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras: Estudos Literários, área de concentração em Literatura e Crítica Literária, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Letras. Orientador: Prof. Dr. Fernando Fábio Fiorese Furtado Juiz de Fora 2011 2 Moreira, Lílian Cristiane. Nos encalços de Emílio Moura: encruzilhadas de um itinerário poético / Lílian Cristiane Moreira. – 2011. 222 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários)—Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2011. 1. Literatura moderna. 2. Poesia. 3. Mito. 4. Moura, Emílio, 1902-1971. I. Título. CDU 82”19” 3 Lílian Cristiane Moreira Nos encalços de Emílio Moura: encruzilhadas de um itinerário poético Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras: Estudos Literários, Área de Concentração em Literatura e Crítica Literária, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Letras. Aprovada em ___/___/_____. BANCA EXAMINADORA _____________________________________________ Prof. Dr. Fernando Fábio Fiorese Furtado (Orientador) Universidade Federal de Juiz de Fora _____________________________________________ Prof. Dr. Edimilson de Almeida Pereira Universidade Federal de Juiz de Fora _____________________________________________ Prof. Dr. Gilvan Procópio Ribeiro Universidade Federal de Juiz de Fora _____________________________________________ Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques Universidade Federal de Minas Gerais _____________________________________________ Profa. Dra. Suely da Fonseca Quintana Universidade Federal de São João del-Rei 4 À memória de minha mãe, Geralda Santos Moreira, e a meu pai, Sebastião Lopes Moreira – amor incondicional. 5 AGRADECIMENTOS Ao professor Fernando Fiorese, por contribuir, inestimavelmente, para meu amadurecimento intelectual. Obrigada pela leitura minuciosa, que extrapolou as questões relacionadas ao conteúdo, atentando para a elaboração da escrita e os detalhes de formatação. Agradeço, ainda, a compreensão e o apoio nos momentos de crise. Aos professores do PPG-Letras: Estudos Literários, com os quais tive oportunidade de compartilhar conhecimentos. Ao amigo Paulo Terra, escritor e leitor experiente, conhecedor e manipulador das artimanhas da linguagem. Obrigada pela leitura atenta. A Ângela, Cidinha e Kátia, pelas ajudas, muitas vezes urgentes, realizadas à distância. À amiga Andreia, confidente nos momentos de estresse. Obrigada pelo apoio psicológico e emocional. À FAPEMIG, pelo auxílio financeiro ofertado durante os quatro anos desta minha etapa de doutoramento. 6 RESUMO Objetivando investigar a operação lírica moderna de Emílio Moura (1902-1971) – professor, jornalista e poeta mineiro –, este estudo se debruça, principalmente, sobre o livro Itinerário poético (2002), que reúne sua obra em versos. Diante da constatação da recorrência de algumas temáticas na poesia emiliana, três caminhos de leitura são traçados a fim de se depreender sua atuação poética. De início, priorizam-se os poemas que denotam caráter metalinguístico – apresentando reflexão a respeito do fazer poético, da caracterização dos poetas, da poesia e da linguagem poética –, os quais apontam para uma obra tensionada entre a permanência do mўthos e a ascensão do lógos e para as implicações resultantes desta tensão e do poetar em tempos modernos. Em seguida, a constância da representação do feminino, maior exemplo das imagens desmaterializadas, ou de concretude ressignificada na obra de Moura, incita a tentativa de desnudar a mulher emiliana, que se constrói tanto a partir da vis mítica quanto da metafísica platônica. Esta tensão mítico-idealista se problematiza ainda mais nos poemas que anunciam a queda, a morte ou a dissolução dos mitos, revelando o caráter melancólico que perpassa grande parte dos escritos deste poeta. A recorrência de um mal-estar incidindo sobre o eu da escrita de Itinerário poético, conduz, ainda, à leitura da melancolia neste poeta do século XX. PALAVRAS-CHAVE: Emílio Moura. Itinerário poético. Poesia moderna. Mito. Logos. Modernidade. 7 ABSTRACT In order to survey Emílio Moura (1902-1971) uses of modern lyric – taking in account his roles as professor, journalist, and Brazilian poet – this thesis focuses the book Itinário poético (2002) which assembles all his verses. When some themes were frequently noticed, we could realize three possible ways of reading and then infer his strategies as a poet. The metalinguistic poems were the firsts to be analyzed because they concern poetic strategies, characterization of poets, poetry, and also poetic language. These characteristics of the metalinguistic poems point out a literary work stretched between the permanence of the mўthos and the rise of the lógos as well as the outcomes of that tension and of the modern versify. Then the steadiness of the representation of the female – better example of the dematerialized images, or even the reframe of the concreteness in Moura‘s literary work – incites the attempt of denude the emiliana women that is built out of both the mythic vis and the platonic metaphysic. That mythic-idealistic tension becomes even more problematic in the poems which announce the fall, the death or the dissolution of the myths, showing up the melancholic character that goes by the majority of Moura‘s writings. The recurrence of a malaise focusing the expression of the self in Itinerário poético, leads us up to notice melancholy in this poet from the XX century. Keywords: Emílio Moura. Itinerário poético. Modern poetry. Myth. Logos. Modernity. 8 ABREVIATURAS DOS LIVROS DE EMÍLIO MOURA REUNIDOS NO ITINERÁRIO POÉTICO (2002)1 TÍTULO ABREVIATURA ANO DE PUBLICAÇÃO Ingenuidade Ing 1931 Canto da hora amarga CHA 1936 Cancioneiro Canc 1945 O espelho e a musa EM 1949 Poemas P 1949 O instante e o eterno IE 1953 A casa C 1961 Desaparição do mito DM 1969 Habitante da tarde HT 1969 Noite maior NM 1969 1 Todas as citações de poemas de Emílio Moura serão extraídas do livro Itinerário poético (2002), volume a que recorremos como corpus de análise desta tese por nos permitir um acesso maior à obra emiliana, pois consiste na reunião de vários de seus livros. A fim de que se possa localizar os poemas temporalmente - tanto na obra em geral quanto no contexto histórico de sua produção -, achamos relevante apontar de qual livro os poemas transcritos fazem parte. As referências dos poemas serão assinaladas no texto, entre parênteses, grafando-se a abreviatura do livro específico, conforme quadro acima, seguidas do(s) número(s) da(s) página(s) citada(s). 9 SUMÁRIO 1. Introdução................................................................................................. 2. Do verbum divino à irrepresentabilidade lírica: tensões na poesia moderna.................................................................................................... 2.1 Tensões na poesia emiliana: mўthos e lógos em convivência.......... 2.2 Heranças platônicas na poética emiliana: a poesia idealista............... 2.3 Desmi(s)tificando poeta, palavra, poesia............................................. 3. Da idealização mítica ao desencantamento: metamorfoses do feminino.................................................................................................... 3.1 Entre mўthos e lógos: o feminino emiliano.......................................... 3.2 O desaparecimento do mito................................................................. 4. A outra face de Moura.............................................................................. 4.1 Do ensimesmamento solitário ao mal-estar social: um poeta em tempos de guerra e morte.................................................................... 4.2 A melancolia dos órfãos de Deus: a crise da transcendência............. 4.3 A morte ressignificada: a noite de um poeta melancólico.................... 5. Conclusão................................................................................................. 6. Referências Bibliográficas...................................................................... 7. Apêndice: Emílio Moura por Carlos Drummond de Andrade: o registro de uma amizade ........................................................................ 10 18 20 44 68 84 86 116 140 142 161 178 203 208 215 10 1. INTRODUÇÃO 11 O poeta, jornalista e professor Emílio Moura (1902-1971) nasceu na cidade mineira de Dores do Indaiá, mas, aos 18 anos, mudou-se para Belo Horizonte, onde, dez anos mais tarde, formou-se em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Apesar de retornar à cidade natal por aproximadamente três anos, é na capital mineira que Moura viverá até sua morte, tendo trabalhado nos jornais Diário de Minas, Estado de Minas, A Tribuna e Minas Gerais. Segundo Bueno de RIVERA (1966, p. 4-5), o poeta exerceu ainda as funções de Secretário do Departamento Administrativo do Estado, Diretor do Departamento de Educação, Diretor da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, professor da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais, professor catedrático da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. A passagem de Emílio Moura pelo jornal Diário de Minas, assim como a de seus amigos Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, João Alphonsus, Martins de Almeida, dentre outros, foi significativa para a divulgação das ideias do Modernismo Mineiro que começava a despontar na região. O próprio Moura comenta sobre sua participação e a de seus amigos no jornal. Precisávamos fazer barulho, quebrar a pasmaceira ambiente, ou, antes, sacudir a indiferença literária de Belo Horizonte, cidade sem editores, sem revistas, sem jornais (...). Inventávamos logo vários colaboradores, modernistas uns, outros passadistas, jogávamos estes contra aqueles, forjávamos polêmicas crudelíssimas. Drummond era inesgotável em iniciativas dessa natureza (Apud WERNECK, 1992, p. 25-26). Juntamente com Drummond, Alberto Campos e Milton Campos, Emílio Moura foi um dos ―cabeças‖ do Grupo do Estrela, composto por jovens de ideias renovadoras, que se encontravam nos bares, cinemas e livrarias de Belo Horizonte, na década de 1920. Alguns deles, inclusive Moura, foram responsáveis pela publicação d‘A Revista, um periódico do Movimento Modernista Mineiro. Entretanto, os trabalhos desses jovens foram ganhando características diversificadas. Emílio Moura, por exemplo, mesmo fazendo parte deste grupo, apresenta uma poética bastante diferenciada da obra de seu grande amigo itabirano. Enquanto Drummond se lança à denúncia direta de seu tempo, à reflexão sobre seu local, a literatura emiliana é discreta e disciplinada, apresentando uma constante indagação, voltando-se para questões transcendentais, metafísicas. Seus versos são simples, 12 não demonstrando explosões ou manifestações violentas. Apesar de fazerem parte do mesmo grupo, o que os aproxima, Drummond e Emílio Moura trilham caminhos literários distintos. A obra poética de Moura, portanto, não retrata exatamente as ideias contidas em suas palavras acima citadas. Segundo Laís Corrêa de Araújo (Apud LUCAS, 2003a, p.108), a posição assumida pelo poeta enquanto participante do grupo não condiz com seu projeto pessoal. Com o grupo, fundou A Revista, pessoalmente, cultivou uma poética serena, sem grandes arroubos, sem adotar a piada, o escárnio, os excessos. Também Octavio de Faria destaca a peculiaridade da obra desse poeta: ―Emílio Moura revela-se um poeta absolutamente à parte, com uma forma inteiramente própria e um sentimento das coisas inconfundível, enfim, com todos os direitos a ser colocado entre os nossos melhores poetas‖ (FARIA, 1966, p. 4). Embora o Modernismo que se desenvolveu em Minas Gerais tenha sido um movimento bastante diversificado, acolhendo trabalhos tão particulares como o de Emílio Moura, não é priorizando este contexto que sua obra é analisada neste trabalho. A investigação que se desenvolve considera Moura inserido em um contexto maior, o da modernidade do século XX. Segundo Hugo Friedrich, na obra Estrutura da lírica moderna (1978), o termo modernidade foi usado quase como novidade por Baudelaire, em 1859, para se referir às sensações que a metrópole e seus produtos provocavam no artista da época. O turbilhão de mudanças encontradas nas metrópoles: (...) sua fealdade, seu asfalto, sua iluminação artificial, suas gargantas de pedra, suas culpas e solidões no bulício dos homens. (Friedrich, 1978, p.43), seu vapor, sua eletricidade, seu progresso são tema para Baudelaire. É nesse sentido que utilizaremos o vocábulo modernidade, tendo em vista que no século em que Emílio Moura vive, tais progressos urbanos – assim como os científicos e tecnológicos – e, por conseguinte, suas consequências, foram ainda mais significativos. Mais do que um modernista atuando na incipiente capital mineira, concebemos o poeta moderno – alguém vivendo um tempo em intensa mutação, refletindo e poetizando as agruras próprias de tal época. Emílio Moura atravessa mais de sessenta anos do século XX, vivenciando revoluções nacionais, internacionais, as guerras mundiais. Experimenta os prazeres e sofre angústias proporcionados pela modernidade que se fez gritante e inevitável em seu tempo. Como um raio na tempestade, a modernidade chega, mostra seu 13 brilho, impõe seu barulho e deixa suas marcas. O homem deseja o progresso, mas este é ameaçador. É de seu avanço que algumas angústias modernas se originaram. As bombas atômicas, por exemplo, que promoveram uma das maiores catástrofes da humanidade, são produtos do progresso científico e tecnológico; a fé cega na ciência, resultando na descrença religiosa, é outro fator que promoverá um sentimento conflituoso no homem. Este é o século de Moura: tempo de catástrofes, crises e incertezas. Reinaldo Marques, em ―Tempos modernos, poetas melancólicos‖ (1998), atribuirá a melancolia de alguns poetas mineiros do século XX aos acontecimentos oriundos da época e suas consequências. Embora ele não mencione Emílio Moura, este também apresenta uma vertente melancólica que será lida como resultante de um tempo em ruínas. A questão social em Moura é velada, as referências diretas aos acontecimentos mundanos estão quase ausentes. Todavia, entretanto, os conflitos que se apresentam em seus poemas nos levam a um sujeito à beira da descrença, poetizando desaparições de crenças e mudanças de estado de ânimo. Quase sempre há uma transformação ocorrendo em seus poemas, seja em relação ao eu da escrita ou às temáticas por ele trabalhadas. Emílio Moura não possui uma obra poética muito profusa, de modo que ela pôde ser reunida em um único volume. Tal reunião, intitulada Itinerário poético, foi realizada, pela primeira vez, em 1969, sendo relançada, em 2002, pela Editora UFMG. É um exemplar constituído pelos livros Ingenuidade (1931), Canto da hora amarga (1936), Cancioneiro (1945), O espelho e a musa (1949), Poemas (1949), O instante e o eterno (1953), A casa (1961), Desaparição do Mito (1969), Habitante da tarde (1969) e Noite maior (1969). Esta reedição constitui nosso corpus principal de estudo, suplementado por alguns artigos escritos a respeito de Moura e publicados, em sua grande maioria, no Suplemento Literário de Minas Gerais2. Estes são trazidos para dialogar com nosso texto a fim de robustecer alguma argumentação ou aspecto da obra analisada. Ainda, embora em menor quantidade, alguns ditos emilianos – também publicados no mesmo veículo dos artigos mencionados – enriquecerão a leitura de sua obra, oferecendo uma visão, digamos, teórica, de 2 O Suplemento Literário de Minas Gerais foi digitalizado e microfilmado e está disponível na internet (www.letras.ufmg.br/websuplit), contendo artigos que datam desde o ano de 1966. Em relação a Emílio Moura, o artigo mais antigo é de 1966 e o mais recente de 2003. Foram encontradas, nesses trinta e sete anos de jornal, oitenta e duas referências a Emílio Moura, entre artigos, poemas e notícias relativas a ele. 14 questões relacionadas ao fazer poético. Essas ocorrências nos permitirão constatar se a prática poética de Moura condiz com a espécie de ―teoria literária‖ que ele mesmo apresenta. Lançamo-nos ao encalço dos poemas de Emílio Moura, tentando identificar, em seu itinerário, quais caminhos foram trilhados pelo poeta na composição de sua obra. Nesta trajetória, constatamos que as temáticas poetizadas nos convidam a seguir diferentes direções. Contudo, trilhar todos os caminhos que surgem em uma obra é impossível em um trabalho de proporções limitadas como este. Na verdade, é tarefa para anos e anos de caminhada, para páginas e páginas de registros. Portanto, no momento, optamos por trilhar apenas três desses caminhos, deixando os demais ao aguardo de exploração futura. Três caminhos, três temáticas, três capítulos. No primeiro, intitulado ―Do verbum divino à irrepresentabilidade lírica: tensões da poesia moderna‖, são apresentados e analisados poemas emilianos que têm seu fulcro na questão poética. Da leitura destes versos, constata-se uma poesia de teor mítico-idealista, resultante da permanência do mўthos em meio à ascensão do lógos. Esta permanência que, às vezes, mostra-se problematizada em poemas que sugerem a perda do enthousiasmós, indicando um desencantamento do poeta em relação à operação lírica da linguagem. A reflexão de Moura sobre a linguagem poética permite, ainda, que se leia a irrepresentabilidade da palavra em tempos extremos, como os vivenciados durante as guerras mundiais. Todo o capítulo, pois, se desenvolve tendo como fio condutor o modo como Emílio Moura opera esta presença do mўthos e do lógos em sua obra. A ocorrência do mўthos na obra emiliana promoverá toda uma discussão a respeito de influências sobrenaturais atuando sobre o poeta e seu fazer poético, e da magia, encantamento e enigma que se atribui à operação lírica e aos elementos que a constituem – como o poeta e a linguagem –, conferindo-lhes uma espécie de aura. Sempre conciliados aos versos de Moura, alguns estudiosos e teóricos como Platão, Walter Benjamin, Jorge Luis Borges, Paul Valéry, Percy Shelley, dentre outros, serão visitados durante a caminhada empreendida, a fim de enriquecerem as considerações e constatações que exsurgirem a respeito da permanência do mito na obra em análise. Também nomes como Mircea Eliade e Ernesto Grassi contribuirão com seus estudos referentes ao mito, sua constituição e caracterização. Já no que diz respeito ao lógos, a referência principal para nossas reflexões se encontra no 15 idealismo de Platão. Muitas vezes, Moura eleva a poesia ao plano da pureza, do ideal, da perfeição e da incorruptibilidade, permitindo-nos aproximá-la das ideias platônicas, cujos atributos relacionados à beleza, à perfeição e à eternidade só são alcançáveis pelo inteligível, ou seja, pela intervenção da razão. Mўthos e lógos não são tratados separadamente por Emílio Moura. Oscilam por quase toda a obra, até explorados juntos em alguns poemas. Entretanto, há momentos em que o mítico tem seu valor comprometido e os versos emilianos metalinguísticos apresentam questões que tangem à insuficiência da linguagem esvaziada de seu poder divino, mágico e enigmático. Insuficiência também proporcionada pelos tempos sombrios que o poeta atravessa. A segunda incursão que realizamos pela obra de Emílio Moura resultou dos constantes encontros com o feminino em seus poemas. Devido a esta constância é que optamos por seguir o caminho que originou o capítulo ―Da idealização mítica ao desencantamento: metamorfoses do feminino‖. Neste momento, o texto se volta para a imagerie desconcretizada de Emílio Moura, que tem na representação do feminino seu maior exemplo. A mulher emiliana também apresenta a imbricação do mўthos com o lógos, construindo-se tanto platonicamente – ou seja, sendo idealizada e elevada ao plano inteligível – quanto dotada de características transcendentais, próprias das personagens míticas. Há uma espécie de endeusamento que resultará, às vezes, na fusão da mulher amada com a Musa, entidade inspiradora dos poetas. Entretanto, do mesmo modo como o mito sofre um abalo no conjunto de poemas apresentados e analisados no capítulo anterior, neste, também, ele se degrada. E de sua desaparição resulta uma mulher desencantada, que se esvairá aos poucos até a total dissolução. Como consiste em um capítulo que, embora trate de temática diferente, orienta-se também pela concomitância dos aspectos mítico e idealista, os autores postos em diálogo com os poemas que abordam o feminino em Moura são alguns dos mesmos já apresentados no primeiro capítulo, como Mircea Eliade e Platão. Deste, será aproveitada, também, a concepção de amor platônico, a fim de contribuir para a caracterização do amor emiliano. Moura apresenta uma obra que se esquiva de acontecimentos factuais, mantendo-a quase isenta de dados concretos. Recorrer ao contexto mítico e ao idealismo platônico é artifício de que ele lança mão para realizar este afastamento do real. Não se trata, entretanto, de uma alienação do poeta. Ele não se mostra 16 indiferente às questões da modernidade, pois, à sua maneira introspectiva, dá o testemunho de uma época que tanto despertou fascínio quanto terror. Porém, é após anunciar a desaparição do Mito em sua obra que Moura apresentará uma poesia paulatinamente sombria e melancólica. Poetizando de modo cada vez mais desencantado e sombrio, seus poemas caminharam para a manifestação de uma angústia progressiva, encontrando na imagem da tarde e, posteriormente, na da noite, sustento adequado para expressar seu desencanto. Nosso último exercício de leitura, ―A outra face de Moura‖, percorrerá os dois livros derradeiros do poeta. Neste capítulo, diferentemente dos outros, não há uma transformação de sentido na temática desenvolvida – como, no primeiro capítulo, os elementos ligados à operação poética perdem seu caráter mítico- idealista, tornando-se desencantados e impotentes; ou como, no segundo, a mulher emiliana deixa de ser onipresente para se tornar ausente. Agora, a transformação se dá apenas no que diz respeito à intensidade da angústia anunciada no capítulo anterior. As considerações de Theodor Adorno sobre a relação entre lírica e sociedade são relevantes, neste momento, para entendermos como a poesia se encontra, inevitavelmente, ligada a seu contexto de produção. Freud também contribuirá para a leitura da melancolia emiliana, como resultante do mal-estar provocado pela civilização moderna, que desperta nos homens um vazio estrutural, levando-os a se ensimesmarem. A perda da crença no transcendental, advinda do século XIX, com a ―morte de Deus‖, anunciada por Nietzsche, é questão que embasa a leitura empreendida. Mesmo após a dessacralização operada pela modernidade urbano-industrial, Emílio Moura apresenta imagens e vocábulos que remetem ao contexto místico, representando a tensão entre um mundo dessacralizado (profano) e a permanência das necessidades de transcendência do homem, que, por vezes, encontra na arte um de seus poucos modos de realizar tal transcendência. Entretanto, as tensões resultantes dos tempos modernos ganham proporção tamanha que acabam sobrelevando-se aos resquícios de crença em qualquer tipo de salvação, que, em Emílio Moura, culmina na escuridão da ―noite maior‖ que tomba sobre sua poesia. Esta obra que nos propomos analisar constitui material ainda eclipsado pela crítica literária, tendo ficado à margem das legitimações acadêmicas. O fato de Moura ter permanecido em Belo Horizonte, não participando, assim, dos grandes 17 centros culturais de sua época, como Rio de Janeiro e São Paulo, talvez tenha contribuído para que seu nome e obra resultassem quase desconhecidos. A fim de enriquecer os estudos a respeito da poesia brasileira moderna, suplementando-os, esta tese apresenta alguns caminhos analíticos da obra deste poeta ―ainda não bastante admirado‖, conforme palavras de Otto Maria CARPEAUX (1966, p. 5). 18 2. DO VERBUM DIVINO À IRREPRESENTABILIDADE LÍRICA: TENSÕES NA POESIA MODERNA 19 Sou um poeta quase místico. Emílio MOURA (Ing, p. 33) Eis um verso significativo para abrir a leitura que intencionamos realizar da obra poética de Emílio Moura. A questão mística – no que ela tange às relações do homem com o sobrenatural, com a religiosidade, com a espiritualidade – perpassa toda a poesia emiliana. É, entretanto, uma questão que sofre abalos diante do contexto social, histórico e cultural em que o poeta se insere. Ser um poeta totalmente místico no mundo profanado da modernidade nos parece tarefa de difícil execução. Já o oposto – ou seja, ser um poeta nada místico – também soa inexequível, pois toda a tradição mística da crença em um plano transcendental, mesmo que negada pela dessacralização do mundo moderno, permanece registrada em nossa memória cultural. Como em um palimpsesto, as marcas dessa tradição são perceptíveis. Por mais conectado que o homem esteja com a mentalidade de seu tempo, elas permanecerão gravadas no inconsciente coletivo. Afirmando ser ―quase místico‖, o poeta se instala em meio às tensões vivenciadas pelo homem do século XX, como, por exemplo, a de conciliar a euforia do progresso com as incertezas e desilusões dele mesmo oriundas e a de administrar, dentro da modernidade, tradições seculares e até mesmo milenares. No âmbito do fazer poético, a ascensão do lógos, enquanto emergência da razão e do pensamento, a partir dos filósofos pré-socráticos, volta-se contra as tradições da palavra mítica que, advinda dos entes sobrenaturais, fazia-se poderosa e verdadeira. Esse voltar-se contra do lógos em relação ao mўthos, resultará em alterações de sentido ou de função tanto da palavra poética quanto do papel do poeta. É uma mudança que não se dá, portanto, no século de Emílio Moura, mas que, desde o começo dela, ganha forças pelos tempos afora, chegando até a modernidade. Entretanto, assim como mencionamos acima a respeito da permanência entre os homens modernos, mesmo que de modo palimpséstico, das tradições que tiveram seu sentido esvaziado, as mudanças relacionadas aos elementos que compõem o fazer poético não apagariam a tradição que lhes conferia vigor sobrenatural. Expomos, neste capítulo, como se dão tais alterações, de que modo elas são manifestadas nos poemas de Emílio Moura e como neles ecoam as heranças da tradição poética inspirada pelos poderes divinos. 20 2.1 Tensões na poesia emiliana: mўthos e lógos em convivência Lendo o Itinerário poético (2002), de Emílio Moura, constatamos algumas recorrências temáticas, sendo uma delas referente ao contexto do fazer poético. Agrupando os poemas em que tal temática é verificada, encontramos menção a diferentes elementos relacionados ao fenômeno da poesia, como seu processo de elaboração, a caracterização dos poetas, da linguagem poética e da própria poesia. De que modo ela surge? De onde ela vem? Há inspiração? Qual concepção do fazer poético é encontrada em Emílio Moura? Várias são as perguntas que surgem se partirmos para uma reflexão sobre tais questões. Portanto, pensar as noções clássicas e modernas a respeito desses assuntos nos convém neste capítulo em que são considerados, dentro da obra emiliana, os poemas metalinguísticos, aqueles que tratam das figurações do poeta, seu papel e atributos e, ainda, aqueles que, de alguma forma, permitem-nos depreender qual concepção poética perpassa a obra de Moura. Não haverá preocupação, neste primeiro movimento de leitura, de se expor os poemas pela ordem cronológica de sua publicação. Procuraremos aproximá-los à medida que eles apresentarem alguma comunhão, permitindo o desenvolvimento das reflexões de modo mais coeso e vertical. Diante do objetivo traçado para este capítulo, consideramos adequado iniciar nossa abordagem por um poema que remete aos tempos primevos, quando o primeiro poeta se destacou dos demais seres humanos. Os versos se reúnem sob o sugestivo título ―Ode ao primeiro poeta‖: Quando os homens desceram, um dia, dos montes e se [detiveram, trêmulos, diante da planície imensa, eu te vi erguendo a tua voz forte, límpida e viva. Eras jovem e tinhas a alegria de quem está descobrindo o mundo. Foi a tua palavra que modelou a primeira paisagem, deu ritmo [aos ventos e imaginou a beleza ingênua dos primeiros e únicos [símbolos que se perpetuaram. Eras criatura e criador. Estavas no gesto maravilhado que armava as primeiras tendas e na [mão indecisa que traçava o desenho mágico dos [caminhos que se improvisavam; na imagem da vida em que se embebeu o primeiro surto livre do 21 [espírito; estavas em ti mesmo e fora de ti, quando os homens desceram, um dia, dos montes e se detiveram [trêmulos, diante da planície imensa... (CHA, p. 47) Epigrafados pelas palavras do poeta Georges Chennevière, ―Comme le monde était jeune, et que le mort était loin! ‖3, os versos emilianos nos conduzem a um tempo longínquo, um mundo recém-criado, quando os homens ainda não se preocupavam com a morte, pois esta se encontrava distante. Entretanto, há um acontecimento significativo ocorrendo nesse mundo paradisíaco: a descida dos montes realizada pelos homens. Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, em seu Dicionário de símbolos (2009), uma das vertentes do simbolismo da montanha4 indica a proximidade desta com o céu e, portanto, com os deuses. ―Na medida em que ela é alta, vertical, elevada, próxima do céu, ela participa do simbolismo da transcendência. (...) Ela é assim o encontro do céu e da terra, morada dos deuses e objetivo da ascensão humana‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 116). Ainda segundo os autores, a montanha aparece carregada desse sentido sacro em várias religiões, inclusive em alguns livros do ―Antigo Testamento‖, em que aparece como lugar da presença ou da aproximação com Deus5. Os montes teriam, pois, significação sagrada6. Descê-los significa se afastar do sagrado, indo contra o desejo humano de ascensão. Por sua vez, a planície, imagem do mundo a ser habitado pelos homens, contrapõe-se ao simbolismo do monte enquanto morada dos deuses. À orientação vertical deste, opõe-se a horizontalidade daquela. A 3 Quando o mundo era jovem, e a morte distante (tradução nossa). 4 Embora a imagem apresentada no poema seja a do monte e não a da montanha, aproveitamos a simbologia desta por considerarmos a sinonímia das duas palavras. 5 Chevalier e Gheerbrant apontam como exemplo o caso do sacrifício de Isaac sobre a montanha (Gênesis, 22, 2). Eles ainda mencionam que há em ―Isaías‖ (14,12 s.) e ―Ezequiel‖ (28, 11-19) a possibilidade de aproximação da montanha de Deus com o Paraíso. Essa concepção ―ausente da narração do Gênesis, aparece nos escritos do judaísmo tardio (...). É um signo da grande difusão e da atração segura do tema da montanha divina‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 616-619). 6 Também no Novo Testamento, montanha e monte remetem à ideia de aproximação com a divindade: o Monte Tabor, da transfiguração de Cristo (Mateus, 17, 1-9), as bem-aventuranças do Sermão da Montanha (Mateus 5-7), a agonia de Cristo no Monte das Oliveiras (Mateus 26, 36-46) e sua morte no Monte Calvário ou Gólgota (Mateus 27, 32-56), além das suas várias retiradas para orar em lugares elevados. A descida do Tabor trouxe Jesus e os apóstolos à realidade de sua humanidade; a multidão que desce do monte das bem-aventuranças, com Jesus, depara-se com a triste condição de um leproso; a descida do Monte das Oliveiras teve, num primeiro momento, o triunfo da entrada de Cristo em Jerusalém e, no segundo, sua prisão e julgamento ilegal; por último, do Monte Calvário o corpo de Cristo desceu para o túmulo. 22 planície ―parece ter sido a região ideal na qual os seres humanos podem habitar, em oposição à montanha, reservada para os personagens divinos‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 722). É neste contexto que exsurge o primeiro poeta, sobressaindo-se entre os demais seres humanos. Se estes se mostram ―trêmulos‖ diante da imensidão da planície que se lhes apresenta aos olhos, o poeta se encontra feliz, possui ―voz forte‖, como a descobrir o novo mundo que se configurava. O eu da escrita atribui à palavra deste primeiro poeta um poder demiúrgico, pois, por meio dela, ele ―modelou a primeira paisagem‖, ―deu ritmo aos ventos‖, ―imaginou a beleza ingênua dos primeiros e únicos símbolos que se perpetuaram‖. Ações que sugerem a ordenação do mundo no momento da criação. Deus modelou a paisagem ao separar a luz das trevas, a terra das águas, preenchendo-a de ervas e árvores frutíferas, ao criar o sol e a lua, ao povoar terra, céu e águas de seres vivos etc7. É por meio da palavra que Ele fez tudo isso. Somente pelo ato de dizer – ―Deus disse: ‗Faça-se a luz!‘ E a luz foi feita‖ (Gênesis, 1, 3) – a criação se realizava. Ao poeta primevo de Emílio Moura vemos sendo conferido um poder similar. Walter Benjamin (1892-1940), no texto ―Sobre el lenguaje en general y sobre el lenguaje do los hombres‖ (1970), apresenta uma teoria em que diferencia três tipos de linguagem, quais sejam, o da palavra criadora, o da nomeadora e o da comunicadora. O primeiro é o da palavra de Deus que, ao ser dita, realiza a criação. Segundo o crítico, Deus utilizou a palavra criadora em tudo aquilo a que deu origem, exceto na criação do homem. Nesse caso, Ele se utiliza do barro, inspirando-lhe vida por meio de um sopro. Embora o ser humano seja a única obra divina que não foi criada pela palavra, trata-se da única a que foi conferido o poder desta (BENJAMIN, 1970, p. 145). O segundo se refere à palavra que dá nome às coisas. O verbum divino é transferido ao homem, porém, o poder de criação desse verbo se torna limitado, pois, com ele, o homem não faz as coisas, ele as traduz para o mundo por meio da palavra. Não por isso a linguagem humana perde totalmente o caráter divino, já que ela resulta da palavra criadora de Deus (BENJAMIN, 1970, p. 146-147). O outro nível é o da concepção burguesa da língua, concebida apenas como utensílio para a comunicação (BENJAMIN, 1970, p. 142). 7 Cf. Gênesis, 1. 23 Enquanto Deus transfere sua palavra ao homem, tornando-o capaz de nomear as coisas, Emílio Moura concede o poder da palavra criadora apenas ao poeta, diferenciando-o dos demais seres humanos, tornando-o ―criatura e criador‖. Assim, se os homens vivenciavam um afastamento em relação ao divino, o poeta, ao contrário, teve essa ligação fortalecida. Saindo de uma leitura que aproxima o poeta do Deus judaico-cristão e partindo para outra que considere a relação dos deuses gregos com os poetas, percebemos que a ligação acima mencionada é depreendida, também, do verso ―estavas em ti mesmo e fora de ti‖. Moura nos leva a pensar na tradicional concepção do fazer poético que considera o poeta um ser possuído pela potência divina – geralmente pelo poder das Musas –, o que o deixa, então, fora de si. Nesta concepção, é pelo domínio dos deuses que o poeta adquire a palavra demiúrgica: ele funciona apenas como intérprete das palavras divinas. Tudo o que ele canta, nesta situação – e somente assim ele pode cantar –, advém de forças sobrenaturais. Por si só, é incapaz de qualquer criação lírica. No diálogo Íon, Platão (428-347 a.C.) apresenta esta mesma visão a respeito dos poetas: Leve é coisa do poeta, alada e sagrada; e inicialmente não consegue compor, antes de se tornar inspirado, de ficar fora de si e o pensamento não habita mais nele; até que tenha essa aquisição, todo homem é incapaz de compor e de proferir oráculos (PLATÃO, Íon, 534b, grifo nosso). As Musas não estão referenciadas na ode emiliana, entretanto, é pelo poder divino da palavra criadora ofertada ao poeta que ele ―modela‖ as primeiras coisas. Assim como, pelo poder da palavra advinda de divindades como as Musas, o aedo e o rapsodo dos tempos homéricos realizavam sua tarefa. De qualquer modo, o poeta é um ser tocado pela palavra divina. Este poder da palavra demiúrgica é um dos temas refletidos pelo poeta e crítico Jorge Luis Borges (1899-1986) em conferência intitulada ―O enigma da poesia‖ (2000). Embora ele faça referência à palavra escrita e não à oral, seu raciocínio não destoa do que apresentamos em relação a tal poder. Discorrendo sobre a espécie de mistério que acontece quando o assunto em questão é a poesia, Borges procura encontrar a origem para a noção de escrita como algo sagrado. Ao fazer uma cronologia da história dos livros, ele afirma que é no Oriente que surge a 24 noção de livro enquanto Sagrada Escritura, de livros escritos pelo Espírito Santo – os Corões, as Bíblias etc.: ... gostaria de tomar o Alcorão como exemplo. Se não estou enganado, os teólogos mulçumanos o consideram anterior à criação do mundo. O Alcorão é escrito em árabe, porém os muçulmanos o consideram anterior à linguagem. Aliás, li que consideram o Alcorão não uma obra de Deus, mas um atributo de Deus, tal como são Sua justiça, Sua misericórdia e toda a Sua sabedoria. E assim foi introduzida na Europa a noção de Sagrada Escritura – uma noção que não é, a meu ver, inteiramente equivocada (BORGES, 2000, p. 18). Ainda em relação ao caráter divino da escrita, Borges, desta vez no texto ―Música da palavra e tradução‖ (2000), opina a respeito do surgimento das traduções literais. Para ele, tais traduções teriam uma origem teológica advinda da tradução das Escrituras Sagradas. Isso porque era preciso que se respeitassem as palavras divinas, pois ―se Deus escreve um livro, se Deus se digna à literatura, então cada palavra, cada letra, como dizem os cabalistas, há de ter o seu propósito. E pode ser blasfêmia se intrometer no texto escrito por uma inteligência infinita, eterna‖ (BORGES, 2000, p. 78). A palavra escrita por Deus tem um propósito, assim como as pronunciadas por Ele no momento da criação do mundo, que objetivavam criar todas as coisas. A origem divina tanto da palavra escrita quanto da oral as envolve de uma espécie de encantamento que, transposto para a poesia – enquanto manifestação dessas palavras por parte dos homens, herdeiros da palavra divina –, confere a ela o tom enigmático apontado por Borges no título de sua conferência. Se, no poema anterior, a relação com as divindades gregas fica subentendida, nos versos de ―À Musa‖, ela ecoa de modo límpido: Nunca te exaltei, porque estás acima do tempo. Não sei que mito se humanizou em ti para que pudesses realizar [esse equilíbrio de realidade e de irrealidade. Só sei que és a paz ou o desespero dos poetas que te conheceram [ou que te desconhecem. Vieste tão do alto! Ainda estavas infinitamente longe e já o ruído de teus passos [ressoava vivamente dentro de meu sonho. És anterior a ti mesma e eu te esperei desde o princípio. E foi para te descobrir que minha poesia veio alimentando pelos [tempos afora a sua infinita sede de plenitude 25 E parou em ti que és a própria poesia. Na verdade, eu já te esperava desde o princípio. (CHA, p. 50) A Musa8 é referência constante entre aqueles que consideram a inspiração divina como a responsável pelo trabalho dos poetas. Esta divindade foi durante muito tempo considerada a propiciadora da criação poética, uma consideração que sobreviveu pelos séculos afora, ora um pouco enfraquecida, ora exaltada. Nos poemas épicos, o poeta faz a invocação às Musas, pedindo inspiração necessária para cantar, por exemplo, os grandes feitos de um herói. A invocação à Musa, inclusive, fazia parte da composição estrutural da épica. Dentre exemplos clássicos em que ocorre tal invocação temos a Odisseia e a Ilíada, de Homero; a Teogonia de Hesíodo; a Eneida, de Virgílio e Os Lusíadas, de Luís de Camões9. Emílio Moura apresenta a Musa destacando seu aspecto eterno – ―estás acima do tempo‖, ―És anterior a ti mesma‖ – e divino – assim entendido pelo sentido simbólico que a altura , sugerida pela expressão que destacamos no verso ―Vieste tão do alto‖, possui de representar a ―ascensão‖, a ―espiritualização‖, a ―assimilação progressiva àquilo que o céu representa‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 40). Também Gilbert Durand, na obra As estruturas antropológicas do imaginário (1997), faz referência à relação que imagens que remetem à verticalização ascendente possuem com o plano transcendental. Dentre esses símbolos temos as escadas, os montes, o próprio processo de subida, lugares altos em geral, as asas e o voo que elas sugerem etc. (DURAND, 1997, p. 127-146). Dizendo que a Musa vem ―tão‖ do alto, o poeta não só aventa o caráter transcendente dela, mas, ao empregar o advérbio de intensidade, também fortalece o poder atribuído a ela. A superioridade da Musa nestes versos emilianos é indicada, ainda, pela capacidade que possui de ser paz ou desespero para os poetas. Assim, ser dominado por ela tanto pode indicar uma situação confortante como aflitiva. O poeta que ―conhece‖ a Musa ou vê na inspiração divina um lado positivo, sendo alguém privilegiado por receber os favores transcendentes, ou se sente incomodado com o 8 Na mitologia grega, as Musas são filhas de Zeus com a deusa Mnemosine, personificação da memória, que tudo sabe sobre o passado, o presente e o futuro, saber este transmitido a suas filhas. 9 (HOMERO, Odisseia, I, 1-9); (HOMERO, Ilíada, I, 1-6; II, 420-428); (HESÍODO, 1-35; 1020-1021); (VIRGÍLIO, I, 15-19); (CAMÕES, I, 25-40; III, 1-16; VII, 616-696; X, 57-82). 26 domínio a que é submetido. Também o poeta que a ―desconhece‖ experimenta tais sentimentos: no primeiro caso, referindo-se à paz, imaginamo-lo, por não se encontrar submetido ao domínio da inspiração, livre para realizar sua operação poética. No caso do desespero, tratar-se-ia daquele que deposita na tradição da inspiração divina a responsabilidade pela faculdade poética. Sem ela, portanto – a inspiração –, ele se desesperaria, pois não seria capaz de realizar sua tarefa. No caso do poeta Emílio Moura, veremos, ainda neste tópico, que há momentos em que ele fala em lutar contra a inspiração; o que, se não denota um desespero, aponta, ao menos, para o fato de que ele não se encontra em paz. Há uma tensão pairando sobre o fazer poético emiliano, que reconhece a Musa, mas não se mantém a ela submisso. Nos versos acima, mais do que generalizar a influência da divindade grega sobre os poetas, o eu da escrita fala de sua própria ligação com ela – e veremos que não se trata de uma relação de todo pacífica, pois, de início, ele se mostra evasivo em relação à Musa. Embora reconheça o caráter eterno, as capacidades e a influência que a divindade exerce sobre os poetas em geral, ele afirma nunca tê-la exaltado. Mesmo assim, ela se manifesta para ele. Apesar de, na segunda estrofe do poema, Moura declarar: ―e eu te esperei desde o princípio‖, somente no verso final (uma reafirmação deste outro), o poeta reconhece que, de fato, seu encontro com a Musa era inevitável, esperar por ela faz parte de seu destino como poeta. No verso ―Na verdade, eu já te esperava desde o princípio‖, a expressão que destacamos traduz a ideia de uma constatação inquestionável, enquanto o advérbio em negrito aponta para o fato de a ação de se esperar pela Musa vir se dando desde os tempos primordiais – conforme podemos entender pelo emprego da palavra ―princípio‖. A posição ―infinitamente longe‖ em que a Musa se encontra do poeta, tendo o ruído de seus passos ressoando nos sonhos dele, e o fato de ele a esperar ―desde o princípio‖ nos incitam a ver resíduos da tradição da inspiração divina ecoando nos tempos da modernidade de Moura. A distância não consiste, apenas, em um afastamento do plano transcendental em relação ao humano, é também uma separação temporal, remetendo à época em que se originou a crença na inspiração da Musa. Contudo, é uma distância preenchida por um som que se repete, que ressoa, ecoando tempos afora até alcançar os sonhos emilianos. Herdeiro dessa tradição, portanto, mesmo que apontemos uma evasão do eu emiliano no que diz 27 respeito a ela, esperar por esse encontro faz parte de seu ofício como poeta. Afinal, somente ao realizá-lo, sua poesia se satisfaz plenamente. Emílio Moura faz menção, ainda, à relação da Musa com o mito e à capacidade dela de, por meio deste, ―realizar esse equilíbrio de realidade e de irrealidade‖. A referência à harmonia do real com o irreal promovida por meio do mito nos levou às considerações de Mircea Eliade (1907-1986) no livro Mito e realidade (1972). Logo no início da obra, o autor apresenta dois sentidos atribuídos ao mito, quais sejam, o sentido usual de indicar uma ―fábula‖, uma ―ficção‖10, e o sentido que, para as sociedades arcaicas, designa ... uma história sagrada; ele [o mito] relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‗princípio‘. (...) narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir (...). É sempre, portanto, a narrativa de uma ‗criação‘: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. (...) Os mitos revelam, portanto, sua [dos Entes Sobrenaturais] atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a ‗sobrenaturalidade‘) de suas obras (ELIADE, 1972, p. 11). É correspondendo às criações primeiras dos ―Entes Sobrenaturais‖ que o mito se relaciona com a realidade, uma vez que tais criações podem ser comprovadas: ―O mito cosmogônico é ‗verdadeiro‘ porque a existência do Mundo aí está para prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente ‗verdadeiro‘ porque é provado pela mortalidade do homem (ELIADE, 1972, p. 12). Assim, ao narrar a criação divina das coisas, o mito se transforma em um modelo a ser seguido pelo homem em todas as suas atividades significativas, ―tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria‖ (ELIADE, 1972, p. 13). O equilíbrio entre o real e o irreal apontado por Moura nos incita a pensar esse duplo sentido do mito que tanto pode ser tido como uma ficção, quanto como uma história verdadeira. Enquanto irrealidade, o mito da Musa inspiradora dos poetas não passaria de lenda, uma ficção; como realidade, ele corresponderia à crença verdadeira na inspiração divina. O equilíbrio se dá porque há aqueles (poetas, críticos, teóricos) que são adeptos da inspiração das Musas, e aqueles que 10 Cf. verbete mўthos, no Dicionário grego-português e português-grego (1976), de Isidro Pereira. 28 não a admitem, considerando o poeta o único responsável pelo fazer poético. Outros ainda que, como demonstraremos ocorrer em Emílio Moura, oscilam entre uma e outra vertente. A ideia de um poder divino sendo atribuído aos poetas, seja ele ofertado por Deus ou pela Musa, proporciona um caráter enigmático – recorremos ao título da conferência de Borges – ao fazer poético depreendido dos poemas emilianos. Tal enigma será fortalecido por outras caracterizações que Moura confere aos elementos que se relacionam ao contexto da produção lírica. Em ―Fragmento de uma elegia‖, por exemplo, ele lança mão do termo ―mágica‖ para caracterizar, novamente, o fazer do poeta: Em ti os sonhos nascem. Em ti os sonhos nascem, os caminhos se formam, os mistérios se [multiplicam. Cada gesto que fazes é uma aventura nova que se inicia, já que adivinhas em tudo o que os gênios invisíveis subtraíram ao [maravilhoso. Como há de compreender-te aquele que ignora, de maneira [absoluta, a mágica dos poetas e não sabe por que caminhos não identificáveis se vai às ilhas [inexistentes? Como há de compreender-te aquele que, ao cair da tarde, só percebe o cair da tarde e não reconhece nem adivinha que foi a poesia que chegou de longe, a própria poesia? (EM, p. 135) Pela caracterização que o poeta atribui ao ―tu‖ feminino a que se dirige, ocorre-nos a possibilidade de que este seja a própria poesia. Isto por tratar-se de uma interlocutora a cujas qualidades temos nos referido: propiciadora de sonhos e multiplicadora de mistérios. No poema apresentado antes deste, por exemplo, o próprio Emílio refere-se à relação entre a poesia – metaforizada pela imagem da Musa – e o sonho: ―Ainda estavas infinitamente longe e já o ruído de teus passos ressoava vivamente dentro de meu sonho‖. Mais: quando expusemos o pensamento de Borges, falamos do caráter enigmático da poesia, que pode ser lido na expressão emiliana ―Em ti... os mistérios se multiplicam‖. Assim, este interlocutor só pode ser compreendido por aquele que seja capaz de reconhecer a ―mágica dos poetas‖, os quais conseguem atingir o que está além da realidade humana, indo a ―ilhas inexistentes‖. Somente eles podem 29 alcançar o plano extrassensível e perceber a poesia que existe em uma paisagem do cair da tarde. Uma poesia que vem de longe, que está fora do poeta, mas que, ao se aproximar dele, permite-lhe, misteriosamente – isto é, por ―caminhos não identificáveis‖ –, alcançar o que não existe no mundo material. A caracterização que o eu da escrita confere aos poetas – neste e nos outros dois poemas apresentados – e o fato de a poesia ser algo exterior a eles, pois ela ―chega de longe‖ ou é propiciada pelos deuses, vão construindo uma espécie de teoria do fazer poético. Esta teoria, até o momento, encontra-se envolta por um caráter mítico ao possuir sentido relacionado às origens de todas as coisas, geradas por poderes de entes sobrenaturais. Apesar de contar essas procedências, o mito, em sua gênese primitiva, contém um aspecto misterioso, porque não é explicado racionalmente. Ernesto Grassi (1902-1991), no livro Arte e mito (s.d.), ressalta que os povos primitivos não viviam de uma forma lógica, mas emocional. Eles não se preocupavam em entender os acontecimentos pela abstração. Aceitavam-nos e reagiam pela emoção. Um fato novo, por exemplo, podia causar medo, mas o homem não tentaria entender o porquê do acontecido. Faltava-lhe a ―curiosidade de saber‖ (GRASSI, [s.d.], p. 41). Entendemos que, diante deste contexto, em que não se procura explicar os fatos, aceitando-se a manifestação dos deuses sem precisar entendê-la, sobressaia dos mitos um aspecto mágico e misterioso. A poesia de Emílio Moura que apresentamos até o momento possui a magia da criação divina, remetendo, na ―Ode ao primeiro poeta‖, ao mito bíblico da criação do mundo, em que a palavra de Deus tinha poder de eclodir as coisas. Somente de modo maravilhoso se pode conceber essa criação. E o poeta faz a mesma coisa que Deus, agindo como o criador num momento em que os homens inauguravam nova etapa de sua existência, pois, por sua palavra ele modelava as situações. Também em relação ao poema dedicado à Musa, fazendo ressoar a tradição da inspiração divina, o aspecto mágico se confirma. Afinal, de que modo, senão misterioso, pode a Musa falar ao poeta? Já no poema ―Fragmento de uma elegia‖, a magia é explicitamente conferida ao poeta. Com essas retomadas dos poemas já apresentados, objetivamos demonstrar que o tom enigmático que, de modo frequente, envolve a elaboração poética emiliana, tem um caráter mítico. Há segredo, imprevisibilidade, encantamento pairando sobre alguns poemas de Emílio Moura. 30 Se o poeta é aquele que cria por meio das palavras, sua mágica está, pois, relacionada a elas. Em ―Mundo enigma‖, Moura reflete sobre a magia delas: Palavras! Como tudo permanece mudo ou se dissolve por detrás das [palavras! À árida sombra que projetam, nem a pedra ao menos é pedra. E a rosa, a rosa o que será? (NM, p. 312) No mundo enigmático da poesia emiliana, em que as palavras têm poderes, as coisas se afastam de seu sentido ordinário. Até mesmo a acepção da palavra ―pedra‖, algo tão endurecido e sólido, dissolve-se e perde sua concretude. A expressão ―nem a pedra‖ sugere que nem mesmo as palavras que dão significado a materialidades extremamente rígidas estão isentas de ser tocadas pela magia da palavra poética, podendo ganhar conotações diferentes das meramente comunicativas. O poeta não atribui nenhum sentido à palavra ―pedra‖ ou à ―rosa‖, mas indica que elas foram esvaziadas dos habitualmente empregados. Octavio Paz (1914-1998), na obra O arco e a lira (1982), considera que a linguagem, na poesia, recupera sua originalidade primitiva, perdida no discurso da prosa. Nesta, a palavra tende a unificar sua significação em detrimento de outros significados possíveis; enquanto, na poesia, a palavra mantém sua pluralidade de sentidos. Paz se refere a essa peculiaridade da linguagem poética como uma maneira de colocar a palavra ―em liberdade‖, uma vez que ela foi ―aprisionada‖ pelo uso prosaico (PAZ, 1982, p. 26). Também Borges apresenta suas considerações a respeito da palavra poética. No ensaio ―Pensamento e poesia‖ (2000), ele atenta para a expressão mágica desta palavra. O autor argentino ressalta que, em seu começo, as palavras possuíam um caráter polivalente, pois, ao serem pronunciadas, despertavam nos ouvintes diferentes sentidos. Ele exemplifica essa questão da seguinte maneira: Tomemos a palavra ―thunder‖ (trovão) e olhemos em retrospecto para o deus Thunor, o equivalente saxão do Thor nórdico. (...) Imagino que, quando [os primitivos da Inglaterra] proferiam ou escutavam a palavra ―thunder‖, ao mesmo tempo ouviam o grave 31 estrondo no céu e viam o raio e pensavam no deus. As palavras eram envoltas em mágica; não tinham um significado estanque (BORGES, 2000, p. 85). Assim, as palavras possuíam, originalmente, o aspecto mágico. Seu uso para fins de comunicação é que lhes atribuiu um caráter utilitário, tornando-as mais objetivas em sua significação. Quando o poeta utiliza as palavras, o que ele faz é, segundo Borges, ―levar a linguagem de volta às fontes‖ (BORGES, 2000c, p. 86); dar-lhe novamente seu caráter mágico de pluralidade de significações, destituindo-a do utilitarismo da comunicação diária. Essa reflexão se assemelha à que Luís Gonzaga Vieira desenvolve em seu artigo ―Itinerário poético‖ (1972). Analisando o livro que reúne os poemas de Emílio Moura, o autor pondera a respeito da linguagem poética, nos seguintes termos: A matéria da poesia é o imponderável – e o jogo do poeta é muito próprio e particular. A poesia pertence ao poeta como a cor pertence à luz, é isso, sonho e realidade se fundem, palavra e coisa se entrelaçam do melhor modo que podem ou do modo como o poeta pode fazer. E a palavra é vista não apenas em seu nível de instrumento, mas como matéria mágica. Cremos que a magia nasce por causa daquilo que a palavra aponta, pelo fato da palavra ser um caminho comum, cabendo a cada escritor levá-la até onde se conseguir, ou seja, esgotar a palavra, pegar as palavras em estado de dicionário e dar-lhes uma significação própria, mesmo sem desfigurá-las (VIEIRA, 1972, p. 6). É nesse sentido que entendemos os versos de Emílio Moura que dizem que a pedra e a rosa não são o que são, ou seja, seus significados podem ser manipulados pela magia da palavra. O poeta tem poder de engendrar sentidos novos, esgotando a capacidade semântica da palavra. Voltando às considerações de Borges, que relembra, ainda, o poder mágico que a palavra possui de instaurar a coisa a que ela se refere, tal como BENJAMIN (1970, p. 146) faz a respeito do poder criador da palavra no ―Gênesis‖. Entretanto, o poeta argentino não menciona a Bíblia cristã, mas a Torá judaica, e explica que, quando ―Deus disse: ‗Que se faça a luz‘, e fez-se a luz‖, acreditava-se que a palavra ―luz‖ tivesse uma força tal que fosse capaz de, ela mesma, promover a claridade. BORGES (2000, p. 87) menciona, ainda, as histórias de talismã e abracadabra, encontradas em As mil e uma noites. A este propósito, parece difícil 32 não nos lembrarmos da famosa frase ―Abra-te, Sézamo‖, pronunciada por Ali Babá a fim de que se abrisse a entrada da caverna onde ele escondia seus tesouros. As palavras ditas, mágica e poderosamente, desencadeavam a ação. Assim como a palavra abracadabra11, que, ao ser pronunciada, propiciava a realização de uma mágica. O raciocínio de Paz apresentado se assemelha ao de Borges no que se refere à capacidade da linguagem poética de fazer com que as palavras retomem seu caráter mágico de significar diferentes coisas, perdido no aspecto utilitário da linguagem. Vejamos como Paz afirma algo bastante semelhante: No poema a linguagem recupera sua originalidade primitiva, mutilada pela redução que lhe impõem a prosa e a fala cotidiana. A reconquista de sua natureza é total e afeta os valores sonoros e plásticos tanto como os valores significativos. (...) O poeta põe em liberdade sua matéria (PAZ, 1982, p. 25-26). O que Paz chama de ―pôr a palavra em liberdade‖, Borges chama de ―restituir-lhe o significado original‖. E Emílio Moura, teorizando sua poética por meio dos versos, também se aproxima do entendimento dos dois poetas-críticos. Seu verso ―como tudo permanece mudo ou se dissolve por detrás das palavras‖ aponta para o poder da palavra poética de manipular o sentido daquilo a que ela se refere. Mesmo que os poetas utilizem as palavras de seu povo, de sua época, ele as envolve por um encanto que lhes possibilita significar mais do que objetivamente significariam. E eis a mágica: não revelar o sentido das palavras no poema. O que as tornam especiais são, exatamente, as possibilidades de dizer isso ou aquilo, de dizer isso e aquilo também. A seguinte afirmação de Moura, foi publicada, dentre outras assertivas reunidas sob o título ―Fragmentos‖, no Suplemento Literário de 11 No dicionário Houaiss (2001), ―abracadabra‖ possui as seguintes acepções: ―palavra cabalística a que os antigos atribuíam a virtude de curar moléstias‖, ―crença no poder cabalístico dessa palavra‖, ―amuleto gravado com essa palavra‖, ―expressão destituída de sentido, ilógica, ininteligível‖. Os dois primeiros sentidos sugerem a força misteriosa que a palavra possui de promover uma ação, no caso, a cura de moléstias. Há ainda outra possibilidade de entender o sentido mágico de ―abracadabra‖, se se considerar sua etimologia aramaica, em que ela significa ―eu crio ao falar‖. Sobre este sentido, não o temos dicionarizado, foi encontrado em página da internet (http://pt.wikipedia.org/wiki/Abracadabra), a qual menciona que a palavra em questão ainda não foi de todo decifrada e que muitas são as origens e sentidos que lhe são atribuídos. Embora não possamos dar muito crédito a informações virtuais que não sejam retiradas de páginas reconhecidas por seu caráter científico, a acepção ―eu crio ao falar‖ vai, perfeitamente, ao encontro do pensamento desenvolvido por Borges (2000c) de que a palavra instaura a coisa a que se refere. 33 Minas Gerais12. Ela refere a esta questão da riqueza de sentidos da palavra: ―Entre o que a palavra significa e o que ela é capaz de sugerir, pelo milagre da manipulação poética, há todo um espaço mágico em que nossa visão do mundo se transfigura e se recria em projeções indefinidas‖ (MOURA, 1969, n. 156, p. 12, grifos nossos). É neste ―espaço mágico‖ que, de modo milagroso, a ―pedra‖ e a ―rosa‖ emilianas deixam de ser pedra e rosa. Em Moura, esta ―pedra‖ que não é pedra dialoga com a pedra drummondiana, no célebre poema ―No meio do caminho‖13, que causou grande polêmica ao ser publicado pela primeira vez em 1928, na Revista de Antropofagia, e lançado, dois anos depois, em Alguma poesia, primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Alguns críticos passadistas não admitiam que aqueles versos repetitivos fossem poesia ou que se usasse, ―erroneamente‖, o verbo ter no lugar de haver. Buscava-se, também, o sentido oculto por detrás da palavra ―pedra‖. Tantas foram as críticas e os comentários que, 40 anos depois da publicação, Drummond os reuniu em um livro intitulado Biografia de um poema (1967). No texto ―A vingança de Drummond‖ (2010), João Pombo Barile cita uma fala do poeta itabirano a respeito do assunto: Se não fiz da minha dor um poema, como pretendia Goethe, fiz da minha chateação um livro. Colecionei e publiquei tudo que se escreveu sobre a pedra no caminho, pró e contra, claro que na maioria contra. Pois a esta altura a pedra havia assumido aspectos existenciais e filosóficos que nunca me passaram pela cabeça. A pedra é um símbolo! É uma besteira! Genial! Idiota! Etc. Ficou divertidíssimo (Apud BARILE, 2010, [s.p], grifo nosso). Drummond alcança a questão de como a palavra, em um poema, pode despertar diferentes significados nos leitores. Ele afirma que os sentidos conferidos à ―pedra‖ nem ao menos lhe passaram pela cabeça. A palavra, no mundo da poesia, ganha essa potência semântica, possibilitada tanto por parte do poeta, que cria as 12 Em diferentes edições do Suplemento Literário de Minas Gerais, deparamo-nos com frases de Emílio Moura, reunidas sob o título ―Fragmentos‖. Dentre as assertivas emilianas, encontramos reflexões sobre a poesia e o fazer poético. Algumas servirão de apoio para nossas argumentações e serão trazidas para com elas dialogar em momentos que julgarmos convenientes. 13 ―No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. // Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra‖ (ANDRADE, 2008, p. 267). 34 imagens, desestabilizando os sentidos, quanto pela dos leitores do poema, que traduzem essas imagens de maneira diferenciada. Apesar do tom depreciativo de Drummond a respeito desses significados, não se anula o aspecto enigmático ou mágico da palavra ―pedra‖ que, escapando à utilidade meramente comunicativa, deixa-se estar ―em liberdade‖ tendo seu sentido ordinário ―dissolvido‖ por detrás da palavra, conforme o poema emiliano. Ao trazer a imagem da ―pedra‖ para seus versos, Moura sugere a poesia de seu amigo; já para dizer de sua própria obra, apresenta a ―rosa‖ que, como veremos logo à frente, é uma imagem simbólica de sua poesia. Poetizando a respeito da palavra e seus sentidos, Emílio Moura nos incita a buscar a origem do vocábulo ―palavra‖ a fim de entender o porquê de a ela serem atribuídas características enlevadas como as encontradas em seus versos, ora demiúrgica, ora mágica. Em grego, tanto mўthos quanto lógos possuem como uma de suas acepções o significado ―palavra‖. O primeiro, conforme vimos, refere-se a histórias que, rememorando as mais diversas criações realizadas em tempos primevos por entes sobrenaturais, faz reviver essas criações. A ―palavra mítica‖, portanto, aquela que narra o mito, possui o poder de reinstaurar as realidades originadas nos tempos primordiais. Nesse sentido, ela carrega em si a força criadora própria dos entes sobrenaturais que tudo criaram. Das origens gregas do mўthos, então, provém a distinção conferida aos aedos e rapsodos e, aos poetas em geral, que obtinham das Musas uma palavra poderosa e inquestionável, porque divina. Também na versão bíblica do mito da criação, a palavra criadora se faz presente, ou seja, a palavra de Deus, o ser sobrenatural por excelência, promove as criações. Refletindo sobre o poder dessa palavra, no texto ―Poesia: nos caminhos do étimo‖, diz o poeta e crítico Fernando FIORESE (2010, [s.p.])14: Porque, desveladas pelos deuses, tais palavras comungam da força e da eficácia deles; são vocábulos propiciatórios, mágicos, capazes de acionar o vir-a-ser, de descerrar realidades, de conduzir à salvação ou à ruína, de metamorfosear a matéria e o imaterial. Walter Benjamin, por sua vez, apresenta uma reflexão extensa por quase toda sua obra a respeito do mistério que ronda a linguagem. Nas suas palavras: 14 Texto inédito a que tive acesso por oferta do próprio autor. 35 No que concerne ao efeito [Wirkung], poético, profético, objetivo, eu só posso compreendê-lo como mágico, quer dizer não-media- tizável. Todo efeito salutar, sim, todo efeito não internamente devastador da escrita assenta-se no seu (da palavra, da linguagem) mistério. Por mais múltiplas que sejam as formas nas quais a linguagem possa mostrar-se eficaz, ela o será não através da mediação de conteúdos, mas antes através do mais puro abrir da sua dignidade e da sua essência (Apud SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 79). Benjamin se opõe a uma linguagem que seja de cunho estritamente comunicativo, que se ocupe apenas da transmissão de conteúdos. Para ele, a ―dignidade‖ da linguagem só pode ser alcançada em seu aspecto criador, relacionado ao primeiro tipo de linguagem que ele estabelece, o da linguagem divina (BENJAMIN, 1970, p. 145), em que o próprio ato de dizer instaura a coisa, ou seja, sem necessidade de nenhuma mediação, pois a palavra criadora é o próprio ser. Ao transmitir o poder da palavra ao homem, Deus lhe confere Sua potência que, embora limitada na criatura, ainda possui o dom divino do criador. As caracterizações dos elementos que fazem parte do contexto da produção poética, que temos destacado nos poemas de Emílio Moura apresentando um aspecto mítico, entrecruzam-se com outra vertente de concepção poética que tem seu fundamento no lógos, enquanto ―razão‖, ―inteligência‖. Entretanto, deste entrecruzar, sobressaem, ainda, caracteres míticos. Vejamos como os versos de ―Depois do poema‖ inauguram, em nossa leitura, essa questão: Eu fiz um verso diferente de todos os outros de minha musa para a tua beleza que eu não entendo. Havia doçura naquele verso? Havia veneno naquele verso? Às vezes é o próprio ritmo que desvirtua a intenção do lirismo [mais tímido. Ninguém sabe. E eu não sei como nasceram aquelas palavras. Dentro de mim não havia a menor intenção criadora. No entanto, elas disseram coisas que machucaram e que mudaram os nossos destinos irremediáveis. (Ing, p. 37) 36 Moura apresenta a palavra ―musa‖ de modo a excitar nossas reflexões. Embora ela apareça com inicial minúscula – de modo distinto do poema ―À Musa‖ –, entendemo-la, mesmo assim, relacionada ao fazer poético. Não mais como a divindade mitológica, mas, ainda, como uma inspiração exterior à vontade do poeta. Há, portanto, um afastamento deste em relação à inspiração divina – a Musa perde seu caráter sagrado ao ser desprovida da inicial maiúscula –, mas, nem por isso, a construção do verso se dá de modo consciente por parte do poeta. A palavra mítica começa, pois, a perder sua força, mas ainda ecoa no poema o caráter mágico e misterioso da criação. O eu emiliano não encontra explicação para o surgimento das palavras que compuseram o verso a que ele faz referência. Não havia, de sua parte, ―intenção criadora‖, no entanto, as palavras surgiram. Não foi um verso pensado, planejado. É como se o poeta entrasse em transe no momento em que as palavras nasceram e, depois, não encontrasse explicação para o que aconteceu. O verso ―Às vezes é o próprio ritmo que desvirtua a intenção do lirismo mais tímido‖ nos permite pensar no ritmo imposto pela inspiração se sobrepondo à intenção do poeta enquanto criador consciente. O próprio eu da escrita se pergunta: ―Havia doçura naquele verso? / Havia veneno naquele verso?‖. Nem ele mesmo sabe responder, por não ter participado, conscientemente, de sua feitura. A palavra ―intenção‖, que aparece duas vezes no poema, é que nos fez entrever o despontar do lógos na poética emiliana, pois ela acarreta sentidos que, se transpostos para o contexto da elaboração poética, tangem à participação consciente do poeta no processo lírico. Isto porque algumas de suas acepções apontam para a utilização do intelecto. A ―intenção criadora‖, portanto, requesta o lado mental do poeta, opondo-se à inspiração que vem do exterior dele. Apesar de, nos versos, o mistério da inspiração prevalecer sobre a ―intenção‖ do eu da escrita, o fato de esta ser mencionada aventa o reconhecimento de sua existência por parte do poeta. É um despontar bastante tímido este do lógos em Moura; na verdade é apenas uma sugestão de despontar. Veremos como ele se desenvolverá em outras passagens de sua obra. Historicamente, a ascensão do lógos, que sobrepujará o mўthos, se dá a partir dos pré-socráticos, que começam a questionar o caráter divino de todas as coisas, buscando explicações racionais por meio da observação da natureza. Porém, é a partir de Sócrates (470-399 a.C.) que o lógos ganha força para assumir sua posição privilegiada na mentalidade grega, da qual herdamos grande parte de 37 nossa cultura. Ele inaugura a busca do conhecimento científico pelo método do despojamento, por parte do homem, de crenças, superstições e opiniões subjetivas para que, esvaziado de qualquer influência, o homem pudesse partir em busca do verdadeiro conhecimento, sempre se utilizando da razão. Por um intenso processo intelectual, ele chegaria às características gerais das coisas, podendo, desde então, conceituá-las. Ao incentivar o predomínio absoluto da razão (lógos), Sócrates ajuda a destronar o mўthos enquanto palavra que diz o real, o qual deve ser, partindo daí, apreendido pelo pensamento. O filósofo ateniense lança a semente do racionalismo que passará a reinar quase absoluto na civilização ocidental. Entretanto, conforme Eliade; ―a ‗desmitificação‘ da religião grega e o triunfo, com Sócrates e Platão, da filosofia rigorosa e sistemática, não aboliram definitivamente o pensamento mítico‖ (ELIADE, 1972, p. 101). O pensador aponta a sobrevivência do mito, ―embora radicalmente modificado (se não perfeitamente camuflado)‖ (ELIADE, 1972, p. 102) na sociedade moderna. A repercussão da ascensão do lógos refletiu em todas as atividades humanas. E nas artes, no caso nos interessa a poesia, não será diferente. Com o declínio da crença nos mitos, exsurge a tentativa de explicar a aptidão poética pela razão. No artigo ―As origens da noção de poíēsis” (2007), Jovelina Maria Ramos de Souza aponta que, desde o filósofo Górgias (480-375 a.C), contemporâneo de Sócrates, começa-se a atribuir o trabalho do poeta ao lógos. É por meio deste que o poeta constrói sua arte e, desde então, a origem divina da poesia é repensada. A beleza da poesia e o efeito arrebatador que ela exerce sobre os ouvintes, que faziam com que ela fosse considerada advinda de uma inspiração divina, são conseguidos pela destreza dos poetas, que sabem ―utilizar bem o seu próprio discurso‖ (SOUZA, 2007, p. 93). Entretanto, assim como os mitos sobreviveram aos tempos, a concepção mítica da poesia não será de todo apagada do pensamento ocidental. Ela ecoará, pelos séculos afora, às vezes engendrando uma luta com a questão racional do fazer poético, outras vezes estabelecendo com esta uma espécie de convivência. Em Emílio Moura, encontramos essa convivência se dando de diferentes maneiras. Ora pacificamente, ora de modo conflituoso. A seguinte assertiva, publicada nos ―Fragmentos‖, já mencionados, mostra uma relação igualitária entre mўthos e lógos: ―O poema se elabora tanto à revelia do poeta, como na consciência desse‖ (MOURA, 1969, n. 137, p. 11). Temos, então, a inspiração misteriosa sendo 38 conciliada à ação racional do poeta. Nesta afirmativa, Moura não se inclina nem para um lado nem para o outro: ele opera a sua poética na tensão entre ambos. Geralmente, contudo, ele tende a fortalecer um dos dois lados, sobrepondo-o ao outro. Como vimos em ―Depois do poema‖, transcrito anteriormente, a poesia se impõe ao poeta sem que este manifeste intenção de produzi-la: ―Dentro de mim não havia a menor intenção criadora‖ (Ing, p. 37). Em outra assertiva, publicada entre as demais no Suplemento Literário, temos uma afirmação um tanto diferente: ―Há momentos em que a pressão interior da poesia é tão irresistível que todas as coisas vêm até nós sem que as procuremos‖ (MOURA, 1969, n. 137, p. 11). A poesia continua chegando de forma imprevisível, sem que o poeta a procure. Entretanto, embora ela continue a controlá-lo, e não ele a controlá- la, há uma diferença de sentido entre esse controle imprevisto da poesia e o da inspiração divina. Por meio desta, a poesia vem do exterior; pela apresentada no fragmento acima, ela vem do interior do poeta. Assim, deparamo-nos com outra forma de conceber a questão da inspiração poética: ela continua enigmática, mágica, embora não mais seja advinda de poderes divinos. A opinião de Olívia Montenegro, em seu artigo ―Um poeta mineiro‖ (1969), enfocando a obra de Emílio Moura, vai ao encontro do que estamos expondo. Além de mencionar a imprevisibilidade da poesia neste poeta, ela ainda aponta a convivência nele da inspiração involuntária e do trabalho consciente: ―Poucos poetas, a nosso ver, como esse poeta mineiro, para quem a poesia seja tanto um inspirado e lúcido imprevisto da sua sensibilidade e da sua imaginação. Ele não parece procurar a poesia, a poesia é que o procura‖ (MONTENEGRO, 1969, p. 8). Se pensarmos nas considerações que fomos tecendo ao analisar seus poemas, na maioria das vezes, é, sim, a poesia que parece procurar o poeta. Às vezes ele admite a influência das Musas; outras, reconhece que a poesia vem de longe e, sempre, de modo inopinado. Ocorre, também, principalmente em suas assertivas, de ele apontar para o trabalho consciente do poeta, embora o enigma da inspiração acompanhe essa consciência. Por isso, Montenegro indica: inspiração e lucidez; sensibilidade e imaginação. Quando mostramos a inspiração deixando de vir do exterior do poeta para se manifestar a partir de seu interior, mas ainda de modo enigmático, pois que não encontra explicação consciente, fomos conduzidos às palavras do poeta romântico Percy Shelley (1792-1822), extraídas do texto ―Uma defesa da poesia‖: 39 A poesia não é como o raciocínio, um poder a ser exercido de acordo com a determinação do arbítrio. Um homem não poderia dizer, ―Irei compor poesia‖. Mesmo o maior poeta não poderia dizê- lo; pois a mente, na criação, é como o carvão sendo consumido, ao qual alguma invisível influência, como um vento inconstante, desperta ao brilho temporário; este poder surge dentro, como a cor de uma flor que desvanece e se altera enquanto ela desenvolve- se, e as partes conscientes de nossas naturezas não profetizam nem sua chegada quanto sua partida (SHELLEY, 2008, p. 114- 115, grifos nossos). Também como Moura, Shelley afirma a imprevisibilidade deste ―poder‖ que ―surge dentro‖. Incapaz de ser percebido pela consciência, ele chega e parte de modo totalmente independente do poeta. Em outro momento do texto, o poeta romântico diz que os poetas, quando desprovidos de inspiração, não conseguem compor seus poemas, ou seja, deixam de ser poetas: ―... nos intervalos da inspiração, e eles podem ser frequentes sem serem duráveis, um poeta torna-se homem e é abandonado ao repentino refluxo das influências sob as quais os outros vivem‖ (SHELLEY, 2008, p. 119). Para este poeta, portanto, não são nem o raciocínio nem o arbítrio que proporcionam o fazer poético. Incisivo em sua posição, ele diz: ―Apelo aos maiores poetas de hoje, se não é um erro afirmar que [as] mais belas passagens da poesia são produzidas pelo trabalho e pelo estudo‖ (SHELLEY, 2008, p. 115). Moura também menciona o caráter momentâneo da condição do poeta ao afirmar: ―A maior tristeza do poeta é não sê-lo em todos os atos de sua vida‖ (MOURA, 1969, n. 156, p. 12). Esta inconstância da manifestação da poesia a que Moura e Shelley se referem é perceptível em um verso de ―Poema‖; uma vez que ela nos é apresentada como algo passageiro, que chega ao poeta por apenas alguns instantes: Renasces em ti mesma e por ti mesma. Movimentas o sonho, a poesia e as aventuras imprevisíveis. O imponderável é a tua matéria. A poesia só me visita para que te realizes, para que eu te sinta e te compreenda. Que caminhos te prendem, que ignotas rotas te iluminam? Uma rosa se forma entre o teu sorriso e a aurora. 40 De repente, tudo se torna tão irreal que te sinto visível. (EM, p. 129) O emprego do verbo ―visitar‖ confere à poesia um caráter efêmero. Afinal, a ideia subentendida na ação de se realizar uma visita é a de algo passageiro: o visitante chega, fica por algum tempo e parte. Assim é a poesia para o eu emiliano. Ela se manifesta para ele apenas em determinados momentos. Com objetivo determinado de uma visita, ela apenas faz uma passagem, cumpre sua tarefa, digamos assim, e se vai. Embora o poeta tire proveito dessa visita, já que somente por meio dela consegue alcançar a imponderabilidade do ―tu‖ a que se dirige, subentende-se a submissão do eu emiliano em relação à poesia. Ao afirmar a realização do ―tu‖ manifestado em seus versos ocorrendo somente pela visita da poesia, o eu da escrita sugere a instauração de um ―estado lírico‖15. Tal estado, que, nos versos, promove uma sensação de irrealidade, remete- nos à ideia de inspiração. Na verdade, embora os poemas metalinguísticos de Moura reflitam sobre o processo do fazer poético, ele não utiliza a palavra ―inspiração‖ em seus versos. As referências ao ―estado lírico‖ são feitas por meio de outros termos: no poema acima, Moura emprega o vocábulo ―poesia‖, em outros é a ―Musa‖ – ou a ―musa‖ – que simboliza este estado, seja atribuído aos deuses ou a uma força interior. Todavia, ―inspiração‖ não é uma palavra de todo ausente em Emílio Moura: entre os fragmentos publicados no Suplemento Literário, encontramo-la empregada. Em um deles, o poeta afirma a força da mesma e admite o fato de, às vezes, precisar ―lutar‖ contra ela, e o resultado dessa luta também ser muito produtivo: ―O momento mais fecundo de um poeta não é aquele em que se sente inspirado, mas justamente aquele em que luta contra a inspiração‖ (MOURA, 1969, n. 137, p. 11). A tensão a que nos referimos entre mўthos e lógos é facilmente captada neste fragmento, o qual demonstra que, em alguns instantes, não se trata de uma convivência fraterna entre os dois, mas algo conflituoso, pois é promovedor de uma luta. A força que acomete o poeta – pensemos na herança do 15 Domingos Carvalho da Silva, no livro Uma teoria do poema (1989), apresenta várias conceituações referentes à poesia e ao poema. Dentre elas, a de Antônio Soares Amora, de quem tomamos de empréstimo a expressão aspeada no texto: ―É necessário não confundir poesia com poema; poesia é o estado emotivo ou lírico do poeta no momento da criação do poema‖ (Apud SILVA, 1989, p. 23). 41 enthousiasmós grego e, portanto, mítica – defronta-se com a vontade dele de a ela resistir. Se dessa luta resulta uma fecundidade maior do que a advinda do estado lírico, é porque o processo de criação consciente do poeta se sobrepõe a ele. Destarte, lógos e mўthos se digladiam neste pensamento emiliano, estando a razão, neste caso, sobressaindo-se ao estado lírico promovedor da operação poética. Em outro excerto, dos mesmos ―Fragmentos‖, também se destaca o processo racional da elaboração poética: ―Muitas vezes a dificuldade de construir um poema excita mais o poeta do que a própria inspiração‖ (MOURA, 1969, n. 137, p. 11). Emílio Moura apresenta uma postura em que admite tanto o trabalho consciente do poeta quanto a influência externa. Novamente, ele reconhece que existe essa influência, todavia, ela já não se mostra muito valorizada, pois é menos excitante do que o trabalho de elaboração. Se este se torna mais interessante exatamente por ser difícil, é porque a noção da iluminação divina – que, ao permitir aos poetas produzir poemas com destreza, era considerada um atributo especial conferido a eles, um dom – desvaloriza-se, pois o que é fácil não estimula. No mundo logocêntrico, é valorizado o que se realiza pelo trabalho racional. Contudo, o que é a inspiração? Talvez seja essa uma das mais tormentosas questões que perpassa o campo da operação lírica. Geralmente, os poetas a admitem ou a censuram, sem, todavia, tentar decifrá-la. Segundo Octavio Paz (1982), se acreditarmos nos poetas, há sempre algo se intrometendo no momento da criação poética. ―Alguns o chamam de demônio, musa, espírito, gênio; outros o dizem trabalho, acaso, inconsciente, razão. Uns afirmam que a poesia vem do exterior; outros que o poeta se basta a si mesmo. Uns e outros, porém, veem-se obrigados a admitir as exceções‖ (PAZ, 1982, p. 191-192). Talvez, então, para que não tenham que ―admitir as exceções‖, alguns optem por seguir um movimento pendular, ora se aproximando de uma condição que independe da vontade do poeta, ora do trabalho do intelecto, como vimos acima em relação a Moura. ―A história da poesia moderna é a do contínuo dilaceramento do poeta, dividido entre a moderna concepção do mundo e a presença às vezes intolerável da inspiração‖ (PAZ, 1982, p. 201). Essa afirmativa resume a condição dos críticos e dos poetas modernos. Resta, entretanto, a dúvida: como agir frente a este dilaceramento? Paz afirma a necessidade de se enfrentar e viver o conflito. A oscilação de Emílio Moura, poeta moderno que vive esse momento conflituoso, não significa que esteja agindo de modo contraditório. Ele está, na verdade, enfrentando 42 a problemática e vivenciando-a por meio de suas palavras, sejam elas poéticas ou não (no caso dos fragmentos). Para mostrar como se dá o enfrentamento dos poetas em relação à conflituosa questão do impulso criador, Octavio Paz refaz seu percurso histórico, apontando que ele se constituiu primeiramente como um enigma e, posteriormente, como um problema para os homens (PAZ, 1982, p. 194). Para os povos antigos, em completa harmonia com o mundo exterior, acostumados a ver em todas as expressões da natureza a vontade de deuses e demônios, a inspiração ser considerada manifestação dos poderes divinos consistia em algo absolutamente normal. Era um mistério o modo como os deuses falavam pela boca dos homens, mas os povos antigos não buscavam entender os acontecimentos inexplicáveis, apenas os aceitavam. A partir do século XVI, sob a influência de René Descartes (1596-1650), a razão passa a ocupar lugar de destaque no pensamento ocidental. Segundo as concepções da época, deveria haver uma explicação conveniente para o surgimento de tudo, inclusive da inspiração. Como não se conseguia explicá-la, ela passa a ser um problema para o homem (PAZ, 1982, p. 195-197). Inexplicável, o melhor a fazer é negá-la e atribuir ao fazer poético o trabalho consciente, a disciplina16. O poeta passa a ser, portanto, totalmente dono de si e de sua consciência. Seria loucura, inconveniência, enxergar a intervenção divina ou mágica em um tempo em que a razão toma lugar central no pensamento humano. Entretanto, por mais que a época cartesiana tentasse abafar o enthousiasmós, este não deixou de existir17, muito menos de ser um tormento para o homem, que não conseguiu explicá-lo racionalmente. Mesmo inseridos na modernidade racionalizada, os poetas apresentavam ―resíduos das idades anteriores. E mais: para eles a inspiração era regresso ao passado: tornar-se medieval, grego, selvagem‖ (PAZ, 1982, p. 210). 16 Na verdade, demonstramos, pelas considerações de Souza (2007) – vide página 37 –, que o lógos emerge como responsável pelo fazer poético, ainda à época de Sócrates, na visão de Górgias. 17 Há uma passagem de Paul Valéry, no texto ―Questões de poesia‖ (2007), que aborda este aspecto paradoxal de, em plena modernidade, tempo da razão e da técnica, permanecer a crença na inspiração involuntária. Nas palavras dele: ―Como é surpreendente (...) que uma época que estimula até um ponto inacreditável, na fábrica, no canteiro de obras, na areia, no laboratório ou nos escritórios, a disseminação do trabalho, a economia e a eficácia dos atos, a pureza e a limpeza das operações, rejeite nas artes as vantagens da experiência adquirida, recuse invocar algo além da improvisação, do fogo do céu, do recurso ao acaso sob diversos nomes lisonjeiros‖ (VALÉRY, 2007, p. 176). 43 Com o Surrealismo, ela recebeu uma conotação diferente das duas predominantes até o momento – a mítica e a racional –, pois lhe foi concedido um caráter teórico: ―... o Surrealismo maneja a inspiração como uma arma. Assim, transforma-a em ideia e teoria‖ (PAZ, 1982, p. 209). No mundo poético do Surrealismo, nem Deus nem razão ocupam o lugar central, mas sim a inspiração enquanto ideia, conceito independente. Nessa nova concepção, ela ―é algo que se processa no homem, se confunde com seu próprio ser e só pode ser explicado pelo homem‖ (PAZ, 1982, p. 210), tornando-se livre de qualquer fator externo. Ao contrário, a criação poética é impulsionada pelo inconsciente sendo, portanto, involuntária. Ainda assim, ela não está no inconsciente, ―não está em parte alguma, ela simplesmente não está, nem é algo: é uma aspiração, um ir, um movimento para a frente: para aquilo que nós mesmos somos. Desse modo, a criação poética é exercício de nossa liberdade, de nossa decisão de ser‖ (PAZ, 1982, p. 218). Por isso ela se confunde com o próprio ser do homem. Octavio Paz chegará, assim, à ideia de ―outridade‖, relacionando a ela o impulso criador. Ele ressalta ser característico da existência humana um desejo que nos leve incessantemente adiante, em busca de nos tornarmos mais plenos, levando-nos sempre além de nós mesmos. É este desejo de superação constante que consiste a ―outridade‖ humana. ―Flecha esticada, sempre rasgando o ar, sempre adiante de si, precipitando-se mais além de si mesmo, disparado, exaltado, o homem avança sem cessar e cai, e a cada passo é outro e ele mesmo. A ‗outridade‘ está no próprio homem‖ (PAZ, 1982, p. 215). E qual seria, então, a relação entre a outridade e a inspiração? Paz explica que esta é a ―voz estranha‖ que o homem ouve e que o impulsiona a seguir sempre em frente, a ser ―outro‖. Assim, as duas noções – outridade e inspiração – se coadunam, ambas se mesclam à própria constituição humana, em constante devir. A segunda alimenta, em todos os campos da existência, o desejo de ser, imanente ao homem. E, como este é um sujeito de palavras, elas lhe servem como um meio para que ele se transforme em outro (PAZ, 1982, p. 219-220). Em relação ao poeta, o desejo de ser outro se manifesta no uso das palavras. Sociais e históricas, elas são concomitantemente individuais e coletivas. Movido pelo desejo mencionado, o poeta se apodera da linguagem do outro para transformá-la em sua, recorrendo ―à imagem, ao adjetivo, ao ritmo, isto é, a tudo aquilo que a faz diferente‖ (PAZ, 1982, p. 217). Assim, o poeta é aquele que, utilizando-se de artifícios de 44 linguagem, transforma as palavras sociais em palavras suas. É o homem se transformando em outro pela linguagem. E ele só se torna poeta no momento em que esse desejo de ser outro, por meio das palavras, se realiza. ―Antes da criação o poeta como tal não existe. Nem depois. É poeta graças ao poema. O poeta é uma criação do poema tanto quanto este daquele‖ (PAZ, 1982, p. 205). Apresentamos esta visão que surge a partir do Surrealismo e que leva Paz a considerar a inspiração como algo inerente à constituição humana, a fim de demonstrar um olhar que fuja à oscilação entre a concepção involuntária e a racional do fazer poético. Entretanto, pelas leituras dos poemas de Moura, interessa-nos, exatamente, apontar a tensão provocada pela modernidade e que contribui para que os poetas modernos se mantenham em constante reflexão acerca deste assunto. Como vimos em Paz, é próprio desses poetas se sentirem dilacerados entre as duas concepções. Pelo que foi apresentado até agora, se considerarmos tanto os poemas de Moura quanto suas afirmativas no jornal, constatamos que tal tensão moderna repercute em seus trabalhos. 2.2 Heranças platônicas na poética emiliana: a poesia idealista Se no que concerne à sobrevivência, mesmo que residual, do mўthos em Emílio Moura, constatamos um aspecto mítico em sua poesia, em relação ao lógos encontramos uma tendência idealista. Introduzimo-la pelo poema ―Às vezes‖, no qual o poeta reapresenta a poesia, novamente, como uma visita: Às vezes, subitamente, a poesia te visita. Pura. Infinitamente pura. Como uma rosa. Melhor ainda: como a ideia de rosa. (NM, p. 305) A poesia não avisa que vai chegar. Ela simplesmente chega, como indica a palavra ―subitamente‖. E o faz de modo esporádico, tal como uma visita. Enunciamos, na ocasião em que refletíamos a respeito do poema ―Mundo enigma‖, que a imagem da ―rosa‖ é utilizada por Moura simbolizando a poesia, o que se 45 confirma no poemeto acima. O poeta compara a poesia a uma ―rosa‖, todavia, não se trata de uma rosa concreta, mas da ―ideia de rosa‖. Fazendo-o, ele inevitavelmente nos conduz ao conceito platônico de ―mundo das ideias‖ ou ―mundo inteligível‖ (PLATÃO, A república, 517a-e). Segundo o filósofo, tudo o que é perceptível na natureza pelos nossos sentidos não passa de uma cópia material – e, portanto, perecível – de uma forma eterna e imutável. Os objetos perceptíveis pelos sentidos pertencem ao que Platão chama de ―mundo sensível‖ ou ―visível‖, o qual seria, também, apenas uma cópia do outro, considerado por ele como o real. Nesse mundo real, ou ―das ideias‖, encontram-se os modelos de tudo o que existe, em sua forma mais perfeita, pois originária. A analogia que o poeta estabelece entre a poesia – por intermédio da imagem da rosa – e o platônico ―mundo das ideias‖, no qual se encontram as ideias primordiais de tudo o que há na natureza, leva-nos a considerar o aspecto idealista como outra das características da poética emiliana. Enquanto o aspecto mítico se constitui pela permanência do mўthos em Moura, o idealista se dá pela influência do lógos, já que o ―mundo das ideias‖ só é acessível pelo exercício da razão, diferentemente do ―mundo sensível‖, que se apreende pelos sentidos. A rosa emiliana – ―Pura. / Infinitamente pura‖ – pertence às ideias, ou seja, ela representa um ideal de rosa, um modelo a partir do qual todas as outras rosas poderiam ser identificadas. Não é meramente a rosa concreta, perceptível pelos sentidos humanos, mas a que se encontra além da percepção sensível, em um plano transcendente, apreendida somente de modo inteligível. O advérbio ―infinitamente‖ confere à ―ideia de rosa‖ seu caráter eterno, pois no ―mundo das ideias‖ as coisas são imperecíveis e imutáveis. Somente lá elas podem ser compreendidas em sua essência. Assim, se a visita da poesia, em ―Às vezes‖, se dá de modo momentâneo e advinda do que é exterior ao poeta, remetendo a um plano mítico, a poesia em sua constituição, aproximada das ideias platônicas, possui um aspecto inteligível. Vimos haver em Emílio Moura uma convivência – às vezes pacífica, outras inamistosa – do mўthos com o lógos, que se traduz em uma síntese mítico-idealista. A poesia idealista emiliana é aquela que está para além das questões do ―mundo sensível‖. No texto ―O platonismo difuso de Emílio Moura‖ (2003), Fábio Lucas dirá a respeito de uma quase ausência de realidade factual na obra emiliana: ―O poeta se abstém frequentemente da acomodação com o mundo real (...). Isto não quer dizer que o poeta se distancie das dores do mundo, pois a sua poesia se 46 comporta como uma exclamação estilizada‖ (LUCAS, 2003a, p. 159). Realmente, são poucas as referências explícitas a lugares, acontecimentos e pessoas concretos na obra emiliana. Entretanto, como teremos oportunidade de demonstrar no último capítulo deste trabalho, as dores do mundo refletem nevralgicamente em muitos de seus versos18. Ao aspecto idealista desta poesia emiliana liga-se, também, a pureza a ela atribuída nos versos. A fim de nos fazermos entender melhor, recorremos à explicação da poésie pure, conforme Hugo Friedrich (1904-1978), em Estrutura da lírica moderna (1978): Pode-se reconhecer o que este conceito quer dizer, tomando-se por base a significação das palavras ‗puro‘ e ‗pureza‘, que aparecem amiúde em Mallarmé. Significam sempre ‗puro de alguma coisa‘. São conceitos privativos, semelhantes àqueles usados por Kant, quando chama de puras as representações ‗nas quais não se encontra nada que pertença à sensação‘. Quando Mallarmé chama um objeto de puro, refere-se à pureza de sua essência, ao fato de estar livre de imisções que o atrapalham. De um parágrafo de uma carta de 1891, deduz-se o que pode significar pureza para sua lírica em geral: ‗Descompor e desgastar os objetos em nome de uma pureza central‘. O pressuposto da pureza poética moderna é, portanto, a desconcretização‖ (FRIEDRICH, 1978, p. 135, grifos nossos)‖19. É a esta noção de ―desconcretização‖ que queríamos chegar, pois há, na poesia de Moura, um perseverante trabalho de desmaterialização sendo realizado. O poeta subtrai a concretude das imagens que elabora, atribuindo-lhes caracterizações evanescentes, leves, como a indicar, realmente, uma pureza. Essa subtração da concretude enleva as imagens, deslocando-as do ―mundo sensível‖ para o ―inteligível‖. 18 No capítulo final deste trabalho, analisaremos os poemas de caráter sombrio e melancólico em Emílio Moura, considerando-se o contexto histórico e social do poeta. Soa-nos inevitável não recorrer aos acontecimentos do século XX que, de maneira concomitante, foi um período de grandes avanços tecnológicos e científicos e um tempo de grandes horrores contra a humanidade. 19 A coincidência da poésie pure apresentada por Friedrich (1978) com a ―poesia pura‖ de Emílio Moura se dá no que se refere à ―desconcretização‖ e ao fato de ser um trabalho intelectualizado. Entretanto, a poesia pura francesa caminhará para uma valorização da magia linguística em detrimento do significado das imagens concebidas. ―No jogo das forças linguísticas que se encontram abaixo e acima da função da comunicação, é bem sucedida a sonoridade dominadora e desvinculada de significado que confere ao verso a força de uma fórmula mágica‖ (FRIEDRICH, 1978, p. 136). A poesia pura, neste sentido, não é encontrada na obra emiliana. 47 As palavras de Affonso Ávila, no artigo ―O processo lírico em Emílio Moura‖ (1969), fazendo referência às idealidades presentes no poeta mineiro, ratificam tal ―desconcretização‖: Na concepção do poeta, os seres e objetos do mundo sensível são conscientemente transfundidos em idealidades, que ele invoca ou evoca numa linguagem abstraída de sentido material. A imagem em Emílio Moura é elemento constitutivo de uma outra realidade em que as palavras adquirem significado evanescente, impreciso, carregado de sutis conotações... (ÁVILA, 1969, p. 1). Segundo o poeta e ensaísta mineiro, ao abordar de modo consciente elementos do ―mundo sensível‖, Emílio Moura atribui a eles caracterizações que lhes subtraem a concretude, conferindo-lhes um sentido outro, de conotação leve, difusa, abstrata. Também Maria de Lourdes Utsch Moreira menciona, no artigo ―Emílio Moura: a luz e a distância em seu Itinerário poético‖ (1990), o processo de desconcretização a que estamos nos referindo: ―Pessoas, acontecimentos, sentimentos passam pelo crivo da sua ponderação. Depura fatos, resseca emoções, retira dos corpos o peso da matéria‖ (MOREIRA, 1990, p. 2). E, nos já propalados ―Fragmentos‖, o próprio Moura afirma: ―Entre o poeta e o mundo, as imagens compõem um outro mundo‖ (MOURA, 1969, n. 156, p. 12). Considerando-se que o primeiro mundo mencionado na assertiva equivalha ao concreto, aquele em que o poeta vive, o ―outro‖, criado por ele – por meio de suas imagens imateriais, de suas metáforas ou demais jogos de palavras –, corresponderia a um mundo simbólico, em que as coisas podem ser ressignificadas e que, na poesia de Moura, ganham ―sutis conotações‖. Também Drummond, referindo-se à poesia do amigo Emílio Moura, ressalta-lhe o aspecto idealista: Tua poesia explicava, pela interiorização e sublimação, os episódios temporais de que eras comparsa ou testemunha, e com o tempo se tornava cada vez mais diáfana, essência a evolar-se no ar depurado de referências fatuais. Um pouco mais, e seria a negação de tudo, na pura concentração do silêncio (...). Uma rosa que transcende a própria ideia de rosa. O real absoluto, a confundir-se com o absoluto não ser, o nada. Tua poesia beirou este limite abismal (...) (DRUMMOND, 1972, p. 5). 48 Ele não só menciona que a aparente ausência de fatos reais esteja subentendida nos versos de Moura, mas também sugere a ―desconcretização‖ – lida no excerto acima na palavra ―sublimação‖20. Aponta, também, para a questão da interiorização, que ainda não mencionamos, mas que será abordada no capítulo final desta tese. Drummond descreve a poesia emiliana como algo tão purificado de materialidade que parece mesmo que ela vai se desfazer. Poesia idealizada, que transcende o ―mundo sensível‖ e habita nas imagens do pensamento. Sobre a desmaterialização das imagens, demonstraremos de que modo ela ocorre nos versos emilianos no capítulo seguinte, tendo no feminino o grande exemplo desta ocorrência. Para o momento, interessa-nos reconhecê-la como característica do aspecto idealista da poesia de Emílio Moura, o qual se depreende, também, no poema ―Permanência da poesia‖: Quando a luz desaparecer de todo, mergulharei em mim mesmo e te procurarei lá dentro. A beleza é eterna. A poesia é eterna. A liberdade é eterna. Elas subsistem, apesar de tudo. É inútil assassinar crianças. É inútil atirar aos cães os que, de [repente, se rebelam e erguem a cabeça olímpica. A beleza é eterna. A poesia é eterna. A liberdade é eterna. Podem exilar a poesia: exilada, ainda será mais límpida. As horas passam, os homens caem, a poesia fica. Aproxima-te e escuta. Há uma voz na noite! Olha: É uma luz na noite! (P, p. 173) No primeiro verso, o eu emiliano anuncia o desfecho futuro de uma situação sombria e ameaçadora, já que haverá apenas escuridão: ―Quando a luz desaparecer de todo‖. As imagens das crianças sendo assassinadas e de homens perseguidos e atirados aos cães direcionam nossa leitura para o contexto histórico 20 Dentre os sentidos encontrados para o verbo ―sublimar‖, um há que nos permite aproximar a sublimação da desconcretização, qual seja: ―desembaraçar das partes grosseiras ou impuras‖ (HOUAISS, 2001). Voltando à definição que Friedrich (1978) apresentou da desconcretização, aproveitando-se das palavras de Mallarmé, como ―Descompor e desgastar os objetos em nome de uma pureza central‖, vemos semelhança com o sentido do verbo sublimar aqui referido. 49 da produção do poema – escrito entre 1947 e 1948 –, responsável pela escuridão anunciada. Estas imagens justificam o ―quase‖ que empregamos para nos referirmos à ausência de dados fatuais na poética emiliana. Trata-se de algo raro, mas que não se faz de todo inexistente. Neste caso, relacionam-se ao contexto da guerra mundial recém-findada – as crianças assassinadas – e a políticas ditatoriais (como a do Estado Novo, vigente de 1937 a 1945, nome este inspirado em outro governo totalitário, o de António de Oliveira Salazar em Portugal, o nazismo e o fascismo, dentre outros) que perseguiam, castigavam e até eliminavam aqueles que se rebelassem contra o status quo. De modo a fugir dessas perseguições, muitos intelectuais e artistas foram exilados – maneira de punir aqueles que se exaltavam, expulsando-os para um país estrangeiro, coibindo, assim, seus objetivos revolucionários – ou se autoexilaram para se preservarem. Tendo essa base histórica, Moura chega ao exílio da poesia, em cuja situação ela se mostra ainda mais ―límpida‖. Considerando-se a sinonímia desta palavra com o adjetivo ―pura‖, que Moura emprega algumas vezes para definir a poesia, junto à equiparação desta com conceitos como ―beleza‖ e ―liberdade‖, conferindo-lhes o caráter eterno, percebe-se o aspecto idealista a que temos nos referido da obra emiliana. A beleza eterna é a da perfeição das formas do mundo eidético, onde nada se corrompe. Que venham guerras, mortes, perseguições, assassinatos, nada disso consegue conspurcar a beleza em si, a beleza ideia ou conceito a que se chega pela abstração. Da mesma forma a liberdade. Enquanto ideia, ela é eterna e perfeita, portanto, incapaz de se deixar adulterar pelos encarceramentos do mundo sensível. Que venham exílios e perseguições. Pensemos, também, nas censuras impostas pelos regimes totalitários. A liberdade pode ser coibida na vida prática, mas permanece, enquanto conceito, inalterada no mundo das ideias. Tendo a eternidade como sua característica, a poesia ganha conotação idealista, mantendo-se perfeita, sem se corromper, sobrevivendo aos tempos, aos homens, aos regimes totalitários e às guerras. Em situações de extrema inquietação, seja social, psicológica ou política, ela é capaz de permanecer. E permanecer de modo belo, porque ideal; permanecer de modo livre, porque não se cala, apesar dos empecilhos. A voz que ecoa na noite emiliana é a voz dessa poesia eterna e límpida que, alcançando a perfeição platônica, funciona como uma luz em meio à escuridão. 50 No artigo ―Emílio Moura, um poeta perplexo‖ (1969), Frederico Morais expõe as seguintes palavras emilianas a respeito da permanência da poesia: ―Ela [a poesia] está dentro da condição humana. E não falo apenas da poesia escrita. Se esta desaparecer um dia, por um motivo qualquer, no que não acredito, a poesia permanecerá. A poesia é uma necessidade enraizada no homem‖ (MOURA apud MORAIS, 1969, p. 5). E o poeta acrescenta, a respeito da importância da poesia em tempos de guerra: Neste mundo de hoje (...) mundo da bomba atômica, das guerras, a poesia é mais do que necessária. Mesmo nas revoluções há necessidade de poesia. Quando os alemães invadiram a França, a resistência francesa foi motivada e incentivada pela poesia. Os poemas de Éluard e de Prévert eram impressos escondidos e lidos por todos os franceses humilhados (MOURA apud MORAIS, 1969, p. 5). Os dois poetas franceses citados por Emílio Moura – Paul Éluard (1895- 1952) e Jacques Prévert (1900-1977) – escreveram poemas sobre a liberdade. O primeiro, filiado ao partido comunista francês, chegou a ser conhecido como ―O poeta da liberdade‖. Milhares de exemplares de seu poema ―Liberté‖ foram lançados por aviões ingleses sobre a França, indo parar nas mãos da resistência francesa. Essa informação vai ao encontro da fala de Moura a respeito de a resistência ser motivada e incentivada pela poesia. Vejamos as estrofes finais deste longo poema: Sur mes refuges détruits Sur mes phares écroulés Sur les murs de mon ennui J'écris ton nom Sur l'absence sans désir Sur la solitude nue Sur les marches de la mort J'écris ton nom Sur la santé revenue Sur le risque disparu Sur l'espoir sans souvenir J'écris ton nom Et par le pouvoir d'un mot Je recommence ma vie Je suis né pour te connaître Pour te nommer 51 Liberté.21 De volta ao idealismo da poesia emiliana, temo-lo representado também nos versos de ―A fábrica do poeta‖: Fabrico uma esperança como quem apaga algo sujo num muro, e ali, rápido, escreve: Futuro. Fabrico uma pureza tão menina, tão cristal e tão fonte que, de repente, é meu todo o horizonte. Fabrico uma alegria que é de ver as coisas como se só agora é que nascesse a aurora. Fabrico uma certeza exata para cada instante. A vida não está atrás, mas adiante. Fabrico com o que tiro de mim mesmo e do mundo meu dia. E ao que, em síntese, sou junto o que queria. Fabrico uma hora densa, como quem te descobre. Ah, quem diria que essa hora imensa já é poesia? (NM, p. 306) 21 O poema completo se encontra disponível em: . Acesso em: 08 mar. 2011. ―Em meus refúgios destruídos / Em meus faróis desabados / Nas paredes do meu tédio / Escrevo teu nome // Na ausência sem mais desejos / Na solidão despojada / E nas escadas da morte / Escrevo teu nome // Na saúde recobrada / No perigo dissipado / Na esperança sem memórias / Escrevo teu nome // E ao poder de uma palavra / Recomeço minha vida / Nasci pra te conhecer / E te chamar // Liberdade‖. Tradução de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Disponível em: . Acesso em: 08 mar. 2011. 52 Há dois pontos que desejamos abordar neste poema. Um referente ao fazer poético relacionado ao verbo ―fabricar‖, outro que concerne ao sentido idealista que perpassa os versos. Para não interromper o que estávamos desenvolvendo a respeito deste, comecemos pelo caráter idealista. Os ―artefatos‖ originados na ―fábrica‖ mencionada no título do poema consistem em produtos que escapam à nossa percepção sensível, ou seja, não podem ser vistos nem tocados, não são apreendidos pelo olfato nem pelo paladar, também não produzem vibrações sonoras. Escapam, portanto, ao mundo material, sendo passíveis de entendimento somente pela abstração. Afinal, fabricam-se ―esperança‖, ―pureza‖, ―alegria‖, ―certeza‖, palavras que se referem a conceitos e não a objetos ou coisas concretas. Nesse sentido, os ―artefatos‖ do poeta se enquadram no mundo platônico das ideias, onde somente o que é inteligível encontra lugar. Eis a caracterização idealista que encontramos nos versos acima. E idealista não apenas no sentido de se referir a ideias, mas também porque a fabricação poética engendra apenas produtos de significação aprazível. O poeta não produz, por exemplo, ódio, rancor, tristeza. Segundo Houaiss (2001), o verbete ―ideal‖ tanto significa ―relativo à ideia; que só existe no pensamento‖, quanto aquilo ―que é objeto da nossa mais alta aspiração, alvo supremo de ambições ou afetos‖. O poeta fabrica, então, o que é desejável ao homem, o que o satisfaz, não pela materialidade dos objetos, mas pela aspiração a uma vida perfeita. No artigo ―O poeta Emílio Moura‖ (1969), do crítico Francisco Iglesias, encontramos reflexão a respeito desta questão idealista: Estamos diante de alguém que se movimenta na esfera do impossível, do incorpóreo, do ideal. O poeta está além do que existe, transcende a contingência, sua visão é a de formas que não contêm os traços da visão comum, pois tudo aparece a seus olhos sem sinais efêmeros, como símbolo de uma realidade mais perfeita ou como nostalgia por algo perdido ou nunca encontrado. É um mundo ideal (IGLESIAS, 1969, p. 12, grifo nosso). A sugestão da ―desconcretização‖ é também aventada no excerto acima, quando o crítico faz referência às ―formas que não contêm os traços da visão comum‖. Sendo as imagens esvaziadas de concretude, esta ―visão comum‖, ou seja, a que corresponde a um dos nossos cinco sentidos externos, não pode alcançá-las, porque, do modo diferenciado em que se encontram, as formas escapam ao 53 sensível. No poema acima, não ocorre a desmaterializaçao de elementos, mas aqueles que o poeta fabrica já são, por sua própria constituição, isentos de qualquer concretude, sendo sua percepção possível somente pelo exercício das ideias. Segundo Iglesias, o poeta Emílio Moura trabalha objetivando alcançar a perfeição das formas, só possível no plano das idealidades. A ―fábrica do poeta‖ gera aquilo que pode levar à perfeição da existência, já que são produtos que proporcionam uma vida mais agradável. A referência à idealização como aquilo que pode, de certa forma, completar ou melhorar a existência humana é encontrada na seguinte frase proferida por Moura e publicada no Suplemento Literário: ―O mundo visível só se completa com o invisível. Neste é que devemos buscar o que nos falta para dotarmos o nosso espírito de sua verdadeira dimensão‖ (MOURA, 1969, p. 11). Como poeta, Moura procura completar-se – e a seus leitores – produzindo poeticamente suas idealizações. Ele recorre ao invisível para nele localizar aquilo que no plano sensível é impossível de ser encontrado. Atentemos, agora, à questão relacionada à produção poética, em nós instigada pela presença do verbo ―fabricar‖ nos versos iniciais de todas as estrofes – além do substantivo ―fábrica‖ no título do poema. Quanto ao verbo, recorrendo a seus sentidos dicionarizados, encontramos as seguintes referências: fabricar: produzir (algo) a partir de matérias-primas; manufaturar; executar a construção de; construir, edificar; manter uma fábrica; inventar (algo); forjar, maquinar; ser a causa de; provocar; fazer cunhagem de (moeda); realizar o amanho de (terra, terreno); cultivar; realizar consertos ou reparos em (navios) (HOUAISS, 2001). Reparemos que os sentidos encontrados para ―fabricar‖ apontam para atividades cuja execução depende da ação consciente e planejada do sujeito que se dispuser a realizá-las. Já que o poeta é o ―fabricante‖ dos produtos anunciados nos versos, ele se coloca na posição de um operário, de alguém que constrói algo a partir de uma matéria-prima. Buscando relacionar a fabricação com a atividade poética, encontramos o sentido fabril ligado, em sua origem grega, ao verbo de que advém o substantivo poíēsis, qual seja, poiéō: ―fazer; fabricar; produzir, levar; causar; criar, imaginar, inventar, compor um poema; proporcionar a alguém; fazer, nomear, eleger; exercer 54 influxo, ser eficaz; trabalhar, manobrar, ocupar-se; fazer, ocasionar por si mesmo; tomar, eleger, ganhar a alguém para si; levar, colocar alguma coisa a‖ (PEREIRA, 1976, grifos nossos). Se, como dissemos, poíēsis deriva deste verbo, seus sentidos, inevitavelmente, relacionar-se-ão a essas ações. Deste modo, no verbete poíēsis encontramos: ―criação; ação; fabricação, confecção; arte da poesia; faculdade poética; poesia, poema; criação legal por adoção, adoção‖ (PEREIRA, 1976, grifo nosso). E, por conseguinte, poietés se refere a ―fabricante; poeta‖ (PEREIRA, 1976, grifo nosso). Assim, os termos ―fábrica‖ e ―poeta‖, que se coadunam no título do poema, de modo algum apresentam conotação contraditória. Isso poderia ser pensado, tendo-se em mente a tradição mítica do fazer poético em que a inspiração, muitas vezes, é caracterizada como divina, outras vezes como misteriosa ou mágica, conforme temos apontado no próprio Emílio Moura. Entretanto, observando as acepções de poíēsis, constatamos não haver entre elas nenhuma sugestão desses caracteres. As palavras sofrem constantes modificações em seus significados à medida que vão sendo utilizadas. Algumas perdem mesmo seu sentido original, ganhando novas conotações. FIORESE (2010, [s.p.]) trata deste assunto: A despeito dos significados encobertos sob a pátina dos séculos, das acepções em desuso ou dos deslocamentos, elisões e acréscimos semânticos realizados pelos falantes ao longo do tempo ou pelo contrabando para outras línguas, os usos e abusos de uma qualquer palavra rubricam tanto a sua origem quanto a sua história, atravessadas pelo ethos e pela psyché, pela Weltanschauung e pelas figurações do imaginário, pelo mўthos e pelo lógos da comunidade linguística que a pronunciou pela primeira vez. Todo e cada vocábulo carreia não apenas um corpo feito de matéria sonora, gráfica e semântica, mas também numerosos espectros de sentidos rasurados, pervertidos, abreviados, desfeitos, desviados, confundidos, alargados etc . Em relação às mudanças de sentido que a poíēsis sofreu com o passar do tempo, encontramo-las desenvolvidas por Souza (2007), em artigo que já mencionamos. A autora inicia o texto comentando que, originariamente, a utilização dessa palavra não se deu entre os poetas e filósofos. Soa-nos – e também à autora – curioso, pois faz parte do senso comum entender a poesia inerentemente ligada aos poetas, seus produtores, e aos filósofos, que buscavam e ainda buscam 55 descrevê-la, compreendê-la e conceituá-la. Ecoam, aqui, o pensamento de Fiorese (2010), chamando a atenção para as modificações que os sentidos originais das palavras vão sofrendo ou mesmo perdendo pelos tempos afora. Na verdade, poíēsis foi, primeiramente, empregada por historiadores e é um equívoco considerarmos que ela se refira ao fazer poético dos poetas primevos (SOUZA, 2007, p. 87). A autora relata que o sentido original do termo diz respeito à fabricação de algo. Nem mesmo em Homero (século VIII a.C.), ícone entre os primeiros poetas, conforme destaca Souza, a poíēsis ou seus termos derivados – a forma nominal poiētós e o verbo poiéō – aparecem segundo a compreensão que temos de produção de poesia. Nele, o verbo indicará a ação de ―fabricar‖, ―construir‖, e o nome, resultado da ação: aquilo que foi ―fabricado‖, ―construído‖. Não ocorre, porém, o emprego de tal verbo no sentido de ―compor poesia‖ (SOUZA, 2007, p. 87). Isso porque a prática poética, à época homérica, não se distinguia de outra criação, sendo análoga à atividade de qualquer artesão. Souza menciona outra informação curiosa que altera nosso entendimento acerca de Homero como ―ideal de poeta‖. O vocábulo poiētēs só aparecerá tempos depois de Homero – mais especificamente, no século V a.C. – em Heródoto (484- 420 a.C.). Em sua obra também ocorrerá, pela primeira vez, o emprego da palavra poíēsis enquanto fabricação por palavras realizada pelo poiētēs, não deixando de aparecer, ainda, como a fabricação de coisas em geral. Assim, Homero não pode ser considerado um poeta – nem ele mesmo se pensaria como tal –, pois ―ao tipo de composição oral que pratica, aplica, alternadamente, as expressões aoidē, canção, épos, discurso ou palavra e mўthos, história, relato. Em meio aos poetas épicos e líricos, todos assumem para si a adjetivação de aedos (aoidoi)‖ (SOUZA, 2007, p. 88). Ainda no mesmo texto, a autora apresentará um levantamento histórico de como o sentido da palavra poíēsis foi se alterando até ser empregado exclusivamente como produto da criação do poeta. No sofista Górgias, segundo Souza, o termo ganha um tratamento mais completo, atentando-se ―à sua ‗matéria‘, no caso, a palavra, o discurso, portanto, o lógos, mas, também, em relação ao seu formato, ao modo de organizar essa ‗matéria‘‖ (SOUZA, 2007, p. 93). Assim, considerando-se os primeiros empregos da palavra poíēsis, entendemos ser absolutamente compreensível conceber o fazer poético como algo conscientemente elaborado, fabricado, em que o poeta-fabricante trabalha sua 56 matéria-prima – a palavra – para obter um produto final, o poíēma. O poema ―A fábrica do poeta‖ se apresenta, então, caracteristicamente idealista, tanto no que diz respeito aos produtos originados por essa fábrica, quanto na referência ao fazer poético que, com conotação fabril, apresenta-se relacionado a um processo de construção consciente, como o acima mencionado. Contudo, a permanência de uma posição absoluta em relação à força mítica ou à matriz idealista é raridade em Moura. Há, mesmo, o investimento na tensão entre ambas, como se dá nos versos de ―Nasce o poema‖: O que antes havia eram fragmentos de alada pétala no ar. Equívoca imagem, indecifrável. Algo, entretanto, baixa, do alto, à alada pétala. E tudo, forma, cor, tudo revive, como se a flor, de repente, ressuscitasse na imagem de outra flor. Esta, que pura e eterna! (NM, p. 327) Se, em ―Depois do poema‖, Emílio Moura reflete sobre o processo de produção poética após sua realização, acima, os versos nos apresentam o momento em que se instaura o ―estado poético‖22. As palavras ―alada‖ e ―alto‖, que remetem ao sentido aéreo e, portanto, ―ascensional‖ (DURAND, 1997, p. 127-146), conferem um caráter transcendente a este instante que, pela indicação do título, promove o nascimento de um poema. A indefinição da palavra ―algo‖ sugere o caráter misterioso. Esse ―algo‖ que ―baixa‖ – outra indicação da transcendência – é o responsável por dar vida à flor despetalada, dispersa no ar. Se a imagem da flor metaforiza o poema que está por nascer, este se encontrava todo fragmentado, era indecifrável, incapaz de comunicar alguma coisa. A partir do momento em que se estabelece esse estado, o poema surge; nasce, portanto, de uma imprevisibilidade. Tudo isso acontece ―de repente‖, como se de um caos se estabelecesse a ordem. ―Filha do acaso‖, diria Octavio PAZ (1982, p. 15), em trecho no qual resume 22 A respeito desta expressão, trataremos logo a seguir. 57 diferentes visões a respeito da poesia23: sua criação, efeitos de recepção, as ideologias que por ela podem perpassar, as impressões que desperta, os conceitos que tentam defini-la. Essa casualidade, apontada por Paz entre tantas outras impressões – convergentes, divergentes, complementares, suplementares –, condiz com as tendências crítico-teóricas que atribuem à operação poética uma eventualidade independente da vontade criadora do poeta. A poesia seria propiciada, tal como nos versos acima, por forças exteriores ao homem. Mesmo que, em ―Nasce o poema‖, o poeta não mencione a influência divina ou o poder da palavra criadora, a descrição de algo que vem do alto e baixa, repentinamente, promovendo a ―ressurreição‖ da flor, ou seja, ofertando-lhe vida, permite-nos subentendê-los ecoando nos versos e lhes conferindo uma feição mítica. Se a poesia pode ser ―filha do acaso‖, Paz menciona a possibilidade de ela ser, também, ―fruto do cálculo‖. Assim, saímos do enigmático ―estado poético‖ para chegarmos à sugestão da ação do intelecto sobre a operação lírica. Nos versos, sobre os quais nos atemos no momento, a flor ressuscitada24 – metáfora do poema recém-nascido – é ―pura e eterna‖. Conforme vimos, a caracterização ―eterna‖ coincide com a das ideias platônicas, que, no mundo inteligível, são eternas e imutáveis. Estas se diferenciam das coisas do mundo sensível, as quais são feitas de matéria e funcionam como cópias das pertencentes ao plano eidético. No mundo material, as coisas tendem a se deteriorar. A flor do mundo sensível, por exemplo, murcha, despetala, seca, morre; mas a ideia da flor bela e perfeita, a sua essência, é indelével. E essa essência só pode ser apreendida pela razão. Assim, um poema puro e eterno é aquele que visa alcançar a perfeição, vazio de imagens concretas que remetam ao precário mundo dos sentidos, carente de fatos históricos explícitos. Em Emílio Moura, a poesia transcende o sensível, rumo ao ideal. Assim, nos versos 23 ―A poesia é (...) Inspiração, respiração, exercício muscular. (...) Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Ideia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. (...) Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!‖ (PAZ, 1982, p. 15-16, grifo nosso). 24 A ―flor pura‖, que em ―Às vezes‖ metaforizou a poesia (cf. páginas 44-45), neste, o faz em relação ao poema. Isto é, antes ela simbolizou o momento em que se firma a ―aptidão para a criação‖, ou seja, a poíēsis (SOUZA, 2007, p. 87) – que nos versos acima é sugerida pela palavra ―algo‖ –, agora, a flor indica aquilo que foi criado, isto é, o poema (poíēma). 58 de ―Nasce o poema‖, a inspiração – ou o ―estado poético‖ – se dá de modo mítico, mas o produto resultante dessa inspiração se apresenta de maneira idealizada. Esse paradoxal movimento mítico-idealista do poeta resulta de uma ―tensão dissonante‖ entre mўthos e lógos. É de FRIEDRICH (1978, p. 15) que tomamos de empréstimo a expressão destacada, definida como ―um objetivo das artes modernas em geral‖. Segundo o ensaísta, em relação à poesia, a tensão pode se manifestar por diversos modos, tais como a concomitância da incompreensibilidade e da fascinação que ela desperta, a dissonância entre forma e conteúdo, a convivência de ―traços de origem arcaica, mística e oculta‖ com ―uma aguda intelectualidade‖ (FRIEDRICH, 1978, p. 16) etc. Neste último exemplo, ecoa a dissonância mítico-idealista encontrada em Moura, e que, como se trata de uma característica da poesia moderna em geral, ocorre também em outros poetas. A este respeito, FIORESE (2010, [s.p.]) se mostra concordante, pois afirma que, ―dentre outras, a poíēsis (ποίησις, εως) foi a região difícil, o locus incommōdus, onde digladiaram mўthos e lógos”. Já nos primeiros expoentes da modernidade poética desencadeada por Baudelaire, percebe-se que esta tensão entre o mўthos e o lógos se torna quase que uma particularidade da lírica moderna. Citamos, Charles Baudelaire25, Paul Verlaine26, Arthur Rimbaud27 e Stéphane Mallarmé28, acrescentando a este seleto 25 ―... em ‗O pintor da vida moderna‘ (1863), o que Charles Baudelaire (1821-1867) pretende estabelecer como ‗uma teoria racional e histórica do belo‘ (BAUDELAIRE, 1995, p. 852) acolhe tanto a embriaguez e a ‗curiosidade profunda e alegre‘ da ‗infância redescoberta sem limites‘, quanto os ‗órgãos viris‘ e o ‗espírito analítico‘ que permitem ao poeta-criança, a esse ‗gênio da infância‘, ‗ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada‘ (Ibidem, p. 856), pois ‗tudo quanto é belo e nobre é o resultado da razão e do cálculo‘ (Ibidem, p. 874). Também nos fragmentos da prosa íntima de Fusées (1887), Baudelaire refere-se a tal paradoxo: ‗A própria embriaguez é um número‘ (Ibidem, p. 503)‖ (FIORESE, 2010, [s.p.]). 26 ―... a ‗Arte poética‘ de Paul Verlaine (1844-1896) nos aponta este lugar incômodo entre a aventura casual da palavra e a sua tarefa ordenadora, entre a música encantatória e o número propriamente humano‖ (FIORESE, 2010, [s.p.]) 27 ―... pelas referências à poesia grega e ao poeta como ‗um ladrão de fogo‘, na ‗Carta a Paul Demeny‘ (1871) – dita ‗Carta do vidente /‗Lettre du voyant‘ (RIMBAUD, 2006) – Arthur Rimbaud (1854-1891) parece eleger a cena originária do embate entre mўthos e lógos como lugar privilegiado da sua ‗alquimia do verbo‘ (Idem, 1982, p. 63-69). Não poucas interpretações do mito prometeico propõem a analogia do fogo com o lógos, com a razão. Neste sentido, cumpriria ao poeta oferecer à humanidade poemas ‗plenos do Número e da Harmonia’, conforme as palavras do voyant (Idem, 2006). Todavia, na medida da já mencionada diferença entre o lógos poético e o lógos metafísico, o Prometeu rimbaudiano é antes o ‗Prometeu de curvo pensar‘ referido por HESÍODO (Teogonia, 546), pois ao cálculo soma a vidência, ao número acresce a música. Em tal coincidentia oppositorum realiza-se a metamorfose aparentemente paradoxal do pensamento em poesia: ‗... assisto à eclosão de meu pensamento; contemplo-o; escuto-o; faço um movimento com o arco: a sinfonia faz seu movimento no abismo, ou de um salto surge na cena‘ (RIMBAUD, 2006). Assim é que, ao dizer da necessidade de ‗ser vidente, fazer-se vidente’ (Ibidem), Rimbaud parece não excluir a razão e o 59 grupo o também poeta-crítico Paul Valéry (1871-1945). Assim, ao constatar tensão semelhante na ―teoria‖ e na obra poética emiliana, vemos como Moura se mostra consonante às questões da modernidade. Mais que um poeta versejando os e nos tempos modernos, trata-se de um intelectual de seu tempo refletindo sobre a prática poética, fazendo ecoar em seus versos o som de um movimento pendular – que vai do mўthos ao lógos, da inspiração à razão –, oscilante desde os tempos pré- socráticos. Ao aspearmos a expressão ―estado poético‖, parágrafos atrás, referindo ao momento em que a poesia ―baixa‖ sobre o poeta, proporcionando a elaboração do poema, citamos o poeta francês Paul Valéry, que também apresenta suas dissonâncias a respeito do fazer poético. No texto ―Poesia e pensamento abstrato‖ (2007), em que aparece a expressão a que nos referimos, Valéry procura demonstrar que os dois elementos que intitulam seu texto, ao contrário do que comumente se pensa29, não se excluem. É possível haver uma conciliação ou uma alternância entre o poético e o racional. Assim ele reflete: Observei, portanto, em mim mesmo, estes estados que posso denominar Poéticos, já que alguns dentre eles finalmente acabaram em poemas. Produziram-se sem causa aparente, a partir de um acidente qualquer; desenvolveram-se segundo sua natureza e, neste caso, encontrei-me isolado durante algum tempo de meu regime mental mais frequente. Depois, tendo terminado meu ciclo, voltei a esse regime de trocas normais entre minha vida e meus pensamentos. Mas aconteceu que um poema tinha sido feito, e que o ciclo, na sua realização, deixava alguma coisa atrás de si (VALÉRY, 2007, p. 196, grifos nossos). cálculo, uma vez que o conhecimento de si próprio e o cultivo da alma são condições para tornar-se poeta‖ (FIORESE, 2010, [s.p.]). 28 ―... imputa-se à poesia de Mallarmé a demasia do cálculo e do controle na operação criadora. Decerto que, como se depreende do texto intitulado Autobiographie: lettre à Verlaine (1885), Stéphane Mallarmé (1842-1898) privilegia as potências do lógos na sua aspiração de mudar o mero Album – ‗uma coleção de inspirações casuais‘ (MALLARMÉ, 1991, p. 15, tradução nossa) – em Livre – ‗arquitetural e premeditado‘; ‗impessoal e vivo‘; ‗anônimo, o Texto ali falando dele mesmo e sem voz de autor‘ (Ibidem, p. 15-16, tradução nossa). Entretanto, a figuração do não-livro mallarmaico como máquina semiótica, ainda de acordo com a referida carta, está a serviço da ‗explicação órfica da Terra, o único dever do poeta e o jogo literário por excelência‘ (Ibidem, p. 16, tradução nossa)‖ (FIORESE, 2010, [s.p.]). 29 ―Fala-se em ‗Poesia e pensamento abstrato‘ como se fala no Bem e no Mal, Vício e Virtude, Calor e Frio. A maioria acredita, sem muita reflexão, que as análises e o trabalho do intelecto, os esforços de vontade e de exatidão em que o espírito participa não concordam com essa simplicidade de origem, essa superabundância de expressões, essa graça e essa fantasia que distinguem a poesia, fazendo com que seja reconhecida desde as primeiras palavras‖ (VALÉRY, 2007, p. 193). 60 Percebemos o acaso agindo na poesia de Valéry, tirando-o de seu estado normal, de seu ―regime mental mais frequente‖. Esse acaso, que instaura o ―estado poético‖, chega e se vai sem ser premeditado, deixando, entretanto, um produto realizado. Notamos uma semelhança significativa entre essas palavras valéryanas e os versos de ―Depois do poema‖, anteriormente apresentado, em que Moura verseja sobre a incompreensibilidade da elaboração poética. O eu emiliano da escrita afirma: ―eu não sei como nasceram aquelas palavras. / Dentro de mim não havia a menor intenção criadora‖ (Ing, p. 37). No primeiro trecho destacado na citação, Valéry parece explicar o sentimento expresso nesses versos. Seu estar ―isolado do regime mental‖ se aproxima da falta de ―intenção criadora‖ de Moura. Em ambos, além da constatação do caráter invito do fazer poético, verifica-se que, durante o estado de alheamento deles, um poema havia sido feito, conforme indicam o segundo destaque no trecho valéryano e o título dos versos emilianos. Em relação a ―Nasce o poema‖, é o título que nos conduz à leitura metalinguística que empreendemos, pois nos versos em si, tamanho o trabalho simbólico realizado pelo poeta, não há sugestão explícita desta questão. Porém, neles depreendemos um estado um tanto quanto mágico se firmando e fazendo os fragmentos se reunirem em algo significativo. Este estado mágico equivale, então, ao ―estado poético‖ de Valéry, pois diz respeito ao tom transcendente que ―baixa‖ em Moura e à natureza independente que atua por vontade própria sobre o poeta francês. No entanto, o lado racional valéryano afirma que ―(...) esse estado não basta para se fazer um poeta, como não basta ver um tesouro no sonho para encontrá-lo, ao despertar, brilhando ao pé da cama‖ (VALÉRY, 2007, p. 198). Isso porque este poeta considera o fazer poético, sobretudo, uma arte da linguagem, que necessita de trabalho do intelecto, da razão. Da oscilação entre o fazer poético consciente e o estado poético misteriosamente instaurado, Valéry elabora a seguinte definição: ―Um poeta é, a meu ver, um homem que, a partir de um incidente, sofre uma transformação oculta. Ele se afasta de seu estado normal de disponibilidade geral e vejo construir-se nele um agente, um sistema vivo, produtor de versos‖ (VALÉRY, 2007, p. 203). Na verdade, para ele, é da combinação da inspiração, digamos inexplicável, e do trabalho intelectual do poeta que o poema se faz. Vemos como esta última citação do poeta francês se assemelha à interpretação que elaboramos de ―Nasce um poema‖, quando afirmamos que, apesar de a inspiração 61 ser inexplicável, a elaboração poética nos soa como algo consciente, porque racional. Em capítulo intitulado ―Valéry: a poesia da arte poética‖, do livro Da inutilidade da poesia (2002), o poeta e crítico literário Antônio Brasileiro tece uma reflexão sobre o pensamento deste poeta francês a respeito do fazer poético, dando destaque à oscilação que ele apresenta entre o ―estado poético‖ inexplicável e o pensamento abstrato. Segundo o autor, Valéry considerava que a ideia de se submeter à inspiração de deuses e musas seria subjugar a inteligência do poeta. Da mesma forma como seria inferior o trabalho realizado de uma forma espontânea. ―Jamais lhe inspirava confiança, ele [Valéry] disse, o que quer que fosse produzido sem esforço; apenas pelo esforço é que aquela frágil facilidade momentânea (a criação espontânea, quer ele dizer) vingará‖ (BRASILEIRO, 2002, p. 62). Todavia, Brasileiro afirma que, para Valéry, a poesia é um trabalho que se desenvolve sobre um primeiro verso dado pelos deuses (BRASILEIRO, 2002, p. 76) e, ainda, que o verdadeiro poeta não sabe exatamente o significado do que escreveu. O crítico chama a atenção também para o caráter misterioso do ―estado poético‖, que chega sem querer e da mesma forma se vai, sem a menor intenção do poeta. Sobre algumas expressões francesas encontradas em Valéry, Brasileiro afirma: Que outra palavra haveria senão ―inspiração‖ para traduzir expressões como: émotion supérieure; les plus beaux et les plus purs états; garder pendant des siècles les formules de son enthousiasme, de son extase; don par instants; perceptions merveilleuses fortuites; l’être instantané? Que arquitetura ou contornos se daria à palma que abriga este ―momento de efêmera delícia‖ chamado estado poético, senão... Senão o quê? (BRASILEIRO, 2002, p. 86). Na verdade, o que Valéry não admite é que se dê exclusividade ao acaso misterioso como responsável por todo processo de elaboração poética. Ele o admite apenas como um propulsor que despertará no poeta o trabalho do intelecto. Tanto que, consoante as suas palavras, Se fôssemos nos deleitar desenvolvendo rigorosamente a doutrina da inspiração pura, as consequências seriam bem estranhas. Acharíamos, por exemplo, que esse poeta que se limita a transmitir o que recebe, a comunicar a desconhecidos o que sabe do desconhecido não precisa então compreender o que escreve, o que 62 lhe é ditado por uma voz misteriosa. Ele poderia escrever poemas em uma língua que ignorasse (VALÉRY, 2007, p. 207). Assim como em Emílio Moura, vemos ocorrer, na concepção poética de Valéry, a oscilação entre o mўthos e o lógos. Na verdade, mais do que uma oscilação, ocorre uma convivência de ambos, complementando-se. Em um fragmento emiliano surpreendemos um pensamento análogo ao de Valéry: ―na área da poesia o que não é construído é mágico. E a própria construção visa ao mágico‖ (MOURA, 1969, n. 156, p. 12). Moura apresenta esta mesma convivência, pois a construção e a magia não se anulam, elas convergem para tornar completa a operação lírica. Entretanto, deve-se assinalar a diferença entre ambos, visto que o francês valoriza mais o aspecto intelectual do fazer poético, enquanto o poeta brasileiro, nesta assertiva, privilegia o caráter mágico. Afinal, mesmo a ação intelectual se dá objetivando alcançar a magia. No artigo já referido de Morais (1969), encontramos Moura empregando a expressão valéryana ―estado poético‖: Drummond ao constatar em minha poesia a interrogação, dá a ela um sentido de perplexidade diante do mundo. A perplexidade existe: o poeta está sempre diante de muros. Mas, em minha poesia, como observou semelhantemente Sérgio Milliet, o ponto de interrogação é mais uma técnica que emprego, às vezes com resultados ótimos. A interrogação cria no leitor o ‘estado de poesia’ de que fala Valéry. Minha poesia não afirma. Afirmando, resolveria a priori tudo para o leitor. Interrogando eu ponho o mundo diante do leitor. (...) Talvez eu tenha abusado desse processo poético. O certo é que a partir da análise de Drummond passei a policiar mais minha poesia (Apud MORAIS, 1969, p. 4-5, grifos nossos). A respeito do ―estado de poesia‖, Moura o busca em Valéry, mas o utiliza de modo diferente do que faz o poeta francês, já que o atribui ao leitor de seus poemas e não a si mesmo no momento de elaboração poética. No caso do excerto acima, Emílio Moura apresenta seu ―estado de poesia‖ como algo estritamente lúcido. Ele afirma ter cuidado mais de sua poesia após a opinião do amigo Drummond. O poeta declara, ainda, uma atitude consciente e reguladora, ressaltando que as interrogações são uma ―técnica‖ que emprega em seu fazer poético de forma a não oferecer sentidos já estabelecidos para seus leitores, ou seja, fazendo com que eles, em contato com tantos questionamentos, sintam-se instigados a mergulhar em tais questões, sendo, assim, absorvidos pelo ―estado 63 poético‖. A poesia para Moura, então, deve desestabilizar o leitor, levando-o a refletir acerca dos mais variados assuntos que tangem à existência humana. O poeta diz pôr ―o mundo diante do leitor‖. Se o mundo construído em seus poemas é o mundo ideal, é este que ele oferece a seus leitores também, induzindo-os a se abstraírem de questões materiais, levando-os a reflexões de caráter metafísico. Relembramos que entre as acepções da palavra poíēsis, derivada do verbo poiéō, algumas há que denotam o sentido de uma construção consciente (criação; fabricação, confecção). Souza (2007) dirá que essa fabricação tanto pode se referir à ―poíēsis artesanal‖ – que trabalha com a materialidade das coisas –, quanto à ―poíēsis intelectual‖ – própria dos poetas (poiētēs) (SOUZA, 2007, p. 86). Esta poíēsis dos poiētēs cria utilizando-se da palavra enquanto lógos. No trecho de Moura acima transcrito, percebemos esse trabalho do lógos poético, que reflete, que constrói a poesia a partir do pensamento, da elaboração mental. A palavra enquanto lógos é aquela que se opõe à mítica, de caráter mágico, pois detentora do poder divino. É a palavra da razão, da inteligência, que explica, que pensa o real. SOUZA (2007, p. 93) dirá que o lógos poético é totalmente humano, desprovido de qualquer vínculo com o transcendental. A beleza da poesia consiste na habilidade do poeta no trabalho com o lógos. A autora aponta, ainda, Heródoto como o primeiro a considerar a poíēsis como podendo significar um trabalho voltado para a criação de coisas abstratas, diferenciadas daquelas de ordem empírica, incluindo, portanto, o trabalho dos poetas com a palavra. Trabalho este sempre desenvolvido pelo pensamento e pela inteligência. Interessa-nos, também, o modo racional como se dá a elaboração de um poema pela visão gorgiana. Assim a autora resume a concepção deste sofista: A criação poética só se sustenta como instauração de forma, engendramento e ordenação, na medida em que o poiētēs demonstra um autêntico domínio sobre as palavras, submetendo-as a regras capazes de presidi-las, impondo-lhes ritmo e organização determinada, que se traduzem em versos, em estrofes e, no conjunto, em poema (SOUZA, 2007, p. 93). Souza finda seu texto em Górgias, nós seguimos um pouco mais e chegamos a Aristóteles (384-322 a.C.), por ser considerado um dos primeiros a atribuir à arte uma concepção intelectual, produto do emprego de técnicas. Neste sentido, Domingos Carvalho da Silva (1989), menciona que ―foi Aristóteles quem 64 definiu a poesia como uma arte, um trabalho de mimese verbal que se podia ensinar e aprender através do exercício e do conhecimento da versificação, da escolha das palavras e do seu uso harmonioso‖ (SILVA, 1989, p. 54) – o que, como vimos, já se encontrava em Górgias. Em sua Arte poética (2007), Aristóteles pensa a poesia como uma imitação que, para ser realizada, possui suas técnicas. Especificando as características de cada gênero poético, o filósofo constrói uma descrição dos procedimentos e recursos empregados pelos poiētēs. Tratando da tragédia, da comédia e da epopeia, ressalta as especificidades de cada uma. Assim, para que cada gênero fosse devidamente realizado, o poeta necessitava seguir determinadas técnicas exclusivas do gênero. Também Moura assume utilizar-se de técnicas na elaboração de seus poemas; embora ressalte que ―o artista é, ao mesmo tempo, escravo e senhor de suas técnicas‖ (MOURA, 1969, n. 156, p. 12), ou seja, domina, mas também é dominado. Na verdade, por mais que Emílio Moura, em seus fragmentos, aponte para a elaboração consciente da poesia, a palavra-mўthos não se ausenta de seus poemas. E ele alerta: ―Não nos esqueçamos de que é entre ritmo, encantação, forma plástica e sentido que o poema se desenvolve‖ (MOURA, 1969, n. 156, p. 12, grifo nosso). Se a construção de um ritmo, a atenção à forma e ao sentido remetem ao trabalho do intelecto, a palavra destacada dá voz à magia que perpassa o fazer poético. Este aspecto racional, lógico, intelectual do fazer poético mantém a operação lírica distante do mito puro, fazendo da poesia o que ela é: o pólemos inelutável entre mўthos e lógos. Enfim, o termo ―poesia pura‖ aparece, mais uma vez, em ―Baixa a tarde‖, poema dedicado ao também poeta mineiro Abgar Renault: Baixa a tarde. Repara! Em nós, dentro de nós, há mais mortos que vivos. Nosso dia, que dia! já não é esse, é outro que apenas relembramos onde, quando, por quê? E olhamos para tudo sem que ao menos, de leve, algo diga: presente! Ah, fervor de voltar quando o regresso é tudo. A tarde ressuscita ignotos mitos da infância e há o velho diálogo de sombra a sombra. 65 Sombra! Ávida chega e engole a última réstia que brincava nesta curva. ―Sou eu,‖ grito, de súbito. Mas, que eu, agora, que eu ressuscitado se organiza a este apelo ou volta em eco? Gritem todas as cores e que todas as formas se reabilitem. Que o ritmo se reintegre em sua condição de ritmo. Ó eu de antes do dilúvio: quebrai este silêncio. Quero ouvir os meus passos e o eco de meus passos. Que haja agora a poesia. Pura, pura, a revelação da poesia. Tudo aspira a ser voz, há um canto unânime em perspectiva: o último canto. (HT, p. 296) É possível desentranharmos destes versos um contexto bastante melancólico, sugerido pelas imagens da ―tarde‖30, dos ―mortos‖, da ―sombra‖, do ―dilúvio‖, pelo grito do poeta, o apelo que ele faz e pela vontade manifesta de volta ao passado, à infância, quando o ―eu‖ expresso nos versos ainda não havia sido atingido por algo consideravelmente grave – indicado por um cataclismo. As imagens que sugerem sentido sombrio vão sendo tecidas de modo a resultar na escuridão total. Inicia pela tarde que ―baixa‖, ou seja, quando o entardecer começa a perder sua claridade para dar lugar à noite. Esta não é explicitada, mas fica subentendida na ―sombra‖ que, de modo sedento, ―engole‖ o restante de claridade. É depois que esta escuridão se instaura que o eu da escrita menciona o ―dilúvio‖. Considerando-se que, simbolicamente, o dilúvio pode se ligar às ―faltas da humanidade, morais ou rituais, pecados, desobediência das regras e das leis‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 339), depreendemos que a escuridão que se funda esteja representando fatos que equivalham a essas faltas e desobediências. Consoante à poética de Moura, normalmente isenta de fatos reais, neste poema também não se apresenta nenhum acontecimento que possa ter contribuído para esse dilúvio metafórico. Porém, tendo-se em mente a época em que o poema foi publicado (final da década de 1960), há todo um conjunto de acontecimentos recentes e significativamente graves – guerras civis e ditaduras –, 30 À imagem da tarde (e da noite) simbolizando momentos sombrios, angustiosos ou melancólicos será dedicado o capítulo final desta tese. 66 alguns até catastróficos – as guerras mundiais – que, como ―faltas da humanidade‖, podem ter ajudado a sobrecarregar as nuvens que, de modo torrencial e prolongado, desaguariam sobre o poeta e seu tempo. Mircea Eliade (1972) ressalta que uma das ―causas principais [do dilúvio] reside nos pecados dos homens, assim como na decrepitude do Mundo. O Dilúvio abriu o caminho para uma recriação do Mundo e, simultaneamente, para uma regeneração da humanidade‖ (ELIADE, 1972, p. 54). Tanto que, após o cataclismo, há um silêncio que precisa ser quebrado, que precisa ser preenchido. Chevalier e Gheerbrant apontam o silêncio como ―um prelúdio de abertura à revelação‖, informando que ―segundo as tradições houve um silêncio antes da criação; haverá um silêncio no final dos tempos. O silêncio envolve os grandes acontecimentos‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 833-834). Assim, é envolto por este silêncio pós-diluviano que o eu da escrita sente a necessidade de restauração das coisas – das ―formas‖, dos ―ritmos‖ –, é em meio a este silêncio, como que em um momento de suspensão temporal, preparatório para a recriação do mundo devastado, que o poeta sente a necessidade de uma poesia ―pura‖, duplamente ―pura‖. Mantendo o raciocínio que vimos desenvolvendo, trata-se, pois, de uma poesia idealizada, cuja pureza sugere uma perfeição só alcançada no plano eidético. Consiste em uma poesia capaz de transcender questões que extrapolem o mundo sensível. Pensamos na própria poesia de Emílio Moura que, como dissemos – e demonstraremos nos próximos capítulos –, caracteriza-se pela ―desconcretização‖ de imagens e a quase ausência de dados fatuais. Entretanto, mais do que a poesia ―pura‖, evoca-se a sua ―revelação‖, ou seja, a poesia no momento mesmo de sua criação, originária. Percebe-se, assim, um aspecto mítico pairando sobre ela. Evocada neste prelúdio de reconstrução do mundo, ela nos soa como possuidora do poder de criação. Tal como as palavras do poeta, na ―Ode ao primeiro poeta‖ apresentada no início deste capítulo31, tiveram poder de ―modelar‖ as paisagens primeiras, esta poesia, agora caracterizada, pode fazer falar tudo aquilo que ―aspira a ser voz‖, tudo aquilo que passará a existir a partir de seu poder demiúrgico. O próprio Emílio Moura manifesta-se no mesmo sentido da nossa interpretação, asseverando o caráter mítico da poesia, na medida em que a 31 Às páginas 20 e 21. 67 compreende como partícipe de um momento originário que remete à criação do mundo descrita no ―Gênesis‖. Vejamos suas palavras: ―Tudo tinha aspecto de vida, mas não era vida. Faltava ainda o toque do poeta, o fiat, a revelação mágica‖ (MOURA, 1969, n. 156, p. 12). A palavra ―fiat‖, inevitavelmente, leva-nos ao contexto da criação, quando o verbo divino fazia acontecer todas as coisas. Semelhante ao que se desenvolve na ―Ode‖, atribui-se o poder demiúrgico ao poeta, tornando-o capaz de dar vida às coisas. A magia da palavra poética consiste no seu poder de engendrar sentido, de dar voz àquilo que ―aspira a ser voz‖, de fazer com que aquilo que ―tinha aspecto de vida‖ possa se comunicar, consiga ter vida de fato. Quando Deus atribuiu a palavra a Adão, ele começou a nomear as coisas que já existiam, mas que só passaram a ter sentido para ele a partir do momento em que eram nomeadas. Segundo a teoria da linguagem de Walter Benjamin, todas as coisas possuem a sua língua, que ele chama de ―essência espiritual‖ (BENJAMIN, 1970, p. 143). Entretanto, as coisas são mudas, não podem se comunicar através da palavra. O homem, em interação com elas, capta, digamos assim, essa essência e a traduz em nome. Ao nomear as coisas, ele faz com que elas signifiquem. O ―tudo‖ que ―aspira a ser voz‖ nos versos emilianos se equipara à ―palavra muda‖ das coisas em Benjamin. Em Moura, a interseção do poeta pode fazer com que esse ―tudo‖ se comunique, assim como, pela apresentação benjaminiana, o homem deu sentido às coisas nomeando-as. Do mesmo modo acontece com o ―tudo tinha aspecto de vida‖, ou seja, a criação havia se realizado, mas é pela palavra do poeta que a existência das coisas passou a significar. Emílio Moura dirá, ainda, que ―para o poeta, as coisas só adquirem sentido quando se cristalizam em poesia‖ (MOURA, 1969, n. 156, p. 12). Ou seja, é preciso que a palavra poética toque nas coisas para que elas ganhem significação para o poeta. Começamos e findamos esta seção da tese indicando o poder da palavra criadora, da palavra-mўthos, não por acaso, como a percorrer o itinerário poético de Emílio Moura de modo descompromissado, a passear pelos poemas. Intentamos demonstrar – com poemas retirados do segundo livro de Emílio Moura (―Ode ao primeiro poeta‖, de Canto da hora amarga, 1936) e do penúltimo (―Baixa a tarde‖, de Habitante da tarde, 1969) – como a questão mítica permanece na obra de um poeta moderno, como a época da razão não conseguiu desfazer a magia que paira sobre o fazer poético. Desde Homero até Emílio Moura, mўthos e lógos se cruzam, ora se coadunando e seguindo juntos, ora se apartando e fazendo caminhos opostos, mas 68 sempre em tangência e contaminação nas encruzilhadas históricas da operação lírica. 2.3 Desmi(s)tificando poeta, palavra, poesia Apesar de a palavra-mўthos e o encantamento que ela proporciona ao fazer poético perpassarem toda obra emiliana, constata-se, também, em Emílio Moura, poemas em que esmorece esse entusiasmo (enthousiasmós, ―inspiração divina‖). A obra de Moura, poeta moderno que experiencia as tensões de seu tempo, entre elas o embate entre mўthos e lógos, inclui poemas de caráter melancólico que transparecem seu desencantamento em relação a este tempo. Por ora, apresentaremos alguns poemas que questionam a perda do caráter mítico que abrangia todo o contexto da produção poética, seja em relação ao poeta, à palavra poética ou à poesia de modo generalizado. Diferenciam-se estes poemas dos apresentados no tópico anterior, não só pela desmitificação, mas também porque a metalinguagem neles não se dá de modo explícito como nos anteriores, mas é desentranhada dos versos por meio de interpretação nossa. Começando, literalmente, pelo começo, pelo primeiro poema de Itinerário poético (2002), vemos que, assim como a tensão mўthos-lógos perpassa a obra de Moura desde o início, é possível ler o enfraquecimento do caráter mítico se dando já no princípio de sua poética. Isto é, não há em Moura um momento específico em que a poesia de cunho mítico deixe de ocorrer, assim como a idealista não se manifestará absoluta em nenhum período específico da obra. Há sempre oscilações entre uma e outra. Ler, no primeiro poema do livro, o enfraquecimento do mítico, tendo-se em conta todos os outros poemas analisados neste capítulo, aponta para a construção de uma reflexão por parte do poeta sobre a questão poética na modernidade e suas tensões à medida que os poemas vão sendo escritos. Eis os versos de ―Interrogação‖: Sozinho, sozinho, perdido na bruma. Há vozes aflitas que sobem, que sobem. Mas, sob a rajada ainda há barcos com velas e há faróis que ninguém sabe de que terras são. 69 − Senhor, são os remos ou são as ondas o que dirige meu barco? Eu tenho as mãos cansadas e o barco voa dentro da noite. (Ing, p. 29) Iniciamos nossa leitura observando a carga semântica das palavras: ―sozinho‖, ―perdido‖, ―bruma‖, ―aflitas‖, ―rajada‖, ―cansadas‖ e ―noite‖. Todas apresentam, digamos, sentido negativo, camuflando um tom bastante angustioso nestes versos que inauguram a vertente melancólica de Emílio Moura. A utilização de tais palavras contribui para a apresentação de um eu abandonado em pleno mar revolto, incapaz de seguir seu rumo – ―perdido na bruma‖ - e de empreender qualquer ação – ―tenho as mãos cansadas‖. Entregue ao movimento das ondas e ao avançar do barco, o poeta se encontra em uma espécie de prostração: reparemos que ele não age, encontra-se à deriva e não luta contra isso. Ciente de sua condição, o máximo que faz é invocar o Senhor e indagar o que governa seu barco. Considerando os sentidos figurados de palavras como ―bruma‖ – ―sombra‖, ―obscuridade‖, ―mistério‖, ―incerteza‖, ―vaguidão‖ –, a expressão ―perdido na bruma‖ funciona como metáfora de um momento em que o eu da escrita se encontra em meio a possíveis incertezas, obscuridades etc. Apresentando, ainda, a palavra ―noite‖ – representando ―estado de dor, desesperança; tristeza, melancolia, abatimento‖ (HOUAISS, 2001) – o poema pode ser entendido como metáfora da vida de um ser desanimado e apático diante de uma situação sobre a qual não tem controle, reforçando, ainda, a constatação de que o poeta vive um momento incômodo. Também o imaginário sobre o mar e as águas apresenta uma direção sobrecarregada de tons negativos. Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 16) referem-se a um caráter dual da água, que ―pode ser encarada em dois planos rigorosamente opostos, embora de nenhum modo irredutíveis, e essa ambivalência se situa em todos os níveis. A água é fonte de vida e fonte de morte, criadora e destruidora‖. No poema de Emílio Moura, a imagem da ―rajada‖ subentende águas agitadas, revoltas, representadas, portanto, em seu aspecto destruidor, se não de morte, pelo menos de provocadora de angústias. Ainda segundo os dois autores, em oposição à água da chuva, que vem do alto e é pura, a água salgada do mar, principalmente do mar agitado, carrega uma conotação negativa, podendo significar o mal, a desordem: ―As águas amargas do oceano designam a amargura do coração. O homem (...) deve 70 passar pelas águas amargas quando toma consciência da própria miséria (...)‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 19). Assim, ao voar dentro da noite, em seu barco, o poeta atravessa as amarguras que o deixam em estado de deriva, de abatimento. Gaston Bachelard, no livro A água e os sonhos (1998), mencionando as águas violentas, apresenta a imagem do nadador, dividindo-a nas seguintes variações: o nadador que atua contra a corrente, enfrentando as águas turbulentas, e o que se encontra em comunhão com as ondas, deixando-se levar: um ―nado mole e volumétrico, no exato limite do passivo e do ativo‖ (BACHELARD, 1998, p. 177). Embora não estejamos falando de um nadador em Emílio Moura, mas de um sujeito à deriva, paralisado em seu barco, podemos aproximá-lo do segundo tipo proposto por Bachelard. O eu da escrita não enfrenta as águas violentas, ele se deixa ser levado. Adaptando a proposição do pensador francês para nosso contexto, o eu emiliano apresenta uma atitude ―de quem não sabe provocar o mar‖, ―de um homem que não sabe provocar o mundo‖ (BACHELARD, 1998, p. 177). Nessa perspectiva, ao se encontrar inerte no barco, entendemos que haja uma inação por parte do eu emiliano da escrita em relação ao mundo. As imagens poéticas e o contexto construído neste poema nos levam a estabelecer uma ligação dos versos com a história do profeta Jonas. Consta, em seu livro bíblico (Jonas, 1-4), que o profeta hebreu, ao tentar escapar de uma tarefa que o Senhor lhe confiara, qual seja, a de anunciar a destruição da cidade de Nínive, devido aos atos maliciosos de sua população, embarca em uma viagem marítima, com o intuito de fugir à missão que lhe fora imposta. Acontece que a cólera de Deus surpreende com intensa tempestade a embarcação onde se encontra o profeta. A tripulação fica apavorada com a situação, e cada um, à sua maneira, invoca o deus no qual acredita. Jonas se confessa culpado pela tempestade e pede aos marinheiros que o lancem ao mar. Estes, antes de tal atitude, fazem de tudo para conseguir remar em direção à costa. Em vão, pois as ondas não permitem. Para se salvarem da ira divina, lançam Jonas ao mar. À deriva, o profeta é engolido por um peixe enviado pelo Senhor. Permanecendo vivo no estômago do animal, Jonas, então, ora, dirigindo-se a Deus, que o salva para que ele cumpra, enfim, a tarefa que lhe havia sido conferida. O eu emiliano, sozinho em seu barco, e Jonas, ao ser lançado ao mar, encontram-se sós, perdidos. Inertes diante das situações por eles vividas, é a Deus 71 que recorrem em busca de resposta, no caso da poesia, ou de salvamento, no caso bíblico. Outras aproximações são perceptíveis: as ―vozes aflitas que sobem, que sobem‖, mencionadas pelo poeta, assemelham-se à aflição dos marinheiros invocando seus deuses. Assim como a tentativa vã de remar dos marujos, buscando o controle do barco, encontra analogia com a situação de incerteza que leva o eu emiliano à interrogação anunciada no título do poema: ―– Senhor, são os remos ou são as ondas o que dirige meu barco?‖ Diferem, no entanto, na medida em que não se observa, no eu emiliano, qualquer esforço no sentido de assumir a direção do barco, enquanto os tripulantes da embarcação de Jonas fazem o possível para mantê-la sob controle. Ao relacionarmos o poeta a Jonas, acabamos por ver, também, uma correspondência entre a poesia e a profecia, entre o poeta e o profeta. Ao fugir de sua tarefa, Jonas tenta recusar o dom profético que se lhe manifesta, algo que, na verdade, conforme a intervenção divina mostrou, ele constata ser impossível. Como uma maldição, independe de suas forças. Para os versos emilianos, sugerimos uma leitura que interprete o barco como metáfora do fazer poético, condutora do eu da escrita. Lendo dessa forma, vemos um poeta manifestando uma possível falta de controle sobre a palavra lírica. Isso porque não se sabe quem ou o que dirige esse ―barco‖. Seriam os remos, ou seja, haveria uma ação humana por detrás dessa direção? Desconstruindo a imagem metafórica: o poeta seria ativo no processo de elaboração poética? Ou seria a potência das ondas que comanda a embarcação, isto é, algo totalmente alheio à ação do homem? Nesse caso, seria a prática poética independente da atitude do poeta? Ao afirmar o cansaço de suas mãos e o contínuo avanço do barco, percebemos a sugestão de que a atividade independe do homem. Afinal, mãos cansadas têm dificuldade para impulsionar remos e, no entanto, a navegação prossegue seu rumo. Entretanto, a força externa que paira sobre o poeta não consiste em uma benção, digamos assim, ou de um privilégio para ele, tamanha a sua apatia. Neste sentido, entendemos o eu da escrita sendo tomado pela potência da linguagem poética, submetido a seus jogos, à força multissemântica e combinatória das palavras na poesia. Temos, então, um poeta sujeito ao vigor da poesia e um profeta na busca vã de tentar se livrar do domínio da palavra que lhe é dirigida e imposta. Dois sujeitos à deriva, entregues à potência da linguagem. A respeito de tal potência, cabe relembrarmos, ainda mais esta vez, o pensamento benjaminiano que trata da linguagem demiúrgica, originária de todas as 72 coisas e que foi ofertada ao homem para que ele pudesse, pelo contato com as criações de Deus, nomeá-las, significando-as pelo que elas lhe comunicassem (BENJAMIN, 1970, p. 145-147). Há, portanto, um fundamento, baseado no mito judaico-cristão da criação do mundo, que justifica a origem do poder da palavra adâmica. Esta, herdeira da divina, é possuidora, também, de um caráter mágico. Benjamin, referindo-se à língua das artes, caracteriza a da poesia como “fundada – si bien no solo, sin embargo siempre – en la lengua nominal del hombre‖32 (BENJAMIN, 1970, p. 152). Considerando, então, o aspecto potente e mágico desta palavra, entendemos a relação de poder da linguagem lírica sobre o poeta, depreendida dos versos anteriormente transcritos. Não consiste na posse da linguagem demiúrgica por parte do poeta, como na ―Ode ao primeiro poeta‖ (CHA, p. 47)33, mas, de certo modo, inversamente, no domínio a que o poeta é submetido pelo discurso poético. Pela leitura que empreendemos, o poema ―Interrogação‖, embora apresente uma metalinguagem entredita, trabalhada metaforicamente, introduziria – pois, lembremos, é o primeiro poema da obra emiliana –, ainda, uma das posições do poeta Emílio em relação à produção poética: qual seja, como dissemos, a de algo além da vontade humana. Entretanto, não há nenhuma glamorização a esse respeito. Na tradição literária, se remontarmos à Ilíada e à Odisseia34, por exemplo, Homero invoca as Musas, pede por inspiração, empresta sua voz para que a divindade cante os feitos heroicos. Há, portanto, uma disposição ou uma boa vontade do poeta diante de sua condição profética de enunciar as palavras divinas. Em Emílio Moura, contudo, no poema em análise, a atitude do eu da escrita, inerte, com mãos cansadas, denota um afastamento em relação a essa tradição. Se em Homero havia uma magia em torno do dom poético, em Moura, no poema em questão, há um desencantamento. Contudo, não precisamos ir aos poemas homéricos para percebermos a diferença da caracterização do poeta e de seu fazer artístico ontem e hoje. O próprio Emílio Moura nos oferece essa oportunidade de entendimento. Quando apresentamos o poema ―Ode ao primeiro poeta‖, ressaltamos que ao poeta primevo 32 ...fundada – se bem que não somente, mas sempre – na língua nominal do homem. (tradução nossa). 33 Cf. páginas 20-21 deste trabalho. 34 Retomar nota 8. 73 foi atribuída a linguagem enquanto nomeadora35 e perpetuadora das coisas e mencionamos o fato de o poeta se aproximar da condição divina: ―Eras criatura e criador‖ (CHA, p. 47). Sua posição entre os demais homens era de destaque, pois, enquanto os outros se encontravam ―trêmulos‖, a voz do poeta era ―forte‖, ―límpida‖. Entretanto, eram características atribuídas ao ―primeiro poeta‖, de tempos remotos. Era um poeta em ação, alegre, em atitude de descoberta do mundo. Suas palavras tinham poderes. Quanta diferença em relação ao poeta que encontramos inerte no barco! Este não mais age, está acabrunhado, sem forças, sentindo-se solitário e perdido. Considerando-se o fato de Emílio Moura estar inserido no contexto sociocultural da modernidade do século XX, buscamos entender o motivo da perda da magia em torno da criação poética e da condição do poeta. Reinaldo Marques, no texto ―Tempos modernos, poetas melancólicos‖ (1998), analisa a poesia de alguns escritores mineiros do século XX, mais especificamente das décadas de 30, 40 e 50 (Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta Lisboa, Octávio Dias Leite e Abgar Renault). O estudioso elabora explicações sobre a recorrência de aspectos melancólicos na escrita de tais autores. Uma delas vem ao encontro da questão da ―desglamorização‖ do contexto poético como um todo. Segundo Marques, o poeta moderno se conscientiza de que a função da poesia passa a ser outra, diferente daquela da tradição. ... penso ser possível relacionar a melancolia dos poetas mineiros aqui comentados à perda da aura, na medida em que a modernidade, no seu gesto de negação e ruptura, inviabiliza a permanência de qualquer tradição (MARQUES, 1998, p. 170-171). Entre os poetas comentados por Marques incluímos Emílio Moura, contemporâneo desses mineiros e participante do mesmo grupo intelectual. No mundo que se configurava, extremamente mecânico e industrial, naqueles idos de 1920 em diante, as artes perdem sua aura, rompendo com a tradição idealizadora, e passam a adquirir outra função. A discussão sobre a perda da aura é encontrada em Benjamin, no texto ―A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖ (1994). Segundo o autor, a partir das técnicas de reprodução, os objetos de arte deixaram de possuir a aura de algo singular, distante e intocável, aproximando as massas do acesso aos 35 Walter Benjamin (1970) classifica três funções da linguagem, quais sejam: a que cria, a que nomeia e a que apenas comunica. Comentamo-las às paginas 22 e 23. 74 bens artísticos. Em relação à poesia, entendemos que a perda de sua aura se dá a partir do momento em que deixa de ser uma lírica idealizadora, para tratar de assuntos ordinários, corriqueiros, ou, ainda, para assumir função problematizadora. Os poetas precisam, então, repensar seu papel no mundo moderno: ―... ao negar o diálogo com a tradição, o artista e, em particular, o poeta se veem destituídos de uma parte de si, que permitia a compreensão do seu que-fazer artístico‖ (MARQUES, 1998, p. 171). Moura se encontra nesta situação. A sensação de incômodo encontrada em alguns de seus poemas é ―uma metáfora esclarecedora das relações do poeta com o mundo moderno e com o lugar problemático que lhe cabe no espaço da modernidade‖ (MARQUES, 1998, p. 159). Uma modernidade que, como veremos no último capítulo, trouxe consigo progresso e desamparo, descobertas e frustrações, preencheu alguns vazios e abriu inúmeros outros. Quase quinze anos após a publicação de ―Interrogação‖, Emílio Moura nos apresenta ―Canção do náufrago‖ que permite, pela semelhança das imagens e de toda a situação construída em seus versos, estabelecer um diálogo com o poema anterior: Entre estas margens e aquelas, que abismos de solidão. Quem me diz, nesta voragem, se as águas vêm ou vão? Ó noite, dai-me o sentido do que há de ser o Outro Lado que meus olhos não verão. (Canc, p. 93) Novamente, o eu da escrita se encontra sozinho em pleno mar. Outra vez, ele vivencia a agitação das águas que, se antes o deixaram à deriva, agora provocam seu naufrágio. De novo, sua atitude é de inércia, ele não age, não luta contra as ondas. São elas que, indo ou vindo, atuam, tornando-o o náufrago enunciado no título do poema. Ainda, como em ―Interrogação‖, a imagem da noite é utilizada. Aplicando a interpretação da simbologia das águas violentas ou amargas e da noite, indicada no poema anterior, também neste, percebemos um estado de abatimento do poeta. Na verdade, esses versos poderiam ser a continuação dos anteriores: aquele barco que voava dentro da noite, ainda em meio a uma voragem, acabaria por naufragar, deixando o poeta diante de uma situação-limite. Situação assim entendida pelo fato de ele afirmar que não verá o ―Outro Lado‖, como se sua vida terminasse ali. As iniciais maiúsculas da expressão destacada subentendem 75 um plano transcendente, o mundo supranatural ao qual o eu da escrita não terá acesso. Como se não houvesse nenhuma possibilidade de salvação para seu naufrágio, de saída do estado angustioso em que ele se encontra ou, ainda, de qualquer princípio de transcendência pela palavra poética. A semelhança entre os dois poemas, que nos permite pensar em uma espécie de continuidade entre eles, torna possível entender os versos desta canção também de modo metalinguístico. Haveria, neste caso, o esvaziamento de sentido transcendental da condição poética, não há mais a possibilidade de que o poeta veja o ―Outro Lado‖, ou seja, de que sua poesia seja perpassada pelo verbum divino, de que a magia e o poder da linguagem se instaurem sobre ele. Quando o poeta se encontrava à deriva em seu barco, sendo guiado pelas ondas, havia, ainda, mesmo que ele não se mostrasse muito disposto a isso, um destino que o levava adiante, qual seja, a potência da linguagem. Agora, entretanto, ele naufragou, soçobrou de vez. Não há mais o rumo traçado pelo barco, o poeta se encontra em situação indefinida, entre margens, sendo jogado de um lado para o outro. Se retomarmos as reflexões de Marques, podemos dizer que o poeta, descrente pelo esvaziamento de sua condição transcendental, naufraga entre as situações paradoxais da modernidade em que está inserido. Se o ―primeiro poeta‖, conforme nos apresenta Moura na ―Ode‖, tinha o poder da criação pela palavra – ―Foi a tua palavra que modelou a primeira paisagem, deu ritmo aos ventos e imaginou a beleza ingênua dos primeiros e únicos símbolos que se perpetuaram‖ (CHA, p. 47) –, agora, desmantelada a capacidade de o poeta, por meio da operação lírica, alcançar o ―Outro Lado‖, torna-se-lhe extremamente difícil o exercício da mesma. É o que os versos de ―Soneto‖ nos permitem depreender: Formas que em vão persigo: se é que alguma coisa ainda sois, mostrai-o ao pensamento. Quando mais me procuro, mais me invento, perco-me todo, esfaço-me na bruma. Nem um raio de luz neste momento. Que aconteceu que a sombra se avoluma? Por que tudo se perde como a espuma? Por que a vida se esvai como um lamento? Forma que em vão procuro: ardo em meu sonho. Quero fixar-vos. Luto. Que medonho 76 pânico em tudo! Que clamor profundo sobe da treva. Que estertor imenso! Por que tudo agoniza quando penso? Ó solidão sem fim de antes do mundo! (IE, p. 196) Considerando o soneto na perspectiva metalinguística, vemos um poeta em luta contra a perda da capacidade de engendrar seus versos. As ―formas‖ que ele não consegue mais alcançar ou encontrar são interpretadas como as imagens poéticas ou as palavras que não mais têm significado para ele, pois não se mostram ao pensamento. Os verbos ―persigo‖, ―procuro‖ e ―luto‖ indicam a tentativa e a vontade do poeta de realizar sua tarefa, vontade essa que se confirma no verso ―Quero fixar-vos‖. Diferente dos dois poemas comentados, anteriormente, desta vez há atitude por parte do eu da escrita. Os verbos destacados corroboram isto. Entretanto, é um processo doloroso, em que o ato de pensar faz com que as coisas agonizem. Reparemos que a agonia não se dá apenas no poeta, que se sente perdido, desfazendo-se, mas ―em tudo‖. Por que isso acontece? Pensemos na época histórica em que o poema surgiu, em livro publicado no início da década de 1950, após o calamitoso fim da Segunda Guerra Mundial. Os versos emilianos acima transcritos são tecidos com palavras e imagens que nos transmitem o clima traumático que se instaurou naquele tempo, fazendo referência à escuridão – ―nem um raio de luz‖, ―a sombra se avoluma‖, ―treva‖ – e ao sofrimento – ―lamento‖, ―pânico‖, ―clamor‖, ―estertor‖. Trata-se de um contexto tão desalentador que as coisas perdem o sentido de ser, daí elas agonizarem ao serem pensadas, elas se perderem ―como a espuma‖, elas se esvaírem ―como um lamento‖. E o poeta não consegue traduzi-las em imagens e palavras. Essa leitura nos levou em direção ao propalado dito de Theodor Adorno (1903-1969) a respeito da impossibilidade de se fazer poesia após Auschwitz36, elaborado no ensaio ―Crítica cultural e sociedade‖, escrito em 1949. Diferentes interpretações são dadas à afirmação adorniana. Mariana Camilo de Oliveira, no artigo ―Diálogo inconcluso entre Paul Celan e Theodor W. Adorno‖ (2008), ressalta o fato de que explicações pormenorizadas não se caracterizam como próprias do 36 ―... escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas‖ (ADORNO, 2007, p. 102). 77 gênero ensaístico utilizado por Adorno no texto em questão, o que contribui para essas diversificadas interpretações. Uma das vertentes interpretativas trata da relação entre ética e estética: o silêncio seria a melhor maneira de respeitar o Holocausto, a memória dos que morreram e o sofrimento dos sobreviventes. Cantar este evento poderia ser um modo de valorizá-lo ou de dar continuidade a ele. Oliveira (2008, [s.p.]) menciona que grande parte da imprensa alemã interpretou o dito adorniano desta última forma, ou seja, considerando que a poesia após Auschwitz seria um prolongamento do terror. Se não há uma continuação, há, ao menos, uma atualização do sofrimento, conforme afirma Jeanne Marie Gagnebin, no texto ―Após Auschwitz‖ (2009), em que estuda os efeitos e sentidos que a afirmação de Adorno provocou e ainda provoca até os dias atuais. Suas palavras afirmam: Criar em arte – como também em pensamento – ―após Auschwitz‖ significa não só rememorar os mortos e lutar contra o esquecimento, tarefa por certo imprescindível mas comum a toda tradição artística desde a poesia épica. Significa também acolher, no próprio movimento da rememoração, essa presença do sofrimento sem palavras nem conceitos que desarticula a vontade de coerência e de sentido de nossos empreendimentos artísticos e reflexivos (GAGNEBIN, 2009, p. 78, grifo nosso). Diante dos horrores dos campos de concentração, o ser humano tem suas estruturas abaladas. Afinal, homens sofreram males inauditos impostos por outros homens. A dignidade humana foi massacrada em meio a ―cinzas, cabelos sem cabeça, dentes arrancados, sangue e excrementos‖ (GAGNEBIN, 2009, p. 79). Não é possível permanecer impassível frente a tudo isso. Entretanto, o que fazer? Esquecer o acontecido, evitando a dor da rememoração? Mas esquecer não seria uma oportunidade para que a calamidade se repetisse? Como tratar do assunto sem fazer dele uma espetacularização, um produto da indústria cultural, conforme temia Adorno? GAGNEBIN (2009, p. 79) ressalta o pensamento de Adorno sobre a rememoração ser necessária para que a humanidade não esqueça Auschwitz, mas sem que se caia nas malhas da indústria cultural que transformará o evento em um meio de entretenimento. Contudo, a interpretação que nos fez sair de Moura rumo a Adorno é outra: a que diz respeito à impossibilidade de se representar por palavras o horror dos campos de concentração. O evento é por demais traumático para que possa ser 78 alcançado pela malha simbólica. Anos antes, por ocasião do fim da Primeira Guerra Mundial, já constatava, no texto ―O narrador‖, escrito entre 1928 e 1935, a incapacidade de elaboração simbólica do trauma por parte daqueles que vivenciaram a realidade das trincheiras. Tratando da questão do empobrecimento da narrativa tradicional, Benjamin encontra na Primeira Guerra um dos fatores contribuintes para tal empobrecimento, pois os sobreviventes voltavam mudos dos campos de batalha (BENJAMIN, 1994, p. 198). Como se não bastassem esses campos, a Segunda Guerra é acrescida das bombas atômicas e dos campos de concentração. A degradação humana atinge níveis tão imensuráveis que a incapacidade de representar tais acontecimentos por meio da linguagem, atinge os homens de modo geral. Em seu papel de poeta, Emílio Moura, no último texto apresentado, nos faz refletir sobre essa irrepresentabilidade por parte do artista. Embora ele não mencione o Holocausto, nada há de explícito nos versos, associamos as imagens trevosas e sofridas ao contexto pós-Segunda Guerra. Daí entendermos que o autor, ao tentar alcançar e fixar as ―formas‖ que lhe fogem ao pensamento, busque significar os horrores de seu tempo, embora ele mesmo sinta a vanidade de sua tentativa. Trata-se de almejar dizer o indizível. É sentir que o sofrimento ―desarticula a vontade de coerência e de sentido de nossos empreendimentos artísticos e reflexivos‖, recuperando as palavras de Gagnebin acima transcritas. Interpretação parecida nos despertam os versos de ―Sombras fraternas‖: Sombras fraternas que viveis na sombra, por que vindes nesta hora? Por que vindes? Bem que vos vejo, como antigamente, sombras fraternas que viveis na sombra. Bem que eu quero vencer tanto silêncio, falar, cantar e despertar em tudo a alma que um dia emudeceu comigo. Bem que eu quero vencer tanto silêncio. Vede as estrelas como estão geladas, frias e mortas pelo céu vazio... Vede as estrelas como estão geladas. Como quebrar tanto silêncio e frio, sombras fraternas que viveis na sombra? Como quebrar tanto silêncio e frio? (Canc, p. 109) 79 O contexto sombrio está caracterizado: ―sombras‖ que vivem na ―sombra‖, ―estrelas geladas, frias e mortas‖, ―céu vazio‖, ―silêncio‖, ―frio‖. Todas, palavras ou imagens que denotam uma semântica ligada à ausência, seja de luz, de calor ou de som, elementos estes que apresentam sentidos relacionados à vida. Neste sentido, a carência deles, resultando em ―sombras‖ e ―frio‖, sugere a falta de perspectiva de vida, de um tempo melhor. Pois, ―as trevas são por corolário, símbolo do mal, da infelicidade, do castigo, da perdição e da morte‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 570). A imagem transfigurada das estrelas também fortalece este pensamento: as estrelas ―geladas‖, ―frias e mortas‖ indicam a ausência do brilho que elas comumente apresentam. Estrelas apagadas esvaziam o céu de sua luminosidade. Quanto ao silêncio, já tivemos oportunidade de dizer a respeito de sua simbologia37, estando ele relacionado tanto à iminência dos grandes acontecimentos, quanto ao término deles. Tanto ao prelúdio da criação quanto ao fim dos tempos. Os versos acima foram escritos entre os anos de 1944 e 1945, o que indica a contemporaneidade deles com o fim da Segunda Guerra Mundial. Não podemos afirmar, mas há, inclusive, a possibilidade de terem sido elaborados após a hecatombe promovida pelas bombas atômicas. De qualquer forma, muitas das barbaridades cometidas nos campos de concentração já haviam se concretizado nos anos finais da guerra. Auschwitz já asfixiava e incinerava seus prisioneiros. A carnificina ocorrida é de tal modo inimaginável e incomunicável que o silêncio que paira na escuridão do poema emiliano pode ser por ela promovido. Não há o que se dizer depois de tanto horror, o fim dos tempos parecia se anunciar naquelas ações desumanas, racionalmente calculadas. Diante do silêncio instaurado, o poeta deseja se manifestar, ―falar, cantar‖, mas não consegue. Algo há que o impede de realizar sua vontade. Vemos em Gagnebin (2009), um possível impedimento, qual seja: ... a mais nobre característica do homem, sua razão e sua linguagem, o logos, não pode, após Auschwitz, permanecer o mesmo, intacto em sua esplêndida autonomia. A aniquilação de corpos humanos nessa sua dimensão originária de corporeidade indefesa e indeterminada como que contamina a dimensão espiritual e intelectual, essa outra face do ser humano. Ou ainda: a violação da dignidade humana, em seu aspecto primevo de 37 Cf. páginas 66 e 67. 80 pertencente ao vivo, tem por efeito a destituição da soberba soberania da razão (GAGNEBIN, 2009, p. 77). O comprometimento da razão leva, então, ao silêncio. Como falar do que aconteceu? De que modo é possível racionalizar Auschwitz? Moura sente a impossibilidade desta empreitada. O lógos não obedece ao querer. O poeta deseja de forma intensa – por duas vezes ele afirma: ―Bem que eu quero vencer tanto silêncio‖ –, mas as interrogações finais, indagando a maneira de se alcançar tal vitória, indicam que ele não consegue. Vemos, assim, a irrepresentabilidade lírica sendo aventada. Frente ao contexto sombrio construído, o poeta tem sua fala, seu canto e sua alma emudecidos. As sombras emilianas e a interpretação que a ela damos nos conduziram aos versos de Bertolt Brecht (1898-1956), no poema ―Aos que vão nascer‖: I É verdade, eu vivo em tempos negros. Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas Indica insensibilidade. Aquele que ri Apenas não recebeu ainda A terrível notícia. Que tempos são esses, em que Falar de árvores é quase um crime Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades? Aquele que atravessa a rua tranquilo Não está mais ao alcance de seus amigos Necessitados? (...)38 (BRECHT, 1986, p. 214) 38 Sim, ainda ganho meu sustento / Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço / Me dá direito a comer a fartar. / Por acaso fui poupado. (Se minha sorte acaba, estou perdido.) // As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque tem! / Mas como posso comer e beber, se / Tiro o que como ao que tem fome / e meu copo d‘água falta ao que tem sede? / E no entanto eu como e bebo. // Eu bem gostaria de ser sábio. / Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria: / Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve / Levar sem medo / E passar sem violência / Pagar o mal com o bem / Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los / Isto é sábio. / Nada disso sei fazer: / É verdade, eu vivo em tempos negros. // II À cidade cheguei em tempos de desordem / Quando reinava fome. / Entre os homens cheguei em tempo de tumulto / E me revoltei junto com eles. / Assim passou o tempo / Que sobre a terra me foi dado. // A comida comi entre as batalhas / Deitei-me para dormir entre os assassinos / Do amor cuidei displicente / E impaciente contemplei a natureza. / Assim passou o tempo / Que sobre a terra me foi dado. // As ruas de meu tempo conduziam ao pântano. / A linguagem denunciou-me ao carrasco. / Eu pouco podia fazer. Mas os que estavam por cima / Estariam melhor sem mim, disso tive esperança. / Assim passou o tempo / Que sobre a terra me foi dado. // As forças eram mínimas. A meta / Estava bem distante. / Era bem visível, embora para mim / Quase inatingível. / Assim passou o tempo / Que nesta terra me foi dado. // III Vocês, que 81 Brecht aborda a atitude que os homens passam a ter – ou ao menos deveriam – diante da situação instaurada pela guerra. As sombras não os envolve, elas fazem parte da própria constituição deles. Qualquer manifestação de inocência, despreocupação ou alegria se torna um desrespeito ao Holocausto. A segunda estrofe é que mais nos atrai, por tratar da questão da lírica após os horrores da guerra, conforme Adorno também o fez, mencionando Auschwitz. É possível escrever poesia sobre coisas inocentes depois dos atos hediondos realizados? Não seria isso uma maneira de desvalorizar o que aconteceu, contribuindo para o esquecimento? Brecht, então, nos versos que dão sequência ao poema, não fala de coisas inocentes, mas das agruras a que os homens foram submetidos: fome, sede, violência, guerras, assassinatos, exílio, luta de classes, desespero, injustiça, indignação, ódio. Ao final, o poeta pede, àqueles a que o título do poema faz referência, que se lembrem de modo benevolente dos homens do tempo dele. Os versos ―... quando chegar o momento / Do homem ser parceiro do homem‖ se coadunam com a descrença do ser humano em relação à sua própria espécie, capaz de planejar carnificinas tão estúpidas. Em alguns dos versos negritados na nota, Brecht sugere o exílio a que se submeteu a partir da eleição de Hitler em 1933, ―... trocando de países como de sandálias‖. Primeiro partiu para a Áustria, depois Suíça, Dinamarca, Finlândia, Suécia, Inglaterra, Rússia e, finalmente, Estados Unidos. O poeta menciona a perseguição que os artistas sofreram pelo uso da palavra. Entretanto, Brecht não se calou. Fez de sua obra dramatúrgica e lírica um instrumento de crítica, conscientização e politização. Lembramo-nos do poema ―Permanência da poesia‖ (P, p. 173), apresentado há algumas páginas, em que Emílio Moura fala sobre a poesia exilada, que resulta ainda mais ―límpida‖. Os exílios não fizeram calar os artistas e intelectuais, muitos, pelo contrário, aproveitaram a potência e a magia da emergirão do dilúvio / Em que afundamos / Pensem / Quando falarem de nossas fraquezas / Também nos tempos negros / De que escaparam. / Andávamos então, trocando de países como de sandálias / Através das lutas de classes, desesperados / Quando havia só injustiça e nenhuma revolta.// Entretanto sabemos: / Também o ódio à baixeza / Deforma as feições. / Também a ira pela injustiça / Torna a voz rouca. Ah, e nós / Que queríamos preparar o chão para o amor / Não pudemos nós mesmos ser amigos. // Mas vocês, quando chegar o momento / Do homem ser parceiro do homem / Pensem em nós / Com simpatia. (BRECHT, 1986, p. 214-216, grifos nossos). 82 linguagem, com seus possíveis jogos e imagens, para denunciar, nas entrelinhas, a situação de seus tempos. Emílio Moura se utilizou de vários artifícios no trabalho com a palavra. Metáforas foram empregadas, elementos desconcretizados em imagens de ―sutis conotações‖, como caracterizou ÁVILA (1969, p. 1). Referências diretas ao contexto histórico ficaram quase excluídas de sua obra, embora fundamentando-a. Moura não foi um poeta que sofreu o exílio político, mas sentiu, como poeta moderno, uma espécie de exílio existencial diante das tensões e paradoxos da modernidade. Recolheu-se em seu interior e se colocou a refletir sobre a existência humana39 e sobre seu papel como poeta. Nesta tarefa, apresentou-nos a palavra mágica e poderosa da poesia e o caráter mítico dela, deixou-se enredar pela ascensão do lógos, oferecendo-nos uma poesia idealista. Pendulou do mўthos ao lógos, sem deixar de, modernamente, anunciar a crise da palavra poética no mundo pós- Auschwitz, pós-Hiroshima e Nagasaki, pós-ditaduras militares e civis (Perón, Vargas, Salazar). Enfim, retomamos a epígrafe deste capítulo: ―Sou um poeta quase místico‖ (Ing, p. 33). Místico porque há nele presença, mesmo que de maneira vestigial, da crença no transcendental, conforme veremos em outras páginas deste trabalho. Místico porque uma vertente de sua obra oferta ao poeta a linguagem sagrada, verbum divino a realizar criações, poeta-profeta capaz de realizar salvamentos40 por meio de suas palavras. Entretanto, dissemos de uma desmi(s)tificação na obra emiliana. Durante o capítulo, falamos da palavra-mўthos e caracterizamos parte da poesia emiliana como mítica. Contudo, o mítico, na poesia em que Moura aborda a questão do fazer poético, tem muito de místico. Isso pela apresentação que ele faz da palavra demiúrgica ofertada ao poeta, sua aproximação, portanto, com o plano divino, seja das Musas, seja do Deus judaico- cristão da Bíblia Sagrada. Entretanto, o verbum divino e o poder transcendente da palavra oscilam entre poemas e fragmentos em que a abstração se faz anunciada. Não raro, o místico fica latente diante da racionalização da palavra-lógos, incapaz de, às vezes, pensar e dizer os horrores do século XX. Poeta em tensão, em 39 Vide capítulo 3. 40 Diz Emílio Moura em um de seus fragmentos: ―A vida não é uma operação poética, mas pode ser salva por uma operação dessa natureza‖ (MOURA, 1969, n. 156, p. 12). 83 reflexão. Homem moderno, palimpsesticamente marcado pelas tradições. Um ―quase místico‖, um quase idealista. Eis o poeta Emílio Moura. 84 3. DA IDEALIZAÇÃO MÍTICA AO DESENCANTAMENTO: METAMORFOSES DO FEMININO 85 Se Eliana é a forma que não morre, como atingi-la ou compreendê-la? Se transcende a si mesma, como invocá-la com palavras? Emílio MOURA (EM, p. 127) Súbita névoa chegara. Ruíra tudo. Era o pânico. Ninguém a reconheceu. Quem a trocou por essa outra? Emílio MOURA (DM, p.150) A parcela da obra de Emílio Moura referente a questões relacionadas à operação lírica sugere, conforme desenvolvido no capítulo anterior, uma espécie de ―teoria‖ poética, cujo postulado principal diz respeito à tensão entre mўthos e lógos e, por conseguinte, à paradoxal oscilação entre uma poesia de cunho mítico e, concomitantemente, idealista. Transpondo nossas considerações do plano da elaboração poética para o das diferentes temáticas emilianas, percebemos que o que se propugna nessa teoria também pode ser depreendido de alguns de seus demais poemas. Há sempre uma tensão no cerne das temáticas poetizadas por Moura. Neste capítulo, veremos a representação mítico-idealista da mulher emiliana – exemplificada na primeira epígrafe acima transcrita –, analisando, ainda, o processo de desencanto que se desenvolve em relação a ela – como aponta o segundo conjunto de versos que epigrafam este capítulo – e as consequências oriundas desse desencantamento. Indicamos, também, nas páginas anteriores, a falta de concretude de muitas das imagens versejadas por Moura, assim como o trabalho de desconcretização realizado pelo poeta, prometendo desenvolvê-los posteriormente. Demonstraremos, então, a presença de imagens que ou são ausentes de materialidade, ou apresentam um concreto fugidio, instável, dinâmico. Essas representações tanto podem sugerir alegria, claridade, leveza, esperança – manhã, ar, mar, vento, ondas, por exemplo –, quanto indicar escuridão, tristeza, solidão, morte41 – como as imagens da sombra, da noite, do próprio mar e das ondas que promovem naufrágio, do vento que desencadeia tormentas etc. Quanto à desconcretização, a ocorrência mais significativa se dá em relação ao feminino construído por Moura. A respeito deste aspecto antitético da obra emiliana, 41 Estas serão trabalhadas no capítulo seguinte. 86 tensionada entre a claridade e a escuridão, entre a esperança e a melancolia, Francisco Iglésias, no artigo ―O poeta Emílio Moura‖ (1969), comenta: Pelo êxtase ou simplesmente pela capacidade de captar a beleza e senti-la como força de vida, tem momentos de imensa alegria, da plenitude, em que se sente em comunhão com os seres e com as coisas, em sentimento eufórico (...). A nota mais comum, no entanto, não é essa, e sim a de falta, de melancolia por algo que nunca teve ou que foi perdido: a infância a pureza ou a mulher amada (IGLÉSIAS, 1969, p. 12). Esta tensão nos conduz a dois caminhos interpretativos: o que será desenvolvido neste capítulo, referente à face luminosa do poeta, cuja clareza, como veremos, vai sendo contagiada até resultar no lado sombrio de Moura; outro caminho que será trilhado no próximo capítulo. 3.1 Entre mўthos e lógos: o feminino emiliano A fim de analisar as imagens elaboradas por um poeta é preciso mergulhar em seu imaginário, ver de que modo sua imaginação apreende a natureza das coisas, assimilando-as poeticamente. Segundo Gaston Bachelard, em O ar e os sonhos (1990), é errônea a concepção corriqueira de que a imaginação seria a capacidade de formar imagens. Para o autor, ela seria, ao invés, a capacidade de ―deformação‖ destas, libertando-as de seus sentidos ordinários. Haveria, portanto, através da imaginação, um deslocamento de sentidos, de forma a mudar a imagem já fixada pela percepção. Se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação. Há percepção, lembrança de uma percepção, memória familiar, hábito das cores e das formas (BACHELARD, 1990, p. 1). Segundo essa concepção bachelardiana, a imaginação consiste em um trabalho com as imagens, assim como o faz a prática literária, que se serve das 87 imagens estáveis a fim de transfigurá-las, de dar-lhes asas e atribuir-lhes novos sentidos. É através do imaginário, ou seja, da capacidade de libertar as imagens de sua fixidez, que a imaginação flui. E é dessa fluidez que a imaginação poética se constitui, trabalhando com a multiplicidade semântica das palavras e de suas combinações. Explorando ―os desejos de alteridade, os desejos de duplo sentido, os desejos de metáforas‖ (BACHELARD, 1990, p. 3) das palavras. Somente através dela é possível ver e tratar as imagens de forma diferenciada, dando-lhes vida nova, atribuindo-lhes sedução, destituindo-as de seu caráter ordinário. Ainda segundo o mesmo autor, a imaginação de um verdadeiro poeta deve fazer-nos um convite a uma viagem imaginária. Através das representações líricas, somos levados a entrar em um mundo próprio, criado pelo poeta. A obra de Emílio Moura nos faz um ―convite à viagem‖. Uma vez embarcados em seu itinerário, vemo-nos diante de uma rede imaginária que nos permite perceber o ―movimento de imaginação‖ do poeta, em cuja obra há uma recorrência de imagens equivalentes, próximas em suas significações. É por meio da repetição de uma imagerie ora luminosa, ora sombrosa, umas vezes mítica, outras, idealista, que depreendemos as caracterizações que estamos atribuindo à obra emiliana. Há, em Emílio Moura, um ―sonho poético bem definido‖, uma vida imaginária com ―verdadeiras leis de imagens sucessivas, um verdadeiro sentido vital‖ (BACHELARD, 1990, p. 4). É no encalço deste ―sonho poético bem definido‖ que partimos em nossa segunda caminhada junto à obra emiliana. Iniciamos pelos poemas em que o feminino se insinua em meio a um imaginário que sugere claridade, alegria, leveza42, como nos versos de ―Matinal‖: Sobre as ondas mansas brincam os barcos. Diante de meus olhos matinais, as coisas se ordenam simples e perfeitas: o céu, o mar, teu corpo. Ah, o teu corpo! Meus olhos brincam sobre o teu corpo. 42 Novamente, ressaltamos que não nos preocuparemos em apresentar os poemas pela ordem cronológica de publicação, caso a semelhança temática ou do trabalho com as imagens poéticas demande aproximá-los fora de tal ordem. 88 Nenhuma nuvem na minha alma. (CHA, p. 49, grifos nossos) As construções ―ondas mansas‖, ―brincam os barcos‖, ―ondas matinais‖, coisas ―simples e perfeitas‖, assim como as palavras ―céu‖ e ―mar‖, na primeira estrofe do poema, sugerem leveza e perfeição. As ondas do poema são acrescidas do adjetivo ―mansas‖, reforçando ainda mais tais características. Sobre esse tão suave movimento do mar, os barcos ―brincam‖, deixando-se levar. Esta cena é contemplada pelos ―olhos matinais‖ do poeta, cuja caracterização sugere a pureza de um olhar que vê as coisas – ―céu‖, ―mar‖, ―teu corpo‖ –, sendo ordenadas ―simples e perfeitas‖. Tal inferência de pureza é possibilitada pelo fato de a ―manhã‖, nome de que deriva o adjetivo ―matinal‖, indicar ... o tempo em que a luz ainda está pura, os inícios, onde nada ainda está corrompido, pervertido ou comprometido. A manhã é ao mesmo tempo símbolo de pureza e de promessa: é a hora da vida paradisíaca. É ainda a hora da confiança em si, nos outros e na existência (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 587-588). Assim, o olhar matinal emiliano se encontra isento de qualquer perversão ou corrupção, vendo imagens também desprovidas de significados maculados: as ―ondas mansas‖, os barcos que ―brincam‖, o ―céu‖, o ―mar‖ e, acrescentado a esta paisagem de tom paradisíaco, o ―corpo‖ da mulher amada. Sobre a suavidade das ondas já dissemos, tanto quanto a respeito da leveza de os barcos deixarem-se estar sobre elas. Quanto ao céu, soa-nos redundante apontar para seu significado transcendente e, portanto, para a ausência de qualquer tipo de perversão, pois, ao contrário, trata-se de um símbolo de divindade (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 227), distante das corrupções terrenas. O ponto de vista do eu da escrita se desloca verticalmente do distante para o próximo: do alto céu para o mar e, deste, para o corpo de uma mulher, que parece estar ali, ao alcance de suas mãos. À primeira vista, ele poderia sugerir lascívia, concupiscência, por parte do poeta, já que remete à matéria corpo, o que comprometeria o sentido que vimos construindo a respeito da pureza da cena construída nos versos. Entretanto, não são as mãos que brincam naquele corpo, são os olhos. Isto é, a tatilidade é substituída pela visão, permitindo-nos entender o corpo como pura imagem. 89 Pelo conjunto da imagerie depurada de ―Matinal‖, introduzimos a mulher idealizada pelo poeta Emílio Moura. Neste contexto, é preciso extrapolar o significado de ―visão‖, ligado aos sentidos humanos e às formas exteriores – os quais se opõem ao plano eidético –, e considerar sua correspondência com a palavra ―ideia‖, ambas (visão e ideia) traduções possíveis para o termo grego eidos43. Se o corpo da mulher amada é idealizado, ele não pode, então, ser, de fato, apreendido pela visão, pois escapa ao mundo dos sentidos, mas somente pela razão. Levando em conta a similitude original entre visão e ideia, portanto, o olhar do poeta sobre o corpo da mulher equivale à sua idealização, elevando-a, em meio à pureza e à perfeição das imagens, ao plano das ideias, lócus do Amor verdadeiro. A visão é, ainda, o único sentido que necessita de distância para realizar a perfeição. Todos os demais sentidos exigem uma relação material entre sujeito e objeto, ou seja, que algo do objeto se prolongue até o sujeito (audição, olfato) ou que objeto e sujeito mantenham contato físico (tato e paladar). Sócrates, via Platão, no diálogo Banquete, explica que o desejo de Eros, imagem mítica do Amor, se constitui pela busca do Belo e do Bom (PLATÃO, Banquete, 202d), verdades essenciais que somente são cognoscíveis pelo Lógos. Para alcançar este objetivo, o Amor encontra muitos caminhos: ―ou pela riqueza ou pelo amor à ginástica ou à sabedoria‖ (PLATÃO, Banquete, 205d), o Eros platônico do ―Banquete‖ não privilegia, pois, o amor aos belos corpos, sendo este apenas uma determinada espécie de amor, que deve, inclusive, ser ultrapassada a fim de que se alcance a Beleza verdadeira: Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo. (PLATÃO, Banquete, 211b-d). 43 Embora, em Pereira (1976), não encontremos a tradução ―visão‖ para o termo eidos (―aspecto exterior, forma, figura; forma mental, ideia, conceito; classe, gênero, modo de ser; maneira, modo, método‖), ela pode ser percebida na menção ao ―aspecto exterior‖ e à ―forma‖, perceptíveis pelo olhar. Porém, no verbo eidõ, a referência é explícita: ―ver; olhar, observar; imaginar, representar; aparecer, mostrar-se; parecer, assemelhar-se; fingir; saber, conhecer; entender de, ser perito em; poder, ser capaz de; ter tais sentimentos‖ (PEREIRA, 1976, grifos nossos). 90 Embora a visão, insinuada nos versos de ―Matinal‖, consista no único de nossos sentidos capaz de apreender a beleza, ela não o faz de modo completo, porque ela capta só parte da beleza, apenas a representação da Beleza eterna e imutável, verdade essencial que só pode ser contemplada pela inteligência. Entretanto, como o corpo sobre o qual os olhos do poeta se divertem – inserido entre coisas ―simples e perfeitas‖, como o céu e o mar –, na verdade, é um corpo ―pensado‖, imaginado, ele transcende a beleza material. Deste modo, desenvolvendo sua imagerie abstrata, Moura caminha em direção à Beleza em si. Marco Aurélio de Moura Matos, em artigo sobre a obra emiliana, intitulado ―A musa e o espelho‖ (1969), contempla a questão da desmaterialização do amor nos poetas idealistas, entre eles inserindo Emílio Moura, que ―não aceitam ou não veem qualquer sentido em ligar o sentimento amoroso à forma atual do mundo físico‖ (MATOS, 1969, p. 4). Também ao dizer de sua ―alma‖, nos versos acima, o poeta alude às convicções platônicas, que consideram o homem composto de corpo e alma, sendo o primeiro pertencente ao plano material e a segunda provinda do cosmo eidético – ao qual retornará após se libertar do corpo. A pneuma, pela filosofia platônica, caracterizada como imutável, inteligível e indissolúvel, é a parte do homem que se assemelha ao divino (PLATÃO, Fédon, 80a) e tem inscritas em si as verdades essenciais, que são temporariamente esquecidas quando ela se une ao corpo44. Por pertencer ao plano das ideias, a alma é isenta de nuvens, pois nele tudo se encontra em seu estado de total pureza. O corpo idealizado da mulher pertence a este mesmo plano da alma do poeta, somente onde o Amor entre eles é possível. A sugestão da pureza da manhã, subentendida em ―Matinal‖, dá-se, também, nos versos de ―Garota‖: Garota, que falta me faz o teu riso fácil. Nesta manhã tranquila, com voos retos de pássaros, sinos cantando, e este brilho de orvalho sobre a relva úmida, nesta manhã tranquila, garota, que falta faz o teu riso fácil. (CHA, p. 57) 44 A este respeito, conferir a teoria das reminiscências de PLATÃO (Fédon, 75-76). 91 Dissemos, na análise do poema anterior, a respeito do sentido de pureza atribuído à imagem da manhã. Nos versos acima, este significado é consolidado por outras imagens que, juntas, traduzem uma paisagem impoluta – os pássaros que voam, o som dos sinos, o brilho do orvalho. É notável como Emílio Moura tende à utilização de imagens que se relacionam com o plano do transcendente. Mesmo que sejam representações de coisas concretas, simbolicamente elas estabelecem contato com o sublime. A lembrança de sua ―garota‖ se dá em meio a essas imagens. Embora a palavra ―garota‖ denote tratamento informal (HOUAISS, 2001), o caráter idealizado da mulher emiliana não se perde. A ausência física dela não anula a presença na imaginação do poeta. Novamente, portanto, a mulher emiliana é constituída como pura imagem, ainda mais depurada do que no poema anterior, em que a idealização diz respeito ao corpo, pois, agora, somente o riso é referido. Também a pouca idade, própria de uma ―garota‖, e sua alegria copiosa, insinuada pelo ―riso fácil‖, possibilitam aproximá-la das jovens ninfas, divindades mitológicas habitantes dos rios, bosques, montes. A descrição da manhã, instauradora do sentimento de falta no poeta, permite-nos pensar em uma paisagem propícia à morada de uma divindade, tamanhas a tranquilidade, a pureza e a beleza representadas pelo voo dos pássaros, o som dos sinos e o brilho da relva. Não por acaso, a palavra ―ninfa‖ possui como uma de suas acepções o sentido de mulher jovem, o que permite também pensar na analogia entre a garota e a ninfa, mesmo que, neste caso, não se trate do sentido mitológico. Em ―Pastoral‖, Moura reforça a concepção de uma mulher imaginada, relacionando-a, novamente com a natureza: Quando te encontrei, de que país estranho foi que imaginei mesmo [que tu acabavas de regressar? Sei que era de um país remoto e que havia duas longas filas de [plátanos junto de uma estrada. Sei que vinhas cantando. Mas, de onde vinhas e por que vinhas, quando te encontrei? (CHA, p. 51) O poeta interroga a respeito da origem de sua amada, afirmando o fato de tê-la ―imaginado‖ proveniente de um lugar estranho e remoto. Ele a idealiza, em meio a um quadro campestre, cujas ―duas longas filas de plátanos junto de uma 92 estrada‖, tal como um bosque, levam-nos, outra vez, a imaginarmos uma analogia entre a mulher e a ninfa, moradora de lugares como este. Assim imaginada, a mulher ganha, pois, conotação divina, aproximando-se de uma personagem mítica. Como vimos em Mircea Eliade, no livro Mito e realidade (1972), os mitos se constituem como narração das manifestações dos entes sobrenaturais em tempos remotos45. Assim, o ―remoto‖ que aparece no poema – embora diga respeito ao lugar de onde a amada proveio e não ao tempo ab origine dos mitos –, permite-nos estabelecer a ligação da mulher emiliana com a personagem pertencente ao mito, pois o vocábulo ―remoto‖ tanto pode referir-se à distância temporal quanto à espacial. O encontro do poeta com a mulher se dá nessas circunstâncias imaginárias, afastado, portanto, da materialidade do mundo sensível. No poema ―Cântico dos Cânticos‖ outra manifestação da idealização feminina: Vieste do Cântico dos Cânticos: ―Os teus cabelos são como um rebanho de cabras...‖ Ainda agora, não sei por quê, sonho que surges diante de mim, como quem desce do Líbano. Esta paisagem de relva macia, de montes ásperos, de ovelhas, este perfume de resina, este cheiro forte de anêmonas... Sinto que vais descer, bela e terrível, ―bela como Jerusalém, terrível como um exército com bandeiras‖. (CHA, p. 54) Ao citar versos de ―Elogio da esposa‖46 – capítulo 6 do livro bíblico ―Cântico dos Cânticos‖ – para caracterizar o feminino em sua poesia, Moura 45 Cf. página 27 deste trabalho. 46 ―És formosa, amiga minha, como Tirsa, / graciosa como Jerusalém, / temível como um exército em ordem de batalha. / Desvia de mim os teus olhos, / porque eles me fascinam. / Teus cabelos são como um rebanho de cabras / descendo impetuosamente pelas encostas de Galaad. / Teus dentes são como um rebanho de ovelhas / que sobem do banho; / cada uma leva dois (cordeirinhos) gêmeos, / e nenhuma delas é estéril. / Tua face é como um pedaço de romã / debaixo do teu véu. / Há sessenta rainhas, / oitenta concubinas, / e inumeráveis jovens mulheres; / uma, porém, é a minha pomba, uma só a minha perfeita; / ela é a única de sua mãe, / a predileta daquela que a deu à luz. / Ao vê-la, as donzelas proclamavam-na bem-aventurada, / rainhas e concubinas a louvam. / Quem é essa que surge como a aurora, / bela como a lua, / brilhante como o sol, / temível como um exército 93 intensifica o caráter ideal conferido à mulher. Este livro consiste em uma reunião de poemas destinados às solenidades nupciais, composto, principalmente, por elogios e louvores de Salomão à esposa Sulamita e vice-versa, bem como diálogos entre os dois, estando sempre um a enaltecer o outro. É neste contexto de exaltação que o cântico de Moura se insere. O poeta apresenta sua amada provinda do livro bíblico, atribuindo-lhe características conferidas à mulher de Salomão, tanto em relação ao aspecto físico – referindo-se ao cabelo e à beleza dela – quanto à sua personalidade forte – ―terrível como um exército com bandeiras‖. Fora as citações, o eu da escrita reforça ainda mais a idealização da mulher amada ao declarar que o surgimento dela para ele se dá por meio do sonho, fora do plano concreto, portanto. Embora em meio a uma paisagem quase bucólica, de ―relva macia‖, ―ovelhas‖, ―perfumes‖ e flores – mas de ―montes ásperos‖, por isso o ―quase‖ que empregamos –, a ―Sulamita‖ emiliana não se configura como uma mulher frágil; dissemos, há pouco, de sua personalidade forte. Ela surge ―bela e terrível‖ após descer o Líbano – referência ao Monte Líbano, formado por duas cadeias de montanhas –, o qual, embora no ―Elogio da esposa‖ não seja mencionado, é citado algumas vezes em outros poemas do ―Cântico‖. O fato de ela ―descer‖ de um monte, remete à simbologia da montanha, cuja verticalidade aventa a proximidade com o plano divino (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 116)47, além de indicar, às vezes, a morada dos deuses, como no caso do Monte Olimpo. Assim, em analogia com os seres sobrenaturais, habitantes dos montes, a mulher emiliana é potente, justificando sua descrição como ―terrível‖. Os versos emilianos nos levaram às explicações contidas na introdução da Bíblia Sagrada (2007) a respeito do livro ―Cântico dos cânticos‖, o qual, embora aborde o amor humano48, foi considerado pelos judeus ―como um cântico de amor de Deus para com seu povo‖ (BÍBLIA SAGRADA, 2007, p. 34). A Igreja cristã em ordem de batalha? / Eu desci ao jardim das nogueiras / para ver a nova vegetação dos vales, / e para ver se a vinha crescia / e se as romãzeiras estavam em flor. / Eu não o sabia; minha alma colocou-me / nos carros de Aminadab‖ (Cântico dos cânticos 6, 4-12). 47 Verificar, à página 21, menção a esta simbologia, na análise do poema ―Ode ao primeiro poeta‖. 48 ―O amor que une o homem e a mulher no casamento foi querido por Deus no plano da criação: ele é em si uma coisa boa e digna de ser enaltecida. Por outro lado, as festas nupciais eram para os antigos judeus uma ocasião propícia para a manifestação de sua fé nos destinos da nação escolhida, que era considerada a esposa do Senhor. Na união dos novos nubentes viam com religiosa alegria como a aliança divina se ia perpetuando. O amor humano tornava-se-lhes, portanto, um verdadeiro símbolo da aliança de Deus com seu povo‖ (BÍBLIA SAGRADA, 2007, p. 34). 94 estendeu este significado, vendo nele ―uma figura do amor de Cristo para com sua Igreja, considerada sua esposa‖, celebrando ―a satisfação única e perfeita que a alma Cristã encontra no seu Bem-amado‖ e, ainda, ―o amor da Virgem Santíssima por seu Filho‖ (BÍBLIA SAGRADA, 2007, p. 34). O ―Cântico‖ se constitui, simbolicamente, pois, como uma referência ao amor divino. Tais informações nos incitam a ver, no cântico de Moura, não apenas a projeção da mulher ideal, mas também uma exaltação do amor puro e verdadeiro. Ainda outra vez, em ―Euforia‖, as imagens da manhã e da mulher emiliana se harmonizam: És linda como a manhã que nasce. Que amor o meu! Olha: até parece que somos eternos, livres e eternos. (Canc, p. 100) Apesar de sintético, o poema se mantém fiel à imagerie emiliana. Comparando a beleza de sua amada com a manhã, o poeta nos faz pensar na pureza deste instante – duplamente mencionada nas análises anteriores – e, assim, em seu aspecto não corrompido. Dessa forma, vemos o feminino em Moura, belo ―como a manhã que nasce‖, sendo apresentado também depuradamente. Dissemos a respeito de os poetas de cunho idealista não sentirem necessidade de ligar o amor ao mundo físico. Novamente, então, Emílio Moura, optando pelo idealismo nos versos acima – depreendido por nós dos sentidos simbólicos da palavra ―manhã‖ –, desloca sua amada para o mundo não físico. O que, entretanto, não o enfada, já que é tomado por uma ―euforia‖, a qual pode ser constatada na exclamação do segundo verso. Na verdade, ele acaba por sugerir sua própria purificação ao empregar os termos ―livres‖ e ―eternos‖ ligados à primeira pessoa do plural. Tais termos conduzem à filosofia platônica do mundo eidético, onde habitam as ideias de todas as coisas apreensíveis pelos sentidos no mundo material. Enquanto ideias, elas são imutáveis e, portanto, eternas. Da mesma forma como as coisas possuem sua representação no plano das ideias, o ser humano também a possui: sua alma. Ela é a parte imortal e livre do homem. Imortal porque, obviamente, não se extingue, sobrevivendo à morte do corpo. Livre porque, quando desligada deste, habitando o mundo extrassensível, pode exercer todas as suas 95 habilidades e utilizar todos os conhecimentos que lhe são inerentes, mas que, antes, o corpo material lhe coibia. Vejamos a explicação do próprio Platão a este respeito: ... o corpo nos mantém continuamente ocupados devido a sua necessidade de sustento; some-se a isso que se é acometido por doenças, estas obstam nossa busca do ser. O corpo nos enche de desejos sensuais, apetites e temores e de toda uma gama de ilusões e tolices, de maneira que, como dizem, ele realmente nos impossibilita em absoluto o pensar. O corpo acompanhado de seus desejos é o único responsável por guerras, conflitos civis de facções e batalhas; de fato, todas as guerras nascem do desejo de obtenção de riqueza, e é o corpo e o cuidado que ele exige, aos quais estamos escravizados, que nos obriga a ganhar dinheiro e obter riqueza. (...) se pretendemos algum dia obter um conhecimento puro de qualquer coisa teremos que nos libertar do corpo e observar as coisas em si mesmas com a alma exclusivamente. Assim, como indica nosso argumento, é provável que quando estivermos mortos teremos a sabedoria pela qual ansiamos e da qual afirmamos ser amantes – e não enquanto vivermos (PLATÃO, Fédon, 66b-e). Logo, somente afastado do corpo, por meio de sua alma, o homem pode alcançar as verdadeiras liberdade e eternidade. Por isso, dissemos que o poeta Emílio Moura, ao usar o ―somos‖, esteja também conjeturando sua própria depuração – afinal, ele diz ―parece que somos livres e eternos‖ (grifo nosso). Para isso, ele se afasta das materialidades do mundo e investe na ação do pensamento, realizando, assim, as idealizações. Valendo-se do pensamento, ele se aproxima mais de sua alma que de seu corpo. Em Platão, ao explicar a atividade reflexiva do filósofo, encontramos suporte para tal leitura. Se somente a alma é capaz de alcançar as verdades essenciais, e o filósofo é aquele que busca o verdadeiro conhecimento, apenas afastando-se ao máximo de sua corporeidade, chegará o mais próximo de seu intento. Para tanto, precisa se abster das questões materiais e voltar-se o mais possível para o pensamento. E não realizará isso com maior perfeição aquele que aborda cada coisa exclusivamente com a razão, não associando a visão à sua reflexão, nem fazendo imiscuir quaisquer das outras percepções sensoriais no seu raciocínio, aquele que emprega absolutamente o pensamento puro na sua tentativa de investigar as coisas que são, e que se afasta pessoalmente, tanto quanto possível, de olhos e ouvidos – em suma – de seu corpo inteiro, porque percebe que a associação com ele perturba a alma e a impede de alcançar a sabedoria? (...) Ora, ele [Sócrates] disse, tudo isso leva necessariamente os legítimos filósofos a pensar e comunicar entre si algo assim: ‗é 96 provável que haja um caminho que nos leve, acompanhados de nossos argumentos em meio a nossa busca, a concluir que enquanto tivermos um corpo, e estiver a alma misturada a esse mal, jamais alcançaremos completamente o que desejamos, ou seja, a verdade...‘ (PLATÃO, Fédon, 66a-b). Tal como um filósofo, portanto, abstraindo-se das materialidades, Moura se volta para o pensamento e, por meio dele, desenvolve sua poética idealista, imaginando sua amada fictícia – e, às vezes, fazendo referência a si mesmo – de forma transcendente e utilizando imagens que sugerem ligação com o extrassensível. Quando nos debruçamos sobre o ―Cântico dos cânticos‖, a palavra ―terrível‖ nos levou à potência da mulher emiliana. No poema ―Por quê?‖, este poder feminino é novamente aventado: Quanto mais te contemplo, mais me fascinas e me subjugas. Quanto mais nos falamos, mais sinto necessidade de ti. Quando foi que te encontrei? Quando foi que te descobri? Se és a que já estava no meu sonho, por que foi que não te esperei de coração aberto? (EM, p. 123) Os versos indicam a capacidade de a amada emiliana fascinar, subjugar e fazer-se necessária para seu idealizador. O poeta se assume de modo submisso em relação a ela; submissão que se dá no âmbito do onírico, pois, de novo, ele afirma a ligação dela com seu sonho. O verbo ―falar‖, no segundo verso do poema, pode levar ao comprometimento de entender a mulher emiliana como idealizada, já que, empregado de modo pronominal, denota um diálogo entre o poeta e a amada por ele criada. Entretanto, nada impede de pensarmos nesta conversa se dando apenas no plano do pensamento do poeta. O verbo ―contemplar‖, entendido nos sentidos de ―aprofundar-se em reflexões; meditar‖, ―imaginar‖ (HOUAISS, 2001), reforça a ideia das ações acontecendo mentalmente e não na realidade concreta e cotidiana. As dúvidas que Moura levanta, por meio das interrogações, a respeito de ―quando‖ este feminino surgiu para ele, denotam uma indefinição temporal, que também distancia a mulher das noções histórico-temporais. Até mesmo porque o tempo dos sonhos, nos quais ela se faz presente, não corresponde ao tempo cronológico. 97 Atemporal e poderosa, a mulher amada de Emílio Moura continua tendo sua sublimidade poetizada. Vejamos os versos de ―Quem sou eu?‖: Estou diante de ti. Imóvel. Absolutamente imóvel. Nu e silencioso. Por que não te prevaleces deste instante e não me revelas quem sou? (EM, p. 124) A impotência do poeta diante de sua Musa contrasta com o vigor dela mesma, que é capaz de lhe proporcionar uma revelação. Isento de atitudes e de vestimentas, expõe-se a ela ao máximo, esperando que seja decifrado para si mesmo. A interpretação desses versos se encruzilha com a dos poemas anteriores, caso leiamos a imobilidade do poeta como indício de contemplação e sua nudez como despojamento das preocupações materiais. Afinal, o verdadeiro saber, conforme expusemos por intermédio das palavras platônicas, só é alcançado pelo afastamento das ligações corporais e pelo mergulho no pensamento. O desejo de conhecimento, em Moura, está expresso no título do poema e em seus versos finais. Consiste na busca pelo conhecimento de si mesmo. Se esta sabedoria lhe pode ser anunciada por aquela que é fruto de suas idealizações, para estar diante dela é preciso estar no mesmo plano que a amada. Para isso, ele se aparta do mundo sensível, o qual impede ou dificulta a revelação da verdade das coisas. Imerso em suas abstrações, Moura tem a imagem da mulher amada frequente em seus pensamentos. Os versos de ―Presença‖ apontam para esta constância: Estás sempre comigo. Mesmo sem ti, estou contigo. A luz se reflete nas águas que adormeceram sob as grandes árvores? Teus olhos. Um voo rápido de asas? Tuas mãos. Vês? Mesmo sem ti, estou contigo. (EM, p. 125) 98 A ―presença‖, anunciada no título e confirmada nos versos, se dá pela ausência física. A repetição do trecho ―mesmo sem ti, estou contigo‖ aponta para a falta do contato físico entre o poeta e sua amada e para o fato de que isto não impede que ele se sinta junto dela. Moura a vê revelada em diferentes manifestações da natureza, como o brilho da luz refletido nas águas – que o faz pensar nos olhos femininos – e o movimento de asas lembrando-lhe as mãos dela. Expressiva é a ocorrência desse feminino abstrato na poética emiliana. A imagem da mulher ausente de corpo, apenas idealizada, enfatiza o que nos propusemos a demonstrar: a pouca presença de imagens materiais que se relacionem com o mundo concreto e a ocorrência de elementos não materiais ou que estabeleçam relação com o plano extrassensível. Podemos ainda destacar a utilização de imagens aéreas, que nos permitem relacioná-las com o sentido ascensional durandiano, apresentado no primeiro capítulo. Neste último poema, por exemplo, além da abstração feminina, temos, também, menção feita à ―luz‖, ao ―voo‖ e às ―asas‖. DURAND (1997, p. 130) faz referência à representação das asas como ―instrumento ascensional por excelência‖. Segundo o autor, importa mais a asa em si do que o pássaro ou outro ser imaginário que a possua. São as asas e a ação que elas engendram, o voo, que simbolizam a elevação, a sublimação. Também Chevalier e Gheerbrant veem nas asas a simbologia da sublimação: ―... as asas exprimirão geralmente uma elevação ao sublime, um impulso para transcender a condição humana. Constituem o atributo mais característico do ser divinizado e de seu acesso às regiões uranianas. A adjunção de asas a certas figuras transforma os símbolos‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 91). Em Emílio Moura encontraremos, algumas vezes, a presença das asas, que podemos ler, também, como simbólica da transcendência humana, às vezes perceptível na mulher idealizada. O modo como o poeta constrói a imagem feminina sugere um ser que excede o plano físico, sendo produto da imaginação dele. Ao engendrar o ideal da mulher amada, Moura busca de tal modo a perfeição que acontece de a apresentar de modo quase divino. Em ―Foi inútil‖ a realização dela no nível das idealizações é novamente constatada: Entre nós dois, que puseram? O mar, o rio, a floresta? Levantaram tanta pedra, levantaram tanto muro, 99 gritaram tantas palavras... Mas, de que foi que valeu? Que foi que valeu tudo isso: o mar, o rio, a floresta, tanto muro, tanta pedra, e tantas, tantas palavras, se estás em tudo que penso, se estás em quanto imagino? (EM, p. 138) O eu emiliano indica a inutilidade de obstáculos do mundo material que se interpuseram entre ele e sua amada. Afinal, um amor que se realiza na imaginação não sofre abalos advindos do ―mar‖, do ―rio‖, da ―floresta‖, de ―pedras‖ e ―muros‖ erguidos contra ele. Nem mesmo as palavras gritadas contra esse amor são capazes de afetá-lo. A imaginação ultrapassa qualquer barreira material, o que permite que a mulher emiliana se faça presente em todos os pensamentos do poeta. Sua onipresença é reforçada pelos versos de Manuel Bandeira que epigrafam o poema de Moura: ―Estás em tudo que penso, / Estás em tudo quanto imagino‖. Retirados do poema ―Ubiquidade‖49, os versos, reaproveitados por Moura em seu poema, sugerem a referência à onipresença de Deus. Ao dialogar com o excerto manuelino, Moura agrega à sua interlocutora faculdade análoga à do poder divino, isto faz com que a mulher emiliana, neste poema, possa ser considerada uma idealização transcendente. Em ―Poema‖, Emílio Moura apresenta uma nova caracterização que reforça o aspecto transcendente do feminino em sua obra. Vejamos os versos: Quantas vezes te destruí em mim para te criar de novo? Quantas vezes te considerei mito, estrela desterrada de sua [constelação, símbolo e chama? De onde tirei a tua forma? Dos mitos que me sustentaram antes de tua vinda, ou de minha [própria sede de poesia? Mito! Eras mito e eu te esperava. Estrela desgarrada, e meus olhos te reintegraram em tua [constelação mágica. (EM, p. 122) 49 Estás em tudo que penso, / Estás em quanto imagino: / Estás no horizonte imenso, / Estás no grão pequenino. // Estás na ovelha que pasce, / Estás no rio que corre: / Estás em tudo que nasce, / Estás em tudo que morre. / Em tudo estás, nem repousas, / Ó ser tão mesmo e diverso! / (Eras no início das cousas, / Serás no fim do universo.) // Estás na alma e nos sentidos. / Estás no espírito, estás / Na letra e, os tempos cumpridos, / No céu, no céu estarás (BANDEIRA, 1993, p. 183). 100 O eu emiliano confessa que a mulher amada é, para ele, um ser em permanente (re)criação. A expressão ―em mim‖ e o verbo ―considerar‖, que apresenta sentidos que remetem à ação da mente, indicam o aspecto idealizado deste feminino, apreendido, pois, pelo pensamento. A busca pelo ideal da mulher amada faz com que Moura a imagine de diferentes formas: ora ―mito‖, ora ―estrela desgarrada‖, ora ―símbolo‖, ora ―chama‖. Todas essas formas sugerem um ser diferenciado, singular. Como temos visto que Moura idealiza sua mulher elevando-a do plano material, ao considerá-la uma ―estrela‖, tendo em vista a ligação desta com o plano espiritual, ele está, pois, mantendo-se fiel a seu sonho poético bem definido. Embora ―desterrada de sua constelação‖, a estrela não tem sua simbologia esvaziada, apenas deslocada. Seu sentido transcendente permanece inalterado. Dizendo-a um ―símbolo‖, Moura destaca a feição idealizada com que poetiza sua amada. Enquanto símbolo, ela dá forma ao desejo do poeta de representar um amor perfeito, tal como o Eros platônico, transcendendo o corporal em busca da perfeição. A mulher em Moura é o símbolo mais representativo desta poética idealista. Ao apresentar a amada como ―chama‖, o poeta aventa o amor espiritual, puro, que escapa às corporeidades, robustecendo, ainda mais, sua imagerie feminina. Isto porque, simbolicamente, a ―chama (flama) é um símbolo de purificação, de iluminação e de amor espirituais. É a imagem do espírito e da transcendência, a alma do fogo‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 232). ―Estrela‖, ―símbolo‖ e ―chama‖. Para completar as imagens utilizadas na concepção de sua amada, consideremos o fato de o eu da escrita afirmar que ela foi um mito, e o faz, ainda, exclamando: ―Mito!‖. Observando que este vocábulo designa as histórias que narram as manifestações dos entes sobrenaturais, conforme vimos em Eliade (1972), entendemos que, mesmo afirmando ser a mulher um mito, o poeta esteja, na verdade, referindo-se a uma personagem mítica. Como se depreende dos versos: ―De onde tirei a tua forma? / Dos mitos que me sustentaram...?‖ Em ocasião da análise do poema ―Pastoral‖, comentamos sobre a caracterização feminina que nos permitiu comparar a mulher a um ser de caracteres divinos, análogo a uma personagem mítica. Nos versos de agora, não há menção a características divinas, mas o poeta faz referência explícita à condição mítica da amada. 101 O verso ―Mito! Eras mito e eu te esperava‖ parece dialogar com outro trecho emiliano, já apresentado e comentado, no capítulo anterior, que faz parte do poema ―À Musa‖ (CHA, p. 50)50: ―e eu te esperei desde o princípio‖. Esta última palavra remete às origens das coisas, as quais são narradas nos mitos. A Musa e a mulher amada, ambas personagens míticas, são esperadas pelo poeta. Esta similitude das duas talvez explique a dúvida dele a respeito de onde buscou a forma feminina: se nos ―mitos‖ ou em sua ―sede de poesia‖. Afinal, Musa e mulher, participantes dos mitos emilianos, ao inspirarem o poeta, acabam por satisfazer a ânsia deste por alguns versos. Estas duas personagens algumas vezes se confundem na poética emiliana. Há versos em que o interlocutor feminino a que o poeta se dirige e as caracterizações que lhe são atribuídas tanto podem corresponder à Musa quanto à amada. Fábio Lucas, no texto ―O eterno enigma da poesia de Emílio Moura‖ (2003b), refere-se a esta semelhança, apontando uma ―mescla da mulher com o mito e a mescla do mito com a poesia‖ (LUCAS, 2003b, p. 109). Pensamento este que vai ao encontro da reflexão aqui desenvolvida de considerar a mulher emiliana uma personagem mítica, semelhante à Musa, fons et origo, bem como metáfora da poesia. O poema ―Não me pertenço‖ é emblemático desta similitude entre as duas: Agora que estou diante de ti, já não me pertenço. Nem pergunto quem és, porque já te esperava. Vens do fundo dos tempos como uma aparição mítica. Tudo o que vejo em ti é um misto de graça e de fascinação terrível. Por que trazes em ti, na tua palavra e no teu silêncio, esse poder de destruir e o de me elevar tão alto? Se aponto para a minha sombra, é a tua sombra que vejo; se me debruço sobre o meu destino, é o teu destino que toco. Não me pertenço. O próprio mundo desaparece. Só tu sobrevives, frágil e eterna, diante de meus olhos. (Canc, p. 105) Mais uma vez o poeta anuncia a espera por sua interlocutora, que, ao se tornar manifesta para ele, é capaz de anular o seu sentido de autopertencimento. 50 Vide páginas 24 e 25. 102 Como se ele fosse totalmente possuído por ela. Ao dizê-la vinda do ―fundo dos tempos‖, Moura remete ao tempo primordial dos mitos, comparando-a a uma ―aparição mítica‖. O último verso da primeira estrofe também permite uma interpretação direcionada para o contexto mítico. Segundo Eliade (1972), os mitos ―desvendam a sacralidade (ou simplesmente a ‗sobrenaturalidade‘) de suas [dos entes sobrenaturais] obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‗sobrenatural‘) no Mundo‖ (ELIADE, 1972, p. 11). Ora, essa mulher que sugere ―graça‖ e ―fascinação terrível‖, que tem poder para cancelar a própria noção de pertencimento do sujeito e para destruí-lo e erguê-lo, assemelha-se a um ser sobrenatural, só podendo se constituir, portanto, como uma aparição. Este modo de apresentar o feminino faz-nos ver exsurgir dos versos acima a imagem da Musa. Inclusive, é notável a semelhança de alguns versos deste poema em análise com outros de ―À Musa‖ – também relembrado na leitura do poema anterior, por possuir verso similar. Alguns versos de ―À Musa‖ podem ser equiparados aos de ―Não me pertenço‖. Por exemplo, ―e eu te esperei desde o princípio‖ se assemelha a ―Nem pergunto quem és, porque já te esperava. / Vens do fundo dos tempos como uma aparição mítica‖, sobre os quais já comentamos. Outros que dialogam entre si são: ―Só sei que és a paz ou o desespero dos poetas que te conheceram ou que te desconhecem‖ e ―Por que trazes em ti, na tua palavra e no teu silêncio,/ esse poder de destruir e o de me elevar tão alto?‖. Em ambos, o poder feminino atua sobre o poeta, despertando sentimentos contraditórios, no primeiro caso, e promovendo ações também adversas, de destruição e de elevação. Por essas similitudes, parece óbvio considerar que o ―tu‖ feminino de ―Não me pertenço‖ equivalha à Musa, estando o poeta totalmente entregue a esta aparição divina. Musa e mulher se mesclam, como mencionamos, por isso, isolar uma da outra talvez não seja a melhor maneira de ler a poesia emiliana. Considerar a acoplagem das duas nos versos de Moura é levar em conta os jogos imagéticos utilizados na elaboração de sua poesia idealista, que, tendo nos mitos referência para a composição da mulher idealizada, apresenta também um teor mítico. E estamos novamente diante de uma convivência paradoxal na obra emiliana, apontada no capítulo anterior, quando nos referimos à tensão mўthos-lógos. O poema ―Quantas vezes‖, permite-nos pensar um pouco mais a respeito da convivência paradoxal a que nos referimos: 103 Quantas vezes tenho pensado em ti como quem apela para um [milagre, como quem acredita que, de qualquer modo, há de recuperar, de [súbito, o tempo perdido? Quantas vezes tenho pensado em ti como quem volta à infância, ou como quem sai de um túnel. Como é que podes estar em mim e ser ao mesmo tempo [inatingível? Se eu te buscasse nas nuvens, será que te encontraria? Estás em mim e fora de mim. És mito e realidade, forma nítida e sombra esquiva. Só em sonhos é que já foste minha: só nos momentos de solidão absoluta é que realmente te encontro. (EM, p. 137) Pensamento, milagre, inatingibilidade, mito, sonhos. Moura se mantém fiel ao imaginário mítico-idealista utilizado na concepção de sua amada. Enquanto as palavras ―milagre‖ – por representar o que não pode ser explicado pelas leis da natureza – e ―mito‖ remetem ao aspecto mítico, o pensar e os ―sonhos‖ nos levam à idealização. O primeiro por denotar uma atividade inteligível, o segundo considerado não em sua relação com o sono, mas na acepção de desejo intenso, de fantasia, ou seja, algo que requer a intervenção do pensamento. Assim, somente na imaginação, em uma espécie de ficção poética, Moura realiza a posse de sua amada. Se ela é inatingível, mas possuída nos sonhos do poeta, tal impossibilidade de alcançá-la diz respeito apenas ao plano material. Neste sentido, esta sua característica tanto pode tender para o caráter mítico – pois os personagens dos mitos, por serem sobrenaturais, não podem ser alcançados pelos humanos – quanto para o idealista, que não considera a concretude das coisas. O fato de o poeta pensar na mulher, ―apelando‖ para um milagre, ou acreditar ―de qualquer modo‖ na possibilidade de recuperar o tempo perdido indica uma ansiedade grande por parte dele na busca do feminino. Moura sente dificuldade de apreender esta mulher, daí ele pensar nela remontando a seus tempos infantis. A criança vive de suas fantasias, a todo tempo cria seus poemas ao desenvolver sua imaginação. Emílio Moura dirá, em entrevista a Frederico Morais, que: ―até na criança a poesia é uma necessidade. Ela não pode viver sem poesia. Inventa objetos, cria seu próprio mundo, dá asas à sua imaginação‖ (Apud Morais, 1969, p. 5). Mencionando a infância, portanto, o poeta insinua esta facilidade imaginativa 104 da criança, quando as idealizações são indispensáveis. Se para ele alcançar a imagem da amada é um apelo milagroso, ao retornar à infância, torna-se mais acessível, porque natural. Outra construção que Moura utiliza para descrever o modo como pensa sua amada é referindo-se a uma possível saída de um túnel. Como via de comunicação entre dois lados luminosos, o túnel representa um instante de escuridão, de amarguras. Assim, pensar na amada como quem sai de um túnel é imaginá-la como sua redentora, como alguém capaz de lhe oferecer uma vida diferente daquela propiciada pelo subterrâneo. O túnel é, ainda, símbolo ―de angústia, de espera inquieta, de medo das dificuldades, de impaciência em satisfazer um desejo‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 915). Deste modo, o pensamento dirigido à mulher corresponderia à libertação dessas inquietações, sendo ela, reafirmamos, uma espécie de salvação para o eu da escrita. A ansiedade que apontamos nele vai ao encontro da impaciência indicada no Dicionário de símbolos, a respeito de satisfazer o desejo de encontrar sua musa inspiradora. Ao se indagar sobre a possibilidade de encontrá-la nas nuvens, o poeta manifesta a projeção que dela faz como um ser mal definido, assim como as nuvens. Ela é ―mito e realidade‖ ao mesmo tempo. Como personagem mítica, as referências ao milagre, às nuvens, à sua intangibilidade sustentam tal classificação; como realidade, entretanto, apesar de anunciá-la desta forma, não há nestes versos nenhum indício da concretude feminina, que permitiria tomá-la como real. Contudo, considerando as observações tecidas a respeito da mulher em Emílio Moura, podemos ler esta realidade levando em conta o real platônico. O filósofo entendia o mundo real como aquele das ideias perfeitas e eternas, sendo o mundo material apenas cópia deste outro. Assim, a realidade feminina, neste caso, coaduna com a realidade platônica, já que a mulher emiliana habita o pensamento do poeta. Concebendo esta leitura, distinguimos, ainda outra vez, a tensão mítico-idealista na obra de Emílio Moura. A referência à amada emiliana como mito e realidade é encontrada, também, no poema ―Noiva‖: Caminhas para mim como uma colegial em férias. Teu sorriso é tão puro que te ilumina toda. És mito, mas toco-te; realidade, te elevo e te transformo em sonho. 105 Por que não me revelas de onde surgiste e de que elementos te [formaste? Teus cabelos são nuvens? Tua voz é de orvalho? Quantas vezes me torturei inutilmente porque ainda estavas [irrevelada, – fonte oculta na mata, ária adormecida, estrela entre nuvens... Dormias, Noiva? Meu apelo te acorda e eis que sorris, de súbito. E é como se eu nascesse agora. (EM, p. 130) Desta vez, Moura sinaliza a materialidade feminina ao tratá-la como uma colegial, que caminha, que pode ser tocada. Entretanto, em um dos poucos momentos em que o poeta se refere a uma mulher concreta, ele a eleva, transformando-a em sonho. Assim, a consistência material dessa imagem é fugaz, pois logo o eu emiliano a desconcretiza: ela é mito, formada de elementos inconsistentes – de nuvem? de orvalho? – e oriunda de um lugar enigmático. Dissemos, na leitura empreendida no poema anterior, a respeito de uma ansiedade emiliana na tentativa de apreensão de sua amada. Agora, nestes versos, Moura menciona ter-se ―torturado‖, quando ela ainda não havia se revelado a ele. Este modo incômodo e violento de manifestar seu trabalho, contrastando com a beleza e a perfeição da idealização feminina, aponta para o tom angustioso que paira sobre grande parte dos poemas emilianos. Isto teremos oportunidade de abordar, neste capítulo, e explorar, ainda mais, no próximo. A Noiva, ao ser escrita com inicial maiúscula, adquire uma conotação especial, qual seja – seguindo a linha de raciocínio que estamos desenvolvendo – a de representar hipoteticamente todas as noivas, como um modelo, imagem eterna e imutável do plano eidético. Matos (1969), ao refletir sobre o feminino emiliano, refere-se ao poema aqui analisado e ressalta: Emílio Moura elege o tipo [de mulher] inefável, rejeita as formas para ele menos puras, não quer entrar no mérito da santidade do amor ou da absoluta necessidade de nivelar todo e qualquer sentimento amoroso. Para ele, a noiva é o símbolo do grandioso no amor (MATOS, 1969, p. 4). 106 Esta grandiosidade apontada imbrica com nossa leitura do idealismo emiliano. O autor indica, ainda, outro aspecto sobre o qual também temos mais o que dizer, qual seja, os símbolos na poesia de Moura. Segundo Matos, ―esta aparição [da Noiva com letra maiúscula] intencional do poeta é que coloca o símbolo como representativo de toda a sua temática – um valor que se absolutiza à medida que o poeta se confessa‖ (MATOS, 1969, p. 4). O artifício da inicial maiúscula foi comum nos poetas simbolistas, cuja estética, opondo-se ao realismo e ao naturalismo – que visavam, dentre outras coisas, à objetividade, inseridos que estavam no contexto cientificista e materialista da transição do século XIX ao XX –, privilegiava o caráter simbólico das palavras, explorando seus sentidos figurados. Ao grafar substantivos comuns com letra maiúscula, os simbolistas enfatizavam tais sentidos. A poesia de Emílio Moura é extremamente simbólica. Foge da materialidade imagética e da objetividade. A desconcretização trabalhada pelo poeta é uma maneira de realizar tal fuga, já que retira das imagens seu sentido legitimado. O poeta mais insinua do que refere. Imerge em seu próprio universo e vai construindo seu sonho poético. Na já citada entrevista que Moura concede a Morais, o poeta fala a respeito de sua posição em relação aos movimentos literários e das suas influências: Os modismos envelhecem depressa. Sempre fui prudente em aceitar o modernismo. Mas o aceitei em suas linhas gerais, mesmo na sua fase mais polêmica. Fui influenciado pelos simbolistas, reconheço, mas recebi também influências dos modernos, como Drummond. Fiz o possível, entretanto, para que elas não sufocassem minha possível personalidade (Apud MORAIS, 1969, p. 5). Em ―Noiva‖, não só a inicial maiúscula remete à influência simbolista na obra emiliana. Ecoa por detrás desses versos a voz de um dos expoentes do simbolismo brasileiro, o mineiro Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), cuja obra é fortemente marcada pela morte da noiva Constança. Moura, na mesma entrevista indicada acima, menciona um esboço de ensaio a respeito do simbolismo no Brasil e da análise da obra de Alphonsus de Guimaraens, abordando, neste, as seguintes questões: ―o poeta religioso, a influência das cidades mortas de Minas na sua poesia, o mito amoroso (a noiva morta), o pessimista e a sua linguagem poética‖ (Apud MORAIS, 1969, p. 4). Tópicos que, resumidos nas palavras religião, amor e 107 morte, condensam a temática lírica do ―Solitário de Mariana‖, conforme Alphonsus ficou conhecido. Ao investigar possíveis (des)semelhanças entre estes dois poetas, considerando as temáticas acima elencadas, constata-se que Emílio Moura não é poeta religioso, embora alguns de seus poemas apresentem nuanças místicas; mas exibe, também, um forte tom pessimista nos versos melancólicos: seja nos que tangem à falência dos mitos – que será abordada ainda neste capítulo –, ao incômodo do homem vivendo tempos modernos e sombrios ou a respeito da morte não transcendente – tópicos que serão analisados em outro momento. Entretanto, é em relação ao mito amoroso da mulher intocável, transcendente, que se constata, em Moura, influência significativa advinda da poesia de Alphonsus de Guimarães. O poema deste, também intitulado ―Noiva‖, é exemplar de tal fato: Noiva... minha talvez... pode bem ser que sejas. Não me disseste ao certo o dia em que voltavas. O céu é claro como o teto das igrejas; Vens de lá com certeza. (...) Há tanto tempo que te espero, e espero embalde... Não sabia que assim tão diferente vinhas. Tinhas negro o cabelo: entanto a nuvem jalde, Que o doura todo, o faz tão outro do que o tinhas! (...) Vejo-te a imagem tão destacada no fundo Deste meu sonho, que é como se eu não sonhasse... Cheio de nostalgia estelar de outro mundo, Tem as mágoas de um astro o palor de tua face. Caminhas, e os teus pés sublimes nem de leve Tocam a flor do solo: o ar impalpável pisas. Ora se abaixa, ou se ergue o teu corpo de neve... Parece que te vão berçando auras e brisas. (...) Quero abraçar-te e nada abraço... O que me assombra É que te vejo e não te encontro com os meus braços. Morta, beijei-te um dia: hoje tu és uma sombra Exilada do céu para seguir-me os passos. (GUIMARAENS, 1938, p. 63-65) A forma como esta noiva é poetizada reflete na caracterização do feminino de Moura já apresentado nestas páginas. O aspecto transcendente da amada de Alphonsus, vinda dos céus das igrejas, o fato de ele a esperar há tempos, de ela habitar seus sonhos e, portanto, ser inalcançável corporalmente, estão presentes também na amada emiliana. De semelhante, estes dois poemas intitulados ―Noiva‖ 108 possuem, também, a imagem da mulher caminhando. Se em Moura ela caminha ―como uma colegial‖, denotando, como foi dito, uma imagem concreta, logo ele a desmaterializa, transcendendo-a como uma personagem mítica. E faz dela uma mescla de mito e realidade. A noiva de Alphonsus também possui esta dupla caracterização, já que um dia pôde ser beijada e, portanto, tocada. Ela foi real para o poeta antes de habitar somente seus sonhos, antes de se transformar em imagem apenas. Outra influência perceptível em Moura, advinda do ―Solitário de Mariana‖, consiste na nomeação da mulher amada. Em Alphonsus, diferentes nomes são utilizados para identificá-la: ―Ismália‖ é um deles; ―Dona Celeste‖ e ―Ester‖ são outros exemplos, ambos remetendo ao aspecto transcendente da noiva morta. Em Emílio Moura, por sua vez, exsurge ―Eliana e seu reino‖: Entre o sonho e a aurora, forma-se a rosa, mito e milagre, aurora e sonho. Entre o sonho e a aurora, forma-se um reino, alto, invisível, teu reino, Eliana. Eliana, filha da aurora, Eliana, sílfide, asa de ânfora, Eliana. Quem descobriu Eliana? Aves, que emudecestes: Quem deu voz a Eliana? Brisa sobre a relva: Quem deu asa a Eliana? E vós, tardes de abril, manhãs de maio: Quem deu alma a Eliana? Eliana, corpo mágico: salta da terra, é fonte, voa da terra, é asa. Se Eliana é a forma que não morre, como atingi-la ou compreendê-la? Se transcende a si mesma, como invocá-la com palavras? 109 Aurora? Fonte? À medida que Eliana ascende, como a luz é mais luz e o tempo estático! (EM, p. 127-128) Eliana é metaforizada, inicialmente, como uma ―rosa‖, imagem que representa o amor puro, introduzindo, assim, a concepção imaculada da mulher emiliana nos versos em questão. O fato de ela e de seu reino terem sua formação realizando-se entre as imagens do ―sonho‖ e da ―aurora‖ indica o caráter ambíguo da construção do feminino em Moura a que vimos nos referindo. Isto porque o ―sonho‖, enquanto representação dos desejos, algo a que se aspira intensamente, conduz à idealização de Eliana. Já a ―aurora‖, símbolo de um constante recomeçar, sugerindo o (re)início das coisas, remete à sua caracterização mítica. Ainda, ela é ―milagre‖, o que indica sua expressão enigmática, inexplicável. A ambiguidade mencionada se reforça na localização e caracterização do reino: ―alto, invisível‖. A elevação, conforme já tivemos oportunidade de mencionar, possui seu sentido transcendente, ao indicar proximidade com o céu, símbolo quase universal de referência ao plano divino. Desta forma, o reino de Eliana apresenta similitude com tal plano, firmando, assim, sua caracterização mítica. Por outro lado, o fato de ele ser inapreensível pela visão demonstra seu teor idealista, escapando, pois, ao mundo sensível. A imagem da ―sílfide‖, a que Eliana é comparada, encorpa, ainda mais, a oscilação mítico-idealista na construção da mulher em Emílio Moura. Isto porque é uma imagem que denota: ―gênio feminino do ar na mitologia céltica e germânica da Idade Média; figura indistinta, vaporosa; mulher ideal ou idealizada, mais imaginária do que real, objeto de sonhos amorosos‖ (HOUAISS, 2001). Reparemos como esses sentidos corroboram nossas argumentações, pois a ―sílfide‖ tanto pode ser uma personagem mítica quanto idealizada. Também a metáfora de Eliana como ―asa de ânfora‖ complementa nossa leitura a respeito da caracterização feminina. Vimos, neste mesmo capítulo, que a asa, na concepção durandiana, é a imagem da verticalidade ascensional por excelência. Entretanto, a asa primeira que aparece nestes versos de ―Eliana e seu reino‖ não diz respeito à ação do voo, que proporciona a ascensão dos objetos e seres alados. Neste caso, a ―asa de ânfora‖ 110 metaforiza a perfeição ideal de Eliana. Ânfora é um vaso grego, possuidor de duas alças – ―asas‖ – que facilitam seu manejo. A simetria das asas contribui na construção de um objeto esteticamente belo, porque harmônico. Neste sentido é que lemos a idealização de Eliana relacionada a estas asas. Em interlocução com elementos da natureza – ―aves‖ e ―brisa‖ –, o eu emiliano da escrita interroga sobre a atribuição das características de Eliana, relacionando-as a estes interlocutores. Isto é, sobre Eliana ter voz, é às aves que emudeceram que ele se dirige, como se elas tivessem oferecido à amada de Moura a capacidade de falar. De modo semelhante, o poeta recorre à brisa para questionar sobre a asa atribuída à mulher. Afinal, o vento brando pode fazer com que as coisas se movimentem no ar. Às ―tardes de abril‖ e às ―manhãs de março‖, o poeta pergunta sobre quem deu alma a Eliana. Esta palavra – ―alma‖ – nos leva ao dualismo platônico que a separa do corpo, sendo ela a parte do homem pertencente ao mundo inteligível. Embora Moura faça referência também ao corpo de Eliana, trata-se de um corpo diferenciado, ressignificado ao receber a adjetivação ―mágico‖. Não consiste na corporeidade mundana, mas em um corpo que tanto é ―fonte‖ quanto ―asa‖. A representação da fonte, enquanto manancial de água pura, sugere tanto a vida, a imortalidade, quanto a juventude e o ensinamento (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 444). No caso de Moura, considerando-se a elaboração do feminino em seus versos, entendemos que a magia do corpo-fonte refere-se ao caráter eterno e, portanto, imortal, de Eliana. Esta interpretação é ratificada no verso: ―Se Eliana é a forma que não morre‖. Passagem esta significativa no que diz respeito à concepção platônica das ideias. A ―forma que não morre‖ é aquela que se encontra no mundo inteligível, onde a eternidade e a imutabilidade caracterizam os seres e as coisas; onde se encontram as formas modelares de tudo aquilo que se percebe no mundo sensível. Não podemos desconsiderar, ainda, a pureza própria da água da fonte, já que a mulher emiliana é, às vezes, poetizada como um ser imaculado, impossível de ser alcançado e corrompido. Quanto à atribuição de asa a Eliana, dissemos que, na terceira estrofe, a ―asa de ânfora‖ não se relaciona ao voo, mas à perfeição. Na sétima estrofe, entretanto, a ―asa‖ faz desta personagem um ser alado e, assim, capaz de se elevar da terra, atingindo planos supramateriais. Neste sentido, simboliza a direção ascensional referida por Durand (1997, p. 130). Como a retomar sempre seus 111 motivos poéticos, mantendo-se fiel à sua imagerie, Moura apresenta, mais uma vez, a imbricação mítico-idealista na composição de sua amada. A impossibilidade de atingir e compreender um ser de natureza tão peculiar é questionada pelo eu da escrita, o qual reconhece que nem as palavras dão conta de alcançar tamanha transcendência. A inefabilidade de Eliana anuncia o pensamento emiliano a respeito da carência de recursos da linguagem para dizer todas as coisas. Enquanto signo, a palavra indica a presença de uma ausência. Eliana – assim como todas as outras coisas – só pode ser poetizada porque se encontra in absentia. Seu nome preenche a lacuna de sua distância. Entretanto, por mais que o signo seja capaz de recuperar as perdas e desaparecimentos, ele não consegue engendrar matéria, apenas denuncia a ausência daquilo que representa. Esta precariedade própria da palavra é ainda mais significativa no caso específico de Eliana, um ser sublime que transcende a si mesmo. Como presentificar, com palavras, a ausência de um ser que está para além de si mesmo? Um ser cuja ascensão intensifica a claridade da luz e promove uma suspensão temporal? No artigo ―Itinerário poético‖ (1972), já apresentado no outro capítulo, Luís Gonzaga Vieira aborda esta questão da pobreza da linguagem e da consciência que Moura apresenta do assunto, pois ele ... conhece perfeitamente a distância entre o que as coisas são e o que as palavras dizem, e esta é uma das muitas razões de sua angústia. Como todo escritor, de uma forma ou de outra, ele navega na vaga arquitetura das palavras, constrói estradas abstratas, inventa cenários de papel, cerca-se de imagens esquivas. E quanto mais obsessivamente ele sente isso, mais coisas ele nos transmite a poder de abstrações e imagens (VIEIRA, 1972, p. 6). Também Laís Corrêa de Araújo, no texto ―Emílio e seu itinerário poético‖ (1969), menciona a lucidez emiliana a respeito da linguagem. Segundo ela, Moura ―sabe de antemão que o que lhe é dado como instrumento de ação é apenas a área restrita da palavra, confinada em suas limitações e nas suas infinitas possibilidades de equívoco‖ (ARAÚJO, 1969, p. 8). Vimos, no último poema, que Emílio Moura verseja essas limitações, questionando a respeito da capacidade de a linguagem alcançar o imponderável. Assim, ―diante desse indizível que a palavra não poderia alcançar, o poeta interroga, contorna, busca para poder chegar o mais perto possível dessa ‗indizibilidade‘‖ (VIEIRA, 1972, p. 6). 112 Nos versos de ―Bucólica‖, Moura retoma Eliana: Olha este azul, Eliana! Que importa o que não fui, se o que eu não sou te embala? (EM, p. 131) Empregado no feminino, o termo ―bucólica‖, que encabeça estes poucos versos, tanto pode significar um substantivo que diz respeito a um tipo de poesia –, qual seja, a poesia pastoral –, quanto adjetivar a amada emiliana, denotando sua singeleza e graciosidade. Falar de uma poesia bucólica em Emílio Moura é algo dissonante, já que ele se situa em um tempo distante daquele em que foi produzida a lírica árcade (segunda metade do século XVIII), cujos autores, refugiando-se poeticamente nos campos, pastores da palavra, exaltavam a vida campestre, a natureza, a existência simples, a mulher idealizada. Este era um artifício de que lançavam mão para se afastarem da vida conturbada que eclodia nas cidades, criticando-a. O arcadismo é um movimento que eclode em meio ao contexto histórico-social do surgimento das ideias iluministas e da ascensão da burguesia. É um período de espírito reformista, que se voltou para a valorização do homem e o saber racional, refletido no desenvolvimento tecnológico, industrial, social e científico. No Século das Luzes, a lírica é depurada de todas as emoções barrocas. O eu emiliano não se assume pastor nem busca a simplicidade da vida campestre. Talvez possamos, forçando uma analogia com os árcades, dizer que Moura também esteja inserido em um tempo extremamente racionalizado e progressista, isolando-se em um mundo poético muito próprio a fim de olhar criticamente para este mundo, que desperta, paradoxalmente, confiança e desilusão em relação ao progresso. MATOS (1969, p. 4) afirmará que, ―enquanto o mundo apodrece, [Emílio Moura] vai dando seu testemunho em forma própria‖, aludindo aos mitos, por exemplo, ou utilizando o artifício das idealizações. ARAÚJO (1969, p. 8), por sua vez, afirma que ―o mito não é, nela [na poesia de Moura], a negação da ciência ou apenas um dado verificado pela experimentação, mas a forma pela qual o homem consegue sobreviver à insuficiência da razão, numa ação de superação de si em função de sua finitude e contingência‖. Moura poetiza Eliana ora mítica, ora idealizada, perfeita e imutável. Vimos outros poemas em que a mulher se encontra em meio à natureza, recebendo 113 atributos que a aproximam de seres míticos, moradores de bosques. Nos versos de ―Bucólica‖, a utilização do ―azul‖ – provavelmente indicando o céu – para o qual o poeta chama a atenção de Eliana, é bastante significativa, fortalecendo a argumentação que estamos desenvolvendo a respeito da questão da transcendência e da desmaterialização em Emílio Moura. Afinal, insistimos em dizer que o céu é símbolo maior de referência à transcendência divina. Se Eliana, em outros versos, é personagem mítica, é musa, possui capacidade de ascensão, ela tem uma ligação com o plano celeste, portanto51. Ao estudar o imaginário, Gaston Bachelard (1990, p. 6-8), agrupa as imagens segundo os quatro elementos naturais: fogo, terra, água e ar. Ele faz o mesmo com os poetas, separando-os segundo a recorrência maior de determinado elemento na obra de cada um. Percebemos, na obra de Moura, uma constância de imagens que perpassam o plano do aéreo e outras relacionadas à água, como exemplifica a presença do mar e do náufrago em vários de seus versos. Porém, é o infinito do céu que predomina no poeta em análise nesta tese, pois há uma constância de elementos que se relacionam ao ar: asas, céu, brisa, nuvem, pássaros, estrela, além de orientações verticais ascendentes. Sobre a imagem do ―céu azul‖, Bachelard explica que ela pode ser significante para os quatro tipos de poetas. Entretanto, somente para os do último grupo, o azul celeste se apresentará como uma imagem aérea de fato. Isso porque, para os demais, ela pode sugerir diferentes materializações. Por outro lado, para o poeta do ar, o azul celeste se baseia ―numa dinâmica da desmaterialização. A imaginação substancial do ar só é verdadeiramente ativa numa dinâmica de desmaterialização‖ (BACHELARD, 1990, p. 165). Para o pensador francês, são raros os poetas que se lançam a esse trabalho de desmaterialização, já que as imaginações relacionadas à terra, ao fogo ou à água são muito mais costumeiras do que as relacionadas ao ar. Pelo que temos visto nas leituras de seus poemas, Emílio Moura é um desses raros poetas. 51 A caracterização de Eliana, relacionando-a ao céu, dialoga com a ―Dona Celeste‖ de Alphonsus de Guimaraens – embora sejam contextos diferentes de elaboração poética, já que o aspecto celestial da amada do ―solitário de Mariana‖ diz respeito ao fato de ela estar morta e, por isso, habitar o plano celestial. Vejamos um trecho do segundo soneto, dentre os dezessete que se reúnem sob o título: ―Pulchra ut luna‖: ―Celeste... É assim, divina, que te chamas. / Belo nome tu tens, Dona Celeste... / Que outro terias entre humanas damas, / Tu que, embora na terra, do céu vieste? // Celeste... E como tu és do céu não amas: / Forma imortal que o espírito reveste / De luz, não temes sol, não temes chamas, / Porque és sol, porque és luar, sendo celeste (...)‖ (GUIMARAENS, 1938, p. 63-65). 114 No poema ―Aspiração‖, ele continua a se referir a Eliana, mantendo sua caracterização idealizada: Eu queria que me pertencesses como a cor à luz, como a poesia ao poeta. Desligada de tudo: desligada de ti mesma, de teu passado em que eu não figurava e de [tua forma futura. Eliana! Eliana! Traze de novo o sorriso de tua meninice para que as manhãs [renasçam. Quero sentir que te reencontro, uma e única, fora do tempo e do espaço. (EM, p. 141) O desejo do eu emiliano da escrita, incutido no título do poema, é manifestado na vontade de que Eliana lhe pertencesse de modo natural, tal como as comparações apontadas – ―a cor à luz‖, ―a poesia ao poeta‖. Um pertencimento tanto incorporal quanto imemorial e imaterial – ―desligada de ti mesma, de teu passado em que eu não figurava e de tua forma futura‖. Desconstruindo a noção de tempo e de materialidade, Moura deseja Eliana purificada, menina cujo sorriso traz claridade à vida dele; deseja-a exemplar, ―uma e única‖. E ele sabe que, para encontrá-la desta forma, é preciso estar ―fora do tempo e do espaço‖. Esta atemporalidade e ―desespacialização‖ do feminino emiliano são referidos por Matos (1969), em comentário ao poema ―A Musa no espelho‖. Suas palavras são adequadas para o que estamos dizendo a respeito da idealização de Eliana: ... [o poeta] não encontra a amada nem no tempo nem no espaço. Fora do tempo e do espaço está o mundo ideal. E aí é que o poeta ergue sua morada, numa aderência às convicções platônicas, raiz da estética de Emílio Moura, patronas de sua nostalgia (MATOS, 1969, p. 4). Ressalte-se, por fim, como o poeta se encontra nostálgico nos versos de ―Aspiração‖. Ele menciona a meninice de Eliana, querendo-a como outrora, aspirando por um reencontro. Os versos seguintes, de ―Poema‖, apresentam uma diferença em relação ao último no que diz respeito à temporalidade e à localização. Vejamos: 115 Só agora é que me interrogo e me reconheço, nitidamente, sob teu [signo. Só agora é que te compreendo e te fixo no tempo, como se já [houvesses desaparecido. Mas eis que grito teu nome e em todas as coisas se verifica a [mesma compreensão mágica. Eliana! Eliana! Aqui nasce a tua fascinação, aqui te multiplicas. És a que salta da memória ou a que nos espera no futuro? Para onde vão os teus caminhos? De onde vêm eles? Por que não te fixas em meu coração como estrela solitária em céu [de maio? (EM, p. 132) ―Agora‖, palavra que indica o momento em que o eu da escrita se encontra e durante o qual reconhece o poder de Eliana sobre ele. Ao dizer estar sob o signo dela, o poeta admite sofrer a influência desta mulher. É também neste instante que ele consegue fixá-la no tempo e fala da possibilidade de que ela não mais existisse para que esta fixação fosse possível. Antes, o poeta anunciava a atemporalidade de Eliana, era fora do tempo que ele a encontrava. Agora, o tempo aparece definido, o que, contudo, não compromete a magia que o nome invocado de Eliana proporciona. Nestes versos, há, também, a sugestão de um lugar, de um espaço, no uso do advérbio ―aqui‖, embora não seja um local nomeado. A combinação deste ―aqui‖ com o ―agora‖ da primeira estrofe nos remete à expressão latina hic et nunc, que denota uma situação específica e única: o aqui e agora nunca se repete. É nesta unicidade de lugar e momento, em que acontece uma espécie de revelação de Eliana para Moura, que ele sente a fascinação e a multiplicidade dela. Apesar de dizer que a fixa no tempo, ele não sabe se se trata da Eliana do passado, existente apenas como lembrança, ou a do futuro, a esperar por ele. Na verdade, tanto uma quanto outra são produtos da imaginação emiliana. Ele mesmo a constrói enigmaticamente, sem saber de onde ela vem e para onde vai. Dirigindo-se de modo interrogativo a Eliana, Moura manifesta o desejo de que ela se fixe também em seu coração. Esta vontade nos incita a pensar que esta mulher esteja fixada apenas no pensamento, na imaginação do poeta, reforçando, assim, seu caráter inteligível. 116 3.2 O desaparecimento do mito A maioria dos poemas de Emílio Moura em que o feminino aparece se encontra no livro intitulado O espelho e a musa (1949), no qual há quase uma unidade temática sendo abordada: idealização e mitização52 do feminino. Em seu livro posterior, Desaparição do mito (1969), há um poema – com título homônimo – que demarca uma espécie de antes e depois na obra de Moura. A partir deste longo poema, podemos dizer que a imagem feminina – a Eliana, a Musa, este ser divinizado e idealizado que apresentamos – deixa de habitar seus versos, havendo realmente uma desaparição. Vejamos alguns trechos de tal poema: Súbita névoa chegara. Ruíra tudo. Era o pânico. Ninguém a reconheceu. Quem a trocou por essa outra? o espelho grita. Silêncio. Quem a trocou pela sombra que o nome traz que era dela? Sob o signo vive que é como se não vivesse? Reflexo no ar, palavra inscrita em vão na memória móvel e fluida do vento, em que nuvens, em que fugas se dissolveu para sempre? Nenhuma força a devolve, Nenhuma palavra mágica. (...)53 (DM, p. 150) O poema começa como a narrar o momento repentino em que o sombrio se instaura, fazendo com que as coisas se transmutem. Entre pânico e ruínas, o 52 Optamos pelo emprego deste neologismo, e de alguns cognatos, para evitar o sentido depreciativo que o nome advindo do verbo mitificar pode apresentar, qual seja, o de ―atribuir, de maneira exaustiva, atributos atraentes exagerados a (coisa ou pessoa), de modo a mascarar a realidade‖ (HOUAISS, 2001). 53 Quem, agora, há de encontrá-la / entre as mil formas obscuras / que ora, vivas, se iluminam, / ora se perdem, de súbito? / Esqueçam tudo o que existe, / alga, flor, pérola, nuvem, / a própria luz do horizonte. / Ninguém a verá no efêmero, / volúvel jogo de formas / tecidas por mãos de vento. / Procurai-a antes no canto / que busca, fluindo, a aurora; / no olhar que pega das coisas / e só lhes capta o sentido / que apenas têm quando nelas / e através delas sonhamos. / Procurai-a antes no âmago / do que não sendo, já é / a própria essência do sonho / que nossa insônia arquiteta. (DM, p. 150-151) 117 feminino que aparece neste trecho se mostra modificado. Embora o eu da escrita ainda não tenha versejado as novas características desta mulher que se esconde por detrás dos pronomes femininos que aparecem nos versos, o verbo ―trocar‖ e a total falta de reconhecimento que se dá em relação a ela indicam esta transformação. Assim, não há mais a Eliana idealizada e mitizada dos poemas de O espelho e a musa; inclusive, o espelho se assusta com este novo feminino que surge. A musa que ele refletia não é encontrada nesse novo ser. Se, antes, ela era presente entre estrelas e nuvens – imagens que, como dissemos, por sugerirem o plano celeste, podem simbolizar potência, pureza e transcendência –, agora, neste mesmo plano do aéreo, temos a sugestão de sua dissolução: ―reflexo no ar‖, ―inscrita ... na memória / móvel e fluida do vento‖, dissolvida entre ―nuvens‖. Embora o poeta utilize interrogações para dizer desta decomposição, a dúvida se dá apenas no que diz respeito ao modo como ela se perdeu para ele, porque a perda em si é constatada nos dois versos finais do trecho transcrito. Não há nenhuma força capaz de recuperar esta perda, nem mesmo a da ―palavra mágica‖ da linguagem poética. Houve momento de nossa análise, quando falamos sobre a semelhança entre o feminino emiliano e a Musa54 – entidade inspiradora dos poetas – em que lemos, na manifestação deste feminino, uma metáfora da prática poética. Recuperando tal leitura, pensamos que, ao perder Eliana, sua Musa, Moura tem a potência lírica das palavras comprometida, já que perdem seu caráter mágico. A desaparição do mito acaba por desestabilizar a poesia emiliana, que tomará outro rumo a partir de então. Dessa forma, na obra em estudo, o mito (mulher), constantemente referido nos poemas, equivale à poesia. Perdido um, o outro, inevitavelmente, será comprometido. Melancolia, escuridão, sensação de inutilidade, niilismo são sentimentos que frequentam o poetar emiliano de agora em diante, e cada vez mais intensamente. No trecho que segue, o poeta se interroga, retoricamente – conforme o faz, no mais das vezes –, a respeito da necessidade que tinha de idealizar a mulher amada, como se fosse algo necessário para a sobrevivência dele: Sua existência era fruto de minha sede de ser? Tão pobre me sinto, agora. 54 Cf. página 102. 118 Que alma pequena era a minha para tanta adoração. Que pensamento mais pobre para dizer o indizível. Meu mundo, porém, que mundo! Que fervor! Que alumbramento! Sufoquei com meu silêncio, com minha fala de gago tanto arroubo que ascendia até onde a colocara. Que dom secreto era o dela? Ninguém sabe. Eu não sabia. Ai de mim! Que o não sabia: (DM, p. 151) As formas pretéritas utilizadas por Moura – ―era‖, ―sufoquei‖, ―sabia‖ – apontam para a maneira como ele idealizava a mulher amada, cujo ―dom secreto‖ era capaz de dominá-lo a ponto de o poeta se entregar totalmente à adoração dela. Agora, lúcido, livre do jugo feminino, consciente de sua sujeição, o poeta manifesta uma espécie de vergonha em relação ao seu comportamento anterior – ―que alma pequena era a minha‖, ―ai de mim!‖. Embora esteja liberto, ele se põe a lembrar o modo como procurava decifrar o segredo de sua Musa: ―A fim de explicar-te invoco mistérios, mágicas, tudo o que, explicado, prossegue sem nenhuma explicação. Palavra! grito: palavra, matéria mágica, diga! É ela espírito? Nuvem? Estrela do mar? Sentido do sonho que só foi sonho porque nunca foi trocado por seu avesso? Mistério de sentimento calado que se revela, explodindo, ou que nunca se revela? Estrela! grito: o que é ela? Oculta chama? Segredo? Vésper? Rútila corola? Voz que vibra, fogo e bálsamo, na solidão do caminho? Estrela! grito. E meu grito de estrela a estrela rolando lá vai no vento fugindo. Vento frio, áspero vento! Que sabes, vento, murmuro, de sortilégio tamanho? 119 Cala-se o vento. Quem rasga, fundo, fundo, tal mistério, feito de nada e de tudo, de tudo o que és e não és?‖ (DM, p. 151-152) As aspas que limitam este trecho do poema, rubricando uma diferença em relação ao restante, e os verbos no tempo presente – vimos que, no início do poema, Moura se refere à mulher amada de forma passada – é que nos levam a ler estes versos como uma lembrança do modo como o poeta buscava entendê-la. Invocando, mesmo que em vão, o mistério e a magia, a fim de explicá-la, o eu da escrita alude ao caráter diferenciado deste ser que não é apreendido de modo racional, precisando de artifícios que extrapolem a capacidade inteligível do homem. Ele recorre, também, à palavra, suplicando para que ela defina este feminino enigmático. Novamente, o poeta tange à questão da insuficiência da linguagem, que não dá conta de significar todas as coisas. As várias interrogações que Moura faz, buscando uma palavra que consiga alcançar o significado que ele almeja, demonstram a precariedade das palavras. A mulher idealizada é ―espírito?‖, ―nuvem?‖, ―estrela do mar?‖, ―sentido do sonho?‖, ―mistério de sentimento calado?‖ E mesmo ao mudar de interlocutor, dirigindo-se, então, a uma estrela, ele continua as indagações: ―oculta chama?‖, ―segredo?‖, ―Vésper?‖, ―rútila corola?‖, ―voz que vibra, fogo e bálsamo?‖. A variedade de possibilidades e a insistência na tentativa de apreensão de um nome abrangente do sentido que a amada possui para o poeta mostram que todas estas palavras e expressões são insuficientes para defini-la. E como definir um ser que é ―feito de nada e de tudo, / de tudo o que és e não és‖? Tocando nessa questão da insuficiência da palavra para definir a mulher, Moura acaba por abordar, metaforicamente, o enigma da poesia, conforme apresentado no capítulo anterior. Se mulher e poesia se equivalem, na obra analisada, o que temos é, pois, uma indagação sobre o processo poético e todos os mistérios e indefinições que o cercam. O poeta segue cantando a debilidade da palavra, acrescentando a ela, agora, um dos artifícios da operação lírica: Tímida voz sufocada, o canto jamais ouvido guarda a essência do que foste. Como erguê-lo, ou sussurrá-lo, 120 jogando só com palavras e uns pobres, escassos ritmos? Melhor fora não tentá-lo. Não o tentei. (...) (DM, p. 152) Diante da insuficiência da capacidade da linguagem para nomear determinados sentidos, a essência da mulher emiliana se encontra no que não foi dito, no que ficou sufocado. Não é possível cantar a verdade do feminino emiliano ―... só com palavras / e uns pobres, escassos ritmos‖. À precária magia das palavras, indicada anteriormente, o poeta soma os reduzidos artifícios dos ritmos poéticos. Neste caso, portanto, a poesia de Moura tem seu aspecto mítico- ideológico alterado, já que é visto como algo deficiente, incapaz de abarcar o que o poeta deseja manifestar. Por alguns versos, o eu da escrita relembra o modo idealizado e mítico como sua musa se manifestava para ele, renovando, pois, tais caracterizações: (...) Eras múltipla, de essência múltipla: estrela brilhando no alto, carícia de vento que vem de longe, sussurro na alma, o inefável, o próprio dom do inefável, sortilégio, forma última, bálsamo, chama, segredo, pairando acima de tudo, transformando-se em magia. Nascendo, de onde? Quem sabe? De que mundos impossíveis, de que nuvens, de que lendas, de que remotas lembranças, de que formas fugitivas, de que mágicas reservas que o sonho guarda dos sonhos que ninguém mais sonhará? Não o tentei. Era inútil. Teu modo de ser, intacto, ficara, em mim, lume e símbolo, fixou-se, vivo, no tempo. Além, acima de tudo, a luz fúlgida: existias! Que importa o que tu serias? Houve um momento em que, rosa, foste viva, a única rosa. (DM, p. 152-153) 121 O caráter múltiplo, excelso, transcendente, suave, enigmático, inefável, mágico, enfim, idealizado, deste mito feminino é ressaltado nos versos acima para que o poeta, logo em seguida, indique que, no presente, objetivando apreendê-la novamente deste modo, é preciso que ele se abstraia de si mesmo: Arrancar-me de mim mesmo, pairar acima de tudo. Os olhos não veem; as mãos já nada sentem. Silêncio! Formas neutras me transportam a um mundo isento de sombra, de fel, de lágrimas. Pairo acima, acima de tudo. Um ar de infância em meus olhos (por ele nos entendemos) apaga a sombra do mundo. O que em meu peito doía, não mais dói, não tem sentido. Com frágeis teias de nada de repente se ilumina a nova face de tudo. Fecho os olhos e contemplo-a. Agora, está como a via, fonte, aurora, ânfora, estrela, caminho, pouso, destino. Agora, está como a via, reintegrada em si mesma, formando uma rosa única, ela e a imagem que nascera para fixá-la no tempo. Venceu a morte, a memória, transcendeu-se, é, novamente, a Rosa. Moura, como em uma espécie de transe ou de regressão, vai perdendo os sentidos – sua visão, tato e audição deixam de funcionar –, até conseguir visualizar ou alcançar a mulher amada do modo como ela se manifestava para ele. Nesta imersão que realiza, o poeta se afasta do mundo de ―sombras‖, ―fel‖ e ―lágrimas‖, ascendendo a um estado transcendente: ―pairo / acima, acima de tudo‖. Ao dizer que a capta reintegrada neste mundo superior – ―é, novamente, / a Rosa‖ –, Moura aventa, indiretamente, a destruição dela no mundo sofrido de que ele procura se afastar. Na transcendência, ela sobrevive. Porém, sua desaparição é imediata quando o poeta retorna ao mundo sensível: Abrem-se os olhos e – nada! 122 Nem sombra ficou. Nem eco. Foi, entretanto, tão rútila, apareceu, puro símbolo, brilhou tanto. Com que força! Quando, ah, quando acontecera? Há um segundo? Há mil anos? A doce luz de tão alta já nada mais ilumina. Fria, fria. Que luz fria! Sua voz (era tão cálida) como foi que a estrangularam? E o corpo que vi florindo Como uma rosa? Era ela, ou era a sombra, era a pétala de outra flor que ainda não vi? (DM, p. 153-154) Assim que um dos sentidos humanos, qual seja, a visão, é acionado pelo poeta, há uma total dissolução da percepção transcendente a que ele teve acesso em seu estado de alheamento: ―nada!‖, ―nem sombra‖, ―nem eco‖. Moura refere-se a este ser feminino como sendo apenas uma imagem, ―puro símbolo‖, isto é, mero fruto de uma idealização que, depois de decifrada, faz com que o imaginado se esvaia por completo. Isto constatado, o poeta se volta para as lembranças da resplandecência com que a amada se mostrava para ele, de como a voz dela era ardente e o corpo floria. Tais lembranças não permitem que o eu da escrita delimite o espaço temporal em que esta última visão se deu: ―Há um segundo? Há mil anos?‖ O que se tem como certo é a adulteração a que sua inspiradora foi submetida. Que aurora vinha nascendo por detrás de seu sorriso! Tinha raízes no tempo, perdia-se em bruma, sonho, projetava-se no espaço, transformava-se numa asa, chegava a ser mitológica. Seria eterna? Seria o alado mito da Rosa? Desabrochava em segredo, sob o vento e o orvalho límpido? Que sabe, tão cego, o espírito da luz que apaga os limites entre o que existe e o que emerge do que em nós mais se ilumina, vão e ignoto itinerário, mais sonhado que vivido? 123 Que sabe o espírito dessa virtude real das coisas que se completam no plano da irrealidade mais pura? (DM, p. 154) Nos versos acima, ainda em meio a lembranças, Emílio Moura faz uma espécie de condensação do modo como o feminino foi operado por ele até o momento de elaboração deste poema. O poeta chega a dizer da caracterização mitológica que atribuiu à amada, assim como à concepção idealista, que tem na eternidade um de seus atributos. Ao questionar o (des)conhecimento do espírito a respeito dos limites entre o existente e o imaginado, Moura alude à insuficiência do pensamento humano55 para alcançar a totalidade de sentidos. Já que a razão não sabe os limites entre o que é ―mais sonhado que vivido‖ ou o que torna possível a completude das coisas ―no plano / da irrealidade mais pura‖. A afirmação, por parte do poeta, desta precariedade do pensamento talvez explique a presença do caráter mítico em sua poesia, já que este diz respeito a questões que estão acima da razão, solicitando, às vezes, a necessidade de uma crença. Ao falar de plano irreal, do que é sonhado, vemos o poeta aludindo à concepção platônica do mundo inteligível. Entretanto, nesta alusão, Moura apresenta-se de modo adverso a Platão ao se referir ao ―plano da irrealidade mais pura‖. Isto porque, para o filósofo, é pela inteligência que o homem consegue alcançar o plano da pureza e da perfeição, aquele das ideias, o qual corresponde ao mundo real. Mesmo assim, entendemos que Moura, ao mencionar o ―plano da irrealidade mais pura‖, esteja sugestionando este plano inteligível. A ―virtude real das coisas‖, que se alcança, segundo os versos, no plano da irrealidade, corrobora nossa leitura. Tomando a palavra ―virtude‖ como valor, e ―real‖ como verdadeiro, entendemos que a expressão destacada corresponde ao idealismo platônico que atribui ao plano das ideias a verdade de todas as coisas. O poema caminha para o fim apresentando o resultado da desaparição do mito para o poeta: A luz que vem de tão alto 55 Assim entendido, pelo fato de o vocábulo ―espírito‖ possuir, dentre seus sentidos dicionarizados, carga semântica referente à inteligência do homem: ―substância imaterial, incorpórea, inteligente, consciente de si, onde se situam os processos psíquicos, a vontade, os princípios morais‖; ―mente, pensamento, cabeça‖; ―inteligência ou pessoa inteligente‖; ―pensamento em geral, princípio pensante, sujeito da representação, por oposição a seu objeto‖ (HOUAISS, 2001). 124 já nada mais ilumina. Abril sumiu de meus olhos, o mundo ficou tão pobre, anoiteceu tão de súbito. O mundo é noite. Só noite. O mundo se fecha em noite, ampla, total. E tão árida. Agarro-me à treva, luto. Os olhos não podem ver A vida insiste em fluir. Para quê? Com que sentido? (DM, p.154-155) Baixa a noite nos versos emilianos de ―Desaparição do Mito‖. O que o poeta manifesta no trecho acima se opõe ao que era costumeiramente apresentado por ele nos poemas anteriores. As imagens e caracterizações a que estávamos acostumados – manhã, claridade, leveza, transcendência – são substituídas por ―anoiteceu‖, ―noite‖, ―treva‖, ―luto‖. As coisas perderam sentido para o poeta. O que vem do alto não tem mais a significação costumeira, já que não mais ilumina. A mulher, enquanto ser oriundo de idealização e mitização, despertava o poeta para um mundo alegre, belo, leve. Depois que tal caracterização feminina desaparece para o eu da escrita, o mundo adquire uma conotação oposta. A vida deixa inclusive de ter sentido. E não só a vida do poeta tem seu significado comprometido, mas também sua poesia sofre um esvaziamento a partir da desaparição da Musa. Os versos finais do poema encorpam tal ideia: Tantas perguntas nascendo e a poesia agonizando Que ela não vive. Está quieta. Muda, quieta. Ah, sombra trêmula de um gesto que não se esboça! Sorriso tímido, tímido, que as linhas hirtas do rosto repelem para a abstrata ideia vã de outra máscara. Muda, quieta. Já não vive? Ou foi apenas o espelho que se velou, de repente? Ninguém sabe, ou saberá. (DM, p. 155) 125 O poeta faz referência às dúvidas que o acometem a respeito da constituição anterior da amada e do desaparecimento dela. A falta de respostas para essas indagações leva sua poesia à agonia, como se ela não mais se manifestasse para ele. A poesia está ―muda‖, ―quieta‖, ―não vive‖. Recuperando a leitura que fizemos a respeito de a mulher dos poemas emilianos equivaler, às vezes, à poesia, e adaptando tal leitura aos versos de ―Desaparição do Mito‖, entendemos que a desintegração da primeira leva, necessariamente, ao comprometimento da segunda, que se torna a ―sombra trêmula de um gesto que não se esboça‖ ou um ―riso tímido‖, trocado pela ―ideia vã de outra máscara‖. O riso, a alegria e a leveza que caracterizavam a poesia antes da desaparição referida são substituídos pela máscara da dúvida, da agonia. O poeta pressente a morte da poesia, quieta e silenciosa. Questiona a possibilidade desta morte ou de o espelho, aquele apresentado em O espelho e a musa, estar velado, sem poder refletir a beleza e a claridade deste feminino – mulher amada e Musa, inspiração do amor e da poesia. Após a dissolução do mito, a poesia emiliana tem as imagens sombrias intensificadas. Já havia, antes do poema anteriormente analisado, versos que poetizavam um estado melancólico, representado por imagens que remetem ao sombrio, que sugerem angústia. Entretanto, nos livros posteriores à Desaparição do Mito, o sombrio tomba pesadamente sobre os versos emilianos. O capítulo seguinte priorizará os poemas destes livros, quais sejam, Habitante da tarde e Noite maior. Assim, neste capítulo, apresentaremos, ainda, alguns poemas que demonstram a instauração do melancólico na obra emiliana. Em ―Agora é tarde‖, poema imediatamente posterior a ―Desaparição do Mito‖, a sensação de que algo foi perdido e que não é possível recuperá-lo: De tudo o que não fomos fica a essência de algo que ascende à luz em que te perdes. O dom que em mim renasce e em mim transforma a dor em canto, o puro amor em mito. Agora é tarde. Entrego-me à perdida face de tudo. Nela é que existimos: nervos, sangue, fervor, deslumbramento, teu florir, tua máscara, teu vulto. Fúlgida noite cai num ritmo lento. Que ignota voz, que voz vive a chamar? Linha que se desfaz em água e vento, Murmura fonte, a vida morre no ar. 126 (DM, p. 156) Um dos artifícios líricos de Moura é aludir ao que não aconteceu ou ao que não existiu – ―de tudo o que não fomos‖ –, como se, somente naquilo que não se concretizou, fosse possível alcançar as perfeições idealizadas pelo poeta. E talvez esteja exatamente neste campo das idealizações a chave para entender as não realizações a que o poeta se refere56, pois o que se dá no mundo sensível não alcança jamais a perfeição do que se projeta no plano inteligível. Por isso, para o poeta, o ―que não fomos‖ é a ―essência de algo‖ sobrevivendo, ou melhor, permanece somente o idealizado e não o concretizado. Este ―algo‖ referido no poema deixa de ser indefinido quando o poeta fala do ―dom‖ que nele se renova, permitindo-lhe cantar suas dores e mitizar seu amor. Ao atribuir um dom a si mesmo, Moura confere ao poeta – ou, particularmente, à sua função de poeta –, um caráter especial. Somente por possuir este atributo é que ele exerce seu cantar. Todavia, as idealizações desenvolvidas pelo eu emiliano nos poemas apresentados até ―Desaparição do Mito‖ sofrem um abalo que resultará em seu esfacelamento. A expressão ―agora é tarde‖, iniciando a segunda estrofe, alude a este abalo, mas é ainda no que foi perdido que o poeta procura amparo – ―entrego- me à perdida / face de tudo‖ – porque é nela que ele reconhece sua existência e a de sua amada, daí a primeira pessoa do plural: ―existimos‖. A Musa emiliana se encontra subentendida nos pronomes oblíquos e possessivos da segunda pessoa: ―te perdes‖, ―teu florir, tua máscara, teu vulto‖. Como em grande número de poemas o ser a que o eu da escrita se dirige consiste na mulher amada, admitimos que também nestes versos em questão Moura esteja se dirigindo a ela. Até mesmo porque se trata de um livro que aborda, especialmente, a desaparição dela para ele. Este acontecimento promoverá a noite anunciada no último conjunto de versos acima transcritos. Neste poema, ainda recente em relação ao anúncio do fim do mito em sua obra, a noite se apresenta de modo luzente. Entretanto, este brilho não seguirá reluzindo na noite emiliana. Pelo contrário, a obscuridade própria deste período será explorada na imagem que se tornará frequente em seus poemas, a 56 Alguns exemplos desse tipo de construção: ―O que me espanta na vida, / a que nunca foi vivida, / não é sabê-la perdida. // É ver que tudo vem dela, / vive nela‖ (Canc, p. 94); ―Que nos ficou de tudo / o que não fomos?‖ (IE, p. 205); ―o que não houve é tudo o que perdura‖ (HT, p. 226); ―O que me espanta na vida, / a que nunca foi vivida, / não é sabê-la perdida. // É ver que tudo vem dela, / vive nela‖ (Canc, p. 94). 127 ponto de nomear o último livro do poeta – Noite maior (1969). Embora ―fúlgida‖, a noite de ―Agora é tarde‖ propicia imagens e metáforas que denotam a angústia que Moura começa a manifestar: há uma voz desconhecida soando insistentemente na noite, uma ―linha que se desfaz em água e vento‖, uma fonte que murmura e a vida que se extingue no ar. O poema que segue, ―À luz da tarde‖, é significativo para demonstrar como o clima angustioso se fixa na obra de Moura a partir da desintegração do mito feminino: E, agora, à luz da tarde, o repentino frio medo de amar. Fundem-se os tempos; calam-se as vozes; o que foi vivido chama e gelo se faz, êxtase e pânico. Faz frio. Em nós, apenas? No ar? Nos astros? No que vive de nós fora de nós? Ou esse frio é o frio que há nas sombras em que o olhar se debruça e não vê nada? Em vão pego de tudo o que não tenho, do que sou, por não ser, fruto de ausências, e armo-te no ar a imagem fugitiva. Em vão. Surges e pálida, te esfumas. Quem és tu que te esvais, trêmula, trêmula, diante do amor que neste amor te inventa? (DM, p. 157) O ―agora‖ utilizado no início do poema, indicando o tempo presente, aponta para o momento em que o feminino, fonte de inspiração do poeta, já não faz mais parte do poetar emiliano. Tal ausência propicia o surgimento de um mal-estar manifestado nos versos pelo uso de palavras cuja semântica aponta para sentidos negativos, como ―medo‖, ―frio‖, ―calam-se‖, ―pânico‖. Ao funcionar como adjunto adnominal de ―luz‖, a expressão ―da tarde‖ caracteriza o substantivo, atribuindo-lhe os aspectos sombrios próprios deste período próximo do anoitecer, impossibilitando que a claridade peculiar à luz sobressaia nos versos. Se o ―agora‖ faz referência a este momento vespertino, dando espaço para que as sombras se instaurem, o momento anterior diria respeito ao tempo em que a luz ainda não era a da tarde, quando predominava a claridade nos versos emilianos. Momento em que o feminino era presente e iluminava a poesia de Moura. No presente do poema, surge, subitamente, um medo relacionado à ação de amar. Medo este reforçado pelo adjetivo ―frio‖, que, denotando a ausência de 128 calor e, portanto, de vivacidade e ardor, confere ao medo um sentido ainda mais intenso. Neste momento contemplado pelos versos, em que a noção de tempo é comprometida, a representação do que foi vivido se dá de modo paradoxal: ―chama e gelo... êxtase e pânico‖. Ao serem fundidos os tempos – passado e presente – misturam-se esses sentidos, que se mostram lado a lado: os positivos, ―chama‖ e ―êxtase‖, remetendo ao ardor do amor emiliano em tempos passados, e os negativos, ―gelo‖ e ―pânico‖, manifestando o que este amor representa no presente para o eu da escrita. Embora haja referência ao lado ardente do amor passado, é o frio do presente que predomina nos versos de ―À luz da tarde‖. O poeta, entretanto, não sabe se esta frieza consiste em um frio externo – presente ―no ar? Nos astros?‖ – ou se se manifesta apenas nele e em sua Musa desaparecida – ―em nós, apenas?‖. Ao se interrogar, ainda, sobre a possibilidade de ser um frio próprio das sombras, Moura sugere que seja uma sensação oriunda do mal-estar que se firma a partir da tarde que se firma com o desaparecimento do mito. O eu da escrita subentende um sentimento de incômodo por não conseguir enxergar nada neste novo contexto em que se encontra. Novamente, ele lança mão do artifício de dizer o que não é e o que não tem – ―de tudo o que não tenho, / do que sou, por não ser, fruto de ausências‖ –, para, desse universo de ausências e negativas, fazer surgir a imagem de sua amada. Todavia, ela não resulta mais do que em uma imagem passageira, que não se fixa, esvaindo-se tremulamente. A invenção do amor, por parte do eu emiliano, não surte o mesmo efeito de antes do desaparecimento do mito, quando, mesmo sendo intensamente idealizada, a Musa era onipresente e às vezes onipotente nos versos de Moura. Ayres da Mata Machado Filho, analisando a presença quase absoluta da mulher amada no livro emiliano O espelho e a musa, intitula um artigo, publicado no Suplemento Literário, de ―Poesia da amada onipresente‖ (1969, p. 10, grifo nosso). Constatamos que, agora, a amada de Moura passa a se tornar distante, inalcançável, até chegar à sua total ausência nos livros finais, publicados em 1969, que apresentam uma temática mais pesada – falando de sombras, morte, melancolia. A poesia (mulher) perde todo o encanto que apresentava, tornando-se sobrecarregada de escuridão. 129 O esfumaçamento que contribui para a desintegração do feminino nos versos acima apresentados é reforçado, em ―Exílio‖, pela presença da bruma e da noite. Já nada vejo nessa bruma que ora te esconde. Quero encontrar-te, mas a noite não me traz nenhuma esperança de onde nem quando. Amor, ah, quanto me deves! Que é dos pés que, leves, leves, roçaram por este chão? Alma, és só tempo e solidão. (DM, p. 159) A interlocutora do eu da escrita se encontra, neste caso, encoberta por uma bruma que impossibilita que ele consiga alcançá-la. Impossibilidade esta reforçada pela presença da noite. Como temos dito, o feminino (Musa, amada) começa a se mostrar inacessível ao poeta, mesmo em suas idealizações. Nos versos acima, o tom cinzento advindo da bruma e a escuridão própria da noite apontam para o aspecto sombroso que passa a fazer parte, com maior frequência, da lírica emiliana. Se o mito desapareceu, buscar por ele é tarefa vã; e o poeta reconhece isso nos dois versos finais da primeira estrofe: não há esperança do encontro entre ele e sua musa. Isolado, distante daquela que ama, o eu da escrita se encontra em um estado de solidão que o leva a se sentir em um exílio, conforme indica o título do poema. Se outros pés – os da Musa, provavelmente, já que é ao amor que o poeta se volta em interrogação – ―roçaram‖ o mesmo chão que o dele, eles já não mais o fazem. É o desencontro entre ela e Moura se firmando, dando espaço para a solidão. Nos poemas que se seguem aos versos de ―Desaparição do Mito‖, ou há, ainda, referência a este feminino, mesmo que inalcançável, ou a referência se torna indireta, com o poeta falando do amor, o que, até então, ele ainda não havia feito. Porém, trata-se de um feminino inatingível, como indicam os versos deste ―Exílio‖, ou de um amor perdido, como veremos no soneto ―Que pode amor?‖: Que pode amor, que pode, se de tudo guarda apenas a glória de haver sido 130 um minuto, que mais? e, agora, mudo, nem se doura do que era e do perdido? Que pode, ávido, o amor, que pode, se hoje, vaga, a vida não é, nem flui, vivida, mas apenas pensada? E como foge entre o real e a fábula, perdida! Amor, amor! Em que árias escutá-lo? Em que restos de coros, em que embalo de um cantar esquecido? Em que lamento, se a alma nem sabe em que desvão dormido se fez nua, no tempo, e sem sentido, pois que tudo é distância e esquecimento? (DM, p. 160) Interessante o fato de o amor não ter sido cantado, assim, diretamente, nos versos de Moura até então, começando a aparecer apenas no poema registrado anteriormente. Foi preciso que o feminino sofresse o abalo que sofreu para que o poeta se questionasse sobre o amor: ―Que pode amor?‖ Não pode muito nas atuais circunstâncias vividas pelo eu da escrita, a não ser se lembrar de que no passado ele foi possível, mesmo que com duração reduzida. Hoje é um amor calado, mudo. Este mutismo, já anunciado em versos de outros poemas e presente nos que ainda apresentaremos a seguir apresenta uma simbólica negativa, significando: ―impedimento à revelação‖, obstrução de passagem. Ele oculta ―os grandes acontecimentos‖, ―deprecia e degrada‖ as coisas, aponta para a ausência de Deus57 (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 834). Esses sentidos reforçam a leitura desenvolvida da angústia e do incômodo que se tornam presentes nos versos de Emílio Moura. A degradação do mito, no que este possui de sentido voltado para o aspecto transcendente, relação com os seres sobrenaturais, divindades, condiz com a ausência do divino e o impedimento a revelações atribuído ao mutismo. Sem a Musa para inspirá-lo, revelar-lhe as coisas, o poeta experimenta a mudez do amor. 57 Cf. verbete silêncio: ―O silêncio e o mutismo têm uma significação muito diferente. O silêncio é um prelúdio de abertura à revelação, o mutismo, o impedimento à revelação, seja pela recusa de recebê- la ou de transmiti-la, seja por castigo de tê-la misturado à confusão dos gestos e das paixões. O silêncio abre uma passagem, o mutismo a obstrui. Segundo as tradições, houve um silêncio antes da criação; haverá um silêncio no final dos tempos. O silêncio envolve os grandes acontecimentos, o mutismo os oculta. Um dá às coisas grandeza e majestade; o outro as deprecia e degrada. Um marca um progresso; o outro, uma regressão. O silêncio, dizem as regras monásticas, é uma grande cerimônia. Deus chega à alma que faz reinar em si o silêncio, torna mudo aquele que se dissipa em tagarelice e não penetra naquele que se fecha e bloqueia no mutismo (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 833-834). 131 E, diante desta situação, a sensação de que a vida não tem sentido – ―a vida não é‖ –, de que ela não prossegue – ―nem flui‖. Ela não passa de algo apenas pensado. Outra vez, a sugestão do que é apenas idealizado: o que o poeta experimenta no mundo sensível – a vida ―vivida‖ – não se parece com a vida pensada. Referimo-nos ao mundo sensível e ao inteligível enquanto o poeta menciona o ―real58‖ e a ―fábula‖, o primeiro dizendo respeito ao que é vivido e o segundo ao que é imaginado. A vida, entre um e outro plano, acaba se perdendo. Moura demonstra, em alguns momentos, como neste – e também no poema anterior, quando funde os tempos e mescla as sensações ocorridas no passado e no presente –, uma disposição paradoxal, como se ainda oscilasse entre o locus amoenus da idade mítica da Musa onipresente e o espaço sombroso da segunda metade do século XX, daí as constantes lembranças do que foi e já não é, do que houve e já não há. O lamento do amor perdido continua nos tercetos do poema. As expressões ―restos de coro‖, ―cantar esquecido‖ e ―lamento‖ demonstram a corrupção do amor para o poeta, que sequer consegue ouvi-lo. E a nudez de sua alma aponta para um despojamento que compromete o próprio sentido dela, pois a alma não ouve mais nem mesmo um lamento sobre o amor. O fato de o eu da escrita afirmar esta nudez remeteu-nos à consciência da nudez de Adão e Eva após o pecado original. Somente depois que cometem o pecado é que têm esta consciência e se envergonham, procurando tampar-se. E Deus, de certo modo, os ―abandona‖, expulsando-os do Paraíso (Gênesis, 3). Podemos pensar em uma aproximação com este contexto bíblico se considerarmos que a nudez da alma do poeta se manifestou após a Musa ―abandoná-lo‖, ou seja, depois que Moura não está mais sob a onipresença e onipotência de seu mito poético, de sua divindade. O incômodo do poeta em relação às modificações advindas do esfacelamento do feminino e as suas consequências podem ser depreendidas dos versos de ―Soneto‖: 58 Em outra oportunidade (às páginas 123-124), dissemos que a noção de real e, por conseguinte, de irreal, em Moura, às vezes, não condiz com o real platônico, já que, para o filósofo, o real pertence ao mundo das ideias, sendo o mundo sensível apenas uma cópia deste outro. Em Emílio Moura, o real pode dizer respeito ao mundo concreto, das coisas vividas e não das imaginadas. Entretanto, não deixamos de ver no poeta uma semelhança com Platão, porque, assim como este, aquele faz uma diferenciação de planos, destacando com certa frequência aquilo que é apenas imaginado, pensado, habitante de seus sonhos. 132 O que dói em tudo isso não é tanto a rosa não ser rosa, e a estrela, estrela: não é que haja no riso algo de pranto, e amar a vida à força de perdê-la. Amor – engano de um que se procura, no que, ávido e cego, já criara, Nem é isso o que dói. Força tão pura, amor se inventa, inventa é já não para. Não para. Inventa e, múltiplo, se inventa, tanto o amado se mira e se imagina no que é ledo inventar que se acalenta. O que dói é a certeza de que tudo mais se banha em beleza, se termina, e, ao ter algo a dizer-nos, fica mudo. (DM, p. 164) Este poema principia aludindo à mudança de sentido ocorrida para o poeta no que diz respeito ao mito desaparecido. A ―rosa‖, imagem marcante de sua poesia, já não é mais rosa. Símbolo do amor (cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 789) e da poesia emiliana, sua carga semântica é comprometida nesta nova fase da operação lírica de Moura. Também a ―estrela‖, às vezes metáfora do feminino emiliano, atribuindo-lhe valor sublime, tem seu sentido esvaziado. Não há mais brilho, nem qualquer ligação com o transcendente, um dos aspectos sobre os quais nos ativemos ao analisar a idealização da amada nos poemas anteriores. O eu da escrita faz referência à dor de ver essas modificações e outras interferências – como a concomitância do riso com o pranto e ao fato de o excesso de amor à vida possibilitar a perda desta – como sendo inferiores à certeza manifestada, no final dos versos, do término de tudo o que é belo; certeza de que as coisas que antes tinham sentido se tornam vazias, silenciando. Nem mesmo a constatação de que o amor não passa de um engano, porque consiste em uma criação, algo inventado por alguém, é maior do que a certeza do fim. Ao dizer da criação, invenção e imaginação que fazem parte do processo de construção do amor, Moura alude ao próprio processo de elaboração de sua amada, uma vez que ela sempre se deu de forma idealizada. E a dor maior de ver que as coisas findam condiz, exatamente, com o momento que sua poesia vive: o esvaecimento da Musa, a sua perda. Mesmo o que é idealizado, fruto da imaginação, chega ao fim, perdendo seu sentido: aquilo que tinha ―algo a dizer-nos, fica mudo‖. 133 O término indicado no fim do poema, relacionado à desaparição do mito feminino na obra de Moura, é reforçado pela intertextualidade que o terceiro verso da primeira estrofe possui com o verso inicial do ―Soneto da separação‖, de Vinicius de Moraes: De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto. De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama. De repente não mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente. Fez-se do amigo próximo, distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente. (MORAES, 1968, p. 300-301) Não só o primeiro verso deste soneto é expressivo para constatar a similitude entre os dois poemas. A retomada de Vinicius de Moraes é significativa, ainda, no que diz respeito ao processo de separação, afinal, há também uma espécie de rompimento acontecendo para o eu emiliano. Ele está se separando de seus mitos, cuja decomposição, como vimos no poema ―Desaparição do Mito‖, ocorre, também, de modo repentino: ―Súbita névoa chegara. / Ruíra tudo. Era o pânico. / Ninguém a reconheceu‖ (DM, p. 150, grifo nosso). ―De repente, não mais que de repente‖, os poemas emilianos passam a apresentar uma nova visão do amor, abordando o lado do sofrimento e da solidão advinda dos rompimentos amorosos. Curiosamente, não acreditamos que por acaso, já que se encontra em diálogo com os versos de Moraes, o poema emiliano também consiste em um soneto, ambos trabalhados em versos decassílabos. Forma clássica de versejar, o soneto é encontrado ao longo de toda a obra de Moura. O poeta chega mesmo a reunir, sob o título ―Tempo morto‖ – primeira subdivisão do livro Habitante da tarde–, dez sonetos seguidos, todos também trabalhados em versos decassílabos. Outra intertextualidade perceptível no soneto emiliano se encontra no verso final da primeira estrofe: ―e amar a vida à força de perdê-la‖. Este verso 134 retoma o versículo 25, do livro bíblico de João, que, no capítulo 12, apresenta a seguinte fala de Jesus: ―Quem ama a sua vida, perdê-la-á; mas quem odeia a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna‖. Jesus alude ao excesso de apego à vida pessoal, em que as pessoas agem egoisticamente. Comportamento este rejeitado pelas pregações do Cristo. Neste sentido, ao se referir àqueles que odeiam sua vida, Jesus diz respeito às pessoas que abrem mão de interesses pessoais, doando parte de sua vida ao próximo, em seu auxílio. Trazendo estas considerações para o verso de Emílio Moura, lemos esta intertextualidade como uma maneira de o poeta aludir à dor provocada pelo resultado contraditório produzido pelo excesso de amor. Amar demais a vida leva à sua perda. Se considerarmos a forma, digamos progressiva, e talvez incontrolada, como o poeta apresenta a invenção do amor – ―amor se inventa, inventa, e já não para. // Não para. Inventa e, múltiplo, se inventa‖ – e transpusermos o excesso de amor à vida ao excesso de amor a alguém, vemos que esse exagero resultará na perda do amor experimentado pelo eu da escrita. Em ―Invocação final‖, a reafirmação do sentimento de perda de sentido das coisas – o que antes se mostrava de um modo, agora, não possui mais a mesma significância para o poeta: Ó forma em flor, surta a distância: tudo o que foste ora se esconde no véu do tempo; tudo a esta ânsia de ser, de novo, se incorpora. Que febre e que fugas onde te vi florir à luz de outrora! Ária gentil que então se ouvia, mágica fonte, voz da aurora, malferida, instinta harmonia. Já nada se ouve. Ao sonho o que era sonho voltou. Queda-se, agora, mudo, o que, mudo, desespera. (DM, p. 166) O título do poema revela a derradeira vez em que o poeta se dirige ao mito que se transfigurou em seus poemas. A ele, Moura se refere utilizando verbos no tempo passado, indicando que, no presente dos versos, o modo como, antes, esta ―forma em flor‖ se apresentava não mais condiz com a realidade vivenciada pelo poeta. Dissemos, páginas atrás, que o poema ―Desaparição do Mito‖ 135 estabelece uma espécie de antes e depois na obra de Moura. O ―véu do tempo‖, que esconde o que foi este ser invocado nos versos, e o ―outrora‖, cuja luz permitia seu florescimento, diz respeito a este antes. Momento este em que a perfeição do Mito lhe permitia ser metaforizado como uma ―ária gentil‖, uma ―mágica fonte‖ ou a ―voz da aurora‖. Já o depois, a que nos referimos, ou o ―agora‖, indicado no penúltimo verso do poema, é silencioso, mudo. Perdido o encanto mítico, não há mais canto, nem magia. A voz não comunica e, em meio ao silêncio, brota o desespero. Finda a invocação ao amor, a derradeira já fora enunciada, o poeta para de se dirigir à Musa transfigurada. O que ele faz, então, em um ―Tríptico‖ de sonetos é concluir a respeito das mudanças ocorridas: I Porque a tarde descera e tão obscuro tudo ficara – olhar, gestos, palavras, novos signos no ar foram surgindo, e eram todos sem vida, sem sentido. Que apelo sem limites me prendiam, que perdidas memórias me buscavam? Vi-me, de novo, trêmulo, no pórtico do sonho: o sonho era algo que eu não via. Que áureo roteiro aquele atrás da névoa? Que vozes me falavam? Que falavam, se era tudo, mas tudo inexistente? Súbita sombra no alto se formava. Era a noite? Era a morte? Eu não sabia. Sei que a voz do outro lado me chamava. (DM, p. 167) A imagem da tarde descendo e trazendo escuridão prenuncia as sombras que se instaurarão na obra emiliana – nos poemas de Habitante da tarde –, antecedendo a noite maior que virá. Neste novo contexto, inauguram-se imagens condizentes com a obscuridade que se funda, ou seja, signos que, para o eu da escrita, tornaram-se mortos, sem sentido. Apelos, memórias perdidas, insegurança – representada pelo adjetivo ―trêmulo‖ – fazem parte do novo sonhar do poeta. Se antes o sonho proporcionava a idealização de todo um universo amoroso e, portanto, repleto de esperança e claridade, agora, o plano onírico provoca tremor, já 136 que não permite a visualização do que antes era imaginado. Há uma névoa impossibilitando o acesso do eu emiliano ao que ele costumava idealizar. Ocorre, neste ínterim, a formação repentina de uma sombra que o poeta não consegue decifrar: noite? morte? Palavras que possuem semânticas sobrecarregadas de sentidos negativos. Ao vir do alto, essa sombra toma lugar de qualquer vestígio de luz que possa sugerir algum indício de transcendência, alguma continuidade, seja de um amanhecer esperançoso ou de acesso a uma vida nova em âmbito espiritual. Referindo-se ao ―outro lado‖, no final do soneto, Moura não está aludindo à transcendência, mas, apenas, dizendo do que está oculto atrás da névoa anunciada. O segundo soneto do ―Tríptico‖ inicia mencionando, exatamente, o que ficou oculto pela névoa: II Porque a vida ficara do outro lado, vi-me, de novo, a sós, e tão perdido, que a própria voz, ao vir-me do passado era de algo sem nexo e não vivido. Débil respiro, sopro inesperado, onde vibrava, em que órbita perdido? Que forma se criara ante o apagado dom dessa voz, que forma e que sentido? Eram visões de abismos e distâncias, sob sombras e sombras. E era tudo, entre ser e não ser, fruto de enganos. E eu a buscar uma perdida via. Eu, que tanto bradara, agora mudo, num mundo que a si mesmo se perdia. (DM, p. 167) Nada mais, nada menos do que a ―vida‖ que restou ―do outro lado‖. Tudo aquilo que significava para ele está perdido. Daí o sentimento de solidão e de desorientação versejados na primeira estrofe. A perturbação vivenciada pelo eu da escrita é tamanha que sua própria voz se torna sem sentido, como se não houvesse existido. É uma voz fraca, um respiro, um sopro, que, no entanto, vibrara em tempos passados, quando o poeta bradava, tinha vigor, e sua voz produzia imagens vivazes, límpidas, fortes. Perdido o vigor do canto, as formas que se originam da debilidade da voz são sombrias e, entre abismos e distâncias, a constatação de que 137 tudo não passou de mero engano. É o poeta afirmando sua posição atual diante dos mitos decaídos. Ele reconhece que o mundo mítico em que se processava sua poesia não passou de um mundo inventado, enganoso, porque não era real. Este mundo se perdeu e, inserido na nova realidade, o poeta encontra-se mudo. Não consegue mais bradar, ser vigoroso como antes. Tal mudez, oriunda da queda dos mitos, leva-nos a pensar na questão que desenvolvemos a respeito do declínio do mўthos, sobre a operação poética e o desencantamento do poeta advindo deste declínio59. Apartar-se do mundo mítico é uma das formas de indicar a perda da magia, do encantamento que propiciava ao poeta um caráter transcendente. Se o mito, que até então sustentava a poética emiliana, torna-se sem sentido, o poeta experimenta uma perda de rumo que o leva a amargurar-se, a sentir-se incapaz de erguer sua voz e continuar um canto significativo. Por isso, a mudez anunciada e as imagens sombrias e tristes que começam a frequentar a poesia de Emílio Moura, tornando-se cada vez mais intensas em sua obscuridade. A tarde que descera no primeiro soneto, por exemplo, transforma-se em noite, fazendo ainda mais sombrio o contexto poetizado no soneto final: III Porque a noite era a noite, um lírio, o Lírio trêmulo, abriu-se. Era algo que floria, forma abstrata, na própria imensidade, revelada em seu fulcro inacessível. Era a febre dos mitos que ainda ardia, ou era o adeus que do alto nos mandavam? Ah, formas contempladas e perdidas, na asa do tempo! Ah, tempo sem memória! Tudo era morto – morto! e refluía, cego, na noite, e a noite no seu trono: outra face, outra sombra, outro cenário. Outro em que tudo, estradas, horizonte, tudo o que havia, ah, tudo se abismava na única luz, o lírio que floria. (DM, p. 168) A imagem do ―Lírio‖ abrindo-se à noite, ou seja, em meio à situação amargurada em que o poeta se encontra, levou-nos a buscar na simbologia desta 59 Cf. tópico 2.3. 138 flor o que ela pode representar em condição análoga à da poesia emiliana. Segundo o Dicionário de símbolos, o lírio representa ―pureza, inocência, virgindade‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 553), assim como, determinada espécie (o vermelho, no caso) simboliza amores proibidos. E quando relacionada com a Lua e os sonhos, esta flor revela amor intenso, que, entretanto, pode ficar ―irrealizado, reprimido ou sublimado‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 554). Embora nos versos de Moura não haja referência à Lua, o plano onírico está presente de modo intenso em muitos poemas em que o poeta construiu sua amada. Não raras vezes, ele anuncia ser ela resultante ou habitante de seus sonhos. Desse modo, este ―Lírio‖ que desabrocha na noite emiliana representa o amor duplamente irrealizado: primeiro, porque pertencente aos sonhos do poeta em tempos de idealizaçao mítica; segundo, porque, agora, não é mais realizável, nem mesmo oniricamente. Esta irrealização é reforçada pela tremura que caracteriza o lírio, ou seja, a representação da flor trêmula remete à imperfeição, ou indefinição, das imagens que se anunciam na escuridão da noite. Também a inacessibilidade anunciada de seu fulcro contribui para fortalecer a impossibilidade de se concretizar o amor. O segundo quarteto do poema apresenta a possibilidade de esta visão do lírio florescente na noite – ou seja, da presença da amada, mesmo que inalcançável no contexto sombrio – não passar de fruto da necessidade de permanência dos mitos. O eu da escrita utiliza a expressão ―febre dos mitos‖ para se referir a tal necessidade. O fato de o mito ter desaparecido para Emílio Moura não quer dizer que o poeta não sinta necessidade dele. E é exatamente por sentir tal indispensabilidade que Moura se amargura, sentindo-se fragilizado em sua função, conforme mencionamos na interpretação dos versos finais do soneto anterior. O eu emiliano da escrita indica, também, a possibilidade de a imagem do lírio ser uma última manifestação do mítico em seus poemas. Ao se referir a um ―adeus‖ enviado do alto, o poeta alude ao caráter transcendente dos mitos. Contando a origem de todas as coisas, promovida pelos entes sobrenaturais, os mitos possuem uma espécie de encantamento advindo dessa sobrenaturalidade. Os personagens míticos – como, em alguns poemas, a Musa emiliana – são seres detentores de poderes, divindades que habitam o plano transcendente. Essa peculiaridade é que nos faz entender o ―adeus‖ mandado do alto como uma última manifestação do mito na obra de Moura, o qual se ressente da perda que 139 experimenta: ―Ah, formas contempladas e perdidas, / na asa do tempo! Ah, tempo sem memória!‖ Os versos que compõem os tercetos deste soneto apresentam uma palavra – e sua variação de gênero – que aponta para as transformações ocorridas para o eu da escrita. Ao dizer de ―outra face‖, ―outra sombra‖, ―outro cenário‖ (grifos nossos) se fixando na soberania da noite, Moura enuncia as diferenças que se estabeleceram a partir da desaparição do mito. Tantas ―outridades‖, entretanto, como um vestígio de esperança na poesia de Emílio Moura, lançam-se contra a única representação de luz que subsiste no poema: a imagem do ―lírio que floria‖. Todavia, esta ponta de esperança é apagada nos poemas sobre os quais nos deteremos no capítulo seguinte. A ―outra face‖ de Moura, ou seja, seu lado sombrio, que se contrapõe à face luminosa da mulher e, portanto, da poesia idealizada, perfeita e poderosa – apresentada em parte deste capítulo –, é que prevalecerá, a partir de então, nos versos do poeta. Afinal, ele experimenta as mudanças ocorridas no século XX, não apenas em relação à concepção de poesia, mas também no que diz respeito ao avanço científico e tecnológico e todas as consequências dele oriundas. 140 4. A OUTRA FACE DE MOURA 141 Impossível disfarçar e dizer que isso não é angústia. Emílio MOURA (CHA, p. 71) Conforme vimos nos capítulos anteriores, a obra poética de Emílio Moura pode ser agrupada em diferentes conjuntos de poemas, segundo as temáticas nela recorrentes. No primeiro capítulo, apresentamos a questão da metalinguagem e do pensar o fazer poético; no segundo, voltamo-nos para o tema do feminino enquanto mito que, posteriormente, desaparece dos versos emilianos. Neste, abordaremos os poemas cujas imagens de semântica negativa, sombrias e os versos que apresentam a inquietação íntima do eu da escrita propiciam um tom melancólico à obra do poeta. Se, como vimos, há uma tendência emiliana de, através de sua imagerie abstrata, representar a leveza, a alegria e a beleza, os poemas que agora serão apresentados e analisados mostram a outra face de Moura – a de um poeta que deixa transparecer seu lado angustiado, desconsolado e inquieto. Considerando-se, previamente à leitura da obra, apenas o sumário do livro Itinerário poético (2002), notaremos que um número razoável de títulos de poemas de Emílio Moura aponta para os assuntos que consideraremos neste capítulo. Constatamos a presença de palavras e expressões que remetem à escuridão, como ―sombra‖ e ―noite‖; outras cujo prefixo indica a ausência de algo: ―inquietação‖ e ―insônia‖; títulos que se resumem a interrogações: ―Por quê?‖, ―Quem sou eu?‖; uma insistente adjetivação semanticamente negativa: ―pobre‖, ―sem rumo‖, ―estrangulada‖, ―parado‖, ―amarga‖, ―penada‖, ―impossível‖, ―morto‖, ―cinzenta‖; substantivos que já carregam em si sentidos negativos: ―suicida‖, ―náufrago‖, ―aniquilamento‖, ―lamento‖, ―derrocada‖, ―solidão‖, entre outros. A constância desses tipos de expressões e vocábulos, bem como o artifício das interrogações, prenunciam o teor melancólico dos poemas emilianos que nos propomos analisar neste capítulo. Nos primeiros livros de Moura, tais poemas aparecem bastante intercalados entre outros, como os apresentados nos capítulos anteriores. Nestes predominam temáticas como a metalinguística ou a amorosa, desenvolvidas de modo a apresentar uma poesia quase isenta de imagens que levem à percepção de concretudes relacionadas à sociedade capitalista em que o poeta se inseria; uma poesia depurada, portanto, de elementos fatuais. São imagens poéticas construídas por meio de uma linguagem suave, com palavras isentas de sentido negativo, 142 apontando para uma espécie de poesia purificada, limpa, elevada, no sentido de alheia à realidade histórica e imediata. Os poemas sombrios de Emílio Moura aparecem de modo inconstante nos livros, ora com mais ora com menos frequência. Canto da hora amarga (1936), por exemplo, é um livro predominantemente sombroso, pois a maioria dos poemas apresenta temáticas que se relacionam a sentidos angustiosos, como a solidão, o desencanto em relação ao mundo, a tristeza etc. O próprio título aponta para um momento de amarguras na obra emiliana. Já o livro O espelho e a musa (1949), como vimos, é quase todo destinado à amada idealizada. Entretanto, a partir de Desaparição do mito (1969), conforme indicamos no segundo capítulo desta tese, não só a representação feminina deixa de habitar seus poemas como começa a ser intensificada a presença das imagens e temáticas que aqui classificamos como sombrias e melancólicas60. Essa intensificação encontrará seu ápice nos dois últimos livros emilianos, Habitante da tarde e Noite maior, publicados pela primeira vez na edição do Itinerário poético lançada em 1969. 4.1 Do ensimesmamento solitário ao mal-estar social: um poeta em tempos de guerra e morte A relação entre o poeta – e, por conseguinte, a poesia – e a melancolia é alvo de estudos que remontam à Antiguidade. Já naquela época, Aristóteles (384- 322 a.C.), na obra O homem de gênio e a melancolia (1998), questiona: ―Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos (...)?‖(ARISTÓTELES, 1998, p. 81). O poeta é, dentre outros mencionados pelo filósofo, caracterizado como um ser diferenciado, um ―gênio‖ ou, como prefere o tradutor da versão que utilizamos, Jackie Pigeaud, um ―homem de exceção‖. E de ―excessos‖, complementarão Felipe Castelo Branco e Marco Antonio Coutinho Jorge no artigo ―A melancolia em Freud: de conceito-problema à chave de compreensão da obra 60 Todo o tópico 3.2 trata desta questão. 143 freudiana‖ (s.d.). Esses autores apontam um dos motivos que levam Pigeaud a optar pelo uso da palavra ―exceção‖ e não pela expressão ―de gênio‖ que aparece no título do livro: O melancólico é alguém que carrega em si um excesso de bílis negra. Ela própria, a bílis, já é um excesso (perissoma), um resíduo daquele humor que não foi cozido pela digestão (cf. Problema I). Entretanto, este excesso (perissoma) de bílis negra no corpo gera no homem um comportamento de exceção (perittoi) que tanto é estranho quanto é excepcional (perittos), no sentido de gênio. Isso quer dizer que o melancólico é um homem de exceção tanto no sentido de possuir um excesso (perissoma) de bílis negra no corpo quanto no sentido de ter um comportamento excessivo (perittoi), e, ainda, o de ser uma exceção (perittos) na área em que se propõe a atuar (BRANCO; JORGE, [s.d.], p. 347). Para entendermos tal explicação é necessário que tenhamos em mente a concepção de melancolia recorrente na época de Aristóteles, qual seja, a da teoria dos quatro humores (sangue, fleuma, bílis amarela, bílis negra). Proposta por Hipócrates (460-377 a.C.), esta concepção predominou durante séculos, passando por algumas pequenas variações e atravessando a Idade Média e a Renascença, conforme informações colhidas no livro Depressão e melancolia, da psicanalista Urania Tourinho PERES (2006, p. 14-16). O corpo produz, naturalmente, esses quatro humores, cada um com suas características próprias: o primeiro é quente e úmido, a segunda é fria e úmida, a terceira, quente e seca e a última, fria e seca. O predomínio de um deles no organismo, ou melhor, seu excesso, propiciaria determinado temperamento, segundo a característica própria de tal humor: sanguíneo, fleumático, colérico ou melancólico. Este último tem no próprio nome a explicação de sua origem: melancolia vem de mélas, negro + kholé, bílis (HOUAISS, 2001). Tendo em vista tais considerações e a explicação encontrada no recorte acima transcrito a respeito do estado de exceção e de excepcionalidade do homem melancólico, perguntamo-nos se todos os melancólicos seriam, então, ―homens de gênio‖. Pelo trecho, parece que sim, pois somente o fato de ter a bílis negra em excesso no organismo seria suficiente para provocar comportamentos de exceção e de excepcionalidade nos homens. Moacyr Scliar, comentando o questionamento aristotélico – ―Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente 144 melancólicos (...)?‖ (ARISTÓTELES, 1998, p. 81) –, confere-lhe uma pequena diferenciação de sentido. Vejamos o seguinte trecho, transcrito do livro Saturno nos trópicos (2003): Nessa pergunta [a de Aristóteles] está implícita uma importante diferenciação: seres humanos normais podem adoecer de melancolia, mas há uma melancolia natural que torna o seu portador genial ―normalmente anormal‖. O gênio surgiria pela ação da própria bile negra, que, como o vinho, teria poderosa ação sobre a mente (SCLIAR, 2003, p. 70). O homem de gênio seria aquele, portanto, com excesso natural de bílis negra e não aquele que o adquirisse por meio de doenças. SCLIAR (2003, p. 70) nos informa, ainda, que séculos depois de Aristóteles, um médico grego, Rufus de Éfeso (98-117 d.C.), também diferenciaria a ―melancolia natural‖ da ―melancolia adquirida‖, aquisição esta que se dá principalmente pela dieta. Sendo a primeira, aquela que propiciaria a seu portador ―proeminência intelectual‖. De qualquer forma, independente de a melancolia ser algo natural ou adquirido, conferir o caráter melancólico ao poeta e aos homens cujo ofício se relacione com o constante pensar – como o filósofo, por exemplo – é algo recorrente na literatura. Considerando essa caracterização genial atribuída ao melancólico, seria então a melancolia uma qualidade? Ora, não é ela a responsável pela capacidade criativa do poeta? Scliar chamará a atenção para o fato de que o ―temperamento melancólico é um temperamento metafórico, propenso, pois, à criação — na filosofia, na poesia, nas artes. Mas os melancólicos pagam um preço: esse talento os arrebata e os conduz pela vida como um ‗barco sem lastro‘, na expressão de Sócrates‖ (SCLIAR, 2003, p. 70). É este arrebatamento do melancólico que nos interessa neste trabalho, não o aspecto da genialidade do poeta acometido pela melancolia. Conscienciosos de que cada época gera conhecimentos e propicia motivos para que se estabeleça a relação entre o poeta e a melancolia, vejamos em Emílio Moura como as coisas se dão. Quais as características, encontradas em seus versos, que nos permitem entrever um estado de abatimento? Qual o contexto que faz com que ele apresente uma face melancólica? Qual concepção de melancolia virá ao encontro das imagens poéticas de Moura? 145 Nos capítulos anteriores, fizemos alusão a características que indicam um estado incômodo no eu emiliano da escrita. No primeiro, em que tratamos da metalinguagem, mostramos de que modo, ao mesmo tempo em que Moura apresenta uma concepção de fazer poético como algo mágico, uma espécie de dom profético, ele também sugere a perda da potência da linguagem lírica na modernidade, o fim da concepção da palavra poética como transcendência. Ao analisarmos os poemas que apresentam essa caracterização, mencionamos a postura apática do poeta diante dessa situação, assim como sua angústia frente à irrepresentabilidade simbólica da palavra poética em contextos catastróficos como o da guerra. Em seguida, ao trabalharmos o feminino em Moura, mostramos como, de uma construção luzente da Musa, ele passa ao desencantamento originado da perda dela. Contudo, muitos outros fatores podem ser responsáveis por instaurar o estado de abatimento no homem moderno. Vejamos, por exemplo, nos versos de ―Inquietude‖, como esse estado se manifesta: As horas passam, lentas como beijos, ou rápidas, como setas. Nem desejo de continuar nem vontade de parar. Eu só queria que a minha vida fosse uma página em branco, sem dizeres que não dizem nada, porque é sempre a mesma inutilidade, sempre o mesmo espetáculo. Mas, o tempo não pára: As horas passam lentas como beijos, ou rápidas, como setas. (Ing, p. 39) O avançar incontrolado do tempo e a constatação da inconstância de sua velocidade são os responsáveis por despertar no poeta uma condição que entendemos como caracteristicamente melancólica: há uma apatia manifestada na indiferença dele em relação a assumir se deseja continuar ou parar. Situação um tanto paradoxal, pois não continuar, necessariamente, significa parar. Não parar, inevitavelmente, significa continuar. Esse paradoxo traz à tona a indiferença do poeta em relação à vida. Simplesmente, ela não lhe interessa mais. Como ligarmos a apatia e a indiferença manifestadas no poema a uma condição melancólica? De que modo entendemos a melancolia apresentada nos 146 versos de Moura? Para que possamos assumir um posicionamento, é preciso saber que o conceito de melancolia foi se modificando historicamente. Da antiguidade aristotélica até os dias de Emílio Moura, estudos foram reaproveitados; muitos, desconstruídos; outros tantos, empreendidos. De forma bastante resumida, para que a análise dos poemas não se entrave demasiadamente, apresentamos as principais modificações que o conceito de ―melancolia‖ sofreu através dos tempos. De Aristóteles até o século XVI, segundo informações encontradas em PERES (2006, p. 14-16), a ideia que predominou é a de que o estado melancólico consistia em uma doença causada pela alteração na quantidade de bílis negra no organismo. Durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a melancolia começou a ser vista como causada pelas qualidades, não mais pelos humores. A doença física cede espaço para a ―doença‖ da alma. A partir do século XIX, a teoria dos humores foi totalmente abandonada. De fins do século XIX ao XXI, a psicanálise e a psiquiatria biológica ganham espaço, lançando-se, cada uma à sua maneira, ao estudo das doenças mentais, dentre elas as que se manifestam por meio de tristeza, abatimento, angústia. Muitos são os nomes dados a essas afecções: depressão e melancolia, por exemplo, são ora utilizados como sinônimos, ora diferenciados por pequenas variações. A psiquiatria biológica falará de uma insuficiência biológica, já a psicanálise tratará de um ―desamparo fundamental, uma complexa e problemática relação com a perda, a falta, o vazio estrutural do ser humano‖ (PERES, 2006, p. 10). Sigmund Freud (1856-1939), no texto ―Luto e melancolia‖ (1996), apresenta uma abordagem comparativa entre essas duas afecções, tendo sido dada maior atenção à segunda. Considerada patológica, a melancolia se caracteriza por uma sensação de perda não identificável, ou seja, uma perda indefinida, mais ideal do que real, diferentemente da sensação do luto, na qual se reconhece o objeto da perda. Dentre essas variações conceituais da melancolia, é esta última, ou seja, a da psicanálise, que sustentará nossas argumentações a respeito da melancolia em Emílio Moura. Entendemos que o sentimento de desamparo, de perda, de falta, de um vazio estrutural experimentado pelo homem se relaciona com o contexto social, histórico e cultural em que vive. Portanto, por mais depurada que a poesia emiliana esteja de referências fatuais, é inquestionável que o poeta, enquanto sujeito espacial e temporalmente localizado, receba influências que podem vir a ser refletidas em sua obra, mesmo que não de forma explicitamente declarada, mas 147 apenas sugerida ou, ainda, subentendida, como nos versos de ―Inquietude‖ (Ing, p. 39). Inserido no contexto da modernidade do século XX, o mundo do poeta Emílio Moura é o do desenvolvimento desenfreado da tecnologia e das ciências, resultando em maior velocidade, mais máquinas, intensa industrialização. Daí a sensação de que as horas passam ―rápidas, como setas‖, contrapondo-se ao tempo do amor e do prazer, representado pela palavra ―beijos‖, que parece se dilatar, tornando-se lento, duradouro. O reflexo da modernização sobre os homens produz um efeito dual: é positivo, pois facilita a vida, traz mais conforto, ajuda na manutenção e na restauração da saúde; mas é também negativo à medida que desestabiliza a maneira de pensar e de agir dos homens, que precisam se adaptar aos novos contextos proporcionados pelos avanços tecnológicos. Negativo, ainda, porque tais avanços podem ser aproveitados na produção de artefatos a serem utilizados pelo homem contra o próprio homem61. Reinaldo Marques, no texto ―Tempos modernos, poetas melancólicos‖ (1998), analisa a poesia de alguns escritores mineiros do século XX, mais especificamente das décadas de 30, 40 e 50 (Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta Lisboa, Octávio Dias Leite e Abgar Renault), e constata a presença da melancolia entre esses poetas. Marques utiliza o poema ―Nota social‖62 de Drummond para apresentar a condição de incomunicabilidade do poeta inserido no mundo moderno, afirmando seu estado: ―o poeta está melancólico‖. O crítico identificou nesses poetas uma constância da temática da guerra, a qual resultou em um tempo de perda de sentido para a vida; a recorrência de poemas de caráter interrogativo, em que se indaga a respeito da existência; assim como de imagens 61 Quando o livro em que consta o poema ―Inquietude‖ foi publicado (1931), a humanidade já havia presenciado a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que deixou inúmeros mortos e outros tantos mutilados. Os avanços científicos e tecnológicos, que no século XIX sofreram um impulso significativo e foram intensificados durante o século XX, muito contribuíram para os massacres ocorridos então: tanques de guerra foram utilizados pela primeira vez em batalhas, aviões empregados para bombardeio; submarinos bloqueavam o suprimento de alimentos de determinados países e compostos químicos foram lançados para prejudicar os inimigos (guerra química) 62 O poeta chega na estação./ O poeta desembarca. / O poeta toma um auto. / O poeta vai para o hotel. / E enquanto ele faz isso / como qualquer homem da Terra, / uma ovação o persegue/ feito vaia. / Bandeirolas / abrem alas. / Bandas de música. Foguetes. / Discursos. Povo de chapéu de palha. / Máquinas fotográficas assestadas. / Automóveis imóveis. / Bravos... / O poeta está melancólico. // Numa árvore do passeio público / (melhoramento da atual administração) / árvore gorda, prisioneira / de anúncios coloridos, / árvore banal, árvore que ninguém vê / canta uma cigarra. / Canta uma cigarra que ninguém ouve / um hino que ninguém aplaude. / Canta, no sol danado. // O poeta entra no elevador / o poeta sobe / o poeta fecha-se no quarto. // O poeta está melancólico (ANDRADE, 2002, p. 20). 148 relacionadas à noite, período de escuridão, momento mais propício ao afloramento da melancolia. Também é presente o progresso avassalador, representando a impotência do homem diante da modernidade que se instaura no país no século XX. Ainda, estão presentes várias imagens de significação negativa que remetem à melancolia: noite, suicídio, veneno, sombra, negritude, guerra, morte etc. (MARQUES, 1998, p. 162-164). No que diz respeito às características encontradas pelo crítico nos poemas dos autores mencionados, podemos afirmar que parte da poesia emiliana se aproxima, de certa forma, desses trabalhos. Ora, Emílio Moura também poetava nesta época; também era mineiro; inclusive pertencente ao mesmo grupo de Carlos Drummond e Abgar Renault. A referência à guerra, comum a todos eles e o caráter interrogativo de Renault são também marcantes em Moura; a noite, símbolo de um período de escuridão nas obras de Octavio Dias Leite e Henriqueta Lisboa, tomba pesadamente sobre a obra emiliana. Explicando a constância da melancolia representada por essas características, o crítico menciona a influência do contexto social, histórico e cultural da modernidade do século XX sobre esses poetas. Sentindo-se abalados, eles se ensimesmam, colocando-se a refletir mais sobre os aspectos psicológicos do que sobre aqueles relacionados ao mundo externo, à vida exterior. Mais reflexão e menos ação, portanto. Em todos esses poetas percebem-se traços do melancólico: o ensimesmamento do eu confrontado com experiências de perda decorrentes de um tempo e um mundo de mudanças e ruínas; uma atitude crítica em relação ao próprio eu, apreendido como insatisfatório, precário; a inibição da atividade, em prol de uma atitude contemplativa (MARQUES, 1998, p. 162). Há por parte de Moura, no referido poema ―Inquietude‖, essa inibição da atividade. Ele nega a ação de ―continuar‖ ou de ―parar‖, verbos que sugerem atitude. Somente o ―querer‖ é atribuído ao eu emiliano, palavra que, ao denotar vontade, desejo, não confere ao poeta a caracterização de agente. Como há uma inércia exterior, o estado de inquietude, indicado no título do poema, aponta para um desassossego interno, que se manifesta não apenas pelo desejo incutido no verbo ―querer‖ – que, se não resulta em ação exteriorizada, indica, pelo menos, uma incitação interna –, mas também na constatação da inutilidade das ações. Se o 149 poeta chega a essa conclusão é porque realizou um processo de reflexão. O que ele fez da vida não tem razão de ser, por isso o desejo: ―Eu só queria que a minha vida fosse uma página em branco‖. Para que preenchê-la, se não haverá sentido? Se não haverá utilidade? A inquietação é promovida, portanto, por esse estado reflexivo. Tal inquietude emiliana, mostrando um sujeito imerso em si mesmo, indiferente ao mundo externo, e concluindo pela inutilidade de sua vida, leva-nos a considerar os estudos de Freud sobre a melancolia. O psicanalista refere-se a ela como ... um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição (FREUD, 1996, p. 250). O melancólico não sabe o que perdeu, mas sente um vazio imenso. O mundo externo não lhe interessa, então ele [o melancólico] se volta para si mesmo, para seu ―ego‖63. Reparemos a repetição do prefixo ―auto‖ no trecho acima transcrito, indicando um retorno para a própria pessoa. A melancolia faz o homem ensimesmar-se. Conflitando com ele mesmo, realiza um processo de autoavaliação, geralmente resultando em autorrecriminação. Destarte, assim como no poema apresentado, também em Freud a inércia externa do sujeito não equivale a um abatimento interno. Em ―Poema‖, depreende-se a introspecção a que o sujeito melancólico se submete: Assim que eu abrir de novo os meus olhos, meus pensamentos já não serão mais livres, e minha alma, vencida, errará novamente pelas estradas [abandonadas. Neste instante, porém, tudo me aproxima de mim mesmo. Há uma solidão imensa aqui dentro. Há janelas abertas recebendo a [noite. Nunca me pertenci tanto como neste momento. 63 O psicanalista desenvolverá todo um trabalho sobre o ego, sua cisão em ―outro‖, a relação do ego com esse ―outro‖ e com a libido. Tais detalhamentos, sendo por demais específicos ao campo da psicanálise freudiana, não serão discutidos em nosso trabalho. Vale-nos, entretanto, o relacionamento do melancólico com ele mesmo, com seu ego, culminando no processo de autorreflexão. 150 Nunca te pertenci tanto como neste momento. (CHA, p. 53) Iniciemos observando a frequência com que são utilizados pronomes oblíquos e possessivos da primeira pessoa do singular. Esta utilização nos conduz ao mundo interno do poeta. Com olhos fechados, ele se abstém do exterior. Aproxima-se de si mesmo e, como em um processo de autorreconhecimento, constata uma ―solidão imensa‖. Conforme vimos em MARQUES (1998, p. 162), esse voltar-se para si, acompanhado de um processo de autoanálise, consiste em um dos atributos do melancólico. Não apenas pelo processo de autorreflexão, mas porque ele se dá como fuga do mundo externo. A falta de liberdade do pensamento e a alma seguindo por ―estradas abandonadas‖, quando os olhos estão abertos, ou seja, quando há por parte do eu emiliano um contato com o exterior, anunciam um mal- estar em relação ao mundo. Tal ideia nos remete ao livro freudiano O mal-estar na civilização (FREUD, 1997b), em que o psicanalista explica porque há um incômodo perpassando a relação estabelecida entre o sujeito e a civilização, ou seja, entre o homem e seu meio. Freud parte do conceito de ―princípio do prazer‖ para chegar ao de ―mal-estar‖. Segundo ele, o intento maior do homem em toda sua vida é alcançar a felicidade. É a busca pela satisfação de seus desejos que o move, ou seja, é o ―princípio do prazer‖ que sustenta sua existência. Entretanto, alcançar essa felicidade suprema é impossível. Isso porque ―nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição‖ (FREUD, 1997b, p. 25). Em tempos remotos, quando o homem constatou que as forças da natureza lhe eram muito superiores, estabeleceu-se uma necessidade de enfrentá-las. Sozinho era impossível. Unindo forças, talvez o conseguisse. Dessa necessidade, concebeu-se o embrião da civilização. Todavia, a partir do momento em que a convivência se firmou, foi preciso que se firmassem algumas normas de convívio. Não havia mais a possibilidade de que cada um agisse simplesmente conforme seus impulsos primitivos. É baseado nesse contexto que Freud entende a palavra ―civilização‖: descrevendo-a como ―a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos‖ (FREUD, 1997b, p. 41-42). 151 A fim de que haja tal ajustamento, o ―princípio do prazer‖ começa a ser controlado, e o mal-estar instaurado. Exponhamos alguns motivos: para que os direitos de uma comunidade prevalecessem sobre os individuais, a justiça foi estabelecida. Lei não cumprida significava punição. A liberdade humana não é produto da civilização. Livre era o homem pré-civilizado que agia segundo seus impulsos e nada mais. A religião, com seus dogmas, é outra forma de controle. Freud chama a atenção para os mandamentos ―ama a teu próximo como a ti mesmo‖ e ―não matarás‖ – este comentado na obra O futuro de uma ilusão (FREUD, 1997a, p. 25) –, cuja funcionalidade estaria relacionada ao controle de um dos mais fortes impulsos humanos, o da agressão. O ser humano é instintivamente um animal agressivo. Se não fossem as normas morais e religiosas estabelecidas pela civilização, ele agiria segundo o princípio da ação-reação. Na verdade, constatamos, facilmente, que esses artifícios de controle do impulso agressivo inerente ao homem não se fazem totalmente eficientes. O homem consegue, cotidianamente, manifestar seu instinto agressivo; seja em pequenas atitudes domésticas, seja em absurdidades como subjugar raças ou explodir bombas atômicas. No último poema apresentado, há um incômodo perpassando o eu da escrita na denúncia do controle de sua liberdade: de olhos abertos, seu pensamento não é livre. Há, ainda, um mal-estar subentendido na expressão ―alma vencida‖. Quem ou o quê a venceu? Na ausência de referentes explícitos e pelo mal-estar subentendido, inferimos a possibilidade de o poeta estar se referindo à engrenagem civilizatória de seu tempo. A quem ou a quê o oblíquo ―te‖, no último verso, faz referência? A quem ou a quê o poeta pertence como nunca? Não seria ao próprio ato de interiorizar-se? À solidão advinda desse ato? Ao estar-se consigo mesmo típico do melancólico, que perde o interesse pelo mundo exterior? Afinal, como aponta o título do livro de onde o poema foi retirado, Moura vivencia uma ―hora amarga‖. Além dos progressos científicos e tecnológicos que já mencionamos e que, de certa forma, perturbam o homem, outras situações contribuem para a amargura da época em questão, qual seja, meados dos anos de 1930, quando o livro foi publicado. O Brasil passara por duas revoluções64 no início dessa década; sofrera, 64 A ―Revolução de 30‖, quando uma aliança política vigente por aproximadamente trinta anos – a política do ―café-com-leite‖, que revezava paulistas e mineiros no poder nacional – foi rompida, levando à presidência o gaúcho Getúlio Vargas. E a Revolução Constitucionalista, em 1932, oriunda dos resultados daquela ocorrida dois anos antes e considerada um conflito armado significativo na história do país. 152 inserido no contexto mundial, os efeitos da queda da bolsa de Nova Iorque, em 1929, que provocou grandes crises financeiras pelo mundo. A economia de nosso país fora comprometida pela redução drástica das exportações de café, que tinha nos Estados Unidos seu grande comprador. Tudo isso sem contar os resultados devastadores da Primeira Guerra Mundial, quando a humanidade testemunhou pela primeira vez a morte de 10 milhões de pessoas65. Se o mundo exterior se encontrava em tal desarranjo, mais valia manter os olhos fechados, voltar-se para si mesmo e entregar-se, como nunca, à solidão de seu ensimesmamento. Em ―Fragmento‖, o poeta afirma: Fracos e desamparados somos nós. O medo é nossa bússola. Na praia deserta plantamos nossa solidão e nos tornamos náufragos. Para sempre. (P, p. 174) O imaginário marítimo, construído nos versos de ―Interrogação‖ (Ing, p. 29) e de ―Canção do náufrago‖ (Canc, p. 93), analisados no capítulo inicial deste trabalho66, é retomado. Mais uma vez, assim como nesses poemas, trata-se de uma construção negativa, atestada pela presença de determinados termos que anunciam o tom angustioso do eu emiliano perpassando os versos. A palavra ―bússola‖, por exemplo, ao sugerir direção, caminho a ser seguido, tende a apresentar uma semântica positiva, entretanto, associada ao medo, acaba sendo, permita-se-nos o neologismo, ―ressemantizada‖, e seu sentido ganha uma conotação problemática. Também a utilização da palavra ―náufrago‖, a que são atribuídos sentidos relacionados ao desespero, ao desamparo, contribui para que se instaure o tom a que nos referimos. Do mesmo modo que a caracterização da praia como um deserto terreno de solitários náufragos e as adjetivações ―fracos‖ e ―desamparados‖. Esta última palavra nos faz ir ao encontro da concepção da psicanálise que vê na melancolia, conforme apontamos, um sentimento de desamparo por parte do ser humano que experimenta uma perda, um vazio estrutural, o que nos permite reafirmar e justificar a relação da melancolia emiliana com a visão psicanalítica do assunto. Porém, já não se trata de um vazio solitário, como nos poemas anteriores, 65 Cf. HOBSBAWM, 1996, p. 56. 66 Cf. páginas 68- 69 e 74 respectivamente. 153 quando o eu emiliano da escrita afirmava seus sentimentos por meio de pronomes e verbos relacionados à primeira pessoa do singular. Na verdade, por mais subjetiva que a lírica de um poeta possa se mostrar, seus poemas não são manifestações de um eu individualizado, mas de um sujeito conscientemente inserido em seu contexto social, o qual age sobre o poeta. Em ―Conferência sobre lírica e sociedade‖ (1975), tal questão é abordada por Theodor ADORNO (1975, p. 201): ―... o conteúdo de um poema não é somente a expressão de motivações e experiências individuais. Estas porém se tornam artísticas apenas quando (...) adquirem participação no universal‖. Não que o poeta, necessariamente, trate de experiências vividas por todos, mas que, por mais individualizada que seja a temática abordada, possa ser universalmente reconhecida. É como passar do aspecto subjetivo para o objetivo, saindo do íntimo para atingir o social: Esta universalidade do conteúdo lírico, entretanto, é essencialmente social. Só entende o que diz o poema aquele que divisa na solidão deste a voz da humanidade; mesmo a solidão da palavra lírica é preestabelecida pela sociedade individualista e por fim atomizada, tal como inversamente sua vinculação universal vive da densidade de sua individuação (ADORNO, 1975, p. 202). A voz plural de Moura fala de sentimentos que podem ser comuns, se não a toda a humanidade, pelo menos àqueles que também vivenciam as mesmas situações histórico-sociais da primeira metade do século XX. Por mais que a sensação de mal-estar identificada nos poemas anteriores a este último faça referência ao sentimento particular do poeta, é, também, passível de acontecer a seus contemporâneos. ADORNO (1975, p. 206) fala de uma ―relação real entre o singular e a sociedade‖– tanto o indivíduo só se define como singular ao ser visto como parte de um todo, de um social, como a sociedade só se forma a partir de várias individualidades. Esse ―eu‖ que tanto aparece nos poemas emilianos ―não se trata da pessoa particular do poeta, de sua psicologia, de seu assim chamado ponto de vista social, mas justamente do poema como relógio-solar histórico-filosófico‖ (ADORNO, 1975, p. 209). Utilizando, em ―Fragmento‖, a primeira pessoa do plural, o poeta amplia o alcance do sentimento, socializando-o. Não temos mais a canção de um náufrago apenas, mas náufragos que compartilham suas fraquezas e desamparo. Não é mais 154 o poeta melancolizando sua condição artística no mundo moderno, mas o homem que vivencia, assim como seus contemporâneos, todos os horrores e frustrações de seu tempo. A ―hora amarga‖ do início da década de 1930 se intensificará na seguinte, em que o livro Poemas foi lançado. Anos que vivenciarão um dos mais marcantes fatos históricos da humanidade: a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Esta acumulou, às mortes nas trincheiras, a perseguição nazista aos judeus e a outras minorias e o bombardeio atômico sobre Hiroshima e Nagasaki67. Os versos de ―Fragmento‖, segundo as datas indicadas no Itinerário poético, inserem-se em um conjunto de poemas escritos entre os anos de 1947 e 1948. O eu emiliano vive, então, o momento recente do pós-guerra, do pós-bomba atômica. Eventos que marcarão para sempre a história da humanidade. Diante desses fatos, o sentimento de insegurança será comum a muitas pessoas. Por isso, ―o medo é nossa bússola‖ (grifo nosso). Esse verso emiliano faz ecoar versos de outro poeta, também mineiro, seu amigo e contemporâneo: Carlos Drummond de Andrade. Vejamos o que nos diz o poema ―Congresso internacional do medo‖, publicado em Sentimento do mundo, livro de 1940: Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio porque esse não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas. (ANDRADE, 2008, p. 159) 67 Falamos dos avanços tecnológicos sendo utilizados na Primeira Guerra (ver nota 73 neste capítulo). Hobsbawm, no livro A era dos extremos (1996), ressaltará que as guerras também foram responsáveis por acelerar os progressos científicos. Segundo ele: ―Não fosse pela Segunda Guerra Mundial, e o medo de que a Alemanha nazista explorasse as descobertas da física nuclear, a bomba atômica certamente não teria sido feita, nem os enormes gastos necessários para produzir qualquer tipo de energia nuclear teriam sido empreendidos no século XX. (...) a guerra ou a preparação para a guerra foi um grande mecanismo para acelerar o progresso técnico, ‗carregando‘ os custos de desenvolvimento de inovações tecnológicas que quase com certeza não teriam sido empreendidos por ninguém que fizesse cálculos de custo-benefício em tempos de paz, ou teriam sido feitos de forma mais lenta e hesitante‖ (HOBSBAWM, 1996, p. 54). 155 ―Cantaremos o medo‖, diz-nos Drummond. ―O medo é nossa bússola‖, afirma Emílio. Apesar dos anos que separam os dois poemas e das diferenças de estilo – enquanto Drummond é direto, quase prosaico, afirmando o que produz o medo, Moura deixa subentendido, é moderado, utiliza-se de metáforas –, há entre eles a proximidade proporcionada pelo ―sentimento do medo‖. Embora Drummond elenque vários outros provocadores de tal sensação, as imagens dos soldados, dos ditadores e da morte apontam para a Segunda Guerra, um dos acontecimentos contemporâneos do poema. Há, também, o contexto brasileiro da ditadura populista e civil do Estado Novo, que não deve ser desconsiderado. Contudo, como o título do poema drummondiano se refere a um congresso ―internacional‖, não podemos nos ater apenas aos acontecimentos de âmbito local. É preciso ampliar nossa leitura para algo que esteja promovendo uma espécie de universalização do medo e nada mais adequado para tanto do que a Segunda Guerra Mundial. Como o poema foi publicado em um livro de 1940, quando os versos foram escritos esta guerra se fazia iminente (alguns conflitos como, por exemplo, a Guerra Civil Espanhola, a Guerra Sino-Japonesa e as invasões realizadas por Hitler a partir de 1938 a anunciavam) ou mal havia iniciado. Entretanto, as lembranças da Primeira são suficientes para que se instaure um medo devastador. Drummond e Moura atravessaram ambas. Se ainda não escreviam, ou pelo menos não publicavam, em ocasião da primeira, seus versos não passaram incólumes pela crueldade desencadeada pela seguinte. Em ―A hora cinzenta‖, por meio de questionamentos, Emílio Moura sugere, novamente, o sombroso contexto instaurado pela guerra: Diga-me: É preciso deixar que a lembrança da primeira e única aurora se esfume? Que os olhos, atentos, se abram, solitários, mas lúcidos, para tantos desafios? Responder ao grito que sobe do escuro, socorrer o próximo, pensar mil feridos, perdoar, amar, mesmo malamado, mesmo desamado, traído, odiado, contra tudo amar, 156 amar contra todos? Ou é hora apenas de ódio e revolta, ou frio desânimo, enquanto o que resta (ah, resta tão pouco!) deixa que uma bomba resolva o que nunca se resolveria? (HT, p. 274) As duas primeiras interrogações indicam um momento delicado, cujo tom anunciado no título – recorrendo à simbologia encontrada no verbete ―cinzento‖ –, ―dá uma impressão de tristeza, de melancolia, de enfado‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 248). Nelas o eu da escrita se pergunta – ou questiona a nós, leitores – sobre a necessidade de se esquecer um passado promissor, representado pela imagem da ―primeira estrela‖ e da ―primeira e única aurora‖, símbolos de luz, e encarar, lucidamente, o momento atual que vive, repleto de desafios. Deve-se agir, ser solidário com os sofredores, com aqueles que foram feridos? Deve o amor prevalecer mesmo tendo ―tudo‖ e ―todos‖ contra ele? Deve-se amar mesmo não sendo devidamente amado – ―malamado‖, ―desamado‖? Esses adjetivos estabelecem uma intertextualidade com outro poema de Drummond, desta vez do livro Alguma poesia, de 1930. Vejamos os trechos de ―Amar‖ que nos permitem entrever o diálogo e influência entre os dois poetas: Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar? (...) Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor. (ANDRADE, 2008, p. 230) Drummond aponta o amor como se fosse algo inerente às ―criaturas‖ que, mesmo diante de situações conflituosas, tendem a este sentimento. O ―perdoar, amar‖ emiliano dialoga com o ―amar e esquecer‖ drummondiano. Afinal, ao ato de perdoar subentende-se uma espécie de esquecimento ou de renúncia. Os adjetivos 157 derivados do verbo ―amar‖, utilizados por Moura, parenteiam-se aos verbos ―malamar‖ e ―desamar‖ de Drummond. Assim como a possibilidade de amar, mesmo que se sentindo ―traído‖, ―odiado‖, mesmo ―contra tudo‖ e ―contra todos‖ – do poeta analisado nesta tese –, corresponde ao amar as ―coisas pérfidas ou nulas‖, em meio à ―ingratidão‖ e à ausência do amor, representada pela imagem da ―concha vazia‖, do poeta de Itabira. Salvo a diferença que Carlos Drummond de Andrade afirma o amor incondicional dos homens, enquanto Emílio Moura questiona tal amor em uma ―hora cinzenta‖, em tempos de guerra e morte. Época que presenciou as bombas ―resolvendo‖ conflitos internacionais. O poeta nos deixa pistas de uma descrença por sua parte em relação a um amor absoluto naquele momento. Os indícios são perceptíveis na carga semântica negativa de palavras como ―escuro‖, ―feridos‖, ―traído‖, ―odiado‖, ―ódio‖, ―revolta‖, ―desânimo‖ e no próprio ato de questionar. Afinal, não há porque questionar o que se encontra satisfatório. Freud, em suas ―Reflexões para os tempos de guerra e morte‖ (1996), apresenta uma análise dos efeitos que esses tempos podem exercer sobre os homens. Embora esteja se referindo à Primeira Guerra, o texto é de 1915, as considerações que ele tece são devidamente aplicáveis aos tempos de uma guerra ainda mais atroz que a primeira. O psicanalista falará de um sentimento de desilusão humana provocada pela guerra (FREUD, 1996, p. 288). Dizendo-se civilizado, como pode o homem ter a capacidade de tamanhas atrocidades contra sua própria espécie? Como podem os Estados irem contra suas próprias normas de conduta moral? ―Esperávamos que as grandes nações de raça branca, dominadoras do mundo, às quais cabe a liderança da espécie humana (...) conseguissem descobrir outra maneira de solucionar incompreensões e conflitos de interesse‖ (FREUD, 1996, p. 286). Entretanto, ... a guerra na qual nos recusávamos a acreditar irrompeu, e trouxe desilusão. Não é apenas mais sanguinária e mais destrutiva do que qualquer guerra de outras eras, devido à perfeição enormemente aumentada das armas de ataque e defesa; é, pelo menos, tão cruel, tão encarniçada, tão implacável quanto qualquer outra que a tenha precedido. Despreza todas as restrições conhecidas como direito internacional, que na época de paz os Estados se comprometeram a observar; ignora as prerrogativas dos feridos e do serviço médico, a distinção entre os setores civil e militar da população, os direitos da propriedade privada. Esmaga com fúria cega tudo que surge em seu caminho, como se, após seu término, não mais fosse haver nem futuro nem paz entre os homens. Corta todos os laços comuns entre 158 os povos contendores, e ameaça deixar um legado de exacerbação que tornará impossível, durante muito tempo, qualquer renovação desses laços (FREUD, 1996, p. 288). Se a Primeira Guerra foi capaz de provocar tais reflexões no psicanalista, o que ele diria da Segunda, que atingiu escalas espantosas de crueldade e desrespeito à vida humana? Freud não viveu o suficiente para conhecer o bombástico final dessa que se estendeu de 1939 – ano da morte dele – a 1945, mas sentiu o que as guerras de alcance mundial são capazes de provocar. Depois de testemunhar a subjugação de um povo nos campos de concentração e da morte de milhares de inocentes, vítimas de bombardeios aéreos, pergunta-nos Emílio Moura no poema se seria ainda preciso – e possível, acrescentemos – ―contra tudo‖ e ―contra todos‖, amar. Diante de tanta prova de ―desamor‖, indagamo-nos se é praticável o amor incondicional cantado por Drummond. Questionamentos do homem moderno, um ser em conflito com a glória de suas próprias conquistas e com o resultado muitas vezes aterrorizante delas advindo; em conflito com o esvaziamento de seus valores; melancólico, em meio aos escombros – ―ah, resta tão pouco!‖ – de um tempo tão cinzento. As guerras deixam sementes que se ocultam por tempos dentro da terra para, depois de germinadas e desenvolvidas, serem colhidas no futuro. Ou seja, os fatos calamitosos às vezes são calados no momento imediato de sua irrupção para, após serem temporalmente processados, emergirem do silêncio a que estiveram submetidos. ―Rosa de urânio‖ faz parte dessa colheita: Onde foi arco-íris, que forma se desenha, que flor que não é flor? (NM, p. 321) À imagem do ―arco-íris‖ geralmente é atribuído sentido positivo, tendo-se em mente a ideia de aliança com a divindade68. Entretanto, há um caráter negativo 68 “Deus disse: ‗Eis o sinal da aliança que eu faço convosco e com todos os seres vivos que vos cercam, por todas as gerações futuras: Ponho o meu arco nas nuvens, para que ele seja o sinal da aliança entre mim e a terra. Quando eu tiver coberto o céu de nuvens por cima da terra, o meu arco aparecerá nas nuvens, e me lembrarei da aliança que fiz convosco e com todo o ser vivo de toda espécie, e as águas não causarão mais dilúvio que extermine toda a criatura. Quando eu vir o arco nas nuvens, eu me lembrarei da aliança eterna estabelecida entre Deus e todos os seres vivos de 159 complementando sua simbologia. Segundo consta no Dicionário de símbolos, o arco-íris pode, também, ―preludiar perturbações na harmonia do universo e, até mesmo, assumir uma significação inspiradora de temor‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 78). Inserindo este poema entre os que mencionam – ou apenas sugerem – o contexto da guerra, consideramos que, ao apresentar o ―arco- íris‖ como algo que não mais se faz presente, sendo substituído por outra imagem, Moura aponta para a impossibilidade de se estabelecer uma aliança ou um acordo. E, sabedores do significado negativo da simbologia do ―arco-íris‖, pensamos, também, que, no momento em que se fez presente, ele poderia ter prenunciado os horrores advindos da ―rosa de urânio‖ que o substituiu. Essa expressão, que intitula o poema, refere-se à bomba atômica lançada pelos Estados Unidos sobre a cidade de Hiroshima em 6 de agosto de 1945. A bomba Little Boy, conhecida como ―bomba de Hiroshima‖, era feita de urânio, e o formato da nuvem radioativa resultante de sua explosão ficou mundialmente conhecido como ―cogumelo atômico‖. A Emílio Moura, entretanto, a forma sugere a imagem de uma rosa – a ―rosa de urânio‖. Por outro poeta, contemporâneo de Moura e, obviamente, da guerra, também o ―cogumelo‖ foi liricamente simbolizado como uma rosa. Falamos de Vinicius de Moraes e sua ―Rosa de Hiroshima‖: Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas, oh, não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroshima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada (MORAES, 1968, p. 350-351) toda espécie que estão sobre a terra.‘ Dirigindo-se a Noé, Deus acrescentou: ‗Este é o sinal da aliança que faço entre mim e todas as criaturas que estão na terra‘‖(Gênesis, 9, 12-17). 160 Emílio Moura é menos direto do que Vinicius de Moraes ao mencionar a bomba atômica. Ao dizer ―rosa de urânio‖, ele deixa subentendida tal referência, cabendo ao leitor decifrar a imagem construída. Sobre este modo de poetar contido de Emílio Moura, sem imagens radicais e violentas, retomamos o artigo ―Emílio Moura: a luz e a distância em seu Itinerário poético‖ (1990), em que Maria de Lourdes Moreira diz que o poeta se utiliza de ―peculiares circunlóquios metafóricos‖ e, a respeito do poema ―Rosa de urânio‖, ela acrescenta: ―... simbolizando a frágil e indefesa exposição do homem ao extermínio, três pequeninos versos suportam o peso do holocausto‖ (MOREIRA, 1990, p. 2). Já Vinicius de Moraes é explícito nessa abordagem ao atribuir à rosa o epíteto ―de Hiroshima‖, assim como ao utilizar as palavras ―radioativa‖ e ―atômica‖. Enquanto Moura apenas insinua a bomba, Moraes faz menção a alguns resultados da explosão sobre as pessoas. As vítimas foram as mais variadas possíveis: crianças, meninas, mulheres – inocentes que sofreram os devastadores efeitos, sejam eles físicos ou psicológicos, provocando cicatrizes no corpo e na alma dos sobreviventes. Moraes pede para que não nos esqueçamos da ―rosa de Hiroshima‖, hereditária de um ato estúpido, que a transforma em uma ―anti- rosa‖, ―sem cor sem perfume‖, ―sem nada‖; ou, pelas palavras de Emílio Moura, em uma ―flor que não é flor‖. Isto é, a rosa dos dois poetas possui apenas o formato de uma flor, pois se encontra esvaziada dos atributos próprios da rosa, como a cor e o perfume. Os versos de Vinicius de Moraes são publicados em uma coletânea de poemas escritos entre os anos de 1946 e 1950, portanto, muito próximos do evento catastrófico a que fazem referência. Porém, já apontavam para a necessidade de não se deixar que o fato caísse no esquecimento. E ele não caiu, ultrapassou o momento e reverberou em Moura, alguns anos mais tarde – o livro em que ―Rosa de urânio‖ é publicado data de 1969. O pedido de Moraes sobre o não esquecimento do ocorrido e o fato de Moura o atualizar nos conduzem a Adorno e seu pensamento a respeito da necessidade de não se esquecer Auschwitz69. As bombas atômicas e os campos de concentração precisam ser lembrados a fim de que não se repitam as atrocidades deles provindas. 69 Cf. página 77, em que Gagnebin (2009) apresenta este pensamento adorniano. 161 4.2 A melancolia dos órfãos de Deus: a crise da transcendência O mal-estar que transparece nos versos de Emílio Moura se apresenta, ainda, sob outra questão, também provocadora de angústia e melancolia no homem de seu tempo. Introduzimos essa temática pelos versos de ―Irremediável‖: É inútil continuar à espera se o céu já está vazio de estrelas, se eu sinto que estou sozinho e que tudo aqui está desamparado. Eu sei que tudo é inútil. Os ventos virão e, docemente, abafarão todas as vozes, e estrelas inumeráveis já não brilharão mais no céu distante. Eu sei que tudo é inútil, e sinto, agora, perfeitamente, que todas as estrelas já estão frias e [mortas, e que teu corpo já desapareceu para sempre dentro das asas [fluidas desta noite. (CHA, p. 58) Ao anunciarem um esvaziamento e um desamparo generalizado, o primeiro e o segundo versos, respectivamente, apontam para duas perdas que se entrelaçam. A primeira diz respeito à imagem do céu ―vazio de estrelas‖. Para entendê-la é preciso que consideremos o fato de tanto o ―céu‖ quanto as ―estrelas‖, ao indicarem o alto, simbolizarem a transcendência religiosa. E as estrelas são, sobretudo, símbolos de luminosidade. Assim, se o céu emiliano não possui estrelas, ele se encontra sem luz e, portanto, carente de presença espiritual, o que compromete seu sentido transcendental. O ser humano, porém, necessita de uma crença em algo que possa dar significado à sua existência, para que esta não seja em vão. A partir do momento em que há qualquer abalo nessa fé, o homem experimenta uma sensação de desamparo, um vazio existencial que pode resultar em um estado melancólico. Perdida a crença na transcendência, perde-se o amparo que o sustentava. Eis a segunda perda a que nos referimos. Tais privações nos reportam às considerações do pensador alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) a respeito da ―morte de Deus‖. O século XIX assistiu ao desenvolvimento de numerosas novidades técnicas, avanços em pesquisas relacionadas à saúde, novas filosofias, que, juntos, instauraram uma mentalidade cada vez mais racionalizada. Eric Hobsbawm, no livro A era dos extremos (1996), apresentando um panorama do início do século XX, mencionará 162 que o século anterior a este foi ―um período de progresso material, intelectual e moral quase ininterrupto, quer dizer, de melhoria nas condições de vida civilizada‖ (HOBSBAWM, 1996, p. 22). Entretanto, o conjunto de todo esse progresso resultará na divinização da ciência, promovendo uma desvalorização do aspecto transcendental da vida. É nesse contexto metamórfico que Nietzsche anuncia a ―morte de Deus‖70, no livro A gaia ciência de 1882. Essa ―morte‖ é um fato cultural, são os homens que ―matam‖ Deus ao descobrirem novas explicações para acontecimentos da vida cotidiana, ao inventarem novas tecnologias para satisfazerem suas necessidades, ao romperem com as tradições religiosas e filosóficas. Respostas que antes só achavam respaldo no campo da fé passaram a ser possíveis pelo uso da razão. Assim, o afastamento da crença no princípio de transcendência é um resultado de todo esse processo. Entretanto, tal afastamento não se dá de modo tranquilo para o homem, a ―sombra‖ de Deus e de toda a cultura cristã, embora estejam ambos mortos, paira sobre ele. ―O mais importante dos acontecimentos recentes – o fato de que ‗Deus está morto‘, o fato de que a crença no Deus cristão se tornou impossível – começa já a projetar sobre a Europa suas primeiras sombras‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 241). Apesar de ter sido o próprio assassino de Deus, o homem não consegue se conscientizar disso e das consequências do ato com facilidade: ... o acontecimento é demasiado grande, distante, afastado da compreensão da maioria para que se possa dizer que a notícia chegou, e muito menos ainda que a maioria tenha compreendido o que realmente ocorreu – e tudo o que vai desmoronar agora que essa fé foi enterrada, tudo o que estava construído em cima, tudo o que se apoiava nela e tudo o que nela crescia: por exemplo, toda a nossa moral europeia. Uma série sem fim de demolições, de destruições, de ruínas e de quedas nos esperam (...) (NIETZSCHE, 2008, p. 242, grifo nosso). Os versos de Emílio Moura, sujeito do século XX e, portanto, algumas décadas distanciado dessas reflexões, revelam um homem já consciente da orfandade divina e das consequências dela advindas. Ele sabe da inutilidade de se 70 ―Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como havemos de nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos! O que o mundo possuiu de mais sagrado e de mais poderoso até hoje sangrou sob nosso punhal – quem nos lavará desse sangue? Que água nos poderá purificar? Que expiações, que jogos sagrados seremos forçados a inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não seremos forçados a nos tornarmos nós próprios deuses – mesmo que fosse simplesmente para parecermos dignos deles?‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 150) 163 esperar pelo que vem – ―É inútil continuar à espera‖; ―Eu sei que tudo é inútil‖ –, compreende que está sozinho, sem o amparo divino. Modificou-se o sentido do céu, esvaziou-se o brilho das estrelas; elas estão ―frias e mortas‖. Essas constatações do poeta instauram nele um estado angustioso, reforçado pela palavra ―irremediável‖, que intitula o poema. Nada pode ser feito frente à realidade constatada. O fato de ele se mostrar consciente da impossibilidade de se alimentar a crença na transcendência e no amparo advindo dela não o exime de se sentir incomodado diante da situação. O uso de palavras como ―inútil‖, ―vazio‖, ―sozinho‖, ―desamparado‖, ―frias‖, ―mortas‖, ―irremediável‖ contribuem, pelo teor negativo de seus significados, para a construção desse estado a que chamamos de melancólico. Isto pode ser apreendido, também, nos versos do poema ―Aqui termina o caminho‖: Os sinos cantando, as sombras todas se diluindo dentro da tarde. Dentro da tarde, o teu grave pensamento de exílio. Por que ainda esperas? Aqui termina o caminho, aqui morre a voz, e não há mais eco nem nada. Por que não esquecer, agora, as imagens que tanto nos [perturbaram e que inutilmente nos conduziram para nos deixar, de súbito, na primeira esquina? Essa voz que vem, não sei de onde, esses olhos que olham, não sei o quê, esses braços que se estendem, não sei para onde... Debalde esperarás que o eco de teus passos acorde os espaços [que já não têm voz. As almas já desertaram daqui. E nenhum milagre te espera, nenhum. (CHA, p. 61) No poema precedente, o eu da escrita refere a inutilidade do ato da espera, diante do contexto esvaziado de sentido transcendental. Neste, pergunta a um interlocutor indefinido sobre o porquê de se estar, ainda, à espera de algo. Na verdade, soa mais como uma pergunta retórica do que como um questionamento verdadeiro, pois, pelo próprio ato de questionar, o poeta manifesta sua descrença em relação à esperança. A utilização do advérbio ―ainda‖ reforça essa incredulidade. É como se ele perguntasse: Por que insistes em esperar? Por que teimas em 164 esperar se o caminho terminou? O advérbio sugere, também, uma intertextualidade dos dois poemas, como se este fosse a continuação de ―Irremediável‖. A descrença que o poeta manifesta, ao reafirmar a inutilidade de se esperar, é reforçada pelas muitas noções de perdas indicadas nos versos, seja na utilização dos verbos ―terminar‖, ―morrer‖, ―deixar‖, ―desertar‖, ou no uso das palavras ―não‖ e ―nenhum‖. Anuncia-se, por exemplo, a morte de uma ―voz‖. Que voz é esta que não deixa sequer ecos? Ou seja, que não se faz ouvida, nem de modo vestigial? Não seria a voz divina, que não mais se propaga entre os homens? Há, também, o sentimento de um abandono repentino e desconsiderado, acontecido na ―primeira esquina‖. Pensamos na sensação de desamparo advinda da morte da crença em Deus, cabendo aos homens realizarem o luto, esquecerem ―as imagens que tanto nos perturbaram / e que inutilmente nos conduziram‖; isto é, esquecer tudo em que se acreditou até então. Foi uma crença inútil, porque não levou a nada. Não há mais almas, nem a possibilidade de milagres. A palavra ―alma‖ é muito rica simbolicamente, pois possui muitos sentidos. Em nosso contexto, interessa-nos o fato de que ela, ―por seu poder misterioso, sugere uma força supranatural, um espírito, um centro energético‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 31). Nesse sentido, o fato de as almas abandonarem o ―(d)aqui‖, advérbio representante do mundo do poeta, corrobora o que temos dito a respeito da perda da crença no transcendental, pois o que se dá, portanto, é um desertar de forças supranaturais. A afirmação emiliana da ausência de milagres também nos permite caminhar nessa direção. Como milagre significa algo que escapa à capacidade humana de realização, constatar sua ausência é, por conseguinte, verificar a carência do transcendental. Porém, no mesmo livro em que ―Irremediável‖ e ―Aqui termina o caminho‖ foram publicados, encontramos os seguintes versos, reunidos sob o título ―Sexta- feira da Paixão‖: Senhor, eu te sinto dentro de mim, não fúnebre, fúnebre, mas angélico e belo. Perto de mim, alguém está contando uma parábola sábia. (CHA, p. 69). 165 Considerando-se, primeiramente, o título do poema, temos a referência direta à morte do ―Senhor‖, afinal, a sexta-feira da Paixão é a data em que os cristãos rememoram a paixão e a morte de Jesus Cristo. O título, portanto, sugere- nos a continuidade das ideias emilianas a respeito do fim da crença na transcendência. Entretanto, Moura não apenas afirma sentir o ―Senhor‖ dentro dele como, ainda, nega Seu estado funéreo. O poeta, pois, recusa a ―morte de Deus‖ nesses versos. Dentro de si e em sua poesia Ele sobrevive. Como entendermos essa oscilação emiliana a respeito da presença divina, já que ao mesmo tempo em que seus versos nos levam a pensar na ―morte de Deus‖ anunciada por Nietzsche, conduzem-nos, também, à presença Dele? Na verdade, o irrompimento da ciência e o declínio da fé no transcendental não extraíram do homem a necessidade de buscar o sentido da vida. Isso porque a ciência não consegue explicar tudo, por mais que pretenda fazê-lo. Ela não consegue ocupar o espaço que ela mesma ajudou a esvaziar. Antônio Pierucci, em estudo intitulado O desencantamento do mundo (2003), afirma que ―uma das limitações da ciência mais difíceis de aceitar é justamente essa sua incapacidade de nos salvar, de nos lavar a alma, de nos dizer o sentido da vida num mundo que ela desvela e confirma como não tendo em si, objetivamente, sentido algum‖ (PIERUCCI, 2003, p. 158). A evocação ao ―Senhor‖ – artifício que Emílio Moura adota em alguns poemas – e a negação de Sua morte não são, por mais paradoxais que possam parecer, algo tão despropositado no contexto do mundo profanado pela racionalização técnico-científica. Isso porque, tendo em conta essa incapacidade da ciência e da tecnologia, o mundo não foi, na verdade, de todo desencantado. Permanecem, entre os homens, vestígios do ―encantamento‖. Utilizamos esta palavra no sentido que subentende a existência de forças ou seres sobrenaturais – Deus, por exemplo – que, pela impossibilidade humana de vê-los ou de tocá-los, são críveis apenas pela fé. O sentimento de orfandade do homem em relação a Deus não apaga a crença Nele. A perda moderna da fé na transcendência não exclui o fato de que, durante milênios, o homem se alimentou dessa fé. Assim, ele a traz entranhada em sua herança cultural e sente necessidade dela. Como a crença não foi substituída, mas apenas esvaziada, em seu vão ecoam os vestígios de toda essa herança. Os homens vivem, portanto, uma espécie de conflito gerado pelo progresso e a necessidade de preenchimento do sentido existencial. 166 O mesmo Pierucci (2003), analisando o conceito de ―desencantamento do mundo‖, recorrente na obra de Max Weber (1864-1920), constata dois possíveis sentidos para o termo. O primeiro, realizado pela intelectualização da religião, diz respeito a um processo de perda do encantamento e da magia existentes no mundo primitivo. Diante de seu universo mágico, cheio de animações, a religião procurará, a fim de doutrinar os leigos, impor sua ética por meio de um processo de racionalização. A moral religiosa, instaurando o pecado e o senso de culpa, passa a reger a vida do homem, que agirá, de forma consciente, a fim de garantir sua salvação, o que refletiria em seu comportamento em sociedade, em sua vida prática. Trata-se, enfim, de uma racionalização da conduta de vida (PIERUCCI, 2003, p. 69- 88). O segundo processo de desencantamento do mundo corresponde ao proporcionado pelo desenvolvimento das ciências, que procurará, utilizando-se de cálculos, amostras, comparações, análises, ou seja, por meio do empirismo, contribuir para a desconstrução de mitos e crenças em relação ao mundo natural. Estes passariam a ser substituídos pelo saber. O mundo seria, então, desencantado, transformado em um mecanismo, passível de ser explicado cartesianamente, da forma mais objetiva e metódica possível. Porém, a ciência não se ocupará de responder a questões existenciais (PIERUCCI, 2003, p. 151-166). Weber afirmará, no texto ―A ciência como vocação‖ (s.d.), um dos estudados por Pierucci, que ―a ciência não procura resposta para essas questões‖ (WEBER, [s.d.], p. 170), ela não se preocupa em buscar o sentido da existência do homem ou do mundo. Sabemos que a ciência se ocupa de questões materiais, que possam ser provadas pela percepção e pelo raciocínio. O fulgor do progresso científico atrai os homens, que depositam nele a expectativa de respostas para todas as coisas. Entretanto, ao perceberem que esse progresso não satisfaz as necessidades que extrapolam o conhecimento empírico, ou seja, aquelas que as descobertas, as invenções e as máquinas não são capazes de atender, os homens passam a se sentir frustrados. Daí esse significado de desencantamento do mundo pela ciência funcionar como um ―diagnóstico do nosso tempo‖ (PIERUCCI, 2003, p. 151) – do tempo de Weber, de Emílio Moura, de Pierucci e – por que não? – do nosso também. Nesse ponto, vemos semelhanças com as considerações que temos tecido no decorrer deste trabalho, pois o homem do século XX, representado pela voz do poeta Emílio Moura, sente-se melancólico frente ao mundo moderno, repleto de ciência e vazio do encantamento transcendental. 167 Os primeiros versos do poema ―Um dia‖ – ―Enquanto os homens se agitam e se entredevoram, enquanto / os autos voam pelas avenidas, os garotos anunciam os matutinos e os bancos se abrem‖ (CHA, p. 63) – mostram um mundo gerido pela modernização urbana e tecnológica pelo qual o Brasil começou a passar no início do século XX. As avenidas são um dos símbolos do processo de urbanização experimentado pelas grandes cidades. A exemplo de Paris, que foi toda reconfigurada, ainda no século XIX, pelo projeto modernizador do Barão de Hausmmann, ganhando avenidas que rasgaram a cidade. Essas ruas alargadas possibilitavam a velocidade, contribuindo para a instauração de um ritmo desenfreado no modo de viver. A vida moderna não para e, tal como no mecanismo de uma engrenagem, seus dentes devem se encaixar devidamente a fim de que a máquina não emperre. E como se trata de um girar constante, não é possível parar e refletir, por isso os homens se entredevoram, pois os dentes da engrenagem trituram o que se põe entre eles; por isso os carros voam pelas avenidas; as informações são renovadas toda manhã; o mundo econômico tem sua tarefa reiniciada a cada dia. No século de Emílio Moura, ―o mundo estava repleto de uma tecnologia revolucionária em avanço constante, baseada em triunfos da ciência natural‖, afirma HOBSBAWM (1996, p. 22), que menciona, também, a revolução nos transportes e nas comunicações, ―que praticamente anulou o tempo e a distância‖ (HOBSBAWM, 1996, p. 22)71. Emílio Moura aponta a modernidade de seu tempo, mas não a apresenta de modo glamoroso. Se as imagens construídas no segundo verso são isentas de qualquer teor negativo, apenas indicando a velocidade e a engrenagem modernas, a dos homens se entredevorando, no primeiro verso, denuncia que essa modernidade apresenta seus paradoxos. Um é o efeito dela na vida prática dos homens, outro é seu efeito sobre a vida subjetiva deles, atingindo seu estado psicológico. Os versos sequentes aos dois apresentados apontam para essa diferenciação: dentro de nós, as mesmas sombras de sempre estão contando a mesma estória de [sempre. 71 Hobsbawm constata esse lado positivo do progresso para, logo em seguida, tratar do lado sombrio do século XX, a partir de 1914, quando começa o que ele chama a ―era da catástrofe‖, um período de 31 anos de conflitos mundiais, dentre eles as duas grandes guerras. 168 Entretanto, lá fora, eu sei que faz sol, lá fora. Que força estranha me impele assim para mim mesmo? Um dia, entretanto, eu tenho certeza, nenhum obstáculo será mais [possível e, livre, livre, a vida há de prosseguir viva dentro de nós. (CHA, p. 63) Mundo externo versus mundo interno. Enquanto ―lá fora faz sol‖, ―dentro de nós‖ há sombras. Entendemos a claridade do mundo externo como sendo a propiciada pelo avanço da ciência com suas descobertas e invenções. Imagem relativamente parecida com a da alegoria que inicia o ―Livro VII‖, de A república de Platão. Nela, os homens, acorrentados dentro de uma caverna, de costas para sua entrada, só enxergam as sombras que são projetadas sobre a parede da caverna pelo efeito de uma luz incidindo sobre as coisas no mundo exterior (PLATÃO, A república, 514a-c). Há todo um conjunto de acontecimentos ocorrendo tanto fora do eu emiliano quanto fora da caverna. Aquele que sai e verifica, na claridade, que a verdade das sombras está lá fora e volta, tentando alertar seus companheiros, é o filósofo, o que entra em contato com a luz do conhecimento. É neste ponto que o verso ―lá fora faz sol‖ nos levou a Platão, pois vemos semelhança entre o sol do conhecimento platônico e o sol do progresso científico em Moura e as sombras por eles proporcionadas. O ―dentro de nós‖ dos versos equivaleria ao dentro da caverna; a força que impele o eu emiliano para dentro de si mesmo seria como a que impede que os homens da caverna tenham coragem de sair ao encontro da luz. Isto é, o conhecimento, a ciência e o progresso são reais, brilham intensamente, mas, ao mesmo tempo, causam receio, incomodam, projetam sombras, fazendo com que os homens permaneçam no interior da caverna ou sejam impelidos para dentro de si mesmos, como em Moura. Freud (1997b) também abordará essa dualidade surgida dos avanços da ciência, constatando que, à medida que o tempo passa, o controle da natureza pelo homem foi se tornando cada vez mais forte. Com isso, ―os homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se orgulharem‖ (FREUD, 1997b, p. 39). Por isso a claridade existente no mundo exterior em que o eu da escrita se encontra. A glória do cientificismo e da técnica ilumina a modernidade. Freud, como se 169 respondesse ao questionamento nietzschiano – ―Não seremos forçados a nos tornarmos nós próprios deuses (...)?‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 150) –, ressalta que o poder de criação que esses avanços científicos e tecnológicos proporcionam aos homens faz com que eles se assemelhem a deuses (FREUD, 1997b, p. 44). Porém, essa é apenas uma das faces da modernidade. A que se encontra voltada para frente, vendo o progresso com seus benefícios e dando ao poeta a consciência da existência do ―sol‖. Existe outra face que olha em direção distinta, enxergando os rastros deixados pelo progresso, que fazem com que o eu emiliano constate as sombras interiores. E não se trata de sombras apenas pessoais, embora seja um poema em que predominam os pronomes referentes à primeira pessoa do singular. O uso do ―nós‖, nas duas vezes em que o poeta faz referência ao ―dentro‖, amplia o sentimento de mal-estar subentendido na imagem da sombra, coletivizando-o. Assim, o brilho da ciência e do progresso ofusca os homens em geral. Sobre essa face sombria, ainda no texto a respeito do mal-estar na civilização, Freud ressalta que, após se transformarem em quase deuses, os homens ... parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes (FREUD, 1997b, p. 39). Pelo contrário, tornou-os melancólicos, porque, conclui o psicanalista a este respeito, ―o poder sobre a natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como não é o único objetivo do esforço cultural‖ (FREUD, 1997b, p. 39). O ser humano precisa de mais coisas que preencham sua existência, coisas que fujam da mera função utilitária. E a ciência, como já mencionamos, não as pode oferecer. No poema ―Um dia‖, esse ―efeito Jano‖72 – ou seja, duplo – da modernidade, enquanto um dos propulsores do estado melancólico do homem moderno, está representado pelos opostos ―sol‖ e ―sombras‖, ―fora‖ e ―dentro‖. Outras características relacionadas à melancolia também se fazem presentes, como 72 Jano, na mitologia romana, é o ―deus das transições e das passagens, marcando a evolução do passado ao futuro, de um estado a outro, de uma visão a outra, de um universo a outro, deus das portas. (...) Seu rosto duplo significa que ele vela tanto sobre as entradas como sobre as saídas, que olha o interior e o exterior, a direita e a esquerda, o alto e o baixo, a frente e as costas, o pró e o contra‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 512). 170 o ato de se interiorizar, caracterizado por Freud como uma ―inibição melancólica‖ (FREUD, 1996, p. 251), e a indeterminação do motivo que leva o homem a se melancolizar, ou seja, não se sabe qual a perda real que provoca tal estado. O eu emiliano da escrita questiona: ―Que força estranha / me impele assim para mim mesmo?‖ Restam sempre a questão e o questionamento. Toda essa discussão a respeito das duas faces do progresso propiciada pelo poema de Moura e a imagem de uma força impulsionando o eu da escrita nos permitem puxar, da ampla malha intertextual da literatura e suas teorias, um fio que nos conduz a Walter Benjamin e à sua interpretação do quadro Angelus Novus, de Paul Klee. Em ―Sobre o conceito de história‖ (1994), na tese de número nove, Benjamin elabora sua leitura do referido quadro: Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1994, p. 226). Apresentar o progresso como uma tempestade demonstra bem ―a outra face‖ dos avanços científicos a que temos nos referido – qual seja, a que dessacraliza o mundo, tornando o homem melancólico. Virando as costas para o futuro, o anjo manifesta o desejo de voar contra os ventos do progresso ou de, pelo menos, resistir ao poder deles. Atitude vã, pois é impossível lutar contra esse poder. Em Emílio Moura há também uma força que o obriga a encontrar as sombras, ou seja, que faz com que ele, de certo modo, dê as costas para o sol do progresso73. Se a ele essa força é estranha, a nós nos parece ser a própria força do progresso. Ele impele o eu emiliano da escrita para o futuro – a expressão ―um dia‖, que aparece nos versos e intitula o poema, subentende esse futuro – assim como impulsiona o anjo interpretado por Benjamin. Ao mesmo tempo, é o próprio evoluir 73 Há, portanto, uma diferença, qual seja, a de que em Benjamin o anjo parece agir voluntariamente ao virar as costas para o futuro, enquanto que em Emílio Moura o eu da escrita é impelido a voltar-se para si mesmo. 171 do progresso que faz com que as ruínas se acumulem sob os pés do anjo que olha para o passado e que promove o mal-estar no poeta, obrigando-o a ensimesmar-se. O poema ―Um dia‖, permite-nos ler, ainda, a temática da melancolia dos ―órfãos‖ de Deus e da necessidade em relação ao sagrado. Em epígrafe ao poema, o poeta resgata os seguintes versos do escritor francês André Gide (1869-1951): ―Seigneur! Seigneur! / nous sommes terriblement enfermés‖74. Gide é um homem do mundo profanado pelo progresso – ele vive a transição do século XIX para o XX e, portanto, experiencia um momento de intensa evolução racionalista e cientificista –, afirmando uma sensação de desconforto, sentindo-se enclausurado. Estabelecendo a relação da epígrafe com os versos, entendemos que os homens estejam encarcerados, fechados em seu interior, nas sombras que lhe preenchem o íntimo. O chamamento duplo ao ―Senhor‖ soa como um pedido de socorro, uma súplica por liberdade, a qual Emílio Moura tem certeza de que, ―um dia‖, será atendida. A última estrofe do poema, em que é utilizado duas vezes o adjetivo ―livre‖, que se opõe ao ―enfermés‖ da epígrafe, anuncia esta certeza: a de uma vida ―viva dentro de nós‖, ou seja, liberta das sombras que aprisionam o homem. A epígrafe utilizada por Moura mostra a permanência do sagrado no mundo profanado pela ciência. Mostra, ainda, que essa permanência, indicada pelo artifício de evocar o Senhor, não é própria apenas do poeta Emílio Moura, mas possível de ocorrer em outros poetas que também testemunharam as mudanças da época. A convivência do profano com o sagrado na obra de Moura é outro aspecto de sua poesia que nos permite estabelecer a correspondência entre o poeta e o Angelus Novus pela visão de Benjamin. Michael Löwy, na obra Walter Benjamin: aviso de incêndio (2005), interpretando a leitura benjaminiana, constata, nela, a presença concomitante do sagrado e do profano. As imagens do anjo e do Paraíso simbolizam o sagrado, enquanto que a tempestade promovida pelo progresso corresponde ao aspecto profano (LÖWY, 2005, p. 89). No que diz respeito à presença do profano em Moura, temos também, nos poemas que já vimos, a imagem do progresso. É ele que promove o sentimento de orfandade do homem em relação a Deus, ou seja, é ele que dessacraliza o mundo moderno, causando mal- estar, ensimesmamento, apatia. Aludindo ao sagrado, o poeta invoca o Senhor, menciona o céu e as estrelas, fala de ausência de milagres e de almas. Utilizando- 74 Senhor! Senhor! nós estamos terrivelmente encarcerados! (tradução nossa) 172 os, mesmo que se apresentem esvaziados de sentido transcendente, Moura aponta para uma necessidade de afirmá-los em meio à profanação do mundo moderno. Nos versos de ―Poema‖, por exemplo, o eu emiliano da escrita reconhece a existência de Deus, embora ele se encontre além do alcance humano: Já não olhamos para o alto, nem para baixo. Vivemos sob a terra, almas subterrâneas, vozes sem eco. Entretanto existes. Sentimos que existes, mas é inútil e, insensíveis, nos calamos. Já não temos braços, nem pernas. Já perdemos a graça de compreender o que nos poria de novo sob [o Teu signo. Mergulhados no tempo, em vão queremos descobrir onde nos [abandonaste. Estrela solitária, navegas num céu indecifrável que ninguém atinge. Só os poetas Te reconhecem. Só as crianças é que ainda Te procuram como se tivessem asas. A eternidade Te revelou quando ainda não havia noite. A eternidade Te conservará até que a última noite desapareça. (P, p. 186) Novamente, Moura assume uma voz plural, atribuindo um caráter social a suas reflexões. Apresenta-nos, na primeira estrofe, a situação dos homens de seu tempo, que vivem sem se voltarem para o ―alto‖ nem para ―baixo‖. Parece-nos bastante evidente a imagem do ―alto‖ simbolizar a transcendência divina. Isto se confirma logo em seguida, quando o poeta grafa o pronome possessivo de segunda pessoa com letra maiúscula – ―Teu‖ –, artifício comumente utilizado para se demonstrar que os pronomes fazem referência a Deus. Também o uso da segunda pessoa, seja do singular ou do plural, ao se estabelecer uma interlocução com Deus, é uma recorrência ao discurso bíblico. Contudo, os versos nos afirmam que os homens não se voltam para ―baixo‖. Considerando-se a relação antonímica das duas palavras – ―alto‖ e ―baixo‖–, lembramos a concepção dualista do cristianismo, que estabelece opostos como esse que aparece no poema, além de céu-inferno, Deus-demônio, bem-mal etc. Assim, recusando o ―alto‖ e o ―baixo‖, haveria por parte dos homens a negação da crença cristã, ou seja, novamente a dessacralização do mundo. Essa recusa nos lembrou que a ―morte de Deus‖ ao ser anunciada promoveu vários questionamentos a respeito da condição do homem órfão da transcendência divina. Dentre eles: 173 ―Haverá ainda um acima e um abaixo? Não estaremos errando como num nada infinito?‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 150). Pela atitude dos homens contemporâneos de Moura, em seus versos, a primeira pergunta já se encontraria respondida e sua resposta é negativa. Afinal, os homens vivem no plano terrestre. Como se a dúvida surgida logo após a morte ser realizada desaparecesse com o passar do tempo. O próprio Nietzsche fala da necessidade de deixar o tempo passar para que a situação que se instaurava fosse compreendida: Esse acontecimento enorme ainda está a caminho, caminha – e ainda não chegou aos ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo, as ações precisam de tempo, mesmo quando foram executadas para serem vistas e entendidas (NIETZSCHE, 2008, p.150). Entretanto, os homens não estão, simplesmente, ―sobre‖ a terra, mas ―sob‖ ela75, como que escondidos. Mas escondidos de quem? Podemos achar a resposta na afirmação do poeta a respeito da existência de Deus. Apesar de viverem em um mundo profanado, os homens sentem que Ele existe, embora não consigam mais alcançá-Lo. A consciência da presença de Deus não lhes traz conforto; pelo contrário, sentem a inutilidade desse reconhecimento. Diante da situação, eles não falam; não possuem ―braços‖ nem ―pernas‖, nem ao menos ânimo76 para encontrar um modo de serem novamente acolhidos por Deus, pois, segundo os versos, foi Ele que os abandonou. Devido a essa impotência humana diante de Deus é que pensamos na imagem da vida subterrânea como um esconderijo, como se os homens quisessem se manter longe dos ―olhos‖ divinos. Eles já desistiram de tentar restaurar a crença perdida, pois Deus se encontra cada vez mais fora do alcance humano. Entretanto, dois tipos específicos de pessoas se apresentam de modo diferenciado em relação à aliança com Deus, conforme apontam os versos: ―Só os poetas Te reconhecem. / Só as crianças é que ainda Te procuram como se tivessem 75 Situação que nos remete, novamente, ao mito da caverna de Platão, estando os homens dentro da terra, como em cavernas, escondidos da claridade de fora. Anteriormente, quando analisávamos o poema ―Um dia‖ (CHA, p. 63), referimo-nos à claridade como sendo as luzes do conhecimento, agora, a lemos como a presença de Deus. 76 Esta descrição da situação em que os homens se encontram coincide com parte da definição freudiana a respeito do sujeito melancólico, que experimenta ―um desânimo profundamente penoso, (...) a inibição de toda e qualquer atividade‖ (FREUD, 1996, p. 250). Sem braços e pernas, os homens se encontram quase imobilizados, incapazes de uma atividade física. 174 asas‖. Procuremos entender por que se dá a distinção dessas pessoas que, excluídas da pluralidade, são colocadas em relevo. Tratando primeiro da questão das crianças, podemos pensar no fato de a elas comumente ser atribuída a caracterização da inocência. Não corrompidas pelo mundo profanado, elas poderiam, portanto, ―procurar‖ por Deus. Outra interpretação para essa proximidade entre o poeta e a criança é encontrada em Charles Baudelaire, no texto ―O artista, homem do mundo, homem das multidões e criança‖ (2007). O poeta francês, comparando o artista com o convalescente e a criança, afirma que o primeiro deveria estar em permanente estado de convalescença, o qual equivaleria a uma volta à infância. Isso porque a criança, um ser intensamente sensível, possui uma capacidade imensa de se extasiar com coisas em geral, assim como o convalescente que, ao se recuperar de uma doença, se interessa mais profundamente pelas coisas a seu redor (BAUDELAIRE, 2007, p. 18-19). É na sensibilidade e na curiosidade da criança, contrapostas à razão do homem adulto, que o artista moderno em geral – e, portanto, também o poeta – deve se espelhar. Quanto ao destaque dado aos poetas, como os únicos capazes de reconhecer Deus, pode ser entendido não apenas pela sensibilidade e pela curiosidade, conforme indica Baudelaire, mas também pelo fato de a arte – a poesia, no caso de Moura – ser uma das formas que o homem encontra para ―salvar‖ a transcendência perdida pela realidade mundana e prosaica. Olívia Montenegro, no texto ―Um poeta mineiro‖ (1969), reflete a respeito do papel da poesia em contextos conturbados como o da modernidade. A autora diz: Nunca como hoje, ao que se parece, fez-se tão necessário ao homem em geral uma aproximação mais íntima e mais constante com a poesia, com uma arte de elevação não apenas do intelectual mas espiritual que tem a poesia. Pelo menos a poesia dos termos em que se sabe aprofundá-la poetas da dimensão de Emílio Moura. A literatura poética não é já hoje um fenômeno apenas das belas artes. Que bem assimilada é melhor que isto: é necessário remédio contra as brutas desfigurações do processo tecnicista dos nossos dias, que tudo deixa às mãos e quase nada ao espírito do homem. E por isto mesmo nunca o homem foi mais contra o homem, e nunca a ciência foi mais barbaramente ciência e que ameaçasse fazer mais do lado da morte do que do lado da vida. Nunca, enfim, fez-se de um espírito mais antipoético. Um dos efeitos essenciais da poesia é precisamente o de esclarecer o homem no homem, sensibilizá-lo para formas superiores da vida, pô-lo em um maior contato de espírito com a realidade das coisas. Fazê-lo mais emocionalmente homem (MONTENEGRO, 1969, p. 8). 175 Encontramos em um dos ―Fragmentos‖ de Moura, frase que dialoga, perfeitamente com o pensamento de Montenegro. Diz o poeta: ―Função da poesia. É Max Jacob quem está com a palavra: ‗L‘homme perd à tout instant les sentiments humains e leur expression. La poésie les lui rend77‘‖ (MOURA, 1969, n. 137, p.11). Sigmund Freud (1997b) também apresenta uma reflexão a esse respeito, atribuindo à arte, de modo geral, uma função aliviadora. Segundo o psicanalista, ―a vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas‖ (FREUD, 1997b, p. 22). Dentre essas medidas, encontram-se as manifestações artísticas, que funcionariam como um atenuante da tensão provocada pela dessacralização do mundo moderno. Emílio Moura, inserido por seu papel de poeta entre aqueles capazes de reconhecer Deus, estaria, então, de certa forma, por meio de sua arte, contribuindo para que sobrevivam alguns traços da crença no transcendental. ―O morto-vivo‖ é um poema que apresenta, no próprio título, a sugestão dessa sobrevivência: Esquivo encontro de rua, risco no ar, clarão, relâmpago. Que é do morto que jazia sob o musgo, sob a pedra, sob milênios erguidos com febre, torpor e lágrima? Que é do morto que morria a cada visão distante, a cada novo crepúsculo? Não houve morte. Não há. Há febre, torpor e lágrima; há o dia fixo, o degredo, o signo que não se entende, o sol, o pântano mudo, a rosa cortada no ar. Há a vida secreta, hermética, o olhar que se abre – é de vidro, a flor que brilha – é de pobre matéria plástica; há a aurora que se acalenta – é reflexo de esquiva luz, já se foi. Com que força, com que ímpeto, 77 O homem perde a todo momento os sentimentos humanos e a expressão deles. A poesia lhe restitui (tradução nossa). 176 o morto vivo caminha! (IE, p. 202) Os versos iniciais do poema apresentam um quadro sombrio, composto por imagens de um encontro indesejado, em um ambiente escuro – talvez a noite, já que é possível perceber o clarão do relâmpago cortando o ar –, com um morto saído de seu jazigo. Faz-se referência a alguém que esteve ―morto‖ enquanto os milênios se construíam em meio a dores, enquanto novas esperanças se anunciavam – entendemos o termo ―visão‖ de modo figurado, como algo que representa uma expectativa, um desejo. Mesmo que seja esperança longínqua, porque ―distante‖, e passageira, no sentido que a palavra ―crepúsculo‖ possui de significar um momento transitório de claridade, entre a noite e o nascer do sol ou entre o entardecer e a noite. Contudo, que morto é este a que o poeta alude e sobre cuja situação indaga? ―Que é do morto...?‖, ou seja, onde ele está que não mais se mostra no jazigo? E o encontra, nos versos finais, caminhando impetuosamente. É inevitável não pensar na ressurreição de Jesus78, em seu túmulo protegido por uma pedra – tal como nos versos, o morto jazia ―sob a pedra‖ – e na forma perfeita com que aparece ao ressurgir. Jesus foi morto pelos homens, mas permaneceu entre eles. O testemunho de quem com Ele conviveu foi transmitido de geração a geração, seus ensinamentos tidos como base de toda uma ética religiosa. Interpretando dessa forma, lemos o ―morto-vivo‖ de Moura ligando-o à questão da permanência da transcendência no mundo moderno. Não que houve uma ressurreição da fé transcendental, ou seja, que ela morreu e ressuscitou, mas que, na verdade, permaneceu, embora sua morte tenha sido anunciada. O poeta declara, categoricamente, que ―Não houve morte‖. Reafirma o dito, atualizando-o para seu presente: ―Não há‖. 78 ―Ide depressa e dizei aos discípulos que ele ressuscitou dos mortos. Ele vos precede na Galileia. Lá o haveis de rever, eu vo-lo disse‖ (Mateus 28, 7); ―Mas Deus o ressuscitou ao terceiro dia e permitiu que aparecesse, não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia predestinado, a nós que comemos e bebemos com ele, depois que ressuscitou‖ (Ato dos apóstolos 10, 40-41); ―...que, segundo o Espírito de santidade, foi estabelecido Filho de Deus no poder por sua ressurreição dos mortos‖ (Epístola aos romanos 1, 4); ―...que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado, e ressurgiu ao terceiro dia, segundo as Escrituras‖ (Primeira epístola aos coríntios 15, 3-4); ―A este Jesus, Deus o ressuscitou: do que todos nós somos testemunha‖ (Ato dos apóstolos 2, 32); ―Porquanto fixou o dia em que há de julgar o mundo com justiça, pelo ministério de um homem que para isso destinou. Para todos deu como garantia disso o fato de tê-lo ressuscitado dentre os mortos‖ (Ato dos apóstolos 17, 31). E da ressurreição de outros mortos (cf., entre outros, João 11, 44; Mateus 27, 53; Ato dos apóstolos 4, 1-2 ; Epístola aos romanos 8, 11; Apocalipse 20, 4-5). 177 Há sofrimentos que provocam ―febre‖, ―torpor‖, ―lágrima‖, ―degredo‖. Há ―signo que não se entende‖, ―pântano mudo‖, ―rosa cortada‖. Palavras e imagens que denotam um contexto obscuro pairando sobre os versos, ou melhor, dando embasamento para que eles fossem constituídos. É o contexto da modernidade urbano-industrial em que se insere o poeta; do pós-guerra e, portanto, do pós- atrocidades. Contexto das ciências em progresso desenfreado, produzindo ―olhares de vidro‖ e ―flores de plástico‖. Artificialidades que não preenchem as necessidades humanas referentes ao sentido da existência, à sensação de abandono que o homem moderno sente, conforme vimos anteriormente. No poema ―Gênese‖, exsurge um mundo em decomposição, com nostalgia de Deus, seu ordenador primeiro: Há sempre uma hora, uma hora densa, uma hora inesperada, em que a paisagem mais inocente tem o fulgor de um fiat. O tempo sonha que é espaço, o espaço sonha que é tempo, a realidade se compenetra de sua irrealidade. O homem repensa o mundo. O mundo se recompõe em sua nostalgia de Deus. (HT, p. 268) Comecemos pelo título que encabeça esses versos. Trata-se de uma referência explícita ao primeiro livro bíblico que narra, em sua parte inicial, a criação do mundo, das coisas e dos seres. O que antes havia era o predomínio das trevas, a informidade e o vazio da terra. Por meio da palavra ―fiat‖, Deus ordenou que as coisas se fizessem, e elas se fizeram. Foi assim que separou luz e trevas; dia e noite; céu, terra e mar. Organizou o mundo, para, depois de preenchê-lo de plantas e animais, criar o homem e lhe dar poder sobre tudo o que Ele havia criado (Gênesis, 1). Essa referência à origem dos seres e das coisas é facilmente perceptível pelo título do poema e pela utilização da palavra ―fiat‖, mas não só por eles. Podemos perceber, imbricadas na tecelagem dos versos de Moura, algumas sugestões da recriação desse instante originário. O poeta fala da existência de momentos diferenciados, por sua intensidade e imprevisibilidade, em que as coisas parecem se mesclar, em que as noções de tempo e espaço, tão caras ao mundo capitalista – time is money! –, se confundem, em que a realidade perde seu caráter 178 de verdade. Como se se instaurasse uma indefinição das coisas, lembrando-nos o caos que havia antes da criação e da ordenação do mundo por Deus. Em momentos como esse, em uma espécie de suspensão do ―aqui‖ (espaço) e do ―agora‖ (tempo), apartado da engrenagem acelerada e profanada da vida moderna, o homem é capaz de repensar seu mundo em decomposição. Se considerarmos o que temos dito a respeito do contexto do século XX – carente da fé na transcendência e rico em catástrofes como as de Auschwitz e Hiroshima –, pensamos, inclusive, na instauração de novas trevas, como trevosa era a terra antes de Deus ordenar o ―fiat lux‖. O mundo moderno vive tempos sombrios e, sem Deus para lhe dar luz e ordem – o mundo tem ―nostalgia de Deus‖ –, cabe ao próprio homem o papel de repensá-lo. É preciso recompô-lo, estabelecer uma nova gênese, fazer, novamente, a luz. Ao anunciar a ―morte de Deus‖, Nietzsche conjeturara: ―Nunca houve ação mais grandiosa [como a de matar Deus] e aqueles que nascerem depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que o foi alguma vez toda essa história‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 150). Embora Emílio Moura tenha nascido após Nietzsche, seu tempo não é considerado o ―mais elevado‖ da história. Pelo contrário, os poemas sobre os quais refletimos neste capítulo demonstram um tempo de homens melancólicos, cujo progresso científico e tecnológico proporciona mal-estar, um tempo de homens órfãos de uma crença de que necessitam e que, portanto, não se perde totalmente para eles. 4.3 A morte ressignificada: a noite de um poeta melancólico No início do capítulo, aludimos ao fato de os dois últimos livros de Emílio Moura (Habitante da tarde e Noite maior) apresentarem uma intensificação de imagens e temáticas sombrias e melancólicas. A sequência dessas duas publicações, que caminha da ―tarde‖ para a ―noite‖ aponta para a gradação crescente do estado melancólico do eu emiliano. Isso porque, ao preceder a noite – metáfora de ―um estado de dor, desesperança; tristeza, melancolia, abatimento‖ (HOUAISS, 2001) –, a tarde e principalmente o cair da tarde, instante correspondente ao crepúsculo, representariam o momento em que tal estado se 179 anuncia. É por ela que as sombras ganham espaço para se instalarem e fundarem a escuridão própria da noite. As sombras e a escuridão serão lidas como indicativas do estado melancólico do homem que vive no mundo profanado pelo racionalismo científico. Vejamos, aos poucos, como isso se dá. O livro Habitante da tarde é iniciado pelo soneto ―Mundo morto‖: Resto de tarde já de si vazia, viva sombra da noite antecipada. A chama esvai-se, apaga-se o teu dia que, pesadas as coisas, não foi nada. Pensar em tudo: no horizonte mudo, no visto, no sonhado, no vivido, e sentir, como um bêbado, que tudo surge sem forma: nada tem sentido. Coisas idas, presentes e futuras, tudo se tece de uma vaga bruma, um compor de mil formas tão obscuras que não se sabe quando nasce o dia e, quando nasce, ninguém vê nenhuma luz. Ó dia cansado de ser dia! (HT, p. 225) A tarde emiliana é apresentada em seu findar, quando as sombras começam a surgir, o que a leva a ser considerada uma ―viva sombra da noite antecipada‖. Já de início, temos a sombra sendo atribuída à caracterização da tarde. Se há menção a imagens de luz, como ―chama‖ ou ―dia‖, elas logo têm seu sentido esvaziado: a chama se esvai e o dia se apaga. A perda da luminosidade, portanto, é emblemática da dessacralização que ocorre no mundo moderno, caracterizado pelo poeta como um ―mundo morto‖. A imagem do dia se apagando também possui uma significação que segue rumo a essa interpretação. O verbo ―apagar‖, ao ser associado ao dia, sugere a perda da luz própria desse período. Apagada, a luz não mais propaga seu brilho, deixando que se instaurem as sombras; não mais indica a vida, nem aventa a salvação, a eternidade e, portanto, a transcendência. Assim, a imagem do dia apagado, do mesmo modo que a da chama se esvaindo, contribui para a construção do clima desalentador que se instaura neste ―resto de tarde‖. Tal clima é reforçado pelo predomínio de palavras e imagens que remetem à escuridão, inutilidade, falta de sentido, como: ―o teu dia / (...) não foi nada‖; ―nada tem sentido‖; 180 ―horizonte mudo‖; ―tudo / surge sem forma‖; ―mil formas tão obscuras‖; ―dia cansado de ser dia‖. Entendemos que a primeira estrofe do poema caracteriza a situação desalentadora do mundo contemporâneo ao poeta, promovida pelo esvaziamento do aspecto transcendental. E os trechos destacados acima, carregados de sentido negativo, sugerem um sentimento melancólico no eu da escrita. Sentimento este que o leva a refletir e concluir, nas estrofes seguintes, pela falta de sentido das coisas, pela obscuridade que acompanhará não só o ―resto de tarde‖, mas também o nascer do dia. Achamos válido mencionar o fato de que, nos dois livros sobre os quais nos debruçamos, agora, a imagem da tarde, aparece, predominantemente, como sendo uma prenunciadora da noite. Tal sequência temporal é óbvia, afinal a noite vem após a tarde. Contudo, se isso é incontestável, por que o poeta insiste em destacar essa passagem da tarde para a noite? Por que ele insiste em apresentar a tarde como ―noite antecipada‖, como sua anunciadora, como um momento em que as sombras se instauram? Correlacionadas à tarde e à noite temos as imagens da luz e da sombra, estando a segunda sempre79 a tomar o lugar da primeira. Não é recorrente a noite ser seguida pelo amanhecer, por exemplo, nem a sombra ser substituída pela luz – o que indicaria, conforme vimos a respeito da simbologia dessa palavra, indícios de felicidade, de fé. No caso, fé em que, após os momentos de sombra, a luz representaria uma espécie de salvação. Trata-se de um trecho da obra de Moura em que o ciclo temporal parece não se completar (manhã → tarde → noite → manhã). Ao invés disso, tal ciclo surge alterado, insistindo no caminhar da tarde para a noite, até chegar a um ponto em que outra fragmentação instaura uma noite contínua, a ―noite maior‖. O poema ―Anunciação da noite‖, também de O habitante da tarde, se desenvolve tendo esse instante de transição da tarde para a noite como fundamento: Que verso mais que verso falaria deste instante? Que verso, duro ou plástico, se o olhar nada distingue e, entre tantas miragens, já percebe que não cabes escolher? 79 Exceto no poema ―O homem dentro da noite‖ (NM, p. 344), à frente analisado. 181 Que verso, se o sentido do que vê se dissolve, ou funda-se em perdidas raízes de entre ser e não-ser? Gritar: houve meu dia? Mas, que dia era esse, se a noite o visitava, entre dois brilhos, duas palmas, dois cantos, dois sorrisos? Gritar: a tarde é áspera? Que importa? A sombra já prepara seu hálito, seu frio, suas asas caídas, seu silêncio, seu ar de eternidade. (HT, p. 280) Os versos tratam de um instante específico, em que as coisas se tornam indistintas ao olhar humano, proporcionando apenas miragens. Momento em que não cabe mais ao poeta fazer escolhas, em que o sentido das coisas se perde ou se prende a ―perdidas raízes‖ – pensamos na crença no transcendental perdida para o homem moderno. De início, este instante não é delimitado cronologicamente. O que sabemos é que ele transtorna o eu da escrita, fazendo com que ele cumule o poema quase que exclusivamente de interrogações. Como falar de um momento como este? Consegue a palavra lírica alcançar o significado deste contexto de desesperança? Eis o poeta melancólico, refletindo sobre as dificuldades de sua função no mundo moderno e sobre sua vida que, sendo visitada pela noite, experimentou momentos escuros, ou seja, angustiosos. Entendemos que, ao perguntar ―Houve o meu dia?‖, o poeta deixa subentendido: houve luz, houve claridade, esperança em minha vida? E ele reconhece que em alguns momentos a noite esteve presente. Somente os quatro últimos versos não constituem um questionamento, e somente neles ocorre a referência explícita à sombra que chegará. Nesta estrofe final, temos a indicação de que se trata de um momento próprio da tarde e a constatação de que, nesse momento, nada mais importa. Não interessa se a tarde em que o poeta vive é um instante difícil, porque consiste apenas – e então nos voltamos para o título do poema – na anunciação da sombra que chegará, ou seja, da noite que está por vir. A utilização da prosopopeia permite ao poeta construir a 182 imagem da sombra, atribuindo-lhe determinadas propriedades e capacidades, tais como: possuir ―hálito‖, proporcionar ―frio‖, ter ―asas caídas‖, ser ―silenciosa‖ e ―eterna‖, de modo que a visualizamos como uma espécie de ser que se sobrepõe ao homem, dominando-o. Afinal, como dissemos, para o poeta não há mais escolhas, as coisas perderam o sentido, restando-lhe apenas aguardar a sombra que chegará. Se esta é uma chegada inevitável e desalentadora, percebemos uma analogia entre a anunciação da noite e a da morte, diante da qual o homem também não tem opção. Se para algumas religiões, como o cristianismo, por exemplo, a morte corresponde a uma passagem para o Além, seja o Inferno ou o Paraíso, para o homem, inserido no mundo carente de transcendência, ela representaria o fim da existência. Pensando a noite como metáfora desse tipo de morte, entendemos o motivo da angústia do poeta em relação às sombras que chegam e à noite que se anuncia. Compreendemos por que a noite emiliana não é seguida do amanhecer, ou seja, não há uma esperança de continuação. Se a luz representa o ―mundo celeste‖, a ―salvação‖, a ―felicidade‖, conforme vimos, não há sentido que as luzes se instaurem após a noite do homem moderno que não mais participa de qualquer princípio de transcendência. No poema ―A tarde‖, Moura nos permite reafirmar a ideia de que a noite em seus versos pode, às vezes, ser lida como metáfora da morte: Que a noite não me encontre cego a esta tarde, ou preso a filamentos que se perdem no tempo. Nem que o búzio da infância – ah, vozes milenárias indo e vindo na tarde, junte-se agora ao que erra pela altura e baixa sobre mim que me procuro em tudo e não me encontro. Que a tarde não me veja de olhos vazios, mãos vazias, de alma vazia; que ela exista apenas porque é próprio de uma tarde ser tarde, sem buscar nunca dos nuncas a razão de ter vindo a ser a tarde, a tarde e nada mais. Que a noite não me encontre sem que eu me veja e sinta no que penso e sou; que ela me fale, não do que dorme, rútilo, em seu seio, e é lembrança do dia que se finda. Que ela me fale apenas da doçura desta luz que vem do alto, do horizonte 183 que adormece, ou das formas que se aquietam, no espaço, para um sono sem sonhos, que esta tarde parece a última tarde. (HT, p. 281) O poema recebe como epígrafe o verso ―Esta tarde parece a última tarde‖, de Dante Milano (1899-1991)80, poeta carioca contemporâneo de Emílio Moura, o qual se apropria dessas mesmas palavras como fecho do poema. Assim, a ideia repetida de que a tarde pode não mais ocorrer, junto à indicação da chegada da noite, prenuncia a escuridão incessante que tombará sobre a poética emiliana. A tarde aparece, novamente, como provocadora de reflexões, como ―imagem e hora da saudade e da melancolia‖, lembrando a simbologia do crepúsculo já referida. Diante da expectativa de que a noite chegue, o poeta manifesta o desejo de se livrar das angústias que a tarde lhe provoca, a fim de que aquela o encontre em um estado de espírito apaziguado. Ele deseja se livrar de lembranças ―que se perdem no tempo‖, inclusive daquelas que ecoam da infância. Demonstra-se perdido e pesaroso por não conseguir se encontrar. Deseja mudar, deixar de se sentir vazio, saber, de fato, quem é e o que pensa, antes que a noite se instaure. Se existe a possibilidade de essa tarde emiliana ser a derradeira, lemos a noite que a sucede como símbolo da morte, ou seja, de um fim definitivo. É para este fim que o poeta deseja estar preparado, portanto. Entretanto, reparemos que Moura manifesta o desejo de que a noite fale ―da doçura da luz que vem do alto‖. Ao tratarmos da ―morte de Deus‖ e de suas consequências, mencionamos o fato de que, embora o progresso tenha levado o homem a promover este ―assassinato‖, ele não conseguiu anular, por completo, sua necessidade de acreditar em um algo mais que a ciência não consegue alcançar. Emílio Moura, mesmo caminhando para a ―noite maior‖, manifesta a possibilidade de que a morte – metaforizada por esta noite, conforme estamos considerando – ainda 80 Eis o poema ―Reflexo‖: Esta tarde parece a última tarde. // Dentro de mim como um lago vejo / Um apagado ser, feito de nada. // Não sei o que a água escreve sem palavras. // A ideia que eu persigo imita o voo / Lento de uma asa refletida na água / Mais nua e fria do que o céu cinzento. // A vida não tem fundo, ó vãs alturas! // A vida quase não é vivida. / E tudo fica mais distante. // Cai a tinta da treva sobre o mundo. / Também dentro de mim tudo se apaga. / Some-se na água a sombra que eu cavava. // Esta noite parece a última noite‖ (MILANO, 1948, p. 113.) 184 mantenha relação com a ―luz que vem do alto‖. Embora seja apenas uma hipótese – aliás, o poema se constrói pela exposição de algumas hipóteses, indicadas pelo ―que‖ inicial de cada possibilidade expressa nos versos –, ela sugere vestígios da crença no transcendental, ainda que seja num mundo profanado. Afinal, deseja-se aquilo que não se tem, no caso da temática trabalhada, aquilo que foi perdido. Em ―Mundo imaginário‖ encontramos a concomitância das sombras que chegam, anunciando a noite, e dos resquícios de luz. Mais uma vez, portanto, deparamo-nos com o momento transicional do crepúsculo: Sob o olhar desta tarde, quantas horas revivem e morrem de uma nova agonia? Velhas feridas se abrem, de novo somos julgados, o que era tudo some-se e num mundo fechado outras vigílias doem. A noite se organiza e, no entanto, ainda restam certas luzes ao longe. Ah, como encher com elas este ser já não-ser que se dissolve e deixa vagos traços na tarde? Já que as sombras chegaram, é urgente sacudir os ossos, olhar longe o horizonte e recolher o pouco que ainda resta a luzir. Luzir onde, em que furnas secretas, em que vagos roteiros já não sabidos? Oh, será preciso encarar o vazio, ou esquecê-lo por outro ainda maior, mais próximo? Esquecer o perdido caminho, raros signos válidos, e a aurora não mais factível na solidão crescente? Um mundo de repente se fecha. Mas, agora, outro logo desperta, mundo apenas imaginário? e nos desafia. Imaginário e, no entanto, tão vivo. (HT, p. 294) A tarde se apresenta, novamente, como um momento favorável à memória e à reflexão; as quais provocam no poeta sensação um tanto quanto desalentadora: as ―velhas feridas se abrem‖, julgamentos são refeitos na memória, dores são experimentadas. A imagem que se constrói por meio dos versos da segunda e terceira estrofes é do instante em que a noite ainda não se firmou completamente, havendo, ainda, restos de luz no horizonte. Luzes que, entretanto, não conseguem iluminar o eu emiliano da escrita que, conforme ele mesmo afirma, 185 encontra-se em dissolução, fragmentando-se. Gilbert Durand, em As estruturas antropológicas do imaginário (1997), ao estudar os ―símbolos nictomórficos‖ (DURAND, 1997, p. 90-111), menciona o sentido sombrio atribuído ao crepúsculo. Ele toma de empréstimo de Gaston Bachelard a expressão ―situação de trevas‖ para caracterizar o efeito deste momento, que oscila entre luzes e sombras sobre os homens. Há um sofrimento anunciado pelas feridas, pelo julgamento, pela dor das vigílias. Diante da inevitável chegada das sombras, o poeta sente a necessidade de agir, de não se entregar a elas, buscando os fragmentos de claridade que ainda restam no horizonte. São claridades, porém, que não mais incidem sobre ele. Resta- lhe, então, o enfrentamento do vazio que se instaura ou o esquecimento de tudo o que tem seu sentido alterado com a chegada da noite. Também neste poema, as luzes não sucederão às sombras, pois a aurora não é mais factível. Não há, portanto, indícios de esperança manifestados pelo poeta. Exceto pelo fato de ele mencionar um ―mundo imaginário‖. Ao construir a imagem de um mundo que ―se fecha‖ e de outro que ―logo desperta‖, entendemos estar o poeta fazendo menção à morte transcendente. O despertar em outro mundo sugere a continuidade da vida. Entretanto, como herdeiro da ―morte de Deus‖, o poeta se interroga se não seria um mundo apenas imaginário, incapaz, portanto, de se concretizar, realizando a transcendência. Responde, afirmando ser mesmo imaginário, mas, ao mesmo tempo, insinua a possibilidade desse mundo. Fazendo isso, temo-lo demonstrando como ainda ecoa no homem a crença na continuação da vida em outro plano e na poesia como força capaz de realizá-la. Já declaramos que o mundo profanado não apagou da memória humana toda a tradição religiosa que sustentou o sentido existencial do homem. Se, na realidade da ciência e do progresso, o transcendental perdeu seu sentido, no íntimo do homem, em seu imaginário, ele sobrevive de forma intensa. Outro motivo que faz a morte se tornar angustiosa para o homem do século XX é o fato de ela contrastar com a ideia de progresso irrefreável promovida pelo avanço das ciências. Cláudia Maria Guedes Joaquim, no texto ―Weber, Simmel e a morte sem sentido‖ (2007), assinala que ―a vida individual é mergulhada na aspiração interminável pelo progresso constante, o progresso de télos infinito, o que, por sua vez, faz com que a situação ideal, segundo o seu significado imanente, é que a vida não deveria ter fim‖ (JOAQUIM, 2007, p. 92). Entretanto, por mais que as 186 ciências médicas tenham evoluído, o máximo que elas fazem é adiar o momento da morte, mas esta é inevitável. Philippe Ariès, nos dois volumes de O homem diante da morte (1982), apresenta uma extensa análise de como o conceito de morte foi se modificando desde a Idade Média até o século XX. Neste período, o autor aponta o crescente avanço da medicina, o qual permitiu prolongar a vida. Afirma ele que ―tornou-se realmente possível retardar o momento fatal; as medidas tomadas para acalmar a dor têm como efeito secundário prolongar a vida‖ (ARIÈS, 1982, p. 639). A fé no progresso e na técnica chegou mesmo a levar o homem a acreditar na erradicação da morte (ARIÈS, 1982, p. 649). A possibilidade de prolongamento da vida, aliada a tal crença, fez com que se mudasse a concepção de morte, a qual deixou de ser considerada um fenômeno natural para ser vista como um fracasso: ―Quando a morte chega, ela é considerada um acidente, um sinal de impotência ou de imperícia que é preciso esquecer‖ (ARIÈS, 1982, p. 640). Também Márcio Vilar abordará esta questão da morte no mundo tecnológico e progressivo. No texto ―Luto e morte: uma pequena revisão bibliográfica‖ (2000), ele afirma que a morte contrasta com o discurso da sociedade contemporânea, pois ―não corresponde à ideia de progresso formulada na modernidade‖ (VILAR, 2000, [s.p]). Este autor menciona, traduzindo Loring Danforth, que a religião, por intermédio de seus rituais mortuários, é responsável por reintegrar o homem na sociedade após vivenciar a morte de entes queridos. Perguntamo-nos, entretanto, como o homem do mundo dessacralizado lida com a morte se não há religião para sustentá-lo. Novamente citando Danforth, Vilar trará esse ponto para discussão: "Mas a afirmação de que a morte não é o fim completo [defendida pela maioria das religiões] contrasta exageradamente com a 'perspectiva do senso comum' que, por sua vez, aceita o mundo como ele aparece a nós, um mundo em que a morte como completo fim é real" (DANFORTH apud VILAR, 2000, [s.p]). O autor do texto conclui: ―em relação à morte, portanto, o processo da vida social humana é marcado por um movimento que oscila entre a perspectiva religiosa e a perspectiva do senso comum‖ (VILAR, 2000, [s.p]). No último poema transcrito, ao afirmar que o mundo é ―imaginário‖, mas ao mesmo tempo ―tão vivo‖, vemos uma oscilação que se aproxima da apontada por Vilar. ―Imaginário‖ porque o senso comum – ou a mentalidade moderna – não acredita na continuação da vida após a morte; ―tão vivo‖ devido à perspectiva religiosa que ainda ecoa no mundo profanado. Para concluir esta análise, mais uma 187 reflexão de Danforth, encontrada em Vilar, permite-nos estabelecer outra aproximação com o ―mundo imaginário‖ de Moura: Subjetivamente nós estamos prontos para negar a morte e manter uma ficção de nossa própria imortalidade ou de nossa existência contínua (...). Ao mesmo tempo em que essa realidade subjetiva é externalizada e objetificada durante o processo da interação social, problemas levantam, contradições começam a aparecer (Apud VILAR, 2000,[s.p]). Inserido no contexto socioexistencial que recusa a transcendência, o mundo imaginado por Moura não coincidiria com essa forma subjetiva de negar a morte, apontada no excerto? Não seria este mundo a ficção criada por ele para afirmar sua imortalidade? Na verdade, Moura continua representando, por meio de suas metáforas, a tensão do homem moderno que vive no mundo dessacralizado, mas sentindo necessidade do algo mais que a crença na transcendência pode oferecer. ―A tarde vai-se‖ é mais um poema em que o momento vespertino aparece cedendo espaço para a sombra que, neste caso, sorverá a todos: Que dizer desta tarde, se é tão tarde? Dizer à última sombra que ela é sombra de outras sombras? Que tudo já se apaga e, calado, não lembra o que, lembrado, torna perto o distante e vivo, o morto? Dizer que a própria tarde, pobre de luz, despede-se de tudo, para arder em silêncio e até mesmo em remorso? Dizer: missão cumprida e achar que a alma se salva na lembrança de algo pleno e se acalma? Ou melhor é calar, ouvir apenas o segredo das coisas, que é segredo privativo das coisas? Esse espanto, súbito espanto às vezes percebido pelos olhos que os olham, de que nasce? A tarde que o ignore e cale. Antes deixar o perdido, perdido, e o mudo ainda mais mudo. Mas, a tarde, no entanto, freme, agita-se, ou grita o seu último apelo a tudo. A tarde vai-se e nos arrasta com seu grito de adeus às formas, ah, tão belas que, serenas, mergulham numa sombra que cresce e, fria, nos engole, e é tudo. 188 (HT, p. 292) O poema inicia com indicações de um momento derradeiro. As construções ―se é tão tarde‖, ―última sombra‖, ―tudo já se apaga‖ apontam para a ideia de fim. A tarde que se vai, mencionada no título, é a tarde que evolui para a noite, momento crepuscular em que a claridade ―se apaga‖ para dar lugar às sombras. O poeta se põe a questionar sobre o que dizer deste momento e, por meio de indagações, acaba expondo o que pensa a respeito da questão. À primeira pergunta – ―Que dizer desta tarde, se é tão tarde?‖ –, ele responde com outras, as quais, entretanto, não encontram resposta, pois o próprio questionar contém em si a reflexão pretendida. É por meio de um desses questionamentos retóricos que o poeta faz referência ao fato de que as coisas, no instante em que perdem a luz – ―que tudo já se apaga‖ –, se calam e não mais produzem lembranças. Esse mutismo que se instaura nas coisas não iluminadas, a ideia de que a noite emiliana, entendida como metáfora da morte, apresenta-se profanada, incapaz de alcançar a ―revelação‖. Em outra inquirição, a sugestão da (des)crença na transcendência: ―e achar que a alma se salva na lembrança / de algo pleno e se acalma?‖ A salvação da alma indicaria sua sobrevivência e a conseguinte continuidade da vida no plano espiritual. Entretanto, o ―algo pleno‖, considerado uma referência ao mundo transcendente, pós-salvação da alma, encontra-se somente na lembrança, sugerindo que a redenção verdadeira não é possível. Nesses versos, a transição do entardecer para o anoitecer é representada pelas ações que a tarde, personificada, pratica: ―agita-se‖, ―grita‖, ―freme‖, ―nos arrasta‖ consigo. O ―ir‖ e o ―arrastar‖ denotam seu movimento, que evolui e traz consigo uma sombra crescente, famélica de tudo e de todos. Como em uma espécie de frenesi, a tarde passa arrastando os seres e diluindo as formas, até que a sombra se instaure por completo. O verbo que revela a ação da sombra sobre nós, qual seja, a de nos engolir, denota seu sentido devorador e, portanto, seu domínio. Adjetivada como ―fria‖, a sombra age sobre os homens de modo cruel, desumano, sem dar a eles a oportunidade de resistirem. E ―é tudo‖, afirma o poeta: a ―tarde vai- se‖, a sombra se impõe e o fim se concretiza. O ―habitante da tarde‖ de Emílio Moura é, na verdade, um anunciador da ―noite maior‖ que se manifesta em seu livro derradeiro. Este, dividido em duas 189 partes, ―Alma vária‖ 81 e ―Noite maior‖, apresenta, na segunda, poemas que versejam a escuridão total ou o término de algo. ―Acalanto final‖ é um exemplo: É preciso calar. Fechar os olhos, calar. Não buscar-se de novo nessa velha ânsia de ser. Deixar que a alma se feche sobre o que antes brilhava, já não brilha, flor, perfil, essa flâmula acenando, eterna, eternamente, na linha do horizonte, agora inútil. Deixar que amor se dispa da roupagem fabricada em segredo, e se despeça, em tudo, da eterna busca, e vague, ermo e sem nome, fora do tempo, à sombra de outros signos. Que o tempo tudo apague. Até mesmo o sonhado. É preciso esquecer. Nada do que foi, nada do que não foi. É preciso dormir. Dormir como um segredo. Como estátua deitada. Como a luz, quando não há luz. (NM, p. 336) A palavra ―final‖, no título do poema, é que nos leva a lê-lo como indicador de que algo está para terminar. Relacionado à ação de dormir, um acalanto que não mais ocorrerá sugere uma última oportunidade de se adormecer. Entretanto, para que o estado propício ao sono seja alcançado, o poeta fala da necessidade de algumas atitudes. Parece redundante continuarmos falando do mundo dessacralizado, mas é novamente o que vemos nessas atitudes. Primeiro, ―calar‖: abdicar da busca de sentido para sua existência. ―Deixar que a alma se feche‖ sobre o que teve seu sentido modificado, já que o brilho de outrora foi perdido. Mais uma vez, a imagem das coisas que perdem a luminosidade, tornando-se, portanto, carentes de qualquer sentido sublime, de qualquer conotação que aponte para uma sobrenaturalidade. Também ―é preciso esquecer‖, deixar que o tempo se encarregue de apagar todas as coisas da memória. Se temos dito que a crença no plano extrassensível permanece viva na memória do homem, indicar a necessidade de se 81 A primeira parte é composta predominantemente de poemas metalinguísticos, alguns dos quais foram analisados no capítulo em que tratamos dessa temática. 190 esquecer tudo é falar da exigência de se apagar também toda e qualquer lembrança. É preciso, enfim, dormir. Apesar de ser um dormir embalado por um acalanto, não se trata de um sono leve, suave. Pelo contrário, dormir ―como estátua deitada‖ é estar em estado de profunda inércia. Dormir ―como a luz, quando não há luz‖ é estar imerso em meio à escuridão. Essas caracterizações nos permitem ler a sugestão da morte permeando os versos. Não há nenhuma indicação de um despertar, o sono é profundo. Não há nenhuma ideia de continuidade, o acalanto é derradeiro. Por ser uma morte não transcendente, portanto, é que se apresentam as ações acima indicadas. Essa inter-relação do sono com a morte é recorrente em diversas culturas. Mircea Eliade, no mesmo livro referenciado anteriormente – Mito e realidade (1972) – , menciona tal analogia, destacando que, na mitologia grega, por exemplo, Hipnos e Tanatos – deuses do sono e da morte, respectivamente – são irmãos gêmeos Também entre os hebreus, a morte era similar ao sono, como se pode depreender dos versículos bíblicos indicados por ELIADE (1972, p. 112-113) e que transcrevemos: ―Estaria agora deitado e em paz / dormiria e teria o repouso / com os reis, árbitros da terra, / que constroem para si mausoléus; / com os príncipes que possuíam o ouro, / e enchiam de dinheiro as suas casas‖ (Jó 3, 13-15); ―Ali, os maus cessam os seus furores, / ali82, repousam os exaustos de forças‖ (Jó 3, 17); ―Minha alma está saturada de males, / e próxima da região dos mortos a minha vida. / Já sou contado entre os que descem à tumba, / tal qual um homem inválido e sem forças. / Meu leito se encontra entre os cadáveres, / como os dos mortos que jazem no sepulcro‖ (Salmo 87, 4-6). Segundo o autor, os cristãos também estabeleceram a equivalência morte-sono, que pode ser comprovada na seguinte epígrafe funerária: ―in pace bene dormit, dormit in somno pacis, in pace somni, in pace Domini dormias” 83. Tais informações nos auxiliam no sentido de entender o sono esperado pelo ―acalanto final‖ de Moura como metáfora da morte. Outra inter- relação que temos estabelecido, qual seja, a da noite como metáfora da morte, encontra respaldo na mitologia grega: os gêmeos Hipnos e Tanatos são filhos de Nix, a Noite. Encontramos, portanto, uma forte relação simbólica entre o sono, a morte e a noite, relação esta percebida nos versos emilianos, principalmente no que diz respeito ao parentesco entre as duas últimas. 82 Esse ―ali‖ se refere ao Sheol, a morada dos mortos, mencionada também nos demais versículos. 83 Dorme em paz, dorme no sono da paz, na paz do sono, dorme na paz do Senhor. (tradução nossa) 191 Também o poema ―Fim de linha‖ anuncia, já em seu título, o término de algo. Vejamos o que seja: Sentir o que resta desta última tarde, tão sem horizonte, sem nenhum mistério, vibração nenhuma. Sentir o que resta de tudo. Tão pouco. A estrela perdida, já perdido o dia, tão muda a palavra que, real, ou mágica, talvez te salvasse. Não, não salvaria. Sentir o que fica, entre dois silêncios, preso por um fio súbito vibrando entre a noite e o enigma. Sentir o que nunca poderá ser dito, pensado, vivido, e ficar à espera, ficar entre nadas, enigmas, nuvens, náufrago boiando, sem onde, nem quando. Sentir que esta noite se fecha. Fechou-se. Não sentir mais nada. (NM, p. 337) A imagem da ―última tarde‖ é retomada nesses versos. Sua caracterização demonstra o quanto ela se torna desencantada para o poeta, isto é, carente de atributos contendo sentido transcendente. Não há, nesta tarde, por exemplo, nem ao menos resquícios de luz, como em algumas outras descritas pelo poeta. Se, conforme temos mencionado, a tarde em Moura representa, basicamente, a anunciação da noite e, por conseguinte, da morte, vemos a ausência de ―horizonte‖, de ―mistério‖ e de ―vibração‖, sugerindo um fim dessacralizado. A expressão ―sem horizonte‖ não apenas significa falta de perspectivas, conforme sentido comumente atribuído a ela. Pensamos também que, se o horizonte parece indicar o encontro do céu com a terra ou com o mar, sua ausência na tarde sugere a falta dessa interseção e, portanto, da ligação do plano terrestre com o celeste. Para 192 entendermos a expressão ―sem mistério‖, neste contexto, constatamos, primeiramente, a ligação original da palavra ―mistério‖ com questões ligadas à religiosidade. Assim, na tarde ―sem mistério‖, anula-se qualquer ligação com o plano do incompreensível, apontando para a ausência de questões que tangem à religiosidade e, portanto, ao transcendental. Já o termo ―sem vibração‖, embora não estabeleça relação direta com o sublime, ao transmitir a sensação de que nada se movimenta, nada soa, faz da tarde um momento sem vivacidade, parado, triste, desesperançado, portanto. Ainda a imagem da ―estrela perdida‖ favorece nossa interpretação, lembrando que já nos referimos neste mesmo capítulo à simbologia da estrela como metáfora de luz e ligação com o plano espiritual. Assim, ao lhe ser atribuída a adjetivação negativa, seu sentido simbólico é alterado. Uma ―estrela perdida‖ não brilha mais para aquele que a perdeu, assim como perdida se faz a ligação que ela estabeleceria com o espiritual. Também, segundo Moura, as palavras não comunicam mais, pois se tornaram ―mudas‖, perdendo seu poder salvador, soteriológico. Ele menciona dois tipos de palavras, a real e a mágica. Sobre esta última, pensamos na palavra demiúrgica, aquela proferida pelos deuses e que, conforme indica Fernando FIORESE (2010, [s.p.]), comunga ―da força e da eficácia deles; são vocábulos propiciatórios, mágicos, capazes de acionar o vir-a-ser, de descerrar realidades, de conduzir à salvação ou à ruína, de metamorfosear a matéria e o imaterial‖. Se a palavra mágica perde seu poder de salvar é porque ela foi esvaziada de seu dom profético. Vimos, no capítulo sobre a metalinguagem, que ao poeta inspirado pelas Musas, era atribuída essa palavra mágica, pois ele só cantava o que lhe era indicado por elas. Com a assunção do lógos, a palavra lírica perde sua potência divinatória, passando a prevalecer o pensamento racional, cujas palavras também não são capazes de instaurar uma salvação para Moura. Um vez mudas, resta o silêncio, o mesmo silêncio que simboliza tanto o início quanto o fim das coisas. Este final dos tempos é sentido pelo eu emiliano que se angustia com tudo o que não mais será ―dito,/ pensado, vivido‖. E, como se trata de uma ―última tarde‖, ou seja, de um momento que não ocorrerá novamente, essas perdas não serão recuperadas. A sensação de que se chegou ao ―fim da linha‖ – um fim que não aponta para nenhuma perspectiva futura – leva o eu da escrita a falar de um estado de total entrega, em que só cabe esperar pela noite que se fechará sobre ele e sobre a humanidade – afinal, os versos são impessoais, não se referindo ao poeta 193 especificamente. Nessa espera, o vazio: ―ficar entre nadas‖; a incerteza: entre ―enigmas, nuvens‖; a sensação de falência: ―náufrago boiando‖; a suspensão do tempo e do espaço: ―sem onde, nem quando‖. Diante desse quadro, não nos cabe pensar que o homem se encontra à espera da morte? Esta noite que se fechará sobre ele, anulando todas as suas sensações, não seria metáfora da morte dessacralizada? Da morte que representa o ―fim de linha‖, sem expectativas de uma continuidade extraterrena? Perguntas retóricas que, conforme algumas de Moura, já trazem em si a sugestão da resposta afirmativa. Passando aos versos de ―Alta noite‖, vemos, novamente insinuada, a ausência do transcendental: É em vão que procuro qualquer réstia de luz, qualquer rumor na noite. A treva silencia o universo, como se nada, nada agora existisse. Nada! Nem sequer essa ideia do nada. (NM, p. 339) O poeta sabe da inutilidade de se buscar, nas trevas que se instalam, qualquer indício de luz ou de som. A luz simbolizando a vida, a salvação, o mundo celeste, a eternidade; o som, mais especificamente o rumor, indicando movimento, vibração e, portanto, a presença de algo. Todavia, mesmo sabendo da esterilidade de sua busca, ainda assim o poeta os procura. Não estaria essa atitude demonstrando a necessidade do homem moderno de se apoiar na crença, já perdida, da salvação? Se entendermos, novamente, a ―noite alta‖, totalmente trevosa, como símbolo da morte, e se há apenas escuridão total e silêncio absoluto, constatamos não haver esperança de uma continuidade pós-vida. Quando a ―alta noite‖ se instaura, o homem se precipita para o nada. No poema analisado anteriormente a este, em que o silêncio também se faz presente na composição da noite, apresentamos o sentido a ele atribuído: indicar o final dos tempos. Nos versos de agora, também podemos entendê-lo dessa forma. E aproveitamos para ressaltar a ligação que existe entre a audição e a noite. Durand (1997), citando Lawrence, apresenta a audição como o ―sentido da noite‖, pois nela ―o ouvido pode ouvir mais profundamente que os olhos podem ver‖ (LAWRENCE 194 apud DURAND, 1997, p. 92). Se a escuridão atrapalha a visão, ela, pelo contrário, aguça o sentido auditivo, tal como o cego que, tendo sua capacidade de ver comprometida, desenvolve a habilidade de ouvir. Assim, o ―tema do bramido, do grito, da ‗boca do senhor‘ é isomorfo das trevas‖ (DURAND, 1997, p. 92). Acrescentamos a essas considerações durandianas nossa interpretação, já que em Emílio Moura temos destacado o silêncio – e não o grito ou o bramido – como presença recorrente em seus versos sobre a noite. Mesmo quando, no poema intitulado ―O grito‖84 (NM, p. 340), a noite emiliana é invadida por um brado ou um clamor, logo ele cede lugar ao silêncio. Este fala mais alto do que o próprio grito. Segundo nossa interpretação da ―noite maior‖ de Moura como metáfora da morte não transcendente, vemos o silêncio como mais um elemento que demonstra seu vazio. Isto porque o som resulta de vibração, vibração provém de movimento, movimento sugere ação. O silêncio, por conseguinte, aponta para a ausência de tudo isso. Assim, o poeta esvazia a noite de sons e de luz e a preenche de silêncio e escuridão. Como nas trevas nada é visto ou ouvido, há somente o nada, um nada pleno. Tão pleno que nem mesmo pode ser mentalmente representado pela ideia. Ao esvaziamento da noite corresponde o esvaziamento da morte, tomado por sua escuridão, o homem não vê nem ouve nada. E de poema a poema, a noite é cada vez maior, mais intensa e dominadora. Tal como em Homero, ela se mostra poderosa: ―dos homens e dos deuses domadora‖ (HOMERO, Ilíada, XIV, 212). Em Moura, como vimos, temo-la domando os homens e, no poema seguinte, intitulado ―A noite engole o mundo‖, como o próprio título afirma, ela sobrepuja também o mundo: A noite engole a janela. Na treva, a janela engole o mundo. O mundo sumiu. Antes isso. Ninguém sabe se o mundo, o mesmo, prossegue seu jogo de cabra-cega, lá fora. Lá fora, a vida pode ser, pode não ser, ou ser, agora, às avessas, ou ser, não sendo, quem sabe? Pode até ser que a calada solidão de cada um, em um, já não exista. Que os homens 84 De repente esse grito me penetra, / sinto-me nele, grito nesse grito. / Que ardor, que susto, que emoção terrível / na noite! E que silêncio após o grito. // Que silêncio mais grito do que o grito! 195 se entendam todos. Nem surjam guerras, ódios, desencontros, muros e bombas, nem haja o outrora, o agora, o amanhã. Nem o que, rápido, roa o que tem gosto de eterno e assim sendo é que devia ser eterno. Pode ser. Sonha, menino. Sonha, sonha. Pode ser. A vida dada sem se, nem talvez. Intacta. a vida-vida completa. Mas, não: já não há mais sonho sonhando. Não há mais nada de nada. Só há, repara, a noite que engole, rápida, o mundo. O mundo sumiu. (NM, p. 338) Novamente, o verbo ―engolir‖ é utilizado. No poema ―A tarde vai-se‖ (HT, p. 292), ele fora atribuído à sombra, agora, refere-se diretamente à noite. Como em uma mise en abyme – uma coisa engolindo outra, que engole outra –, as trevas tomam conta de tudo, dando ao eu emiliano a sensação de que não há nada além da janela: ―o mundo sumiu‖. A incapacidade de enxergar algo na escuridão conforta o poeta, que afirma: ―Antes isso‖. É melhor não ver o que acontece no mundo e aproveitar a noite para imaginar que as intempéries de seu tempo não aconteceram. No jogo da ―cabra-cega‖, imagem que aparece nos versos, alguém de olhos vendados procura, desnorteadamente, agarrar outro participante. No jogo do mundo, um mundo de guerras, ressaltemos, os olhos vendados – que, impossibilitados de ver, aproximam-se da condição própria do cego – indicariam o aspecto irracional85 que acomete os países que perseguem e sobrepujam outros povos, outras nações. Diante dessa ―brincadeira‖ e dos demais acontecimentos do mundo, o sentido da vida é ressignificado – ela ―pode ser, pode não ser, / ou ser, agora, às avessas, / ou ser, não sendo, quem sabe?‖. Os homens se tornam solitários e incapazes de se entenderem, promovendo ―guerras, ódios, desencontros‖; construindo ―muros e bombas‖. Com o mundo sumido na escuridão da noite, o poeta alude à possibilidade de que nada disso tivesse ocorrido e, ainda, de que o tempo fosse suspenso e o 85 Considerando-se a seguinte acepção encontrada no verbete ―cego‖: ―que perdeu a razão, o controle sobre seus atos; alucinado, desvairado‖ (HOUAISS, 2001). 196 ―eterno‖ preservado. Sobre esta última possibilidade, por tudo o que vimos considerando nos versos emilianos apresentados neste capítulo, temos, ainda mais uma vez, a sugestão da dessacralização do mundo, em que as coisas perderam o caráter ou a ligação com o eterno, tornando-se finitas. Tais possibilidades, entretanto, não passam de sonhos, os quais, contudo, não mais são possíveis na noite engolidora. Entendemos, também, que a escuridão da noite que sorve o mundo equivale à agrura dos acontecimentos assombrosos do século XX. Alguns deles são indicados ou sugeridos no poema, como as guerras e suas bombas e a construção do muro de Berlim86, demonstrando o desentendimento e os desencontros políticos e ideológicos que o homem moderno experimentou. Apesar de no poema em questão não considerarmos a noite como metáfora da morte em si, mas sua escuridão como resultante das barbáries modernas, a menção às guerras, às bombas, ao ―gosto de eterno‖ roído nos remete a algumas considerações a respeito de como tais fatos contribuíram para a modificação do conceito de morte para o homem do pós-guerra. Hobsbawm (1996) ressalta o fato de as inumeráveis mortes ocorridas nas guerras do século XX terem sido provocadas por decisão humana – o que jamais aconteceu de modo tão copioso em toda a história anterior (HOBSBAWM, 1996, p. 21). Ele destaca, ainda, a impessoalidade proporcionada pela tecnologia, principalmente na Segunda Guerra. Bastava que se apertasse um botão, que se virasse uma alavanca para que a morte à distância acontecesse. Não havia somente a luta nas trincheiras, em que soldados matavam soldados, olhando-se de frente, mas a morte de civis inocentes, transformados em alvo. Lá embaixo dos bombardeios aéreos estavam não as pessoas que iam ser queimadas e evisceradas, mas somente alvos. Rapazes delicados, que certamente não teriam desejado enfiar uma baioneta na barriga de uma jovem aldeã grávida, podiam com muito mais facilidade jogar altos explosivos sobre Londres e Berlim, ou bombas nucleares em Nagasaki. Diligentes burocratas alemães, que certamente teriam achado repugnante tanger eles próprios judeus mortos de fome para abatedouros, podiam organizar os horários de trem para o abastecimento regular de comboios da morte para os campos de extermínio poloneses, com menos senso de 86 A utilização da palavra ―muro‖ nos fez pensar no Muro de Berlim, que separou, fisicamente, a Alemanha em suas partes Oriental e Ocidental, como também reforçou a separação dos países capitalistas e dos socialistas durante a Guerra Fria (1945-1991). O muro foi construído em 1961, poucos anos antes da publicação do poema em 1969. Falecendo em 1971, Moura não chegou a assistir à queda dele em 1989. 197 envolvimento pessoal. As maiores crueldades de nosso século foram as crueldades impessoais decididas a distância, de sistema e rotina, sobretudo quando podiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais (HOBSBAWM, 1996, p. 57). Aproveitamos tal contextualização de Hobsbawm sobre a desumanização da morte no século das guerras mundiais para emendarmos a reflexão de Freud (1996) a esse respeito. Destacamos, em outro tópico, que o psicanalista fala de uma desilusão do homem diante do contexto da Primeira Guerra, em que se esperava que a civilização, no grau de evolução que alcançara, fosse capaz de atitudes mais éticas e menos violentas. Entretanto, foi a guerra mais ―sanguinária‖ e ―destrutiva‖ que já havia acontecido (FREUD, 1996, p. 288). Tal desilusão do homem em relação à civilização, em relação ao Estado – incapaz de cumprir ele mesmo as condutas morais que impunha aos indivíduos – é apenas um dos fatores que levam o homem moderno, não combatente, a um estado de aflição mental. Outro dos fatores é a mudança de atitude do homem diante da morte (FREUD, 1996, p. 285), que era entendida como algo natural e inevitável – embora ele procurasse artifícios para tentar negá-la, como se recusasse a admitir sua mortalidade. Evitava-se falar da iminente morte de outra pessoa na frente dela, assim como pensar na morte de alguém soava como uma maldade. Por mais que o homem a soubesse natural e inevitável, ela o chocava profundamente, por isso era melhor considerá-la como algo fortuito, causado por ―acidente, doença, infecção, idade avançada‖ (FREUD, 1996, p. 300). Com a guerra, entretanto, a negação da morte não é mais possível. Ela não só ocorre, como se dá de modo quantitativamente abundante. Freud fala da perda da sensibilidade ética em relação à morte na modernidade. Comparando o homem de raças primitivas com o homem civilizado, o psicanalista mostra uma diferença significativa no comportamento deles após saírem vitoriosos de uma guerra. O primeiro, antes de retornar à aldeia, expiará, por meio de penitências, os assassinatos que cometeu. O civilizado voltará ―alegremente à pátria, para sua esposa e seus filhos, sem ser questionado nem perturbado por pensamentos sobre os inimigos que, quer de perto, quer de longe, matou‖ (FREUD, 1996, p. 305). Freud encontra explicação para a atitude fria e desumana de seus contemporâneos no ―instinto de agressão‖, próprio do ser humano e controlado em nós pelo processo civilizatório. Entretanto, em nosso inconsciente, esse instinto sobrevive e, por meio 198 de pensamentos, desejamos frequentemente nos livrarmos dos outros: ―... caso sejamos julgados por nossos impulsos inconscientes impregnados de desejo, nós próprios seremos, como o homem primevo, uma malta de assassinos‖ (FREUD, 1996, p. 307). A guerra acaba por despojar o homem de seus atributos de civilizado, fazendo com que o instinto agressivo sobressaia, permitindo que os estranhos sejam transformados em inimigos, e sua morte seja não apenas desejada, mas provocada (FREUD, 1996, p. 309). Assim, a morte para o homem do século XX é reconfigurada por diferentes motivos. Primeiro, pela profanação do mundo, quando ela perde seu caráter transcendente. O avanço da ciência desperta no homem a esperança de que a morte pode ser controlada, mas, ao perceber que ela é de fato inevitável, o homem se sente frustrado, como se fracassasse. A morte transforma-se, então, em um problema para o homem moderno. Depois, ou concomitantemente, vêm as guerras e as atrocidades que exterminam milhões de pessoas, tornando-a fria e cruel. Experimentando todas essas mudanças, o homem moderno perde as esperanças. Sabe que a morte é inevitável e, como não mais acredita em uma salvação, resta esperar que as trevas se instaurem definitivamente. Quase ao fim do livro, no poema ―À boca da noite‖, a desesperança impera sobre o eu emiliano da escrita: Não olhes: é a noite completa que tomba. Não olhes: é a estrada que, súbito, acaba. Não olhes: é o anjo, teu anjo que chora. Não olhes. (NM, p. 350) O verbo ―tombar‖ apresenta, de certa forma, uma semântica de cunho negativo, sugerindo a queda de alguma coisa. Ao dizer que a noite tomba, o poeta lhe atribui uma movimentação brusca, como se ela caísse. Seria diferente dizer, por exemplo, que a noite desce. Apesar de também aludir a uma verticalização descendente, o verbo ―descer‖ não apresentaria uma conotação pejorativa tal como 199 ―tombar‖, pois insinua um movimento menos agressivo do que o da ação apresentada nos versos. Na segunda estrofe, outra imagem negativa: ―a estrada / ... acaba‖, simbolizando o fim do caminho, o ―fim de linha‖, a perda de direção. É o fim das esperanças, portanto, pois não há como seguir em frente. A imagem do anjo chorando também não é comum, já que a esse ser normalmente são atribuídas caracterizações positivas, representando o plano espiritual. Ora, se a relação dos homens com o transcendental foi abalada a partir do século XIX e ainda mais estremecida no século de Emílio Moura, a intermediação do anjo não tem mais sentido, sua função é desvalorizada. Por isso ele é apresentado chorando. Vale ressaltar que embora a ligação a que nos referimos esteja comprometida, a presença do anjo, mesmo na situação em que se encontra, demonstra os resquícios dessa ligação na poesia emiliana, do mesmo modo como em outros poemas vimos construções como a da estrela perdida ou apagada, do céu vazio, ou de restos de luzes sendo tomadas pelo anoitecer. Nas ocasiões em que elas apareceram, indicamos que as líamos como a permanência da crença no transcendental em meio ao mundo profanado. É dessa forma que vemos também o ―anjo que chora‖ nos versos acima. Enfim, estar ―à boca da noite‖ vendo a escuridão cair e a estrada acabar é pressentir a morte chegar. Algo incômodo para o poeta, que insiste em pedir ou aconselhar ―não olhes‖, como se, ao evitar olhar para a situação, ela pudesse ser impedida de se realizar. Encerrando nossas considerações da imagem da noite na obra emiliana, apresentamos o poema ―Homem dentro da noite‖: O homem abisma-se triste só com seu pensamento. Por que tudo o que existe, a água, a pedra, o vento, perde a voz de tão quieto só porque a noite veio com seu filtro secreto e uma chaga no seio? O homem abisma-se. Mudo, só com a sua palavra. Mas, a noite já lavra o infinito: e, de tudo, tira e joga – que belas! na abóbada vazia, olha – tantas estrelas. E, ávido, o homem faz delas 200 uma nesga de dia. (NM, p. 344) O próprio título do poema posiciona o homem em relação à noite. Antes, em outros versos, ele se encontrava ―à boca da noite‖, agora, ele está ―dentro‖ dela, inserido no íntimo da escuridão, estando por ela totalmente rodeado. Alguns poemas anteriores apresentavam a imagem da noite engolindo o mundo. Aproveitamos essa imagem para estabelecermos uma ligação com o poema apresentado neste momento, pois, ao engolir o mundo, ela engole, também, o homem inserido nesse mundo. O homem ―dentro da noite‖ seria resultante desse processo sorvedouro da noite. Dentro dela, triste e mudo, ele se ensimesma, voltando-se para seus pensamentos. A interiorização do homem na noite nos faz retomar o início deste capítulo, quando falamos da concepção de melancolia tanto em Freud (1996) quanto em Marques (1998), ressaltando o processo de autoabsorvência do sujeito melancólico. Depois de analisarmos diferentes tipos de manifestação melancólica em Moura – começamos pelo ensimesmamento, passamos ao mal-estar social provocado pelo progresso da ciência e da tecnologia e a consequente descrença em relação ao transcendental, vimos como a guerra causa um abatimento no homem que a vive ou que herda suas consequências e como a concepção de morte sofreu alterações causando uma grande desilusão no homem moderno –, encerramos o capítulo retornando ao início, com o homem melancólico imerso em seu pensamento. Rodeado pela escuridão e o silêncio, ele se alheia do mundo externo. Entretanto, esse poema apresenta uma característica não muito comum nos versos emilianos sobre a noite, qual seja, a de assinalar estrelas brilhantes na noite. Geralmente, elas aparecem em seus poemas noturnos com o brilho comprometido. Neste, em contrapartida, surgem ―belas‖, o que nos leva a entender que elas estejam representadas em seu sentido luminoso. Também o fato de o homem aproveitá-las para fazer uma ―nesga de dia‖ aventa este aspecto luzente. Se à ausência de luminosidade das estrelas relacionávamos o caráter desesperançado do eu da escrita, ao engendrar ao menos uma pequena porção de dia com elas, sentimos, agora, um breve despontar de ânimo. Breve porque, geralmente, nos poemas de Moura, a claridade se dissipa em meio às sombras, 201 fazendo com que o homem se abisme, tal como afirmado, por duas vezes, nos versos acima. Destacamos a acepção que o verbo ―abismar‖ apresenta no que tange ao aspecto psicológico do sujeito, segundo o sentido dicionarizado: ―lançar-se, precipitar-se em abismo psicológico, moral, espiritual, existencial‖; ―abandonar-se ao alheamento, ficar absorto‖; ―deixar-se dominar por profundas reflexões‖; ―deixar-se arrastar por processo de decadência moral‖ (HOUAISS, 2001). Verbo e sentidos melhores não encontraríamos para descrever o estado de abatimento psicológico encontrado no poeta ou no homem em geral, representado nos versos, não somente neste último poema, mas na maioria dos analisados até o momento. Vemos esses diferentes abismos manifestados nos versos de Emílio Moura, à medida que neles encontramos as tensões e paradoxos do homem na modernidade. É, contudo, difícil identificar um único tipo em determinado poema, porque tais abismos se inter-relacionam de forma bastante expressiva. Afinal, um ―abismo psicológico‖ pode levar a um ―existencial‖, por exemplo, assim como um ―moral‖ ou ―espiritual‖. Todavia, mesmo cientes dessa dificuldade, se considerarmos a característica principal dos versos, é possível relacionar os grupos de poemas que agrupamos nas diversas passagens deste capítulo com tais abismos. No primeiro tópico, por exemplo, tratando do ensimesmamento e do mal-estar social, relacionamos os abismos ―psicológico‖ e ―existencial‖ do eu da escrita. Os acontecimentos sociais do século XX, como a modernização urbana, os progressos científicos, as guerras mundiais e as ditaduras promovem um mal-estar psíquico no homem, que se melancoliza, abstraindo-se do mundo e refugiando-se em si mesmo. Ao tratarmos da crise da transcendência, fez-se predominante o ―abismo espiritual‖ em que o homem moderno se encontra. De modo algum, entretanto, esse abismo se desassocia do ―psicológico‖ e do ―existencial‖. É entrando em crise com suas crenças, suas tradições, seus paradigmas, que o homem experimenta um choque existencial. Ao se deparar com um mundo esvaziado da crença no supranatural, por exemplo, ele vê seus valores espirituais esvaziados de sentido. Em vários poemas emilianos temos a sugestão da melancolia que se instaura no poeta pela perda dessa crença. É nesse sentido que consideramos o abismo espiritual de Moura, afinal, o grande provocador dessa crise – o avanço científico e tecnológico – não conseguiu preencher o vazio provocado pela ―morte de Deus‖ anunciada por Nietzsche e vivenciada por Emílio Moura e seus contemporâneos. 202 Também a morte ressignificada se relaciona com os abismos ―espiritual‖ e ―existencial‖. A crise da transcendência, a facilidade de se tirar vidas durante as guerras e a incapacidade da ciência médica de eternizar a existência humana são fatos que proporcionaram uma descrença do homem em relação à morte. Se não há expectativa de salvação humana post mortem, o homem tem seu modo de agir e de entender a existência perturbados. Assim, é entre abismos que detectamos a face sombria do poeta Emílio Moura. A face luminosa do poeta, apresentada em parte do capítulo anterior, cujos poemas constam dos livros precedentes aos dois desenvolvidos neste capítulo da tese, transfigura-se de modo a refletir as marcas da melancolia e da desesperança do homem moderno, que suporta as tensões que exsurgem de seu tempo – ―Se eu cheguei a esta renúncia total, foi porque o meu sofrimento me transfigurou sem que eu o percebesse‖ (EM, p. 144). Se as manifestações artísticas são, segundo Freud, um dos meios que o homem encontra para atenuar as agruras da vida, funcionando como uma ―satisfação substitutiva‖ (FREUD, 1997b, p. 23.), para Emílio Moura os dissabores se tornam tão intensos que, embora ele se manifeste por meio de uma arte, afirmará: ―Nenhuma presença nos consola. / Nem a poesia nos consolará‖ (Canc, p. 114). É a ―noite maior‖ que tomba sobre o poeta. 203 5. CONCLUSÃO 204 ―Quero ensinar-te canções alegres e luminosas‖, diz Carlos Drummond de Andrade a Emílio Moura, em verso do poema ―Um minuto, um minuto apenas‖87. Após a elaboração do capítulo ―A outra face de Moura‖ e a constatação da angústia e do desencanto que, definitivamente, tomam o poeta, e da obscuridade que tomba pesadamente sobre seus poemas, ouvimos ressoar no desejo drummondiano referência às canções tristes e sombrias de Emílio Moura. É como se este poeta não soubesse compor de modo diferente, nem conhecesse outras canções; afinal, ensina-se ao outro aquilo que ele não sabe. Drummond, nos demais versos, faz alusão a um Emílio Moura sério, concentrado em livros, que não aproveita a vida que passa, um ser casmurro, que precisa de um convite ao riso88. Tais seriedade, casmurrice e melancolia são perceptíveis na obra emiliana. A primeira leitura que dela realizamos, ainda sem preocupações analíticas, apenas de reconhecimento mesmo do trabalho do poeta, despertou-nos um estranhamento: que angústia seria essa, cantada de modo tão abstrato, tão carente de imagens concretas, referentes ao mundo sensível? Que estilo é esse pleno do imaginário aéreo e de referências ao que é intocável, apenas sonhado e imaginado? Que poeta é este que se entrega ao sofrimento, à escuridão e à desesperança quase absoluta; que canta a Musa, o mito? Toda a problemática do desencantamento em Moura se encontra interligada pela questão do enfraquecimento moderno da crença no transcendental, provocada pela ascensão da razão e, por conseguinte, dos avanços técnico- científicos. A linguagem decaída, sem poderes mágicos e transcendentes, gera o desencanto de Emílio Moura em relação à operação lírica; a Musa, ser divino, inspiração máxima dos poetas, representa o mito poético desaparecido da obra 87 Este poema foi publicado na Revista da Academia Mineira de Letras (vol. XXVII, dez./02, jan.,fev./ 2003, p. 90-91), acompanhado da seguinte informação: ―O poema acima consta de uma carta de Carlos Drummond de Andrade a Emílio Moura, quando o primeiro residia em Itabira‖. Trata-se de uma cópia manuscrita por Drummond, cuja letra impossibilitou a identificação de uma palavra no segundo verso do poema. Transcrevemo-lo: ―Faze uma fogueira dos teus livros, / – como é belo o fogo! o menino vermelho que (palavra não identificada) / faze uma fogueira dos teus livros, / vem rir comigo! vem rir comigo! // Olha a vida que passa / à tua porta, e chama, chama por ti... / Olha a vida, ama a vida! / Quero ensinar-te canções alegres e luminosas... // O sol anda a divertir-se pelos caminhos, / – fecha a página inútil, / esquece a triste sabedoria... // Vem comigo! vem comigo! / Olha: é a vida que passa, / com as mãos cheias de rosas! / Não ouves a música do seu passo, / num ritmo sutil? // Apaga a lâmpada de argila / e vem, à luz divina das estrelas, / errar num bosque encantado! // A vida bate à tua porta! / Para que desprezá-la? / A vida bate um momento, / e foge pelos caminhos... / Entoa a canção do desejo! / A vida passa! a vida foge! // Silêncio... / A vida já passou. / Posso dormir tranquilamente...‖ 88 Drummond dedicou vários poemas e outros escritos ao amigo Emílio Moura. Procuramos combiná- los, construindo um texto de apresentação de Moura pelas palavras de seu amigo Drummond. Texto que consta como apêndice desta tese. 205 emiliana. Trata-se de outra perda transcendente, a qual promove o mal-estar que resultará nos sombrios livros finais do poeta. Enfim, Moura fecha sua obra habitando uma noite, cuja impossibilidade de ser substituída pelo amanhecer, indicando uma escuridão infinita, aponta para uma morte sem salvação. Tudo isso sustentado pelos paradoxais efeitos da modernidade técnico-científica do século XX. Esta imbricação é que nos inspirou na elaboração do título deste trabalho, referindo-nos a encruzilhadas no itinerário de Emílio Moura. Apesar de estabelecermos três caminhos para serem trilhados, eles se entrecruzam em diferentes momentos. Possuem, pois, áreas de intercessão que indicam a coerência que perpassa toda a obra. Aliás, a reunião de seus livros em apenas um volume possibilita uma mirada panorâmica sobre o trabalho que parece ser um canto único e contínuo, apenas dividido em partes. Não fossem poucos casos como o do livro A casa, que constitui um único poema, e das páginas da ―Lira mineira‖, dentro do livro Habitante da tarde, que apresentam referências concretas a coisas e lugares, e a obra completa de Moura seria mesmo um cântico sobre a necessidade humana da crença no transcendental, da impossibilidade de manutenção desta crença na modernidade e dos efeitos sombrosos de sua desaparição. Se há uma face luminosa em Emílio Moura, ela se mostra exatamente enquanto o mўthos está presente. Nas primeiras partes do capítulo inicial, mostramos a concepção idealizada e mítica da operação lírica. Poeta, poesia e linguagem são caracterizados de modo sublime e perfeito. Há magia, enigma, transcendência e idealização pairando sobre esses elementos. Entretanto, mudanças se dão de um estado de satisfação poética para o desencantamento, que apontará o reconhecimento por parte de Emílio Moura da incapacidade de a linguagem poética ser absoluta, ilimitada. Ela perde, assim, as características que lhe ofereciam um lado luzente. No capítulo posterior, demonstramos que o feminino emiliano é operado, até certo momento, de modo a se apresentar divinizado e idealizado, representando o mito poético que desaparecerá da obra de Emílio Moura. No poema que verseja esta desaparição, o poeta já apresenta os efeitos sombrios que advirão desta perda e a luminosidade que sumirá gradativamente, dos poemas seguintes, perdendo-se entre as sombras da tarde e a escuridão da noite. Embora os versos tristes e sombrios se multipliquem e recebam mais intensidade melancólica nos livros que fecham o Itinerário poético, eles são encontrados em toda a extensão da obra de Moura. Procuramos demonstrar, na 206 elaboração dos dois primeiros capítulos, que sempre houve um conflito rubricando o poetar emiliano. Não importa se ele tematiza a poesia, o poeta, a linguagem poética, ou se se põe a idealizar a mulher amada, sua Musa e razão máxima do viver, pois, em ambos os grupos temáticos, encontramos uma transformação que resultará em desencanto para o poeta. Moura constrói, pois, uma obra que experimenta uma constante tensão. Esta tensão é típica de um poeta moderno, na concepção de Hugo Friedrich (1978), que busca estabelecer quais características fundam a lírica moderna inaugurada por Baudelaire. Ler Emílio Moura pelo viés desta lírica é constatar nele, além das tensões, as ―categorias negativas‖ a que Friedrich faz referência: Moura poetiza angústias, perdas, degradações, mortes, escuridão, sombras, desesperança. Detecta-se nele, ainda, um eu da escrita inquieto, em um processo de ensimesmamento, resultando em reflexões existenciais, questionamentos que, muito mais do que referirem ao subjetivismo egocêntrico, dizem respeito à condição humana como um todo. Nesse recolhimento, a noção de tempo, no poeta, não condiz com o tempo mecânico, tempo do relógio que rege a modernidade. Passado e presente se fundem, memória e imaginação são postas em convívio. A fantasia é valorizada pelo poeta, ele cria um universo próprio, onde convivem mito e idealizações, uma espécie de refúgio ou de negação da realidade que incomoda. Porém não se trata de um refúgio à moda parnasiana da torre de marfim, em que os poetas se evadiam da realidade, alienando-se. O refúgio emiliano é crítico. Mesmo criando um universo próprio, encontramos a reflexão das transformações que a lírica e os homens vivenciam no século XX. E o eu da escrita se transforma junto com a modernidade: ele vai se fragmentando, tornando-se taciturno, melancólico, descrente, beirando um niilismo absoluto. Tantas constatações são depreendidas do itinerário traçado por Moura. O que apresentamos nesta tese consiste apenas em uma primeira exploração da obra emiliana. Algumas das características acima elencadas não foram abordadas: muito há que se dizer, por exemplo, da noção de tempo nos versos deste poeta e da fragmentação do eu da escrita. Seriam mais dois caminhos a serem trilhados, além daquele do modernismo mineiro a que nos referimos. E os três capítulos se transformariam em seis e, com certeza, percorrendo estes outros trajetos, mais veredas iriam surgindo pelas curvas da estrada. 207 A proposta de trabalhar com uma obra completa – mesmo que não muito extensa como a de Moura – gera, digamos, uma espécie de desconforto: chegando ao final da primeira jornada, olhamos para trás e tomamos consciência do tanto de caminhos que deixaram de ser explorados. O fato de ser uma obra ainda pouco observada desperta a vontade de percorrê-la por completo. Entretanto, sabemos que é impossível realizar este desejo de uma única vez. O que fizemos foi, apenas, nos determos um minuto para apreciar um ou outro poema. Esperamos, entretanto, que, trazendo Emílio Moura para as discussões acadêmicas, possamos contribuir para que se desperte o interesse pela sua obra. Nossa caminhada continuará. Intentamos, em trabalhos futuros, realizar as possibilidades de exploração acima mencionadas. E fica o convite para que novos exploradores se embrenhem, também, por este Itinerário poético. 208 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 209 ADORNO, Theodor W. Conferência sobre lírica e sociedade. In: BENJAMIN, Walter et al. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 201-214. ______. Theodor W. Crítica cultural e sociedade. In: ______. Indústria cultural e sociedade. Trad. Julia Elizabeth Levy R al. São Paulo: Paz e Terra, 2007. ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2008. ______. O secreto Emílio Moura. Revista de Cultura Margens. Belo Horizonte, n.1, p.42-43, jul. 2002a. ______. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002b. ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Trad. Luiza Ribeiro. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. ARISTÓTELES. Arte poética. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007. ______. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, I. Trad. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. BACHELARD, Gaston. 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Carlos Drummond de ANDRADE (1969, p. 3) Emílio Moura, Carlos Drummond de Andrade. Nascidos no mesmo ano, funcionários públicos, colaboradores de diferentes jornais, interioranos mineiros, moradores da capital, participantes do mesmo grupo intelectual, poetas, críticos e amigos. Confiantes na sinceridade desta amizade, intensamente afirmada por Drummond – ―amizade, teu doce apelido é Emílio‖ (ANDRADE, 1969, p. 3) – é que lhe damos a palavra a fim de que, em nosso nome, apresente ―Emílio Moura de Dores do Indaiá‖89: Entre o Brejo e a Serra entre o Córrego d‘Antas, o Aterrado, o Quartel Geral e Santa Rosa entre Campo Alegre e a Estrela nasce em 1902 o poeta Emílio (Guimarães) Moura alta, fina palmeira Pindarea concinna: o ser ajustado à poesia como a palmeira se ajusta ao Oeste de Minas. E cresce. Viaja. Vejo sob a lua perfumada a cravos de Barbacena alojado na Pensão Mondego o rapazinho fazer distraídos preparatórios (para ser como toda gente bacharel formado) e preliminares poemas em busca da clave própria. (ANDRADE, 1969, p. 3) Uma vida empírica poetizada pelo amigo, que rememora momentos os quais ele próprio não viu Moura viver. Quando rapazinhos, por exemplo, eles ainda não se conheciam. Entretanto, Drummond lança mão de uma memória que 89 Título de poema publicado no jornal Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.4, n.137, p. 3, abr. 1969. 217 provavelmente lhe foi contada e acrescida às suas próprias recordações. Menciona a cidade natal de Emílio Moura: Dores do Indaiá – palavra que nomeia uma espécie de palmeira (Pindarea Concinna, citada nos versos acima) comum na região. Nesta árvore, o poeta de Itabira encontra inspiração para caracterizar seu amigo: alto, fino e singular como ela. Toda palmeira na essência é estranha em sua exemplaridade: a palmeira que anda, ave pernalta a palmeira que ensina, mestra de doutrinas líricas disfarçadas em econômicas (ANDRADE, 1969, p. 3) Moura é palmeira que ensina – referência à profissão exercida por ele durante certo tempo na Faculdade de Economia da UFMG. Incursão esta que não apagou sua verve lírica, espalhada entre as doutrinas econômicas. Porém, antes de assumir a carreira docente, havia se formado advogado. Entretanto, Advogado não seria posto que doutor de beca para foto de colação - quem o veria requerer um despejo? - alegar a falsidade de um testamento? - promover um desquite litigioso? (ANDRADE, 1969, p. 3) O poeta itabirano ressalta o caráter escrupuloso de Moura que, incapaz de exercer uma carreira que o obrigasse a tomar atitudes não condizentes com seus princípios, abdica da profissão. Ainda sobre a trajetória profissional do amigo, Drummond menciona a passagem dos dois pelo jornal Diário de Minas, importante veículo para o grupo modernista mineiro a que ambos pertenciam: O Diário de Minas, lembras-te, poeta? Duas páginas de Brilhantina Meu Coração e Elixir de Nogueira uma página de: Viva o Governo outra – doidinha – de modernismo, tua cegonha figura escrevendo o cabeço das Sociais nós todos na esperança de um vale do Bola – o Eduardinho gerente.... (ANDRADE, 1969, p. 3) Drummond faz questão de se referir ao caráter partidário e tradicional do jornal, cujos donos só se preocupavam com interesses políticos. Assim sendo, os 218 jovens escritores tinham liberdade de, entre páginas de propagandas e questões políticas, manifestar literariamente suas ideias modernistas. Todavia, nem só da carreira emiliana trata Drummond, ele verseja, também, acerca dos prazeres cotidianos do amigo: Torcedor do Atlético, fumante de cigarros de palha marca Pachola quando não os prefere fazer ele mesmo com ponderada mineira emiliana perícia, (ANDRADE, 1969, p. 3) e as consequências que alguns desses prazeres lhe acarretaram, como nos versos de ―Reunião em dezembro‖: (...) o doce mavioso Moura irmão mineiro. Sorrindo, como a pedir desculpas de uma falta: ―Fui proibido de beber e de pitar um cigarrinho‖ (ANDRADE, 2002b, p. 1302) Em artigo intitulado ―O secreto Emílio Moura‖ (2002a), Drummond destaca que o amigo ―quase que realiza no Brasil o ideal do poeta conhecido apenas pelos seus versos. De sua pessoa física há poucas informações‖ (ANDRADE, 2002a, p. 43). O poeta de Itabira contribui, então, para que Moura seja distinguido, também, por sua figura singular e pelo caráter e personalidade marcantes: Sobre o homem, há a notar ainda sua magreza e altura, seu ar de cegonha tímida, seu silêncio quase completo, sua maneira de deslizar entre multidões, seu desinteresse, sua identificação total com a poesia. É um manso, mas está longe de ser um conformista. Em voz baixa, grandes olhos acesos, espalhando as magras pernas pelas ruas de Belo Horizonte, nas noites que dão vontade de andar sempre, ele nos fala da injustiça e do mal. Dir-se-ia andar alheio a tudo, e nada lhe escapa do mundo e da cidade. Seu julgamento é frio e inflexível, o que não impede que depois de julgar e condenar ele perdoe. Um bilhete de loteria saiu-lhe premiado: Emílio continuou pobre, como antes. Nenhuma concessão ao tempo ou ao poder macula a sua vida. Entretanto, essa honestidade nada tem de feroz, tão límpida é ela, e Emílio consegue extrair de todos, os mais secos ou os mais indiferentes, um imenso amor (ANDRADE, 2002a, p. 43). O início da descrição nos apresenta um ser quase etéreo, fugaz - ele não anda, ―desliza‖. As adjetivações nos remetem a alguém extremamente delicado: 219 tímido, silencioso, manso, de voz baixa. Ao comparar Moura à ―cegonha‖, o poeta itabirano chama a atenção não somente para a estatura do amigo, magro e alto – afinal, a ave possui pernas finas e longas –, mas também para a representação das cegonhas como símbolos de contemplação. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, no Dicionário de símbolos, afirmam a respeito da simbologia de tais aves: ―A atitude desses pernaltas, imóveis e solitários, num pé só, evoca naturalmente a contemplação‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 218). Ora, segundo Drummond, Emílio, apesar de parecer distante de tudo, na verdade está totalmente atento, sendo capaz de tecer comentários sobre os mais variados assuntos: ―Dir-se- ia andar alheio a tudo, e nada lhe escapa do mundo e da cidade‖. Também nos versos de ―A um poeta irmão‖, a caracterização da indissolúvel delicadeza emiliana: Ei-lo que chega, vem trazer a magrilonga figura amada a amigos longe, em festa calma. E conversá-lo e vê-lo é sentir, indelével, a suavidade de Emílio Moura. (Apud MACHADO FILHO, 1971, p. 10) No texto ―Aniversário‖, escrito em homenagem à data de nascimento do companheiro recém-falecido, Drummond volta a ressaltar a caracterização das pernas longas, destacando a capacidade de contemplação de seu amigo. Tinhas a calma dos pernas-longas que preferem andar pausadamente para que as passadas largas não prejudiquem a degustação da paisagem. No caminho surgem coisas que não podem ser observadas do interior do automóvel ou do avião. Carece parar, assuntar, ver de certa maneira que não é a da curiosidade mecânica. Ver como senão (sic) estivéssemos vendo: abstração apreensora, de fios invisíveis e envolventes. Como sabias ver do fundo de uma cisma que parecia recobrir-te de nevoeiro, isolar-te na mêlée nervosa e aflita, sem que com isso te furtasse ao exercício de viver o teu tempo (ANDRADE, 1972, p. 5). A representação que Drummond constrói de Emílio Moura é realizada de tal forma que a imagem que dele vamos delineando é a de alguém quase intocável, quase sem substância concreta, apenas repleto de sensibilidades, as quais lhe possibilitam alcançar as mais profundas reflexões. No poema ―A consciência suja‖, reitera-se a imagem de alguém contemplativo: ―enquanto Emílio, / ao nosso lado, singra tão longe, boia tão nuvem / 220 em seus transmundos de indagativas constelações‖ (ANDRADE, 2002b, p. 1175). Suas abstrações parecem levá-lo para outros planos, para o além, conforme descrito em ―O príncipe dos poetas‖: ―Emílio, recém-chegado de galáxia‖ (ANDRADE, 2002b, p. 1180). Essas características que Drummond destaca em Moura são, às vezes, atribuídas a sua mineiridade, robustecida pelo fato de Emílio Moura permanecer em Minas Gerais por toda a vida, principalmente em Belo Horizonte (atitude oposta à de muitos escritores da época, inclusive Drummond, que partiram para o Rio de Janeiro e outras capitais). Sobre esta permanência, diz o amigo itabirano: Mineiros há que saem. E mineiros que ficam Este ficou, de braços longos para o adeus. Em Belo Horizonte, rumor sem verdes, é água pura a permanência de Emílio Moura. (Apud MACHADO FILHO, 1971, p. 10) Foram muitos anos vividos em Belo Horizonte. Jovem, Emílio Moura foi para a capital estudar. Formou-se em Direito e, logo em seguida, voltou para a cidade natal. Episódio também capturado nos versos drummondianos de ―Canção de amigo‖: Meu amigo Emílio Moura, com suas pernas compridas e seu comprido, comprido coração de sabiá deixou as noites boêmias e os dias de farra e cisma e as aves que aqui gorjeiam foi pra Dores do Indaiá. (Apud LUCAS, 1991, p. 19) Parodiando a ―Canção do exílio‖, Drummond menciona, mais uma vez, a figura comprida do amigo que, depois de formado – como se as responsabilidades da vida adulta o chamassem, fazendo-o abandonar a vida boêmia que levava junto aos jovens da capital mineira –, volta à cidade natal, onde permanece por três anos (1928 a 1931), retornando depois a Belo Horizonte, de onde não mais se mudou. Sua fidelidade ao estado natal contribui para firmar a personalidade reflexiva: ―Mineiro que cala e cisma, e é quando mais se adensa / a Minas de Emílio Moura‖ (Apud MACHADO FILHO, 1971, p. 10). As cismas emilianas geram as 221 constantes interrogações que levam o amigo de Itabira a classificar a poesia de Moura, colocando-a ―sob o signo da pergunta‖ (Apud MOURA, 2002, p. 19). Alma que interroga. Ao mundo todo interroga, constante. Há um impasse de ser, na graça de sentir. E não se basta o homem. Ave-problema, esvoaça a dúvida de Emílio Moura. (Apud MACHADO FILHO, 1971, p. 10) No poema ―A um poeta-irmão‖, Drummond apresenta a solidez da amizade compartilhada por eles: Cinquenta anos: espelho dágua, ou névoa? Tudo límpido, ou o tempo corrói o incalculável tesouro? Vem do abismo de cinquenta anos, gravara em talho-doce, a revelação de Emílio Moura. Era tempo de escolha. Escolha em silêncio, definitiva. Na rua, no bar, nossos companheiros esperam ser decifrados. Mas o sinal os distingue. Descubro, e é para sempre, a amizade de Emílio Moura. (Apud MACHADO FILHO, 1971, p. 10) O poeta de Itabira faz questão de afirmar a durabilidade de 50 anos e a intensidade – ―incalculável tesouro‖ – da amizade dos dois. Relembra o tempo da juventude, quando se conheceram e se elegeram como amigos em meio aos participantes daquele grupo de jovens que nos anos 1920 tinham 20 anos. Amizade cultivada em verso e prosa e interrompida bruscamente: Oi, Emílio, não gostei nada dessa brincadeira de ires embora sem esperar o dia 14. Custava ficar mais um pouco, homem de Deus e de Dores do Indaiá? Nunca foste afobado, nunca te vi botando a alma pela boca para conquistar os bens da vida (...)‖ (ANDRADE, 1972, p. 5). Utilizando-se de uma linguagem bastante íntima, em tom coloquial, Drummond sente a ausência do amigo na ocasião em que este completaria 70 anos: Mas neste 14 de agosto não é a mesma coisa. Não basta a companhia amada de teus versos, nem o folhear de tuas cartas. Tínhamos direito à presença, ao abraço, ao copo, à saúde, à curtição plena dos 70 anos que completas. E fazes uma coisa dessas? Deixas-te ir a um assalto brusco da doença, faltando à amena reunião que, em surdina, haveríamos de preparar-te? Já te 222 imagino, mineiramente encabulado, recolhendo esse calor de amizades muitas, em que os discursos não teriam importância, pois a expressão dos rostos é que diria tudo e melhor (...) (ANDRADE, 1972, p. 5). As suaves lembranças do amigo Moura, descrevendo seu jeito de ser, em uma espécie de adeus àquele que foi presença marcante na vida drummondiana: Pois é certo, Emílio, que ao abrir um de seus livros, que qualquer um de nós te vê sentado naquela poltrona, falando manso e mineiro, como falavas em 1920 naquela roda de bar hoje desaparecidos, o bar e a roda. (...) Só me consola saber que tua partida, como tu mesmo, foi simples, dessas que causam inveja aos que ficaram: conversavas, sorrias de gratas lembranças familiares, e emudeceste sem a crispação das agonias dramáticas. Não deste o espetáculo do sofrimento. Com a maior discrição e finura, diria mesmo: com amorável graça te despediste. Parecia brincadeira. Foi mesmo brincadeira, Emílio Moura? Vamos admitir que sim, e compensar e curtir teu aniversário como se estivesses aqui e agora ao nosso lado (ANDRADE, 1972, p. 5). Assim Carlos Drummond de Andrade se despede de Emílio Moura. Poeta- irmão, poeta-palmeira, poeta-cegonha, poeta mineiro, desconfiado, silencioso, cismado com os impasses da vida, da existência. Eis Emílio Moura, drummondianamente construído como alguém evanescente, um ser quase mítico, beirando o impalpável, de um caráter incorruptível, personalidade marcante e moral inquestionável. Delineando-o assim, como alguém de tamanha sensibilidade, leveza, suavidade, nada mais comum do que esperar de Drummond uma despedida que ressalte novamente tais características. Morte suave para quem foi suave em vida. Morte discreta para quem foi a discrição em pessoa. Juntos a Drummond, 40 anos depois da morte de Emílio Moura, despedimo-nos do poeta que, se não muito conhecido para nós, no itabirano foi alguém que imprimiu marcas profundas. Marcas que lhe possibilitaram representar Moura de forma tão precisa e íntima, tão poética e realista. Em verso do poema ―Verbo e verba‖, Drummond condensa o que disse a respeito do amigo: ―Emílio Moura evanescente‖ (ANDRADE, 2002b, p. 1179).