História do ensino de Cálculo Diferencial e Integral: a existência de uma cultura MARCOS RIBEIRO RAAD INSTITUTO DE CIÊNCIAS EXATAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA MESTRADO PROFISSSIONAL EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Juiz de Fora (MG) Maio, 2012 UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CIÊNCIAS EXATAS Pós-Graduação em Educação Matemática Mestrado Profissional em Educação Matemática MARCOS RIBEIRO RAAD História do ensino de Cálculo Diferencial e Integral: a existência de uma cultura Orientadora: Profª. Dra. Maria Cristina Araújo de Oliveira Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Mestrado Profissional em Educação Matemática, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação Matemática. Juiz de Fora (MG) Maio, 2012 MARCOS RIBEIRO RAAD História do ensino de Cálculo Diferencial e Integral: a existência de uma cultura Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Mestrado Profissional em Educação Matemática, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação Matemática. COMISSÃO EXAMINADORA ______________________________________________ Profª. Dra. Maria Cristina Araújo de Oliveira – Orientadora Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF ______________________________________________ Prof. Dr. Wagner Rodrigues Valente Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP ______________________________________________ Profª. Dra. Maria Célia Leme da Silva Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP Juiz de Fora, _____ de maio de 2012 Ao meu querido pai Alberto, um dos seres humanos mais extraordinários que tive o privilégio de encontrar na caminhada da vida. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Alberto e Maria do Carmo, por todos os ensinamentos, lições de vida e por terem me concedido o dom da vida. À minha esposa Tatiana pelo amor e companheirismo ao longo destes anos, além de sempre aturar a minha metralhadora cheia de mágoas. À minha filha Maria Luísa por me fazer acreditar na esperança e na redenção. Ao meu irmão Alberto pelas intermináveis conversas nostálgicas sobre o maravilhoso passado que tivemos juntos. Ao meu amigo Palmer pelas longas caminhadas em direção ao infinito. À minha orientadora Professora Doutora Maria Cristina pela competência na articulação das ideias, na escrita e seleção dos textos, na visão sobre o ofício de produzir história da educação matemática e principalmente por nadar contra a corrente. Muito obrigado por acreditar em mim. Aos Professores Doutores Wagner Valente e Maria Célia Leme da Silva pelas valorosas contribuições fornecidas a este trabalho em sua qualificação, possibilitando outras dimensões à pesquisa. Ao Professor Aladim, pessoa de mais alta estirpe, que possibilitou a este trabalho fontes históricas ao ceder material de Cálculo de seu acervo particular, além de ser sempre solícito e paciente no atendimento de meus infindáveis questionamentos. Às colegas Elida e Paola do grupo de pesquisa pela ajuda na digitalização das fotos das notas de aula do Professor Aladim. “O passado está escrito nas colunas de um edifício, ou na geleira onde um mamute foi morrer.” (NENHUM DE NÓS-1990). RESUMO O presente trabalho tem como objetivo o estudo histórico sobre o ensino da disciplina Cálculo Diferencial e Integral na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) durante as décadas de 1970 e 1980 com a intenção de identificar traços, vestígios da cultura desse ensino. Dessa forma, a questão norteadora foi: como se caracteriza a cultura do ensino de Cálculo Diferencial e Integral nas décadas de 1970 e 1980? O estudo aqui proposto, ao investigar historicamente os processos de ensino e aprendizagem da Matemática, naturalmente se insere no campo de pesquisa da história da educação matemática com um suporte teórico-metodológico proveniente da História da Educação entendida como especificidade da História. As fontes analisadas foram as notas de aula de um professor de Cálculo do Departamento de Matemática da UFJF do século passado, o caderno de Cálculo de um aluno do referido professor, as atas departamentais, livros texto de Cálculo do período em questão; além de entrevista com o docente autor das notas. As conclusões do estudo delineado apontam para a identificação de elementos da cultura de ensino de Cálculo como: o rigor, os pré-requisitos, a reprovação, as aplicações da matemática, a ênfase no treinamento e a seqüência de ensino função- limite-derivada-integral. Palavras-chave: história da educação matemática. Ensino de Cálculo. Cultura do ensino de Cálculo. História das disciplinas. ABSTRACT The present work aims to study the teaching of history on Differential and Integral Calculus course at the Federal University of Juiz de Fora (UFJF) during the 1970s and 1980s with the intention of identifying traces, vestiges of the culture of teaching. Thus, the question was: how to characterize the culture of teaching of differential and integral calculus in the 1970s and 1980s? The study proposed here, by taking the history of teaching and learning of mathematics, of course fits into the search field of the history of mathematics education with a theoretical-methodological support from the History of Education understood as specificity of history. The sources were the lecture notes of a professor of the Department of Mathematics Calculus UFJF of the last century, the contract of a Calculus student of that teacher, the departmental proceedings, textbooks Calculation of the period in question, in addition to interview with the faculty author of the notes. The findings outlined point to identify elements of culture as Calculation education: rigor, the prerequisites, the disapproval, the applications of mathematics, the emphasis on training and the sequence teaching function-limit-derivative-integral. Keywords: mathematics education history. Calculus teaching. Calculus teaching culture. Disciplines history. LISTA DE ILUSTRAÇÕES p. Ilustração 1 Programa de Cálculo I do ano de 1975 40 Ilustração 2 Referência ao livro de Munem-Foulis 43 Ilustração 3 Prova da irracionalidade de 2 47 Ilustração 4 Prova da irracionalidade de 2 (continuação) 48 Ilustração 5 Curiosidade sobre o número  50 Ilustração 6 Aproximação do irracional  por meio de uma 51 sequência de números racionais Ilustração 7 Extrato da tabela de limites do material do 54 Professor Aladim Ilustração 8 Interpretação geométrica do Teorema do Valor Médio 55 Ilustração 9 Exemplo de determinação de assíntotas de uma função 56 Ilustração 10 Roteiro para facilitar na construção do gráfico de uma 58 função Ilustração 11 Extrato da página 357 do livro de G.Thomas 60 Ilustração 12 Exemplo de decaimento radioativo extraído do livro 61 de G. Thomas, edição de 2009 p. Ilustração 13 Extrato do material onde se identificam aplicações de 62 logaritmos e exponenciais Ilustração 14 Tabela fornecendo a meia-vida de alguns 63 elementos químicos Ilustração 15 Exemplos sobre desintegração radioativa 64 Ilustração 16 Contracapa do caderno de Cálculo II do aluno Luiz 65 Carlos Pires Ilustração 17 O começo do caderno do aluno 66 Ilustração 18 No caderno do aluno Luiz Carlos Pires, de 1976, 70 vemos uma observação sobre uma possível questão a ser cobrada no exame final Ilustração 19 Bibliografia para o Curso de Cálculo I do ano de 1975 79 Ilustração 20 Foto da edição de 1975 do livro de Serge Lang 83 Ilustração 21 Foto da edição de 1975 do livro de G.Thomas 87 Ilustração 22 Foto da edição de 1978 do livro de Munem-Foulis 89 Ilustração 23 Realce das cores utilizada na coleção Munem-Foulis 90 Ilustração 24 Foto da edição de 1977 do livro de Louis Leithold 91 p. Ilustração 25 Extrato da ata departamental de 21 de 96 dezembro de 1974 Ilustração 26 Extrato da ata departamental de 08 de maio 98 de 1976 Ilustração 27 Extrato da ata departamental de 30 de dezembro 99 de 1977 Ilustração 28 Extrato da ata departamental de 06 de maio 101 de 1978 Ilustração 29 Extrato da ata departamental de 23 de junho 103 de 1979 Ilustração 30 Extrato da ata departamental de 12 de janeiro 105 de 1982 Ilustração 31 Extrato da ata departamental de 21 de maio 106 de 1982. Ilustração 32 Extrato da ata departamental de 30 de setembro 107 de 1985 Ilustração 33 Extrato da ata departamental de 17 de outubro 109 de 1988. LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS CMJF – Colégio Militar de Juiz de Fora CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio FAPEMIG - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais FFCL - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras GHEMAT - Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil ICMI - Comissão Internacional de Instrução Matemática IMPA - Instituto de Matemática Pura e Aplicada MMM – Movimento da Matemática Moderna PREPES - Programa de Especialização de Professores do Ensino Superior PUC-RJ - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro SBM - Sociedade Brasileira de Matemática UFBA - Universidade Federal da Bahia UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro UFS - Universidade Federal do Sergipe UNESP - Universidade Estadual Paulista USP – Universidade de São Paulo SUMÁRIO p. 1. INTRODUÇÃO 14 2. REFERENCIAIS TEÓRICO-METODOLÓGICOS 22 3. UM CURSO DE CÁLCULO DIFERENCIAL E INTEGRAL 37 NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980 3.1. As notas de aula de um professor de cálculo 37 3.2. O caderno de Cálculo de um aluno 65 3.3. O curso de cálculo analisado e as pesquisas em didática do Cálculo 71 3.4. Transformações do ensino de cálculo: décadas de 1950 a 1980 73 4. UMA BIBLIOGRAFIA PARA O CURSO DE CÁLCULO 78 4.1. Um breve apanhado e justificativas 78 4.2. Cálculo: Funções de uma variável: de Serge Lang 83 4.3. Cálculo: de George Thomas 86 4.4.Cálculo: de Mustafa Munem e David Foulis 88 4.5. O Cálculo com Geometria Analítica: de Louis Leithold 91 4.6. A quem e para quê servem os livros de Cálculo Diferencial e Integral? 93 5. AS ATAS DO DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA DA UNIVERSIDADE 95 FEDERAL DE JUIZ DE FORA E O ENSINO DE CÁLCULO DIFERENCIAL E INTEGRAL 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 111 REFERÊNCIAS 118 ANEXO - TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA 122 14 CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO Na qualidade de professor do ensino médio e de instituições de ensino superior há aproximadamente quinze anos no município de Juiz de Fora venho observando um número crescente de alunos com dificuldades em conteúdos básicos de Matemática. Fatorar uma expressão algébrica, efetuar um mínimo múltiplo comum, calcular uma porcentagem, resolver uma regra de três, reconhecer propriedades básicas da geometria euclidiana, ler e interpretar exercícios um pouco mais extensos em sua formulação são obstáculos que constato dentre inúmeros outros nos Cursos de Cálculo Diferencial e Integral que ministro desde o ano de 2000 em algumas faculdades desta cidade. Conjuntamente a estes cursos regulares de Cálculo, estas faculdades ofertam Cursos de Extensão em Matemática Básica, os quais também ministro, com o intuito de melhorarem a aprendizagem dos alunos em Cálculo ao reverem conteúdos matemáticos do ensino fundamental e médio. Quando me formei em Licenciatura em Matemática na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no ano de 1996, pensava que os problemas associados ao universo escolar decorriam da falta de preparo e conhecimento técnico, específico de Matemática, tanto por parte dos professores como dos alunos. Pensava que o saber matemático, a base sólida de conhecimentos, seria o sustentáculo para resolver todos os problemas do ensino e aprendizagem da Matemática. Meu pensamento se alinhava com o do matemático húngaro Polya (1958): “A primeira regra do ensino é saber o que se vai ensinar e a segunda é saber um pouco mais daquilo que se vai ensinar”. Não pretendo aqui tecer críticas ao saber matemático e nem tão pouco engrossar as fileiras daqueles que hoje criticam o ensino conteudista de Matemática. Tudo o que consegui em minha carreira foi graças à minha determinação em estudar Matemática com afinco e entusiasmo. O conhecimento de um determinado assunto a ser ensinado é fundamental mas percebo, numa visão retrospectiva de minha prática docente, que este domínio de conteúdo não atende a 15 todas as indagações e questionamentos que me faço decorrentes da minha vivência e observação dos processos de ensino e de aprendizagem de Matemática. Após a graduação em Matemática na UFJF e incentivado pelos professores do Departamento de Matemática desta instituição, me matriculo no Curso de Verão em Análise na Reta e Álgebra Linear ofertado pelo Departamento de Matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o qual concluo com êxito. Obtenho assim aprovação para realizar o Mestrado em Matemática Pura da UFRJ onde curso com aproveitamento as disciplinas Álgebra, Análise Real, Equações Diferenciais e Análise Complexa. Ao ser reprovado em Geometria Diferencial peço desligamento do Programa de Mestrado da UFRJ e ingresso nas fileiras do Exército no ano de 1998 onde passo a trabalhar como Oficial Temporário na função de Professor de Matemática no Colégio Militar de Juiz de Fora (CMJF). No CMJF, onde fico de 1998 até 2005, é que começo realmente a exercer a minha prática profissional ao assumir a 3ª Série do Ensino Médio como professor responsável na preparação dos alunos para os mais variados vestibulares e concursos militares do país. A partir do ano 2000 começo também a trabalhar em duas faculdades particulares de Juiz de Fora como professor de Cálculo Diferencial e Integral onde continuo até os dias atuais. No ensino a distância atuo como professor-tutor de Cálculo da UFJF desde o ano de 2008. A experiência advinda de ensinar Cálculo a distância me tem sido bastante enriquecedora uma vez que posso comparar alguns pontos do ensino presencial com os do ensino a distância, aumentando meu campo de visão sobre os problemas de se ensinar matemática e modificando minha prática docente. Além de trabalhar no Ensino Superior, ainda mantenho contato com o Ensino Médio, especificamente na 3ª série de um colégio particular de Juiz de Fora. A meu ver, seria interessante que todo professor tivesse a experiência de um dia poder trabalhar nesta série por dois motivos: considero este um momento que professor e aluno estão juntos para vencer o desafio do ingresso na universidade e também pela avaliação realizada pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Este exame, ao propôr um estilo de avaliação que privilegia a leitura, a interpretação de dados, gráficos, tabelas e a correlação das disciplinas, obriga a nós, professores, sairmos de nosso confortável espaço de detentores de um saber de um conteúdo específico e temido, como é a Matemática para a maioria das pessoas, a um território novo e desconhecido. Percebendo uma necessidade íntima de crescimento profissional e na busca de respostas que o conhecimento matemático, em relação às suas especificidades 16 técnicas, não conseguiu me solucionar, além de uma maturidade que só o tempo propicia, é que ingresso no ano de 2010 no Mestrado Profissional em Educação Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora. No mestrado me direciono para a área de História da educação matemática pelo fato de ser uma pessoa extremamente nostálgica que gosta de pesquisar, analisar e estudar fatos de outros tempos. O conhecimento do passado, o contato com outras épocas por meio de documentos, livros e depoimentos sempre me seduziu. Esmagados por um mundo digital, perdemos sensações como o de ouvir um disco inteiro, em seu lado A e lado B, de equacionar o tempo de gravação de uma fita cassete de modo a caber em cada lado trinta minutos de música. O imediatismo, a rapidez do mundo atual, ao mesmo tempo em que abre perspectivas para o ensino da Matemática devido às novas ferramentas tecnológicas também impõe restrições a esta ciência no tocante que a Matemática necessita de um tempo de maturação para o seu entendimento. Se tudo muda, como as práticas de ensino de Cálculo Diferencial e Integral se transformaram ao longo do tempo? E quanto ao modo de estudar uma disciplina como Cálculo, que mudanças têm ocorrido ao longo dos anos? Como aluno do Programa de Mestrado em Educação Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) começo a participar no segundo semestre de 2010 do Grupo de Pesquisa sob a Coordenação da Professora Doutora Maria Cristina Araújo de Oliveira1. Nosso trabalho é constituinte de um projeto maior, intitulado “A formação de professores de Matemática na Universidade Federal de Juiz de Fora: história das disciplinas de Cálculo Diferencial e Integral, Geometria Analítica, Prática de Ensino de Matemática e História da Matemática.” O referido projeto tem financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). O objetivo do projeto maior é analisar as transformações que estas disciplinas sofreram ao longo do curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora, criado no final da década de 1960. Espera-se que os estudos das trajetórias históricas destas 1 Professora do Departamento de Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora, do corpo permanente do Mestrado Profissional em Educação Matemática da UFJF e membro do Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil (GHEMAT). O GHEMAT, fundado no ano de 2000, tem como objetivo de suas pesquisas a produção da história da educação matemática no Brasil com um suporte teórico-metodológico proveniente da História da Educação entendida como especificidade da História. 17 disciplinas, que se dividem em quatro subprojetos, contribuam para a reflexão na proposição de reformas, na elaboração de futuros cursos de formação de professores de Matemática e que, na busca do conhecimento do passado, que é perene e se aperfeiçoa, as análises destas transformações possam revelar como se moldou o currículo de formação do professor de Matemática. Além de um sistemático e semanal estudo de textos produzidos por historiadores, educadores, sociólogos e filósofos, que serão detalhados no capítulo das considerações teórico-metodológicas, foram feitos estudos sobre o surgimento de cursos de licenciatura em Matemática no país: leituras de dissertações tais como a de Suzeli Mauro2 que por meio de um estudo histórico investigativo realizou um levantamento de como ocorreu a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) de Rio Claro e em particular o Departamento de Matemática, campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Outro ponto trabalhado pelo grupo de pesquisadores é a elaboração de uma memória das práticas docentes realizadas no curso de licenciatura em Matemática da UFJF. Esta organização, sistematização e busca dos vestígios do passado, objetivando a criação de um banco de dados, tem como base os cadernos de alunos e de professores, notas de aula de professores, provas e trabalhos aplicados pelos docentes, atas departamentais, depoimentos dos professores por meio de entrevistas, programas curriculares e ementas dos cursos dentre outros. Em 2011 começam a surgir os primeiros frutos deste projeto com a dissertação defendida por Wagner Da Cunha Fragoso sobre a trajetória histórica da disciplina História da Matemática do curso de licenciatura da UFJF. A pesquisa aqui apresentada aborda a história do ensino de Cálculo que trará em sua estrutura elementos para a história da disciplina Cálculo Diferencial e Integral. A questão central é: como ocorreram as práticas de ensino da disciplina Cálculo Diferencial e Integral na UFJF nos anos 70 e 80 do século passado? E ainda, analisando a cultura de ensino de Cálculo, como a reprovação nesta disciplina é tratada ao longo do tempo? Na análise do ensino de Cálculo nos deparamos com elementos que caracterizam uma certa cultura deste ensino. Um desses elementos é o rigor. O 2 Sob a orientação de Sérgio Nobre defende, em Rio Claro, no ano de 1999, a dissertação intitulada “A História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro e suas contribuições para o Movimento da Educação Matemática.” 18 termo rigor é muito utilizado em Matemática e tem diferentes significados: pode ser entendido como uma contraposição à intuição, como sinônimo de um curso de qualidade, como um curso que contemple as demonstrações, a lógica e o formalismo, ou ainda como elemento medidor de reprovação. Muitas vezes um curso é considerado bom, forte, quando tudo é demonstrado, ou então quando a reprovação é elevada. Tentaremos durante nosso trabalho identificar o significado que os professores e os manuais didáticos dão à palavra rigor no ensino de Cálculo Diferencial e Integral. Outro elemento que emergiu da análise histórica do ensino de Cálculo Diferencial e Integral, que frequentemente aparece nas discussões de ensino desta disciplina, foi a problemática dos pré-requisitos. A título de ilustração, ao resolver um problema de otimização3 em que se pede para minimizar a quantidade de lona gasta para a confecção de uma tenda cônica, o aluno não sabe nem o que é um setor circular, muito menos a sua área, conteúdos estes supostamente vistos no último ano do ensino fundamental. Ou ainda, ao ensinar uma técnica de integração, conhecida como método das frações parciais, percebe-se que o aluno não sabe fatorar um polinômio. Estes dois exemplos foram extraídos de nossa prática docente como professor de Cálculo há mais de 10 anos e infelizmente não são casos esporádicos de falta de conhecimentos prévios de uma matemática de ensino fundamental e médio. Esta dificuldade na matemática elementar apresentada pelos estudantes de Cálculo não é uma exclusividade dos dias atuais. Isto será mostrado em nossa pesquisa quando, na inspeção dos prefácios dos livros de Cálculo das décadas de 1960 e 1970, constatarmos pela escrita dos autores que os alunos desta época apresentavam dificuldades, dentre outras, tanto em fatoração algébrica como no desenvolvimento de produtos notáveis. Os depoimentos dos professores de Cálculo da época também destacam os obstáculos para o ensino de Cálculo decorrentes da falta de conhecimentos de uma matemática básica. Num levantamento de outras pesquisas já produzidas, que investigam a disciplina Cálculo Diferencial e Integral numa perspectiva histórica, encontramos as dissertações de Eliene Barbosa Lima e de Fabiana Cristina Silva de Oliveira. 3 Problemas de otimização consistem na determinação de valores máximos e ou mínimos de funções. São amplamente estudados em Cálculo com aplicações em várias áreas do conhecimento. 19 A dissertação de Eliene Barbosa Lima, intitulada “Dos Infinitésimos aos limites: a contribuição de Omar Catunda4 para a modernização da Análise Matemática no Brasil”, nos chamou a atenção por tomar a Análise Matemática como base para o Cálculo Diferencial e Integral, já que o “embrião” da disciplina de Cálculo tem surgimento na Análise Matemática, como será visto posteriormente no item que trata das transformações do ensino de Cálculo. A referida pesquisa analisa e compara os livros de Cálculo de Catunda e de Granville5, para identificar elementos de determinada escola de matemática e suas influências teóricas e metodológicas na elaboração dos mesmos, e constata que o livro de Catunda se alinha com as ideias de Cauchy e seus contemporâneos ao precisar a noção de limite, tornando-a mais rigorosa neste sentido, ao passo que o livro de Granville aborda o Cálculo tendo como base a noção dos infinitésimos, em concordância com as teorias desenvolvidas por Newton e Leibniz. Com o intuito de compreender a contribuição histórica do livro Curso de Análise Matemática de Omar Catunda como ferramenta no processo de institucionalização da Análise Matemática moderna nas instituições brasileiras de ensino superior, em particular na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Eliene Lima conclui que o livro do Professor Catunda influenciou gerações de físicos, engenheiros e matemáticos brasileiros formados em diferentes instituições de vários estados brasileiros. Já a dissertação de Fabiana Cristina Silva de Oliveira, intitulada “Uma disciplina, uma história: Cálculo na licenciatura em Matemática da Universidade Federal de Sergipe (1972-1990)”, analisa de modo minucioso documentos históricos, dentro de uma limitação temporal e estabelece como ponto central as discussões empreendidas no Departamento de Matemática na Universidade Federal do Sergipe (UFS) sobre Cálculo no Curso de Licenciatura em Matemática desta instituição. O percurso histórico da disciplina em questão é feito por meio da análise da carga horária, dos pré-requisitos, dos conteúdos, professores e método de ensino. A pesquisa de Fabiana Cristina Silva de Oliveira toma como parâmetro a história das disciplinas ao analisar a história do Cálculo durante as décadas de 1970 4 Omar Catunda (1906-1986). Professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Após aposentar-se, vai para Salvador em 1962 e assume o cargo de Diretor do Instituto de Matemática e Física da Universidade Federal da Bahia. 5 Elementos de Cálculo Diferencial e Integral, do ano de 1961, de William Anthony Granville, Percey F. Smith e W.R. Longley. 20 e 1980 na UFS, tomando como fontes os planos de aula, as atas e os relatórios do Departamento de Matemática da UFS bem como depoimentos orais de alunos e professores do Curso de Licenciatura. A autora constata que as mudanças significativas ocorridas na disciplina Cálculo no período analisado foram em relação à carga horária, já em relação aos pré-requisitos e as ementas as alterações foram menores. Fabiana Silva de Oliveira indica em seu trabalho que a matéria de ensino Cálculo foi configurada paulatinamente e antes de assumir a sua última formação perpassou por diferentes disciplinas, com reformulações em sua configuração, com assinaturas e cargas horárias distintas mas com os mesmos conteúdos. O resultado da pesquisa de Fabiana Silva de Oliveira foi que a disciplina Cálculo passou por um processo histórico notável e que as alterações ocorridas deram-se principalmente em relação ao método de ensino por conta do perfil de diferentes professores no decorrer do tempo: a pesquisadora evidencia que o perfil do professor selecionado para ministrar aulas de cálculo na década de 1970 era o de um docente com pouca preocupação em trabalhos científicos, tendo formação em pós-graduação, mas não especificamente mestrado ou doutorado, concentrado mais em experiência docente, isto é, na prática em sala de aula. Todavia, para um período posterior, a dissertação de Fabiana aponta para a necessidade de um professor mais voltado para a pesquisa e a cientificidade da disciplina, exigindo do profissional uma maior especialização na área em que o mesmo pretendia atuar. As pesquisas analisadas acima não objetivam abordar a cultura do ensino de Cálculo Diferencial e Integral, suas práticas e representações, permanências e transformações, como pretendemos fazer aqui. Em relação ao trabalho de Fabiana Cristina Silva de Oliveira nosso trabalho se assemelha por tratar da história de uma disciplina, também Cálculo, durante as décadas de 1970 e 1980, de uma Universidade Federal. Assim como a pesquisadora citada, também investigamos atas departamentais, analisamos livros de Cálculo e também tomamos depoimentos de professores da época, porém, nosso trabalho não foi centrado na criação e constituição do Departamento de Matemática, na análise curricular da disciplina Cálculo, num levantamento nominal dos professores desta disciplina e nem nas modificações que passa esta disciplina devido à metodologia utilizada por seus docentes, conforme aponta o trabalho de Fabiana. Nossa pesquisa procura fazer um amálgama a partir das fontes que dispomos (documentos departamentais, livros de Cálculo, caderno de um aluno, além das notas de aula e depoimento de um 21 professor) para identificar elementos de uma cultura de ensino de Cálculo: os pré- requisitos, o rigor, as aplicações da matemática, a seqüência didática função-limite- derivada-integral e a questão da reprovação. Para esta investigação histórica sobre o ensino de Cálculo Diferencial e Integral analisamos as atas do Departamento de Matemática da UFJF de 1970 a 1990, as notas de aula dos anos de 1975 e 1976, do Professor Aladim José Valverde6, um caderno de Cálculo II, de 1976, do aluno Luiz Carlos Pires que ao final do curso ministrado pelo Professor Aladim o presenteou com este caderno. Outro ponto de análise foi a bibliografia adotada nos cursos de Cálculo da época referida. As fontes primárias utilizadas: documentos em atas, apontamentos de aula do Professor Aladim, o caderno do aluno Luiz Carlos, as atas departamentais, bem como as fontes secundárias, bibliografia do curso de Cálculo, foram confrontadas com depoimentos orais de professores com larga experiência envolvidos com os fatos pesquisados. A estrutura de nosso trabalho segue o seguinte roteiro: no Capítulo II é exibido o referencial teórico-metodológico utilizado. Feito esse amparo na pesquisa, partimos para a questão canônica de nossa pesquisa que é o estudo das práticas de ensino na disciplina de Cálculo. No Capítulo III exercemos o ofício de historiador ao fazer um estudo do Curso de Cálculo do Professor Aladim do ano de 1975 não nos atendo ao simples relato factual, mas sim buscando dialogar com as fontes. Em busca dos elementos da cultura de ensino de Cálculo examinamos o caderno do aluno e as notas de aula do professor. Realizamos também uma entrevista com o Professor Aladim. No Capítulo IV, é feito um estudo de parte da bibliografia utilizada nos Cursos de Cálculo nos anos 70 e 80 do século passado, examinando os prefácios destes livros para buscar evidências, vestígios da cultura do ensino de Cálculo Diferencial e Integral. O Capítulo V é constituído pela investigação das atas do Departamento de Matemática da UFJF no que diz respeito à disciplina Cálculo Diferencial e Integral e no Capítulo VI apresentamos nossas considerações finais. 6 O Professor Aladim atuou no Departamento de Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora durante as décadas de 1970, 1980 e 1990, tendo sido professor de Cálculo Diferencial e Integral durante cinco períodos. Ocupou uma posição de destaque no Departamento pela sua excelência profissional, reconhecida tanto por seus pares como por seus alunos. 22 CAPÍTULO 2 REFERENCIAIS TEÓRICO-METODOLÓGICOS Nosso trabalho consiste numa investigação sobre a história do ensino da disciplina Cálculo Diferencial e Integral no curso de formação de professores de Matemática (licenciatura) na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Neste capítulo fornecemos a base teórico-metodológica a ser usada na pesquisa. Inicialmente abordamos como produzir história da educação matemática, tomando a história dos processos de ensino e aprendizagem da Matemática como um campo inserido na história da educação que por sua vez se ampara na história. Passamos então aos diversos conceitos de cultura escolar, que é uma categoria de análise da historiografia da educação, onde nos situaremos e sobre a qual discutiremos as peculiaridades de nosso trabalho, que se ambienta na cultura acadêmica. Por fim analisamos a história das disciplinas escolares como linha de pesquisa encaminhada para as disciplinas acadêmicas. Nossa pesquisa trata da história do ensino de uma disciplina acadêmica trazendo elementos para a história dessa disciplina. A pesquisa histórica sofre uma mudança de perspectiva a partir de 1929 quando os historiadores Marc Bloch7 (1886-1944) e Lucien Febvre8 (1878-1956) fundam a revista Annales d’histoire économique et sociale. Até então a historiografia encontrava-se permeada pela filosofia positivista de Augusto Comte (1798-1857). O positivismo defendia a idéia de que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro. De acordo com os positivistas somente podia-se afirmar que uma teoria é correta se ela foi comprovada por meio de métodos científicos 7 Historiador francês autor de Apologia da História ou o ofício de historiador. Na segunda grande guerra mundial foi obrigado a se esconder por ser judeu. Em 1943 entrou na Resistência Francesa em Lyon, sendo fuzilado pelos alemães em 16 de junho de 1944 nos arredores desta cidade. Foi uma das vítimas de Klaus Barbie. 8 Considerado um dos precursores da história das mentalidades, que privilegia os modos de pensar e de sentir dos indivíduos de uma mesma época. Segundo Febvre (1989, p.19) “toda história é escolha”; o fato histórico é uma obra criada pelo historiador. 23 válidos. Esta corrente filosófica pretendia estender o rigor científico a todas as áreas, levando a uma concepção asséptica, linear e neutra de se fazer história. O papel do historiador era apenas percebê-la, recuperá-la e, numa narrativa considerada isenta de possíveis desconhecimentos ou imprecisões, mostrá- la ao público, uma vez que nesta concepção o conhecimento se explica por si mesmo (VILLELA, 2009, p.25). A esta visão que os fatos históricos falam por si só, que são arrumados cronologicamente pelo historiador e são mostrados ao público de modo preciso como uma verdade imutável é que se opõem os Annales. Seus historiadores pretendiam formular uma história engajada, cujo objetivo principal fosse responder às lacunas inerentes à condição humana. [...] os textos ou os documentos arqueológicos, mesmo os aparentemente mais claros e mais complacentes não falam senão quando sabemos interrogá-los. [...] toda investigação histórica supõe, desde os seus primeiros passos, que a busca tenha uma direção. No princípio é o espírito. Nunca [em nenhuma ciência] a observação passiva gerou algo fecundo. (BLOCH, 2001, p.79). A escola dos Annales renovou e ampliou o quadro das pesquisas históricas ao abrir o campo da História para o estudo de atividades humanas até então pouco investigadas, rompendo com a compartimentação das Ciências Sociais e privilegiando os métodos pluridisciplinares. Os historiadores dos Annales foram os pioneiros na abordagem do estudo de estruturas históricas de longa duração9 e de fôlego amplo para explicar eventos e transformações políticas. “As causas, em história como em outros domínios, não são postuladas. São buscadas.” (BLOCH, 2001, p.154). Bloch e Febvre pretendiam romper com o ranço positivista que impregnava a historiografia. Propunham uma história-problema, não automática, viva e investigativa, constituída de hipóteses abertas às práticas de outras ciências como a sociologia e a psicologia. Por intermédio do sociólogo Émile Durkheim10 (1858- 9 Segundo Braudel (1992, p.52) a história estrutural ou de larga duração interroga séculos inteiros e, por abranger um largo espaço de tempo torna-se invariável com relação à histórias de curta e média duração que passam, permitindo uma análise mais profunda e de um plano mais elevado. 10 Considerado um dos fundadores da sociologia moderna. Um dos principais aspectos da teoria sociológica de Durkheim consistia que a sociedade era algo que estava fora e dentro do homem ao mesmo tempo, graças ao que se adotava de valores e princípios morais. 24 1917), Bloch percebe a importância da interdisciplinaridade e de se praticar uma história com questões de fôlego mais amplo: “Ele nos ensinou a analisar mais profundamente, a cerrar mais de perto os problemas, a pensar, ousaria dizer, menos barato.” (BLOCH, 2001, p.48). Os Annales tentam combater o simples relato dos fatos, concebem a história de modo vivo empregando um caráter mais dinâmico e construtivo no trato com os fatos históricos. “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado [...] incessantemente se transforma e aperfeiçoa.” (BLOCH, 2001, p.75). A pesquisa histórica passa a ter nova metodologia para a escolha, a seleção e o trato dos documentos que serão tomados como fontes. Vários desafios surgem para quem trabalha com a investigação histórica: o levantamento de questões, a validação das fontes, o diálogo com os documentos, a produção do texto, as dificuldades com a língua, a pouca quantidade de obras de síntese, o cuidado em não julgar e sim compreender, a articulação do presente com o passado. O fato é que a leitura das diferentes temporalidades que fazem com que o presente seja o que é, herança e ruptura, invenção e inércia ao mesmo tempo, segue sendo a tarefa singular dos historiadores e sua principal responsabilidade para com seus contemporâneos (CHARTIER,2007,p.93). Michel De Certeau11 (1925-1986) define a produção histórica como uma operação, chamada pelo mesmo de Operação Historiográfica. Segundo De Certeau (1982, p.66) esta operação se refere a uma combinação de um lugar social (um meio, uma profissão), de práticas científicas (procedimentos de análise) e da construção de um texto, de uma escrita, de uma literatura, uma vez que não existe relato histórico no qual não esteja explicitada a relação com um corpo social e com uma instituição de saber. A história é um discurso que produz enunciados científicos, sendo a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitam controlar operações destinadas para a produção de objetos determinados (DE CERTEAU apud CHARTIER, 2007, p.27, grifos do autor). 11 Michel De Certeau foi um historiador francês dedicado aos estudos de religião e experiências místicas entre os séculos XVI e XVIII, sendo Possession de Loudun (1970) uma de suas principais obras. De Certeau também escreveu sobre a epistemologia da História e multiplicidade cultural, sendo considerada uma autoridade não apenas no mundo acadêmico, mas também pelas instituições públicas francesas. 25 As palavras em destaque são muito importantes no ofício do historiador: a produção de objetos determinados é a construção do objeto histórico pelo historiador, uma vez que o passado é um objeto que nunca está no presente. As operações são as práticas do historiador (recorte e processamento das fontes, construção de hipóteses, procedimentos de verificação). Por fim as regras e controles inserem a história num regime de saber compartilhado, definido por critérios de provas dotados de uma validade universal. Valente se alinha com De Certeau ao considerar o que é precioso para aqueles que pretendem produzir estudos históricos sobre educação matemática: “pensar a história como uma produção.”(VALENTE,2007,p.34). Como um detetive, o historiador deve tentar achar restos do passado deixados no presente e a partir daí, dialogando com as fontes, legitimando-as através de práticas científicas, tentará construir o passado para responder suas indagações. “É tarefa de qualquer historiador revelar o quão cheios de historicidade estão elementos do presente que parecem sempre terem sido do modo como são.”(VALENTE, 2007, p.38). Valente considera esta desnaturalização do presente uma questão muito importante na pesquisa histórica (VALENTE, 2007, p.38, grifo do autor). Tomemos como exemplo a questão dos pré-requisitos em Matemática, muito citada atualmente por professores do ensino superior para justificar o baixo aproveitamento em disciplinas centrais das áreas de exatas tais como Cálculo. O historiador em educação matemática, ao estudar como essa problemática se coloca ao longo do tempo, analisando as transformações no ensino de Cálculo, pode desnaturalizar esta questão do presente. A prática da história da educação matemática implica buscar respostas a questões de fundo como: Porque hoje colocamos os problemas sobre o ensino de matemática do modo como colocamos? Por que pensamos em reformas sobre esse ensino do modo como colocamos? Por que pensamos em reformas sobre esse ensino do modo como são propostas? Por que ensinamos o que ensinamos em Matemática? Por que determinados saberes matemáticos são válidos para o ensino em detrimento de outros? Essas são questões do presente, naturalizadas, não-problematizadas, que a prática da história da educação matemática tem a tarefa de desnaturalizá- las. (VALENTE, 2007, p.38). As questões acima levantadas por Valente permitem ao historiador da educação matemática, ao tentar identificar a historicidade presente nas práticas de ensino, uma reflexão sobre o tempo e sobre como pensamos em mudanças. 26 Uma obra de valor em história, para De Certeau, é aquela que além de alcançar o reconhecimento da comunidade acadêmica represente também um avanço na área e possa alavancar novas pesquisas. Finalmente, o que é uma “obra de valor em história”? Aquela que é reconhecida como tal pelos pares. Aquela que pode ser situada num conjunto operatório. Aquela que representa um progresso com relação ao estatuto atual dos “objetos” e dos métodos históricos e, que, ligada ao meio no qual se elabora, torna possíveis, por sua vez, novas pesquisas. O livro ou o artigo de história é, ao mesmo tempo, um resultado e um sintoma do grupo que funciona como um laboratório.( DE CERTEAU, 1982,p.72). Já segundo Prost12, “a verdadeira lacuna do conhecimento histórico não é um objeto suplementar, onde a história ainda não foi feita. Tratam-se de questões para as quais os historiadores ainda não têm respostas.” (PROST apud VALENTE, 2007, p.32). Para analisarmos uma sociedade, a história não pode se desarticular do lugar social. É esta junção que permitirá a prática científica na operação historiográfica. Em história é essencial o ato de se separar, de se recortar e de se isolar determinado objeto e transformá-lo (produzi-lo) em documento. “Longe de aceitar os dados, o historiador os constitui.” (DE CERTEAU, 1982, p.81). O texto histórico pode ter a função simbolizadora de permitir a uma sociedade se entender e se situar ao estudar seu passado, tentando representá-lo de modo adequado. Por exemplo, no Movimento da Matemática Moderna (MMM) no Brasil há uma tendência em analisá-lo como responsável pelo abandono do ensino da geometria. Trabalhos científicos referendam esta idéia, como a Dissertação de Mestrado de 1989 de Regina Maria Pavanello, intitulada “O abandono do ensino da geometria: uma visão histórica.” Mas será que realmente ocorreu este abandono? A validação de um trabalho pela comunidade científica é uma das etapas da Operação Historiográfica de De Certeau, novas representações produzidas colocam em xeque verdades antes estabelecidas. No caso do abandono da Geometria nas escolas do Brasil durante o MMM; Leme da Silva (2009) aponta que a problemática do ensino de Geometria já estava presente em nosso país na década de 1950 e algumas 12 Antoine Prost, nascido em 1933, é um historiador da sociedade francesa do século XX por meio do estudo de grupos sociais e instituições. Especialista em questões de educação. 27 iniciativas levadas a cabo durante o MMM para revigorar o ensino da Geometria passaram despercebidas devido talvez à ênfase exagerada dada à Álgebra e à Teoria dos Conjuntos no Movimento. Ainda segundo a pesquisadora: Entender o abandono da geometria, associado ao período do MMM e as apropriações que autores de livros didáticos, professores e alunos, fizeram em relação ao ensino de geometria, certamente nos revelará outras representações, ainda não construídas acerca do MMM. (LEME DA SILVA, 2009, p.18). Ainda discorrendo sobre a representação do passado, as obras de ficção e as memórias, sejam coletivas ou individuais, também representam o passado, muitas vezes de modo até mais poderoso que os livros de história. O filósofo francês Paul Ricouer (1913-2005), um dos grandes nomes da filosofia hermenêutica13 do século XX, aponta as diferenças entre memória e história: A primeira grande diferença é distinguir depoimento de documento. O depoimento se baseia na confiança outorgada à testemunha, se opondo naturalmente ao cunho oficial do documento. Uma segunda diferença é o imediatismo da reminiscência contra a construção da explicação histórica (operação historiográfica). [...] a fidelidade imediata da memória se opõe à intenção de se achar a verdade na história, baseada na análise de documentos [...] (RICOUER apud CHARTIER, 2007, p.35, grifo do autor). Chartier14 (2007, p.38) não opõe a história à memória, como fizeram alguns historiadores no século XIX, e sim tenta mostrar que os depoimentos e testemunhos por meio da memória é que garantirão a existência de um passado que foi e não existe mais. O discurso histórico encontra aí a certificação imediata que irá referendar o seu objeto. É por isso que podemos afirmar que memória e história estão relacionadas, cabendo ao pesquisador não se deixar seduzir pelos depoimentos, pelas fontes da pesquisa, e sim de um modo crítico interrogá-los. 13 Ramo da filosofia que se debate com a compreensão humana e a interpretação dos textos escritos. 14 Roger Chartier, nascido em Lyon em 9 de dezembro de 1945, é um historiador francês vinculado à atual historiografia da Escola dos Annales. Chartier trabalha sobre a história do livro, da edição e da leitura. Uma das contribuições decisivas de Roger Chartier para a Nova História Cultural está relacionada à elaboração das noções complementares de práticas e representações. A cultura seria produzida da interação entre estes dois pólos. Uma terceira noção importante desenvolvida por Roger Chartier, de modo a trazer consistência a uma Nova História Cultural, foi o conceito de apropriação (os grifos são nossos). 28 Na tentativa de explicar a passagem da memória para a história, recorremos a Pierre Nora15, que aponta as diferenças entre memória e história: A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que não é mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências de cenas, censuras ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante,demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história liberta, e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo. (NORA apud DUARTE; UGLIONE, 2010, p.145). Entre história e ficção está perto que a ficção é um discurso que relata o real, mas não pretende representá-lo nem referendá-lo. Já a história pretende dar uma representação adequada da realidade que foi e não é mais. Nesse sentido, o real é tanto o objeto como a garantia do discurso histórico. Uma das razões que dificulta a distinção entre ficção e história é a força das representações do passado (grifo nosso). Uma segunda razão que aproxima a história da ficção reside no fato de que a literatura se apropria não somente do passado bem como dos documentos e das técnicas encarregadas de produzir o conhecimento histórico. A ficção, ao se carregar de realidade, produz uma ilusão referencial. Em uma época em que a nossa relação com o passado está ameaçada pela forte tendência de se criarem histórias imaginadas ou imaginárias, a reflexão sobre as condições que permitem sustentar um discurso histórico como uma representação e uma explicação adequada da realidade que existiu é fundamental e urgente. (CHARTIER, 2007, p.48). 15 Historiador francês vinculado à terceira geração da Escola dos Annales. É conhecido pelos seus trabalhos sobre a identidade francesa e a memória, o ofício do historiador, e ainda pelo seu papel como editor em Ciências Sociais. O seu nome está associado à Nova História ("nouvelle histoire"). 29 As aproximações e distinções que fizemos acima sobre história e memória e entre história e ficção decorrem do próprio conflito da palavra historiografia em sua gênese: Devemos compreender que a palavra historiografia caracteriza um oximoro uma vez que harmoniza e contempla dois conceitos que são opostos numa mesma expressão: a História e a escrita, o real e o discurso. (DE CERTEAU apud CHARTIER, 2007, p.25). Devemos reconhecer esse paradoxo inerente à história antes de colocarmos em campos opostos a história como discurso e a história como saber. Na busca dos traços do passado, de produzir fatos históricos concernentes ao ensino de Matemática, o historiador da educação matemática, de posse de uma questão de investigação, dispõe de alguns materiais que podem lhe auxiliar em sua pesquisa: livros didáticos, diários de classe, exames, provas, cadernos dos alunos, fichas de aula de professores, relatos das testemunhas (quando possível), trabalhos escolares, atas de reuniões escolares, normas, decretos e reformas educacionais. Todos esses recursos serão úteis no que Valente (2007, p.47) chama de “as fontes falarem”. Pelo fato de nossa pesquisa analisar livros-texto de Cálculo, principalmente seus prefácios, em busca de elementos da cultura de ensino de Cálculo, percebemos a importância da história dos manuais didáticos, que constitui um testemunho escrito e permanente da sociedade, sendo hoje um dos campos mais promissores e fecundos da História da Educação, em particular da Educação Matemática. Novas questões se colocam para os historiadores, tais como: a relação entre livro didático e a formação de professores; o livro didático e sua interferência no currículo escolar; o uso do livro didático por parte do aluno; sua utilização na educação não-formal; a linguagem e imagem utilizadas nos livros didáticos; o perfil sociológico dos autores, a análise de programas educacionais. É antes de tudo um meio de se tentar construir e compreender fatos históricos de uma época, que são os objetos de pesquisa de um historiador. Em nosso trabalho o livro-texto será um dos instrumentos utilizados na tentativa de identificar vestígios, traços da cultura de ensino de Cálculo. 30 A história, a análise dos livros de texto e do material de ensino como produtos pedagógicos e culturais somente adquirem um sentido histórico pleno quando se inclui no âmbito mais amplo da história das disciplinas, especialmente quando se refere aos níveis secundário e superior de ensino. (VINÃO FRAGO, 2008, p.192). Ao investigar e interpretar as práticas de ensino de Cálculo Diferencial e Integral nas décadas de 1970 e 1980 na UFJF, do ponto de vista da cultura do ensino, nossa pesquisa naturalmente se insere no âmbito da cultura acadêmica, vista como uma extensão da cultura escolar. Desta forma, utilizaremos referenciais teóricos que tratam a cultura escolar como objeto de investigação. Podemos dizer que existem diversas características que aproximam os comportamentos das escolas, bem como as investigações sobre elas, e há uma variedade de outras que as diferenciam. No entanto, há também vasta literatura que considera a escola como uma instituição com cultura própria. Em relação ao conceito de cultura escolar, Dominique Julia o entende como: Conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). (JULIA, 2001, p.10). A cultura escolar, para ele, “evidencia que a escola não é somente um lugar de transmissão de conhecimentos, mas um lugar de inculcação de comportamentos e de habitus.” (JULIA, 2001, p. 14; grifos do autor). André Chervel concebe a cultura escolar como uma cultura criada e desenvolvida na escola e encontra nela além de sua origem seu modo de difusão. “Chervel advogava a capacidade da escola em produzir uma cultura específica, singular e original.” (FARIA FILHO et al., 2004, p. 144). Neste ponto Chervel se opõe a Yves Chevallard que, em 1985, ao escrever La Transposition Didactique, mostra as transposições que um saber sofre quando passa do campo científico para o campo escolar. A Transposição Didática é um instrumento pelo qual analisamos o movimento do saber sábio (aquele que os cientistas descobrem) para o saber a ensinar (aquele que está nos livros didáticos) e, por este, ao saber ensinado (aquele que realmente acontece em sala de aula). De acordo com Faria Filho et al. (2004, 31 p.144) Chervel era contrário à ideia que o saber escolar era derivado de uma instância superior: o saber universitário. A escola seria capaz de produzir um saber característico que refletisse sobre a sociedade e a cultura. Jean Claude Forquin, ao enfatizar as relações entre cultura e escola, define cultura escolar como sendo o conjunto de conteúdos cognitivos e simbólicos que selecionados, organizados,normalizados,rotinizados, sob efeitos de imperativos de didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas (1993, p. 167, grifo do autor). Segundo Faria Filho et al. (2004, p.147) Forquin concebia a cultura escolar tanto como original quanto derivada em relação às ciências acadêmicas. No Brasil, influenciados pelos livros A Reprodução16, de 1970, escrito por Pierre Bourdieu (1930-2002) e por Jean Claude Passeron e Sociedade sem escolas17, de 1971, de Ivan Illich (1926-2002), os trabalhos sobre cultura escolar se desenvolvem no seio de inquietações sobre a crise dos sistemas educacionais, a partir dos anos 70, que colocavam como desafios aos estudos sobre educação a reflexão sobre os fracassos das reformas educativas e a busca de novos referenciais teórico-metodológicos para interpretar o universo escolar. “Nesse sentido, uma renovação de métodos vem alterando as práticas de pesquisa na área, como, por exemplo, o recurso à investigação etnográfica e aos estudos de caso na tentativa de se aproximarem aos fazeres da escola.” (FARIA FILHO et al., 2004, p. 141). A definição de cultura escolar que adotaremos será a do professor espanhol Antônio Vinão Frago. De acordo com Vinão Frago18 a cultura escolar abrange tudo o que acontece no interior da escola, definição esta que será adotada em nosso trabalho. 16 Um estudo sobre o sistema de ensino francês e os esquemas de reprodução da sociedade de classes francesa. 17 Livro muito influente nos anos 70. Relata a crítica do austríaco Ivan Illich ao papel excludente do sistema educacional. 18 Antonio Viñao Frago é catedrático de Teoria e História da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de Múrcia. Foi membro do Comité Executivo da International Standing Conference for the History of Education entre os anos de 1994 e 2000. As suas principais linhas de investigação são os processos de alfabetização (a leitura e a escrita enquanto práticas sociais e culturais), escolarização e profissionalização docente, a história do currículo (o espaço e o tempo escolares, os manuais escolares) e o ensino secundário, assim como a análise das políticas e reformas educativas nas suas relações com as culturas escolares. 32 Alguém dirá: tudo. Sim, é verdade, a cultura escolar é toda a vida escolar: atos e ideias, mentes e corpos, objetos e condutas, modos de pensar, decidir e fazer. O que acontece é que neste conjunto existem alguns aspectos que são mais relevantes que outros, que a definem. Dentre estes elejo dois a que tenho dedicado alguma atenção nos últimos anos: o espaço e o tempo escolares. (Tradução Nossa 19 . VINÃO FRAGO, 1995, p.69). Nesta perspectiva consideramos também a cultura acadêmica, que envolve todas as manifestações das práticas, ideias, normas e procedimentos que vigoram no interior da universidade. Cada universidade, instituto ou departamento tem a sua própria e singular cultura acadêmica, quer seja pelos indicadores sócio-econômicos de seus alunos, pela formação dos professores que a constituem, pelas dificuldades de aprendizagem dos discentes, pelo tempo dispendido para o estudo e pesquisa tanto pelos professores quanto pelos alunos, pelos interesses particulares dos grupos que a dominam. O conceito de Viñao Frago sobre cultura escolar amplia e legitima estudos que objetivem a história das instituições, como é o caso de nossa pesquisa inserida em projeto maior, que pretende realizar uma investigação histórica sobre as transformações sofridas por algumas disciplinas a partir da década de 1960 no curso de Licenciatura em Matemática da UFJF, uma vez que enquanto Dominique Julia concebia a existência de duas culturas escolares(primária e secundária), Viñao Frago estendia o conceito a todas e a cada uma das instituições escolares. Isso permitia atribuir a cada escola, colégio e universidade uma singularidade, o que concorria para ampliar as possibilidades de estudos no campo da história das instituições. (FARIA FILHO et al.,2004,p.148). Ainda sobre o conceito de cultura escolar, Viñao Frago contempla na mesma os modos de pensar e atuar que proporcionam a seus componentes estratégias e pautas para desenvolver-se tanto nas aulas como fora delas – no resto do recinto escolar e no mundo acadêmico – e integrar-se na vida cotidiana das mesmas (2000, p. 100). 19 Texto Original: Alguien dirá: todo. Y sí, es cierto, la cultura escolar es toda la vida escolar: hechos e ideas, mentes y cuerpos, objetos y conductas, modos de pensar, decir y hacer. Lo que sucede es que en este conjunto hay algunos aspectos que son más relevantes que otros, en el sentido que son elementos organizadores que la conformam y definem. Dentre ellos elijo dos a lo que he dedicado alguna atención em los últimos años: el espacio y el tiempo escolares. 33 A noção de cultura escolar trouxe ao campo historiográfico educacional a possibilidade de ampliação de estudos, antes limitados ao entendimento das políticas, organização e pensamento educacionais. Esta mudança perpassa logicamente pelo universo documental a ser utilizado pelo pesquisador, que necessariamente se amplia. Quando se tem como objetivo analisar as normas e finalidades que regem uma faculdade ou um departamento, ou o papel desempenhado pela profissionalização do educador, ou ainda os conteúdos ensinados e as práticas de ensino é preciso tenacidade ao procurar os documentos, considerando que a riqueza e confiabilidade que caracteriza um trabalho parte do número e dos tipos de fontes recorridas. Isso, por conseguinte, exige refinamento metodológico e analítico da pesquisa. É preciso tratar as fontes como objetos a serem construídos, criados para melhor entendermos a realidade acadêmica. É a história sendo gerada para discutir problemas que permeiam todo o entorno de uma instituição de ensino superior. Uma discussão que pensamos ser pertinente é como a cultura do ensino de Cálculo se insere nos espaços públicos e privados de ensino superior sob diferentes matizes. O professor Alberto Perotti, ex-aluno da Faculdade de Filosofia de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em entrevista disponibilizada no site do GHEMAT20 comenta que seus professores na USP na década de 1960 eram influenciados pelo pensamento de Bourbaki21, ou seja, seguiam uma determinada corrente de produzir e expor a Matemática. “Quem saía da USP naquela época era bourbakista. O Professor Jacy Monteiro22 trabalhou com o próprio Dieudonné nos Estados Unidos ou na França” (PEROTTI, 2010). Atualmente nos Departamentos de Matemática das universidades públicas existe uma variedade de professores com formações das mais distintas: algebristas, analistas, geômetras e mais recentemente educadores matemáticos. Ao ministrar Cálculo, ainda que seja uma disciplina presente não somente nos cursos de Ciências Exatas como também nos cursos de Medicina, Farmácia, Biologia, Economia e Administração dentre outros, o professor, 20 Entrevista disponível em http:// www.unifesp.br/centros/ghemat/paginas/about_ghemat.htm. 21 Nicolas Bourbaki é o pseudônimo coletivo sob o qual um grupo de matemáticos, em sua maioria franceses, escreveram uma série de livros, que começaram a ser editados em 1935, expondo a matemática avançada moderna. Entre seus fundadores estavam Claude Chevalley, André Weil e Jean Dieudonné. 22 Luiz Henrique Jacy Monteiro (1921-1975) foi um renomado algebrista e professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (FFCLU/SP), participante efetivo do Movimento da Matemática Moderna do Brasil além de ter publicado vários livros para o ensino médio e superior. 34 em alguma medida, tenderá a dar um curso de acordo com a sua formação: mais formal e demonstrativo se for um matemático puro, mais aplicado se for um matemático da área de equações diferenciais, mais preocupado com todo o entorno do processo de ensino e aprendizagem se for um educador matemático, como se pode ver no caso da disciplina História da Matemática pelo trabalho de Fragoso (2011), que destaca a influência da formação dos docentes na condução dos seus cursos. Com relação à reprovação, é importante considerá-la em instituições públicas e privadas: se por um lado frequentemente a reprovação é tratada de maneira cautelosa nas instituições particulares, por outro lado são criados, nestes espaços, ambientes propícios para o desenvolvimento de inovações didáticas. Viñao Frago (2008, p.199) aponta algumas diretrizes para quem pretende trabalhar na construção da história de uma disciplina escolar, no nosso caso uma disciplina acadêmica: conhecer seu lugar, sua presença, suas denominações, os objetivos explícitos e implícitos, os discursos que a legitimam como disciplina acadêmica, seus conteúdos, a formação dos professores desta disciplina, as fontes (livros-texto, diários, cadernos, memórias, atas de reuniões, documentos particulares). O trabalho com as fontes possibilita ao pesquisador tentar entender as práticas escolares e o torna mais próximo de seu objeto de pesquisa bem como da realidade da sala de aula. A pesquisa que construímos utiliza como fontes as notas de aula de Cálculo Diferencial e Integral pertencentes ao Professor Aladim Valverde, entrevistas e conversas com outros professores do Departamento de Matemática da UFJF das décadas de 70,80 e 90 do século passado bem como um caderno presenteado ao professor Aladim Valverde por um de seus alunos após um curso de Cálculo, ministrado pelo referido professor, no ano de 1976. Os cadernos constituem um valioso referencial sobre as práticas docentes de tempos anteriores por possibilitar a representação do passado das ações didático-pedagógicas exercidas em sala de aula. O caderno seria um elemento da cultura acadêmica na busca de se conhecer, compreender e analisar o que ocorre nas instituições de ensino superior no que diz respeito à produção de saberes: A análise de um artefato da cultura escolar que é o caderno do aluno, no âmbito da história cultural, deverá considerar, dentre outros elementos, as suas transformações dadas pela mudança de seu uso. E esse uso está condicionado, dentre outros elementos, ao conjunto dos materiais didático- pedagógicos presentes nas salas de aula de um determinado tempo 35 histórico. Materiais e práticas pedagógicas do professor de matemática mantêm relações indissociáveis (LEME DA SILVA; VALENTE, 2009, p.31). Apesar da necessidade de se buscar outras fontes e de estarmos conscientes da importância da oralidade, sabendo que nem tudo o que ocorre no ambiente de uma sala de aula é registrado, ainda assim consideramos importante o trabalho com os cadernos, pois tal investigação pode revelar traços de práticas pedagógicas e indícios de concepções teórico-metodológicas presentes nos processos de ensino e aprendizagem de outrora. Muitos se perguntariam qual a relevância, em termos de pesquisa, de se estudar o desenvolvimento de uma disciplina específica de uma universidade de um município do interior de Minas Gerais. O alemão Gert Schubring, historiador de Matemática, tenta relacionar histórias regionais a padrões gerais de história em um artigo que analisa o desenvolvimento curricular nas escolas em uma região da Alemanha (Westphalia) na primeira metade do século XIX. Em seu estudo Schubring abordou como se desenvolveu o ensino de Matemática na província da Westphalia, fazendo uma análise das mudanças políticas, religiosas e culturais ocorridas nesta região particular da Alemanha. “Levar em conta os sistemas contextuais contribui para esclarecer a variedade de padrões que caracteriza a história da educação matemática.” (SCHUBRING, 2010, p.1). Em seu estudo de caso, que aborda uma história regional, Schubring justifica a importância de se relacionar especificidades locais a histórias: [...]desenvolvimentos em níveis local ou regional podem constituir novos padrões, que acabarão por se generalizarem para um caráter mais persistente. Assim, em geral, são as interações entre os diferentes níveis que constituem a complexidade da investigação histórica. Evidentemente, é possível também que alguns desenvolvimentos locais ou regionais permaneçam definitivamente restritos a essa região e expressar algum recurso totalmente particular, que não generalize para outras regiões. Isso ocorre raramente, mas também deve ter a particular atenção dos pesquisadores, para que possam elaborar claramente a especificidade. Mesmo tais casos isolados podem ter uma certa importância. (Tradução Nossa 23 . SCHUBRING, 2010,p.101). 23Texto Original: On the other hand, developments at the local or regional level might constitute new patterns, which will eventually generalize to a more persistent feature. Thus, in general, there are interactions between the different levels and it is these interactions, which constitute the complexity of historical research. Admittedly, it is possible too, that some local or regional developments remain definitely restricted to that region and express some entirely particular feature, which does not generalize to other regions. This occurs rarely, but also affords the particular attention of the researcher, to elaborate clearly that specificity. Even such isolated cases may obtain a certain importance. 36 Esta tentativa de articulação entre os temas gerais e a micro-história, numa tendência contemporânea de se construir uma história global, que se dá a partir do XIX Congresso Internacional de Ciências Históricas realizado em Oslo no ano 2000, encontra sustentação nas palavras do historiador francês Roger Chartier: A união indissociável entre o global e o local tem levado a alguns a propor o termo glocal, que designa os processos pelos quais são apropriadas as referências compartilhadas, os modelos impostos, os textos e a circulação de ideias para fazer sentido em um tempo e lugar específico (CHARTIER, 2007, p.81, grifo do autor). Ao estudarmos a história de uma disciplina acadêmica de uma determinada instituição estamos fazendo uma micro-história que pode também possibilitar a identificação de permanências em relação a outros contextos. A construção de histórias glocais podem conduzir a uma visão mais ampla de problemas atuais da educação. Juntamente com micro-histórias de outras instituições sobre uma mesma disciplina, espera-se, quem sabe, pela análise da cultura de ensino de Cálculo Diferencial e Integral, entender problemas pedagógicos atuais inerentes aos processos de ensino e de aprendizagem. Uma das finalidades da investigação histórica de uma disciplina acadêmica como o Cálculo Diferencial e Integral seria estabelecer conexões entre como a mesma é idealizada e proposta nas ementas e a realidade do ensino de Cálculo praticado em nossas instituições de ensino superior. 37 CAPÍTULO 3 UM CURSO DE CÁLCULO DIFERENCIAL E INTEGRAL NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980 3.1. As notas de aula de um professor de Cálculo Neste momento vamos descrever e analisar nossas fontes, que são vestígios do ensino de Cálculo Diferencial e Integral nas décadas de 70 e 80 do século anterior. Nosso trabalho objetiva investigar as práticas de ensino de Cálculo Diferencial e Integral, produzindo em sua estrutura elementos para a história da disciplina Cálculo Diferencial e Integral. Em busca de conhecer o passado analisamos as notas de aula de Cálculo de 1975 do Professor Aladim José Valverde e o caderno de Cálculo de um aluno do Professor Aladim datado de 1976. Neste capítulo examinamos também as ementas, os conteúdos programáticos e o desenvolvimento dos conteúdos, tentando dialogar com essas fontes, por meio do levantamento de questões pertinentes ao ensino de Cálculo, mais especificamente do ponto de vista da cultura do ensino de Cálculo. Apresentamos agora o professor cuja prática é por nós analisada no que diz respeito à sua atuação como docente de Cálculo Diferencial e Integral. O Professor Aladim José Valverde obteve a Licenciatura Plena em Matemática na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Santa Marcelina, na cidade de Muriaé, em Minas Gerais, no período de 1967 a 1970. Com mais de 40 anos de magistério, atuou como Professor do Departamento de Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora de 1974 até 1996 lecionando, para os Cursos de Engenharia Elétrica, Engenharia Civil, Matemática e Física, a maioria das disciplinas ofertadas pelo Departamento, a saber: Cálculo I(em 1975, 1976, 1985, 1986), Cálculo II, Cálculo III, Fundamentos de Matemática I, Fundamentos de Matemática III, Processamento de Dados I, Processamento de Dados II, Álgebra I, Cálculo Numérico, Cálculo Avançado I, 38 Cálculo Avançado II, Geometria Analítica, Introdução à Computação, Matemática I e Matemática II (estas duas últimas para os Cursos de Economia e Administração). Lecionou também na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cataguases, em Minas Gerais (MG), na Faculdade de Administração de Visconde de Rio Branco, MG, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ubá, MG, e em vários colégios de Ensino Fundamental e Médio de Cataguases, Três Rios e Juiz de Fora. No período de 1974 a 1976, completou o Curso de Especialização em Matemática, no PREPES (Programa de Especialização de Professores do Ensino Superior) na Universidade Católica de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Depois, no período de 1979 a 1981, fez Especialização em Matemática na PUC-RJ, tendo feito todos os créditos do Mestrado, não fazendo apenas a Dissertação de Mestrado. Uma das evidências de que o Professor Aladim José Valverde era um professor de reconhecida competência pode ser vista no fato de um aluno seu, de nome Luiz Carlos Pires, o ter presenteado com um caderno de Cálculo II do ano de 1976. O caderno do aluno Luiz Carlos retrata de modo caprichoso o curso ministrado pelo professor. Percebe-se aqui uma admiração e um reconhecimento do aluno para com seu mestre, gratidão esta expressa com a oferta do caderno a seu professor. Neste momento nos debruçamos sobre as fontes. Na primeira página das notas de aula do Professor Aladim são apresentados os programas dos cursos de Cálculo I e II do ano de 1975, que segundo as notas de aula deste professor eram assim constituídos: CÁLCULO I: CAPÍTULO I: NÚMEROS CAPÍTULO II: FUNÇÕES E GRÁFICOS CAPÍTULO III: LIMITES CAPÍTULO IV: DERIVADAS 39 CAPÍTULO V: LIMITES INFINITOS CAPÍTULO VI: FUNÇÕES TRIGONOMÉTRICAS CAPÍTULO VII: FUNÇÃO LOGARÍTMICA E EXPONENCIAL CAPÍTULO VIII: APLICAÇÕES DAS DERIVADAS CAPÍTULO IX: NOÇÕES DE INTEGRAL E PRIMITIVAS CAPÍTULO X: DIFERENCIAL E APLICAÇÕES CAPÍTULO XI: TEOREMA DO VALOR MÉDIO E APLICAÇÕES CÁLCULO II: CAPÍTULO I: TÉCNICAS DE INTEGRAÇÃO CAPÍTULO II: INTEGRAIS IMPRÓPRIAS CAPÍTULO III: FUNÇÕES HIPERBÓLICAS CAPÍTULO IV: FUNÇÕES DE VÁRIAS VARIÁVEIS CAPÍTULO V: INTEGRAIS MÚLTIPLAS 40 Ilustração 1: Programa de Cálculo I do ano de 1975. 41 Um fato que nos chama a atenção em relação ao programa de Cálculo I é a inserção de derivadas entre os capítulos de limites e limites infinitos, bem como a apresentação da diferencial e suas aplicações após o capítulo de integrais, escapando de uma sequência tradicional de limites, derivadas e integrais. Qual a finalidade deste direcionamento? Em entrevista24, o Professor Aladim afirmou que apresentava diferencial e suas aplicações somente após o conceito de integral para que o aluno adquirisse uma maior maturidade levando-o a uma melhor compreensão do conceito de diferencial possibilitando assim exemplos mais enriquecedores deste conteúdo. Propositalmente eu fazia estas inversões para que o aluno tivesse um contato mais rápido, mais direto com os dois braços do cálculo: o diferencial e o integral. Era uma escolha pessoal apresentar o conceito de integral para que o aluno tivesse mais maturidade na hora de trabalhar com as diferenciais (VALVERDE, 2011). Em conversas informais com os professores Hiroshi Ouchi, Antônio Carlos Dias da Silva e Sônia Eunice Maciel Valadão, que trabalharam no Departamento de Matemática da UFJF durante os anos 70,80 e 90 do século passado, nos foi relatado que em seus cursos de Cálculo eram apresentadas primeiramente as diferenciais para então ser introduzida a noção de integral, assim como só passar a derivadas depois de abordar limites. Podemos com isso perceber um primeiro aspecto inovador no Curso de Cálculo do Professor Aladim Valverde, no tocante à inversão de ordem dos conteúdos. Consultamos nos arquivos do Departamento de Matemática da UFJF a ementa de Cálculo Diferencial e Integral I paro o ano de 1975 e observamos que a mesma prescrevia abordar diferenciais antes de integrais, conforme descrição abaixo: EMENTA DE CÁLCULO I DO ANO DE 1975: DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA: 1)Funções de uma variável. 2)Introdução ao estudo das derivadas. 3)Limites aritméticos. 4)Técnicas de derivação. 24 Anexo. 42 5)Derivadas e suas aplicações. Diferenciais. 6)Limites funcionais e teoria da continuidade. 7)Introdução ao cálculo integral. 8)Teoria dos máximos e mínimos. 9)Aplicações da integral definida. A bibliografia sugerida pelo professor Aladim nesse curso de Cálculo Diferencial e Integral I é abordada no próximo capítulo. No entanto, questionamos o professor para relacionar as referências que utilizou na produção de seu curso de Cálculo. De acordo com o professor Aladim Valverde, as notas de aula de 1975 se basearam em livros do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e editados pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM). Estes livros me fascinaram muito, por abordarem o conceito de número real e irracional de modo sofisticado. Não me recordo dos nomes desses livros, apenas que tratavam de números de modo mais formal e que eram do IMPA, editados pela SBM. (VALVERDE, 2012). Comprovando o depoimento do Professor Aladim a respeito das influências que teve na elaboração do curso de 1975, veremos mais na frente que o primeiro capítulo de seu material traz uma abordagem de número muito semelhante à feita em um curso de Análise Matemática. Nos cursos de Cálculo ministrados pelo Professor Aladim posteriores ao de 1975, mais precisamente aqueles a partir da década de 1980, percebe-se que um livro que muito o influenciou foi o de Munem-Foulis. Nas notas de aula do professor Aladim, datadas de 1986, em vários momentos encontramos referências ao livro de Munem-Foulis, seja na verificação e na interpretação de teoremas ou ainda na seleção de exercícios. 43 Ilustração 2: Nas definições das funções trigonométricas inversas observamos a referência ao livro de Munem-Foulis. 44 A influência do livro de Munem-Foulis é confirmada pela afirmação: “O livro que eu realmente seguia, sabia quase todo de cor e salteado, era o livro de Cálculo do Munem-Foulis, do ano de 1978.” (VALVERDE, 2011). Um elemento da cultura, da tradição de ensino de Cálculo que podemos perceber, seja pela inspeção da ementa da disciplina na UFJF, pela observação do conteúdo programático do material do professor Aladim Valverde ou pelo exame de ementas de Cálculo de outras universidades é o fato de um curso de Cálculo, inclusive nos dias atuais, abordar na sequência funções, limites e derivadas, mesmo que esta não tenha sido a ordem da invenção, da criação destes conceitos, uma vez que historicamente o primeiro deles a surgir foi o de taxa relacionada. Esta apresentação clássica nos cursos de Cálculo, ao que tudo indica, pode ser considerada uma conseqüência da aritmetização da análise, frase cunhada por Klein25 em 1895, que toma “função” como palavra chave na análise. Historicamente, é da busca do esclarecimento do termo função que surge a tendência à aritmetização da análise. Foi o grande matemático do século XVIII Leonard Euler (também suíço e discípulo de Jean Bernoulli) que colocou a ideia de função como objeto de estudo central da análise moderna. No início do século XIX a tendência era tornar o conceito de função mais amplo, de acordo com as últimas definições de Euler. Neste sentido se encontra o conceito de função de Joseph Fourier. Fourier pensava em associar função a uma expressão analítica que é hoje conhecida como série trigonométrica ou de Fourier e que consiste em uma expressão da forma      0 )cos()( n nn nxbnxsena (Tradução nossa 26 .DURÁN,1996,p.49). 25 Felix Klein (1849-1925) foi um matemático alemão que trabalhou em vários assuntos, como teoria das funções e física matemática. Uma de suas principais contribuições foi na área da geometria, ao descobrir em 1871 que a geometria euclidiana e a não-euclidiana podiam ser vistas como casos particulares de uma superfície projetiva, tornando equivalente a consistência das geometrias. Em 1908 criou a Comissão Internacional de Instrução Matemática (ICMI), cujas pesquisas objetivam a evolução da Educação Matemática em vários países do mundo. 26 Texto original: Fue el gran matemático del siglo XVIII Leonard Euler(también suizo y discípulo de Jean Bernoulli) quien coloco la idéia de función como objeto de estúdio y centro del análisis moderno. En los inícios del siglo XIX la tendência era hacia um concepto de función más amplio, acorde com las definiciones últimas de Euler. En este sentido se encuentra el concepto de función del Joseph Fourier. Fourier pensaba em funciones a las que podía asociar uma expresión analítica, en este caso no uma serie de potências, sino lo que hoy se conoce como serie trigonométrica o de Fourier y que consiste em uma expresión de la forma      0 )cos()( n nn nxbnxsena . 45 Neste sentido cabe ainda ressaltar que esta ordem de expor a matéria reforça mais ainda outro elemento da cultura de se ensinar o Cálculo, que é a importância dos pré-requisitos. Passemos neste momento à análise das notas de aula do Professor Aladim. Intitulado de “Números”, o primeiro capítulo é apresentado nas duas primeiras semanas do curso de Cálculo I e tem início com conjuntos numéricos, onde são exibidos os conjuntos dos números naturais, inteiros, racionais, irracionais, reais e complexos. É introduzida a necessidade de ampliação dos números. Para isso argumenta-se que no conjunto dos números naturais N estão definidas duas operações, adição e multiplicação; porém não a subtração, o que leva ao conjunto Z dos inteiros onde para cada par ordenado de inteiros (a, b) existem a+b, a.b e a - b. São apresentados exercícios teóricos como provar que: o quadrado de um número par é par; o quadrado de um número ímpar é ímpar; a enésima potência de um número ímpar é ímpar; a soma de um número par com um ímpar é sempre ímpar. Também é mencionada a representação dos inteiros na base decimal, como um polinômio de base 10 cujos coeficientes variam de 0 até 9:      n k k k n n n n aaaaaN 0 0 0 1 1 1 110 101010...1010 ; bem como a representação de um inteiro no sistema binário, como um polinômio de base 2 cujos coeficientes podem assumir os valores 0 ou 1:      n k k k n n n n aaaaaN 0 0 0 1 1 1 12 2.22...22 . É apresentada a notação de somatório e são feitos exercícios de conversões tanto do sistema decimal para o binário como do binário para o decimal. Com a preocupação de relacionar a Matemática com o mundo concreto, é citado que o sistema binário é utilizado nos computadores, sendo “o número 1 correspondente ao ligado e 0 ao desligado.” (VALVERDE,1975). Situando o contexto da época com relação aos computadores, observamos que as décadas de 1960 e de 1970 do século passado foram o período dos circuitos integrados, ocorrendo a miniaturização dos circuitos por meio de processos semelhantes ao fotográfico utilizando a tecnologia do silício. Nascem os primeiros chips e o microprocessador torna-se o coração do computador. Analogamente como feito dos naturais para os inteiros, é citado que como a divisão de dois inteiros nem sempre é um inteiro temos a construção do conjunto dos números racionais Q, onde para cada par ordenado (a, b) estão definidas a adição, a subtração, a multiplicação e a divisão. Argumenta-se que dois números 46 fracionários a/b e c/d fracionários são iguais se, e somente se, ad=bc; sendo o número racional a classe formada por todas as frações iguais a uma dada. É feita a distinção entre números decimais exatos e periódicos, com a conclusão que todo número decimal exato ou periódico representa um número racional. Exercícios que pedem para escrever frações geratrizes de dízimas periódicas; decidir se um dada fração, como por exemplo 75/43, é um número decimal exato ou periódico são resolvidos. Para justificar a existência de outros números além dos racionais, é enunciado que a cada número racional corresponde um ponto bem determinado da reta; como existe uma infinidade de números racionais, a representação de todos eles exige uma infinidade de pontos da reta, “... mas existem pontos da reta que não são imagens dos números racionais.” (VALVERDE, 1975). Como exemplo disso, é construída geometricamente a diagonal do quadrado unitário e usa-se um argumento aritmético para mostrar que esta diagonal, que vale 2 , não é um número racional. Nesta prova aritmética é feita uma demonstração por absurdo. A demonstração por absurdo consiste em negar o que se quer provar e a partir daí se extrair uma contradição. Feita a prova que 2 é um número irracional, amplia-se o raciocínio para se argumentar que p...,,5,3 são números irracionais, para todo número natural p que não seja quadrado de outro número natural. Além disso é feita uma outra extensão ao se comentar que também n p será um número irracional desde que o número natural p não seja a n-ésima potência de outro número natural. 47 Ilustração 3: Prova da irracionalidade de 2 . 48 Ilustração 4: Prova da irracionalidade de 2 (continuação). 49 A partir daí define-se o conjunto dos Reais como sendo a união dos números racionais e irracionais. É observado que os números racionais resultam da comparação de dois segmentos comensuráveis (admitem um múltiplo comum) e os números irracionais resultam da comparação de dois segmentos incomensuráveis (não admitem um múltiplo comum). São apresentadas as classes de números irracionais: Algébricos (que são raízes de equações algébricas de coeficientes fracionários) e transcendentes (que não são algébricos). São apresentadas algumas razões clássicas: 2 entre a diagonal do quadrado e o seu lado, 3 entre o lado do triângulo eqüilátero e o raio da circunferência circunscrita a este triângulo e  entre o comprimento de uma circunferência e seu diâmetro. É marcado um trabalho sobre o número  como atividade extra-classe. São feitos exercícios em aula como provar que a soma de um número irracional mais um número racional é irracional; decidir se 0,01001000100001000001... é um número irracional ou racional; discutir qual o resultado da soma e do produto de dois números irracionais; provar que o conjunto Q dos números racionais é denso, isto é, que entre dois números racionais diferentes existem infinitos números racionais. São apontadas observações históricas e curiosidades sobre alguns números irracionais: a respeito do número irracional 2 é comentado que por volta de 400 a.C. Hiparco de Metaponto reconhece a irracionalidade do número 2 , sendo que a primeira demonstração da irracionalidade de 2 é feita por Aristóteles de Estagira (384 a.C. - 322 a.C.). A respeito do número  é citado que um computador levava 8 horas para fazer os cálculos do valor de até 100000 casas decimais. Um homem, trabalhando 8 horas por dia, levaria 30000 anos para fazer os mesmos cálculos. Ainda sobre o  , é abordado que apenas em 1882 foi demonstrada por Lindemann27 (1852-1939) a transcendência do número  , um problema relacionado à clássica questão da Quadratura do Círculo que perdurou por mais de 20 séculos. 27 Carl Louis Ferdinand von Lindemann foi um notável matemático alemão que provou que o número  não era raiz de nenhum polinômio de coeficientes racionais. 50 Ilustração 5: Curiosidade sobre o número  . 51 Finalizando o primeiro capítulo, é apresentado o Método dos Intervalos Encaixantes: “Consiste numa verdadeira perseguição ao número irracional, cercando-o por intervalos cada vez mais estreitos e no centro acharemos o número irracional.” (VALVERDE, 1975). Para ilustrar este princípio, é tomado o número  , sendo o mesmo aproximado por intervalos, de amplitude cada vez menor, cujos extremos são números racionais. Ilustração 6: Aproximação do irracional  por meio de uma sequência de números racionais. 52 Notamos aqui uma introdução da idéia de limite, pois a localização do número  ocorrerá após um processo infinito; um número irracional sendo o limite de uma seqüência de números racionais. São comentados os Axiomas de Peano28 e os Cortes de Dedekind29 com a conseqüente apresentação dos números reais como um Corpo Ordenado Completo. Analisando este primeiro capítulo, percebemos em alguns momentos um grau de rigor semelhante ao encontrado tanto em cursos de Álgebra Abstrata (prova da irracionalidade de 2 ), como em cursos de Análise Matemática (Princípio dos Intervalos Encaixantes), com um tratamento formal dos teoremas e de alguns exercícios. Isto se devia ao fato das turmas serem constituídas não somente de alunos dos cursos de Engenharia mas também por alunos do curso de Matemática? Na visão do Professor Aladim o rigor é inerente ao Cálculo, mesmo numa turma de Engenharia Elétrica, segundo o mesmo, o tratamento era rigoroso e formal como deve ser em qualquer curso de Cálculo: O Cálculo é o Cálculo, deve ser dado de modo único respeitando-se na medida do possível as especificidades de cada curso. Não se deve fazer, por exemplo, uma aplicação de mola elástica para uma turma de economia. Os próprios alunos de Engenharia Elétrica me exigiam um curso mais formal e rigoroso (VALVERDE, 2011). Percebemos aqui um importante elemento da cultura do ensino de Cálculo, que é o rigor. “Um curso de Cálculo rigoroso e formal é aquele forte em demonstrações, com exercícios que contemplem todo o conteúdo, com uma boa base matemática.” (VALVERDE, 2011). O significado dado pelo Professor Aladim à palavra rigor é como um sinônimo de qualidade do curso; o rigor e as demonstrações sendo fatores de chancela para um bom curso de Cálculo. Apesar do aprofundamento dado ao conceito de número neste primeiro capítulo, o Professor Aladim não se esquivava dos exercícios básicos em seu curso, como a representação na reta da reunião e intersecção de intervalos, resoluções 28 Giuseppe Peano(1858-1932) foi um matemático italiano que desenvolveu os famosos axiomas de Peano, considerados até hoje como a axiomatização padrão dos números naturais, sendo o seu 5º axioma chamado de “Princípio da Indução Matemática”. Sua obra teve grande influência nos trabalhos do grupo francês Bourbaki. 29 Julius Wihelm Dedekind (1832-1916) foi um matemático alemão que definiu o conceito de números irracionais através de cortes, partindo o corpo ordenado Q dos números racionais e construindo assim um corpo ordenado completo. Dedekind definiu conjuntos infinitos e finitos e editou os trabalhos de Dirichlet, Gauss e Riemann. 53 gráficas de inequações de primeiro e segundo grau e representações de frações geratrizes. Esta resolução de exercícios da escola secundária no curso de Cálculo perpassa pelos problemas de pré-requisitos? De acordo com o Professor Aladim sempre foi preocupante esta questão, vários alunos tinham problemas em fatorar uma expressão algébrica, inclusive alunos do Curso de Matemática apresentavam dificuldades no domínio dos conteúdos da matemática básica. “Esta deficiência na fatoração algébrica levava ao insucesso no cálculo das integrais, na decomposição em frações parciais.” (VALVERDE, 2011). No ofício de historiador da educação matemática, percebemos como a problemática dos pré-requistos ao longo do tempo pode ser desnaturalizada, como preconiza Valente (2007). No capítulo que trata de limites, na parte das definições formais de limites de uma função, o Professor Aladim, baseado em sua experiência docente, usava como recurso didático uma tabela que facilitava ao aluno tanto memorizar os quinze casos possíveis de limites laterais, limites infinitos, limites no infinito, etc., bem como a associar à linguagem usual a escrita e notação matemática. Após analisarmos diversos livros de Cálculo da época, em torno de dez, concluímos que tal tabela foi uma produção própria do professor. Ainda sobre esta tabela, era chamada a atenção dos alunos para as linhas cujos limites forneciam assíntotas horizontais, denotadas pela simbologia A.H., bem como para aquelas que exprimiam as assíntotas verticais do gráfico de uma função, representadas pela abreviatura A.V..O título da referida tabela era o de “Definições Formais de Limites”, onde percebemos que a palavra formal tem o significado de precisão, os limites sendo vistos com “épsilons e deltas”. Na cultura de ensino de cálculo, limite formal significa a definição de limite da Análise Real:    LxfxxLxf xx )(000)(lim 00 . A sentença acima significa que o limite de uma função f vale L quando x se aproxima de um ponto quando para todo “épsilon” positivo, é possível encontrar um “delta” positivo de modo que à medida que a distância entre x e este ponto seja menor que delta e maior que zero, a distância entre f(x) e L torna-se menor que “épsilon”. Sob este ponto de vista, a visão geométrica do limite é considerada uma visão intuitiva, portanto menos rigorosa e menos precisa. Pode-se assim observar uma oposição entre rigor e intuição no ensino de limites. 54 Ilustração 7: Extrato da tabela de limites do material do Professor Aladim. 55 No capítulo de aplicações das derivadas, os vários teoremas que o compõem são apresentados classicamente, com as demonstrações formais e as respectivas interpretações geométricas. Tal procedimento foi efetuado no Teorema do Valor Extremo, no Teorema de Rolle30, no Teorema do Valor Médio e nos Testes das Derivadas Primeira e Segunda para extremos locais. Na próxima ilustração este encaminhamento, de aliar demonstração com interpretação geométrica, é observado uma vez que é sugerido pelo Professor Aladim fazer a interpretação geométrica e também a interpretação cinemática antes da prova formal do Teorema do Valor Médio. Ilustração 8: Além da prova formal o Professor Aladim cita a interpretação geométrica do Teorema do Valor Médio. Além das definições de assíntotas horizontais e verticais, é dado um tratamento detalhado para a definição de assíntota oblíqua, inclusive com um exemplo considerado difícil pelo professor Aladim em suas notas de aula datadas de 30 Michel Rolle (1652–1719) foi um matemático francês que trabalhou com cálculo infinitesimal culminando com o célebre Teorema de Rolle em 1691. Credita-se a ele o símbolo da raiz enésima de um número x . 56 13 de abril de 1976, que pedia o esboço do gráfico e as assíntotas da função 1)( 2  xxf , conforme vemos abaixo: Ilustração 9: Exemplo de determinação de assíntotas de uma função. Neste capítulo os exercícios basicamente se subdividem em três blocos: atividades de cunho teórico como por exemplo mostrar que a equação 0 xe x admite uma única raiz real. Outra classe de exercícios contempla as interpretações cinemáticas do Teorema do Valor Médio como por exemplo mostrar que a 57 velocidade média em um intervalo de tempo [a, b] não excede a velocidade máxima nem é menor que a velocidade mínima, admitindo )(xfy  como sendo a trajetória percorrida no tempo x . Uma terceira série de questões pede o esboço de gráficos de funções polinomiais, racionais, exponenciais e de expoente fracionário. É fornecido um roteiro com todos os passos para o esboço do gráfico de uma função: domínio, continuidade, intersecções com os eixos coordenados, simetria, crescimento e decrescimento, extremos locais, concavidade, pontos de inflexão e assíntotas. Percebemos que nesta terceira classe de exercícios, que se refere ao esboço de gráficos, são feitos vários gráficos similares sempre seguindo-se o roteiro para a construção dos mesmos. Notamos aqui um elemento da cultura do ensino de Cálculo que seria um direcionamento à repetição dos exercícios, numa tentativa de treinar o estudante para que o mesmo possa resolver determinadas situações- problema advindas do Cálculo. 58 Ilustração 10: Roteiro para facilitar na construção do gráfico de uma função. As funções transcendentes (trigonométricas, trigonométricas inversas, exponenciais e logarítmicas) eram abordadas de forma bastante meticulosa no Curso de Cálculo I do Professor Aladim Valverde. No tocante às funções trigonométricas inversas, sua exposição seguia um roteiro pré-estabelecido pelo mesmo: definições, relações básicas, derivadas e exemplos. O Professor dava um tratamento rigoroso ao assunto, fazendo inclusive a demonstração do Teorema da 59 Função Inversa. Além das derivadas das funções trigonométricas inversas e os subsequentes problemas de aplicação em taxas relacionadas, o material analisado demonstra uma preocupação do professor em identificar aonde a função trigonométrica seria bijetora para garantir a existência da função inversa. São exibidos os gráficos de todas as funções trigonométricas inversas, inclusive das funções y = arc cotg x e também y = arc cossec x, gráficos estes difíceis de serem encontrados nos livros de Cálculo da época, pelo menos nos textos da bibliografia do curso para o ano de 1975. “Estes gráficos eram feitos para que o curso ficasse completo e tornasse mais claro o entendimento destas funções para o aluno.”(VALVERDE,2011). Novamente vemos aqui um diferencial do Professor Aladim, muito zeloso nas questões didáticas. São também contemplados exercícios que relacionavam as funções trigonométricas inversas, como calcular ) 2 1 3 1 (cos tgarcsenarc  , que eram exercícios da escola secundarista. Novamente aqui, vemos a necessidade da recordação dos conhecimentos prévios. Qual seria o motivo? Alunos com problemas de pré-requisitos em trigonometria? Preocupação com os futuros professores de matemática, sendo que por isso era dada uma ênfase não somente nas derivadas e suas aplicações como também no domínio, imagem, período, gráficos, injetividade, sobrejetividade, crescimento e decrescimento das funções trigonométricas inversas? Ou a própria necessidade do conteúdo matemático de sempre precisar voltar aos primórdios devido ao seu encadeamento lógico? Na entrevista concedida, o Professor Aladim afirma que sempre existiu, nos Cursos de Cálculo, o problema dos pré-requisitos em relação à Matemática e lidava com isso da seguinte maneira: “A recordação era feita no momento certo, quando eu precisava de inequação, recordava inequação, quando necessitava de logaritmos, fazia a revisão de logaritmos.” (VALVERDE, 2011). Observamos aqui a cultura do linear no ensino não somente de Cálculo como da Matemática em geral, da exigência (dos professores sobretudo) dos conhecimentos encadeados, sendo preciso conhecer bem os fundamentos, os alicerces, a base para que se alcance o sucesso. Há que se conjecturar que esta cultura do linear no ensino de Matemática, ainda que de modo indireto, possa ter sido influenciada pelas ideias bourbakistas, que propunham a construção do “edifício matemático”, defendiam a unidade da matemática e o método axiomático com base nas estruturas. Mesmo sabendo da importância dos pré-requisitos em Matemática, 60 devemos ressaltar os inúmeros casos que observamos de alunos que entendem derivadas sem entender limites; que aprendem Álgebra Linear sem terem sido aprovados em Geometria Analítica; que resolvem sistemas lineares sem conhecimento de uma teoria de matrizes. Examinando a parte de logaritmos, a função logaritmo natural é apresentada como sendo a área abaixo de um gráfico sendo articulada ao conceito de integral. A partir daí são construídas classicamente as propriedades, a derivação, a integração e o gráfico da função logaritmo natural bem como as propriedades, derivada, integral e o gráfico da função exponencial natural. As funções logarítmicas e exponenciais gerais, em uma base qualquer, são expostas apenas no final, do ponto de vista de derivação e integração, como uma ampliação das funções logarítmicas e exponenciais naturais através da Regra da Cadeia. Quanto às aplicações de logaritmos e exponenciais, os exemplos feitos tanto pelo Professor Aladim em seu curso bem como os exibidos nos livros de Cálculo da época são bastante similares aos encontrados nos livros e cursos atuais, abordando desintegração radioativa, juros compostos e crescimento populacional, conforme se comprova nas duas ilustrações subseqüentes, que se referem às edições do livro de Cálculo de Thomas dos anos de 1974 e de 2009 respectivamente. Ilustração 11: Extrato da página 357 do livro de G.Thomas, edição de 1974, onde os problemas de número 2 e 3 abordam decaimento radioativo e crescimento populacional respectivamente. 61 Ilustração 12: Exemplo de decaimento radioativo extraído do livro de G. Thomas, edição de 2009. O Professor Aladim justifica a importância dos logaritmos e exponenciais nas mais variadas áreas do conhecimento, conforme descrito abaixo: Aplicações importantes: as aplicações dos logaritmos e das exponenciais variam desde o cálculo da idade de um osso fossilizado por métodos radioativos até o cálculo da probabilidade de acidentes que ocorrem em uma certa indústria (VALVERDE, 1975). 62 Ilustração 13: Extrato do material onde se identificam aplicações de logaritmos e exponenciais. Observamos no curso ministrado pelo Professor Aladim que existia uma preocupação com a contextualização, sob outro viés, é claro, em modelar problemas de outras áreas utilizando o Cálculo Diferencial e Integral. Exemplificando nosso argumento, em um exercício sobre desintegração radioativa, era fornecida uma tabela com o seguinte enunciado: Se uma amostra de Rádio – 226 contém 63 inicialmente 10 gramas, quanto ela conterá após 162 anos? A resposta era que após 162 anos a amostra tinha ainda 9,33 gramas de Rádio – 226. Além de fazer o exercício (veja ilustrações 13 e 14), o professor Aladim citava também a importância dos elementos químicos, como o carbono-14: Ilustração 14: Tabela fornecendo a meia-vida, tempo necessário para que metade dos núcleos presentes na atmosfera sofra decaimento, de alguns elementos químicos. 64 Ilustração 15: Exemplos sobre desintegração radioativa, que é um caso específico quando uma quantidade y cresce ou decresce a uma taxa proporcional a seu tamanho em dado momento t. O Cálculo sendo utilizado na modelagem de situações do mundo real. Deste primeiro olhar sobre o material relativo às notas de aula do Professor Aladim Valverde, datadas de 1975, emergem elementos da cultura de ensino de Cálculo como: as aplicações da Matemática31, o rigor, os pré-requisitos, a sequência 31 Chamamos de aplicações da Matemática aos problemas contextualizados e de otimização, como fazem os livros de Cálculo nos tópicos que se destinam às aplicações das derivadas. 65 de ensino função-limite-derivada-integral e a ênfase no “treinamento”, na repetição dos exercícios. 3.2. O caderno de Cálculo de um aluno O material analisado de Cálculo II consiste no caderno do aluno Luiz Carlos Pires, que o ofertou ao Professor Aladim ao final do curso de Cálculo II ministrado por ele no ano de 1976. Tal caderno foi de extrema utilidade para o professor Aladim, que o utilizou em cursos posteriores: “Fiz uso desse caderno num curso que dei em 1991, de Matemática II, para Economia e Administração.” (VALVERDE, 2012). O caderno em questão é de modelo espiral, tamanho pequeno, com aproximadamente oitenta páginas. Confeccionado com extremo capricho pelo aluno Luiz Carlos, que posteriormente veio a se tornar professor de Matemática da rede particular de Juiz de Fora, é constituído de quatro capítulos que foram redigidos no período de 26 de fevereiro a 03 de junho de 1976. Ilustração 16: Contracapa do caderno de Cálculo II do aluno Luiz Carlos Pires, do ano de 1976. 66 Ilustração 17: Assim começava o caderno de Cálculo II, datado de 1976, do aluno Luiz Carlos Pires. No primeiro capítulo, intitulado “Técnicas de Integração”, eram exibidas uma série de técnicas importantes (partes, substituições trigonométricas, frações parciais, etc.) para determinar integrais indefinidas de funções mais complicadas vistas até o momento. Este era o objetivo desta parte, mostrar como transformar integrais desconhecidas em integrais já estudadas ou em integrais de tabela. O referido 67 capítulo era assim introduzido pelo professor Aladim, segundo as notas de aula examinadas da década de 1970: “Muitas vezes recorremos à tábua de integrais. Mas é preciso saber que técnica de integração usar para colocar o integrando em uma forma que se encontre na tábua.” (VALVERDE, 1976). Cabe ressaltar que além das fórmulas de integração básica, que geralmente constam de qualquer curso de Cálculo, era fornecido aos alunos um extenso rol de fórmulas de redução para integrais com aproximadamente vinte itens, tais como:   C n ax dxaxtgax n n  sec )()(sec e        22 11 111 )(cos )(cos xa dxx n a n axarcx dxaxarcx nn n Observamos aqui o zelo do professor, numa época em que os sistemas de álgebra por computador, que resolvem integrais, não estavam presentes no cotidiano acadêmico. É possível também conjecturar que este detalhamento das fórmulas de integração seria uma decorrência da utilização quase que exclusiva do caderno como meio de estudo por parte do aluno. O segundo capítulo de Cálculo II abordava as integrais impróprias. O tratamento dado em relação ao conteúdo era rigoroso sendo exibidos os dois tipos de integrais impróprias: aquelas onde os limites de integração eram infinitos bem como as integrais cujo integrando tinha uma descontinuidade em algum ponto do intervalo de integração. Os testes para convergência e divergência de integrais impróprias, tanto de comparação direta quanto de comparação no limite, também eram ministrados. Pensamos que todo este rigor era o de preparar o aluno para o estudo de séries infinitas, visto que as integrais impróprias desempenham um papel importante quando estamos investigando a convergência de certas séries infinitas bem como garantir uma compreensão melhor do conceito de integral imprópria. O próprio professor Aladim confirma o formalismo empregado no tratamento das integrais impróprias: Procurava fazer o estudo das integrais impróprias com o maior rigor possível, inclusive nos cursos que já ministrei para professores em minha carreira vários deles cometiam erros rigorosos, gravíssimos, um absurdo, como calcular   1 1 1 dx x usando o Teorema Fundamental do Cálculo sem se atentar que a referida integral é imprópria, com uma descontinuidade em x=0 (VALVERDE, 2011). 68 O terceiro capítulo contempla uma classe das funções transcendentes chamada de Funções Hiperbólicas. As funções hiperbólicas são formadas a partir da combinação de duas funções exponenciais: x e e . x e  Tais funções simplificam muitas expressões matemáticas e são importantes em aplicações práticas. São utilizadas, por exemplo, em problemas tais como calcular a tensão em um cabo suspenso pelas extremidades, no caso de uma linha de transmissão elétrica, por exemplo. Também têm um papel importante na determinação de equações diferenciais. No material em questão inicialmente apontava-se a importância do estudo das funções hiperbólicas, destacando-se sua aplicação em fios de transmissão elétrica, catenária, métodos de integração por substituição e em diversos problemas em física. Mais uma vez a exuberância do conteúdo nos chama a atenção: “Funções hiperbólicas eu fazia com muitos detalhes.” (VALVERDE, 2011). A explicação do porquê do nome Funções Hiperbólicas, a descrição de uma catenária32, a discussão da paridade, os gráficos, os limites, as derivadas e as integrais desta classe de funções bem como as relações entre funções trigonométricas e hiperbólicas por meio das funções complexas eram contemplados no Curso de Cálculo ministrado pelo Professor Aladim Valverde, inclusive a função Gudermanniana33. A fim de explicitar estas relações, era feita uma revisão de números complexos onde eram apresentadas as Fórmulas (Primeira e Segunda) de Moivre34 e as de Euler35, mesmo não sendo um assunto pertinente ao Cálculo que trata apenas de variáveis reais. De acordo com o Professor Aladim: “Muitos alunos desconheciam números complexos, decorrendo daí a necessidade de uma apresentação minuciosa deste conteúdo” (VALVERDE, 2011). Conjecturamos também que a importância de se exibir números complexos, de modo formal, deve- se ao fato de tal conteúdo ser abordado de modo prático em Eletromagnetismo e em outras aplicações na Engenharia e na Física, cabendo ao ensino médio ou ao ciclo 32 Curva formada por um fio flexível, pesado, que pende sob a ação do próprio peso. É a curva que apresenta um cabo de linha elétrica aérea. 33 É a função definida por )( xsenhtgarcy  , que relaciona funções trigonométricas com hiperbólicas e deve-se ao matemático alemão Christoph Gudermann (1798-1852). 34 Abraham De Moivre (1667-1754) foi um matemático francês que relacionou trigonometria e números complexos, ganhando notoriedade pelas fórmulas de De Moivre.  )()cos(  nisennz nn  é conhecida como a 1ª Fórmula de De Moivre. 35 Leonhard Euler, nascido em Basil, na Suíça, foi sem dúvida o maior matemático do século dezoito. A fórmula de Euler envolve dois números irracionais transcendentes ( e, ), a unidade imaginária dos complexos e os números 0 e 1 e é dada por: 01  i e . 69 básico das matérias de engenharia, no caso o Cálculo, apresentar a teoria dos números complexos: propriedades, operações, forma algébrica e forma polar. O último capítulo que dispomos para análise é o quarto capítulo de Cálculo II, que aborda as funções de várias variáveis. Eram feitas as noções de limites de várias variáveis, derivadas parciais, derivadas direcionais e o cálculo de integrais duplas e triplas. Este capítulo tinha mais exercícios e menos teoria que os demais, talvez pelo fato da formalização do Cálculo de várias variáveis ser mais árida do que a do Cálculo de uma única variável. Após analisarmos as notas de aula de Cálculo I do Professor Aladim e o caderno de Cálculo II do aluno Luiz Carlos constatamos que os apontamentos do professor são minuciosos e dinâmicos, com várias notas de rodapé, roteiros para construção de gráficos, tabelas de limites, citações de aplicabilidade do cálculo e verificações de interpretações geométricas de teoremas. Ainda que o caderno do aluno pareça retratar de forma fidedigna a lousa do professor, quer seja pela gramática empregada, pela organização, pela disposição dos enunciados, e seja também de reconhecida qualidade, prova disso é que o mesmo foi utilizado pelo docente em cursos vindouros a 1976, sabemos que um professor filtra, sintetiza seu plano de aula no momento em que a mesma é ministrada. O caderno, a nosso parecer, retrata de forma fiel, porém passiva, os ensinamentos do professor. Outro ponto que nos chamou a atenção ao observarmos as notas e o caderno é que nas notas de aula do Professor Aladim não havia nenhuma alusão a algum tópico que fosse cair na avaliação enquanto no caderno do aluno constatamos vários exercícios com marcas indicando as palavras “prova final.” Tal fato reforça um elemento norteador do processo de ensino e aprendizagem que é a avaliação. 70 Ilustração 18: No caderno do aluno Luiz Carlos Pires, de 1976, vemos uma observação sobre uma possível questão a ser cobrada no exame final. 71 3.3. O Curso de Cálculo analisado e as pesquisas em didática do Cálculo Percebemos na análise feita do curso de Cálculo do Professor Aladim e durante a entrevista realizada com o mesmo a preocupação com as dificuldades de aprendizagem dos alunos. Tais dificuldades são objetos de vários trabalhos que envolvem o ensino e a aprendizagem de Cálculo Diferencial e Integral. Em diversos momentos do curso do Professor Aladim percebe-se uma dicotomia entre um curso formal e um curso mais prático, mais direcionado às aplicações e com apelo à intuição. Esta dualidade entre o formalismo e os aspectos intutivos no ensino de Análise e Cálculo é foco do trabalho identificado a seguir. A pesquisa de Reis (2011) aborda justamente o equliíbrio-tensão entre o rigor e a intuição nos manuais didáticos de Cálculo e Análise e como ela é percebida e enfrentada pelos seus autores e pesquisadores bem como suas possíveis implicações na formação matemática do professor. Lembramos que, na prática da sala de aula do Cálculo, tanto o procedimental como o conceptual vêm carregados de aspectos intuitivos que devem ser explorados pelos professores e alunos que constroem estes conhecimentos. Cabe aos professores, então, refletir sobre uma melhor utilização, como referência para suas disciplinas, de livros que claramente apresentam uma abordagem rigorosa dos conteúdos e raramente exploram situações-problema, exemplos, contra-exemplos e ilustrações que poderiam produzir significados e melhor compreensão dos conceitos. (REIS, 2011, p.196). Reis (2011) aponta ainda a utilização abusiva do uso de épsilons e deltas nos cursos de Cálculo sendo que o rigor deve variar de acordo com o contexto em que os conceitos matemáticos são trabalhados: o rigor com que se prova ou justifica uma afirmação matemática num curso de Cálculo para a Engenharia ou para a Física é, normalmente, diferente daquele utilizado no Bacharelado em Matemática ou na Licenciatura. Ainda de acordo com Reis (2011) existiriam diferentes níveis de rigor e caberia ao professor atingir ou não determinado nível, tendo em vista os conhecimentos prévios dos alunos e a finalidade da disciplina na formação matemática do futuro profissional. Já em nosso trabalho constatamos que o Cálculo era ensinado de forma única, tanto para os cursos de Engenharia como para o curso 72 de Matemática, não ocorrendo distinções quanto ao rigor, até porque as turmas tinham aulas juntas. Em entrevista o Professor Aladim ressaltou que os alunos utilizavam o Teorema Fundamental do Cálculo mesmo quando o integrando não era uma função contínua. Este clássico erro, presente ainda hoje nos cursos de Cálculo é a justificativa para termos escolhido em nossa revisão de literatura o trabalho de Escarlate (2008). Utilizando como referencial teórico as noções de imagem de conceito, definição de conceito (TALL & VINNER, 1981), procurou-se mostrar na citada pesquisa que grande parte dos alunos adquire uma ideia imprecisa da definição de integral definida, e que essa concepção provoca erros até mesmo em situações consideravelmente simples. A ideia equivocada da definição de integral definida aliada à falta de contato com uma variedade ampla o suficiente de situações, inclusive geométricas, provoca um empobrecimento das imagens de conceito formadas. (ESCARLATE, 2008, p.10). A teoria de imagem de conceito e definição de conceito foi desenvolvida por David Tall e Shlomo Vinner, em 1981, em um artigo que se tornou bastante conhecido na comunidade de educação matemática (TALL & VINNER, 1981). A teoria sugere que um determinado conceito matemático não deve ser introduzido ou trabalhado tendo como única referencia pedagógica sua definição formal. Segundo os autores, para que a definição formal seja satisfatoriamente compreendida pelo estudante, é preciso que haja uma familiarização anterior com o conceito em questão, desenvolvida com base em impressões e experiências variadas. O trabalho de Escarlate (2008) consiste em analisar os significados construídos, um deles seria o de tomar o conceito de integral definida como sinônimo de área, e examinar as dificuldades apresentadas pelos alunos na aprendizagem das integrais. “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado [...] incessantemente se transforma e aperfeiçoa.” (BLOCH, 2001, p.75). Nosso trabalho não tem como base a didática, como o de Escarlate (2008) que foi desenvolvido com o objetivo geral de analisar o ensino e aprendizagem do conceito de integral definida. Porém, uma pesquisa como a nossa, que trata da história de uma disciplina acadêmica, pode reconhecer elementos de uma cultura de ensino de Cálculo, como a problemática dos pré-requisitos e a 73 sequência de ensino função-limite-derivada-integral, contribuindo desse modo com o entendimento de questões decorrentes do processo de ensino e aprendizagem. Do mesmo modo, com o intuito de identificarmos o significado e a importância que professores e manuais didáticos dão à palavra rigor, do ponto de vista da cultura do ensino de Cálculo, fazendo o que Valente (2007, p.38) chama de desnaturalização do presente ao buscar respostas sobre o rigor do modo como hoje o pensamos, nossa pesquisa pode ajudar a compreender pesquisas em didática como a de REIS (2011) que aponta a primazia do rigor em relação à intuição nos livros de Cálculo por ele analisados. 3.4. Transformações do ensino de Cálculo: décadas de 1950 a 1980 Analisamos as transformações do ensino de Cálculo a partir de um recorte temporal que abrange as décadas de 50, 60 e 70 do século passado, tomando como base os trabalhos de Oliveira (2007), Loureiro De Lima (2011) e a nossa pesquisa. Década de 1950: O artigo intitulado “A Formação Matemática de um Matemático e Educador Matemático”, de autoria de Maria Cristina Araújo de Oliveira relata a trajetória acadêmica do Professor Ubiratan D’Ambrósio durante a sua graduação em Matemática na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo (USP) no período de 1951 até 1954. Tomando como fonte as fichas do próprio Professor Ubiratan, constituídas de anotações do curso que fez, Oliveira (2007) aponta as práticas pedagógicas dos professores catedráticos naquele tempo: as aulas não eram momento somente de reprodução do conhecimento mas também de criação. O ambiente no curso de Matemática da FFCL da USP nessa época era regido pelos chamados cursos magistrais. Professores de notória credibilidade e reconhecida competência como Jacy Monteiro, Omar Catunda, Benedito Castrucci, Edison Farah e Elza Gomide reproduziam seus mestres, os catedráticos europeus que os influenciaram em sua formação como Giacomo Albanese, Luigi Fantappiè e Jean Dieudonné durante as décadas de 30 e 40 do século passado. 74 Durante as aulas de um curso magistral os professores expõem suas ideias e os conceitos que desejam transmitir aos alunos, mas também na interação com seu grupo de alunos essas ideias são ajustadas, afinadas para uma melhor comunicação (OLIVEIRA, 2007, p.62). A respeito das aulas de Cálculo, na verdade denominado de Análise Matemática naquele tempo e que introduzia o aluno no campo da diferenciação e integração, o artigo em questão aponta a proximidade cotidiana entre ensino e pesquisa, sendo que não eram abordados ao longo do curso de Cálculo os conteúdos matemáticos do chamado atualmente ensino médio. “O Professor Ubiratan esclareceu-nos que havia tido um ensino secundário bastante forte e que não sentia necessidade de rever os conteúdos a serem ensinados.” (OLIVEIRA, 2007, p.65, os grifos são da autora). A disciplina Análise Matemática I cursada em 1951 pelo Professor Ubiratan D’Ambrósio, ministrada pela Professora Elza Gomide, tem em seu início uma introdução aos conjuntos numéricos onde são apresentados o Princípio da Indução Finita, os axiomas de Arquimedes e de Dedekind. A definição de função vem a seguir sendo que tal conceito seria o que hoje chamamos de relação. As funções propriamente ditas, ou melhor, como definimos usualmente hoje, são chamadas de funções monódromas. Percebemos aqui uma preocupação em tratar os conceitos da forma mais geral possível, dando destaque aos subconjuntos relevantes. (OLIVEIRA, 2007, p.68, os grifos são da autora). Não existe no material analisado menção a nenhum gráfico ou figura de função. Ainda segundo Oliveira (2007) só a partir de limites a linguagem torna-se mais simbólica, sendo que nos primeiros capítulos, de números e funções, ocorre um privilégio da linguagem usual em relação à linguagem formal. Concluindo esta análise sobre o ensino de Cálculo na década de 1950, o artigo de Oliveira (2007) aponta que o mesmo se aproximava da pesquisa; sob influência bourbakista os estudantes tinham contato com conteúdos que seriam vistos hoje em cursos de pós- graduação em Matemática, como afirma a própria autora. 75 Década de 1960: Para analisarmos o ensino de Cálculo durante a década de 1960 tomamos como base o artigo de Gabriel Loureiro de Lima, intitulado “Inicialmente Cálculo ou diretamente Análise? O caso do curso de Matemática da USP.” Loureiro De Lima (2011) destaca como se deu a implantação da disciplina Análise Matemática na USP até se tornar, em 1964, o Cálculo propriamente dito. Este processo foi lento, gradual e cheio de idas e vindas. A partir da década de 1960 ocorrem alguns fatos que irão transformar a trajetória de ensino de Cálculo da USP: o primeiro deles foi a aposentadoria em 1962 do Professor Catunda, que foi o catedrático da cadeira de Análise Matemática nas décadas de 1940, 1950 e início da década de 1960. O professor Catunda foi um ícone da Análise Matemática e sucessor direto de Fantappiè, matemático italiano que introduziu esta disciplina no Brasil em 1934. A partir da saída de Catunda, muitas mudanças radicais que encontramos na condução e na apresentação dos cursos de Cálculo são, na verdade, consequências específicas e momentâneas de atuação das pessoas que estavam ministrando a disciplina naquele determinado período, e não necessariamente projetos da instituição (USP) ou do Departamento de Matemática. (LOUREIRO DE LIMA, 2011, p.8). Outro fator que influenciou diretamente no ensino de Cálculo a partir de 1960 foi a adoção do modelo americano de se ensinar cálculo, por meio de livros-didáticos com esta orientação. Na década de 1960, a ideia de que deveria haver uma disciplina de Cálculo precedendo a de Análise começou a ganhar força nas FFCL do país e uma das possíveis causas para este fato foi a introdução, no ensino superior brasileiro, dos livros americanos de Cálculo e de Cálculo Avançado que, de acordo com Lima (2006, p.129-130) propunham uma abordagem diferente daquela presente nos tradicionais cursos europeus de Análise Matemática. (LOUREIRO DE LIMA, 2011, p.5). Embora a fundamentação das aulas fosse teórica e rigorosa existia uma ênfase na seleção de exercícios que privilegiavam o treino, por meio de repetição, das técnicas de derivação e integração. Notamos aqui uma aproximação com os dias atuais em que os cursos de Cálculo em que os cursos de Cálculo são 76 primordialmente elaborados para que o aluno ao final saiba derivar e integrar bem e consiga utilizar estas duas ferramentas (derivação e integração) nos problemas posteriores. Ao mesmo tempo percebemos que os cursos de Cálculo de 1960 eram bastante próximos do que hoje leciona-se em Análise Matemática, com tratamento rigoroso e formal, exigindo-se demonstrações com épsilons e deltas. O próprio Loureiro de Lima (2007, p.5) argumenta que embora a implementação do Cálculo como disciplina curricular tenha ocorrido em 1964 no curso de Matemática da USP, ainda demoraria para que sua estrutura se aproximasse do Cálculo ensinado atualmente, onde observamos que, de modo geral, toda a sua fundamentação teórica é deixada para a Análise Matemática. Este processo de transformação do Cálculo Diferencial e Integral, uma vez que na década de 1950 era a Análise a disciplina responsável por introduzir os conceitos de limite, derivada e integral, pode ter sido causado também pelas próprias dificuldades em ensinar, em chegar mais rápido nas aplicações, acarretando essa nova configuração que delegou ao Cálculo Diferencial e Integral, nos anos 60 do século passado, a incumbência de revelar os campos da derivação e integração ao estudante. Estas modificações ocorridas a partir de 1960 não são lineares, pois neste período constatamos a existência de cursos teóricos e formais próximos à Análise Matemática ministrada na década de 50 do século passado. Todavia, é a partir da década de 1960 também que ocorre uma transformação, ainda que sutil, no ensino da disciplina de Cálculo, não apenas na mudança do nome de Análise Matemática para o Cálculo, mas ao contemplar as manipulações algébricas de limites, derivadas e integrais, dando uma maior ênfase na parte operacional, com o objetivo de levar ao aluno a saber manipular bem as técnicas inerentes ao Cálculo. Década de 1970: Conforme já dissemos, a transição entre as disciplinas Análise Matemática e Cálculo foi lenta, gradual e cheia de idas e vindas, uma vez que durante as décadas de 1970 e 1980 existiram movimentos tanto de aproximação quanto de dissociação entre estas duas disciplinas: cursos de Cálculo mais voltados para o porquê das coisas funcionarem, com uma visão mais analítica, rigorosa e demonstrativa, se 77 aproximando dos cursos de Análise bem como cursos de Cálculo que privilegiavam as técnicas de derivação e integração, a aplicabilidade e o ferramental. Comparando, por exemplo, os diversos cursos ministrados ao longo da década de 1970, entre eles mesmos e com aqueles ministrados na década de 1960, percebemos que há, em curtos períodos de tempo, movimentos tanto de aproximar a disciplina do Cálculo e afastá-la da Análise quanto de aproximá-la da Análise e afastá-la do Cálculo. Durante a década de 1980 tais idas e vindas se tornam mais explícitas, com a ocorrência desde cursos totalmente voltados às técnicas até outros propondo um retorno a uma disciplina inicial que fosse de Análise, sem qualquer ênfase aos cálculos, adotando, para isso, o livro Calculus de Spivak como referência principal. Foi a partir do começo dos anos 1990 que o curso de Cálculo se tornou, de fato, semelhante ao atual, sem tantas diferenças de enfoque, de um ano para outro, como acontecia até então. (LOUREIRO DE LIMA, 2011, p.9). O curso de Cálculo do Professor Aladim, analisado durante este capítulo, situa-se nesta interface. Nas demonstrações feitas, nas definições formais de limites de uma função, na exposição dos axiomas de Peano, no Princípio dos Intervalos Encaixantes, nas discussões sobre os números irracionais, percebemos a permanência de elementos de uma cultura de ensino de Cálculo da década de 1950, mais voltada à Análise Matemática. Por outro lado, nos exercícios onde se pedem para calcular derivadas e integrais, na ênfase dada às técnicas de derivação e integração, nas interpretações geométricas dos teoremas, nas aplicações do Cálculo Diferencial e Integral nota-se já uma cultura de ensino de Cálculo mais similar à encontrada nos cursos de Cálculo atuais, onde o importante é que o aluno saiba entender e manejar bem a parte operacional do Cálculo bem como saber utilizar os conceitos de limites, derivadas e integrais nos problemas correlacionados. 78 CAPÍTULO 4 UMA BIBLIOGRAFIA PARA O CURSO DE CÁLCULO 4.1.Um breve apanhado e justificativas Neste capítulo, tomando como referências as notas de aula do Professor Aladim Valverde e a fala de outros professores do Departamento de Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora da década de 1970, analisamos alguns livros de Cálculo Diferencial e Integral em busca de evidências, vestígios da cultura do ensino desta disciplina no Brasil. A bibliografia sugerida pelo Professor Aladim para o curso de Cálculo do ano de 1975, composta de 12 livros, encontra-se de modo integral na próxima página: 79 Ilustração 19: Bibliografia para o Curso de Cálculo I do ano de 1975. 80 I) JUDICE, Édson D.:Elementos de Cálculo. Rio de Janeiro: Científica, 1972, 241 páginas. II) LANG, Serge: Cálculo: Funções de uma Variável: 2 Volumes. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1975. III) KAPLAN, Lewis: Cálculo e Álgebra Linear: 4 volumes. Brasília: Editora Universidade de Brasília e Livros Técnicos e Científicos, 1973. IV) GRANVILLE, W.A.: Cálculo Diferencial e Integral. Rio de Janeiro: Científica, 1961. V) BARRETO, Aristides. Matemática Funcional para o Curso Colegial: 3 volumes. São Paulo: Editora Vega, 1969. VI) GUELLI, Cid. & OUTROS. ÁLGEBRA I, II, III, IV. São Paulo: Editora Moderna LTDA, 1972. VII) THOMAS, George. Cálculo: 4 volumes. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1975. VIII) PISKUNOV, N. Cálculo Diferencial e Integral. Edições Cardoso, 1970. IX) DEMIDOVITCH, B. Problemas y Ejercicios de Analisis Matematico. Edições Cardoso, 1971. X) MAURER, W. Curso de Cálculo Diferencial e Integral: 4 volumes. São Paulo: Editora Edgard Blücher LTDA, 1974. XI) MOISE: Cálculo - Um Curso Universitário: 2 volumes.São Paulo: Editora Edgard Blücher LTDA, 1973. XII) KONGUETSOF, L. Cálculo Diferencial e Integral. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974. Faremos inicialmente um breve apanhado dessas obras, as quais tivemos acesso por meio da biblioteca particular do Professor Alberto Hassen Raad36. O referido professor nos forneceu também informações sobre algumas destas obras, no tocante à sua aceitação pelo Departamento e também destacando aspectos inovadores de outras, conforme descrevemos a seguir. De acordo com o Professor Alberto, o texto de Édson Durão Júdice, Elementos de Cálculo, foi inicialmente utilizado na Universidade Católica de Minas 36 Professor do Departamento de Matemática da UFJF no período de 1974 à 1999. 81 Gerais no ano de 1973 durante um curso de especialização frequentado pelo referido professor. A coleção Kaplan-Lewis, obra composta de 4 volumes dos Professores Wilfred Kaplan e Donald J. Lewis do Departamento de Matemática da Universidade de Michigan, inicialmente lançada em 1973 no Brasil, não alcançou o sucesso esperado, pelo menos no Departamento de Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora, pois segundo o Professor Alberto Hassen Raad o objetivo principal da obra era integrar Álgebra Linear com o Cálculo, meta esta considerada difícil de ser colocada em prática pelos professores do Departamento. Segundo o Professor Alberto, a coleção Matemática Funcional, do ano de 1969, composta de 3 volumes, de Aristides Camargos Barretos, um dos primeiros mestres formados pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), foi bem aceita pelo Departamento pois era constituída de textos voltados tanto para as disciplinas de Fundamentos de Matemática Elementar do Curso de Matemática como também direcionados à disciplina de Cálculo I. A coleção Cid Gueli, do ano de 1972 era formada por 4 volumes, também era uma obra que tratava os conteúdos de Ensino Médio de modo mais formal e utilizada nos Cursos de Fundamentos de Matemática Elementar. De acordo com o Professor Alberto a obra de Cid Gueli deu origem à consagrada coleção Fundamentos de Matemática Elementar, de Gelson Iezzi e outros autores, impressa desde os anos 80 e utilizada até os dias atuais, como observamos em nossa experiência docente, por estudantes de Ensino Médio e mesmo por alunos de 3º grau que, nos cursos de Cálculo, apresentam dificuldades em conteúdos básicos de Matemática. O Curso de Cálculo Diferencial e Integral, em 4 volumes, do ano de 1968 e reeditado em 1974, de autoria de Willie Alfredo Maurer, Professor da Universidade Mackenzie, foi uma obra senão inovadora, pelo menos diferente em relação às demais obras de Cálculo do mesmo período pois segundo o Professor Alberto: A coleção abordava em seu primeiro volume o Cálculo do ponto de vista de seus fundamentos Geométricos e Físicos enquanto que no segundo volume fazia-se uma abordagem do Cálculo do ponto de vista Aritmético e Topológico 37 e isto me chamou bastante a atenção, além da excelente didática da obra. (RAAD, 2011). 37 Espaços topológicos estão presentes em quase todos os ramos da matemática. Tal fato permitiu que a topologia se tornasse uma ponte entre diversas teorias matemáticas. A topologia geral, ou como é chamada em inglês, point set topology, define e estuda propriedades dos espaços topológicos como conexidade e compacidade. 82 O livro de Leônidas Konguetsof, doutor em Matemática pela Sorbone, escrito em 1969 e editado no Brasil em 1974, intitulado Cálculo Diferencial e Integral, é um texto clássico de Cálculo, escrito com a precisão permitida pela linguagem da Teoria dos Conjuntos da época e destinava-se aos alunos iniciantes do primeiro semestre de Cálculo das Universidades. Um fato que nos chamou atenção foi que o livro apresentava em seu início biografias detalhadas de renomados matemáticos da história da humanidade: Arquimedes, Augustin Cauchy, René Descartes, Leonhard Euler, Pierre Fermat, Louis Lagrange, Pierre-Simon Laplace, Gottfried Leibniz e Isaac Newton. Analisamos mais acuradamente quatro livros. Dois deles são da referida bibliografia: O livro de Serge Lang e a obra de George Thomas. A escolha do livro de Lang deve-se ao fato de ser um livro de referência, de consulta para os professores da época, com muitas demonstrações e bastante formal. “A parte de séries no livro de Lang era feita de modo muito detalhado, com elevado grau de rigor.” (RAAD, 2011). Em conversas informais com os ex-professores do Departamento de Matemática da UFJF, os professores Alberto Hassen Raad, Antônio Carlos Dias da Silva e Hiroshi Ouchi citaram a obra de George Thomas como uma referência bibliográfica nos cursos de Cálculo ministrados nos anos 70 e 80 no Instituto de Ciências Exatas da UFJF, por ser considerado um texto completo com exercícios voltados para os cursos de Engenharia, o que justifica a escolha de tal livro para a análise que fazemos a seguir. Além dos livros de Lang e Thomas, que constam da bibliografia do curso de Cálculo do professor Aladim, inspecionamos também o livro de Cálculo de Louis Leithold bem como o livro de Mustafá Munem e David Foulis. Estes dois últimos textos, embora não constassem da bibliografia sugerida pelo professor Aladim, constantemente eram mencionados como referências de exercícios nas notas de aula do referido professor. 83 4.2.Cálculo: Funções de uma variável: de Serge Lang Vamos começar pelo livro de Serge Lang. O primeiro volume aborda o Cálculo Diferencial a uma variável ao passo que o segundo volume contempla o Cálculo Integral, também a uma variável, mais Fórmula de Taylor e Séries. A primeira edição data de 1969 com reimpressões em 1970, 1971, 1972, 1973, 1975(duas), 1976, 1977(duas) e 1978. Uma segunda edição é lançada em 1983. Ilustração 20: Foto da edição de 1975. 84 Serge Lang, no prefácio de seu livro Cálculo, Funções de uma Variável, comenta a falta de habilidade dos estudantes em Álgebra Elementar. Segundo o autor, as dificuldades em Cálculo não se devem tanto à compreensão da disciplina em si e sim à falta de estruturação lógica aliada a problemas advindos das escolas secundárias. Tais problemas são apontados por Lang da seguinte forma: “Grande número de estudantes não conseguem desenvolver automaticamente expressões como     ,, 22 baba  ou )()( baba  .” (LANG, 1975, p.265). A edição analisada dá uma ênfase maior à revisão de conceitos básicos, pois segundo Lang (p.265) ‘”o ensino secundário deficiente é responsável por muitas das dificuldades que o aluno encontra na Faculdade.” Esta revisão de conceitos básicos engloba dois capítulos. O Capítulo I aborda números inteiros, números racionais, números reais, desigualdades, funções e potências. O Capítulo II contempla gráficos e curvas, passando por coordenadas, reta, distância entre dois pontos, equações de curvas, círculo, dilatações e elipse, parábola e hipérbole. Para Lang grande parte das dificuldades que os estudantes têm para com a aprendizagem da matemática provém do fato de usarem símbolos e fórmulas matemáticas isoladas de uma sentença que lhes dê significado, ou sem os quantificadores apropriados. Os professores deveriam exigir que os exercícios fossem apresentados de maneira clara e legível, sem borrões de tinta. A insistência no uso de padrões razoáveis terá como resultado uma sensível melhoria no desempenho em matemática. O uso sistemático de palavras como seja, existe, para todos, sendo... então, portanto, deve ser ensinado, como nas seguintes sentenças: Seja f(x) a função que.., existe um número tal que..., para todos os números x tais que 0. Acesso: 14 de outubro de 2011, 21h15min. ESCARLATE, A.C. Uma Investigação Sobre a Aprendizagem da Integral. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. FEBVRE, Lucien. Combates pela História. 3.ª edição, Lisboa: Editorial Presença, 1989. 119 FRAGOSO, W.C. 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História das disciplinas escolares. In: Revista Brasileira de História da Educação. Campinas, SP. SBHE/Editora Autores Associados. Jan./jun, no. 18 Set/dez 2008. 122 ANEXO Transcrição da entrevista realizada com o Professor Aladim Valverde no dia 05 de junho de 2011 No depoimento abaixo, P corresponde à pergunta feita pelo autor deste trabalho. R refere-se às respostas fornecidas pelo Professor Aladim Valverde. DADOS PESSOAIS: P. Nome? R: Aladim José Vieira Valverde. P: Graduação? R: Licenciatura Plena em Matemática na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Santa Marcelina, em Muriaé, onde pouco aprendi, mal sabia derivar, mas aprendi já naquela época o domínio da linguagem matemática no tocante à Teoria dos Conjuntos e da Lógica. P: Especialização? R: Especialização no primeiro PREPES45, em 1974, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte, com professores altamente qualificados, dentre eles o Professores Édson Durão Júdice e Pedro Mendes. Fiz uma outra especialização na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Na PUC-RJ fiz 25 créditos de mestrado e 8 de doutorado mas por 45 Programa para atender às necessidades de aperfeiçoamento e desenvolvimento de professores das mais diversas áreas do conhecimento. Esse Programa, iniciado em 1974, com um padrão de qualidade legitimado por seu corpo docente e chancelado pela comunidade acadêmica, teve e tem o mérito de, com elevado padrão de qualidade, fazer coincidir os períodos de aula com os de férias letivas, criando possibilidades efetivas de interiorização da pós-graduação no Brasil, o que seria inviável nas condições normais do calendário escolar brasileiro. 123 divergências com minha orientadora não terminei meu mestrado, que era um trabalho sobre erros. P: Experiência Docente? R: Minha experiência é de 44 anos de sala de aula. P: Qual o período que o senhor atuou no Departamento de Matemática? R: De 1974 até 1996. Sendo que de 1990 até 1996 fiquei dedicado inteiramente à Faculdade de Economia. Gostei muito desta experiência, onde dei um curso voltado, com exemplos, para as áreas de Economia e Administração. P: Qual o período que o senhor lecionou Cálculo Diferencial e Integral I e II no Departamento de Matemática? R: Durante os anos de 1975, 1976, 1985, 1986, 2006(este último ano como professor bolsista, onde trabalhei dois semestres com Cálculo I, mas a experiência não foi muito agradável não. Deu vontade de reprovar todo mundo). Não foram muitas turmas que tive de Cálculo, pois trabalhei em quase todas as disciplinas do Departamento, excetuando-se Análise Matemática, História da Matemática e Cálculo IV. Fui muito curinga no Departamento de Matemática ao passar pela quase totalidade de suas disciplinas. Lecionei Processamento de Dados, Cálculo Numérico, Fundamentos de Matemática Elementar I, Fundamentos de Matemática Elementar III, Cálculo I, Cálculo II, Cálculo Avançado I (atual Cálculo III), Álgebra I. P: As turmas de Cálculo que o senhor lecionou eram para quais cursos? R: Nessa época existia uma turma exclusiva para o Curso de Engenharia Elétrica e outra que reunia os estudantes de Engenharia Civil, Química, Física e Matemática. As turmas de Engenharia Elétrica, ao contrário das turmas de Engenharia Civil, eram de bom nível, com bons alunos. A experiência melhor que tive no Departamento de Matemática foi quando entrei no Departamento de Matemática, onde ministrei um Curso de Cálculo Avançado I para alunos do nono e décimo períodos de Engenharia Civil, alunos que deviam esta disciplina que tinha Equações Diferenciais e Análise Vetorial em sua ementa. Nunca tinha estudado isto em minha vida, mal sabia derivadas. Estudava oito horas por dia para ministrar este curso à noite, com quatro horas de aula por noite. Eram 64 alunos e passaram 26. Não houve reclamações 124 nem dos alunos nem por parte do Departamento de Matemática. Não houve trenzinho da alegria. A Engenharia aceitou a reprovação. Aprendi muito ali. QUESTÕES GERAIS: P: O ensino de Cálculo era de fato mais rigoroso, mais direcionado à Análise Matemática? R: Não. Dependia do professor. Alguns faziam as demonstrações, tinham mais rigor no curso, enquanto outros não, davam cursos bem práticos. P: A questão da reprovação em Cálculo sempre foi atemporal? R: Em qualquer tempo sempre teve muita reprovação em Cálculo. Apesar de dar toda a ajuda aos alunos, com trabalhos de verificação, trabalhos em sala e para casa, mesmo assim a reprovação era muito grande. P: As dificuldades em matemática básica que os alunos mostram nos cursos universitários de Cálculo já existiam em outros tempos? R: A fatoração algébrica sempre foi a grande dificuldade para os alunos, o que dificultava o cálculo de integrais e a decomposição em frações parciais. Sempre existiu este problema dos pré-requisitos em Cálculo. P: O cálculo deve ser ensinado como Cálculo, de modo único, ou deve atender a especificidade de cada curso? R: O ideal seria o Cálculo ser voltado para cada curso, com formalismo e com um bom rigor. Eu não vou dar, por exemplo, uma aplicação de mola elástica para uma turma de economia. Para esta turma darei exemplos nas equações de oferta e demanda. P: As constantes mudanças de ementa, principalmente sobre se o curso deve se iniciar por limites ou por uma revisão de funções, também ocorriam nos anos 60, 70 e 80? R: Isto não ocorria. Limites eram dados em Fundamentos de Matemática Elementar III com muita correção, um curso com épsilons e deltas bastante rigoroso. 125 P: O índice de evasão era elevado? R: Não era elevado. Em torno de 15%. P: Existia o hábito de se estudar por livros? R: Dependia do professor, do incentivo que o professor dava para se estudar pelos livros, marcando exercícios e estimulando-os à pesquisar pelos mesmos. O acesso aos textos era por meio das bibliotecas setoriais e da biblioteca central da universidade. De modo geral poucos compravam livros devido ao baixo poder aquisitivo dos alunos. CURSO DE CÁLCULO: P: Qual o motivo da inserção de derivadas entre limites e limites infinitos bem como colocar diferencial e aplicações após integrais? R: Propositalmente eu fazia estas inversões para que o aluno tivesse um contato mais rápido, mais direto com os dois braços do cálculo: o diferencial e o integral. Era uma escolha pessoal apresentar o conceito de integral para que o aluno tivesse mais maturidade na hora de trabalhar com as diferenciais. P: O curso era mais formal nesta época? Devia-se aos alunos da Matemática o formalismo no curso? R: Dependia da turma. Os alunos de Engenharia Elétrica me pediam, me exigiam um curso mais formal. Alguns alunos de Matemática eram muito fracos, sem embasamento para entender um curso com bastante rigor. P: A resolução de exercícios de ensino médio, como inequações e logaritmos, no curso de Cálculo, devia-se aos problemas de pré-requisitos? R: Exatamente. Eu fazia estas revisões na hora certa, agora é a hora de ver inequações, agora é a hora de fazer uma revisão de logaritmos. P: A necessidade da revisão de conteúdos sempre deve ser feita, mesmo numa turma com bom desempenho acadêmico? R: A recordação sempre deve ser feita, pois sempre tem algum aluno fraco dentro de sala. Vale para ele. 126 P: Por que o excesso de rigor no estudo das integrais impróprias? R:Para preparar o aluno para o estudo da convergência de séries infinitas. Procurava fazer o estudo das integrais impróprias com o maior rigor possível, inclusive nos cursos que já ministrei para professores em minha carreira vários deles cometiam erros rigorosos, gravíssimos, um absurdo, como calcular   1 1 1 dx x usando o Teorema Fundamental do Cálculo sem se atentar que a referida integral é imprópria, com uma descontinuidade em x=0. P: Qual o motivo de se ensinar números complexos? R: Acredito que os alunos não tinham visto números complexos no ensino secundário, sendo assim fazia tal assunto em todas as suas particularidades. A parte de funções hiperbólicas é onde eu mais detalhava, fazia muito. ATAS: P: Por que contratar professores engenheiros para o Departamento de Matemática conforme defendiam alguns professores do referido departamento no ano de 1974? Devido à escassez de matemáticos na época ou uma tendência em considerar que os professores engenheiros poderiam atender as necessidades do Departamento? R: Naquela época eu também tinha a visão de que se deviam contratar professores engenheiros, influenciado pelos Professores André Hallack, Paulo Henriques e Waldir Batista. Hoje penso de modo oposto, devem-se contratar professores com formação em licenciatura e bacharelado em Matemática, não devendo ocorrer a intromissão desses profissionais na seara dos professores P: Mas tinham poucos matemáticos também, correto?Apesar do senhor ser matemático,a grande maioria dos professores do Departamento nesta época eram engenheiros, correto? R: Sim, a maioria dos professores era formada em Engenharia, e eles defendiam este ponto de vista, de contratar engenheiros para o Departamento, que hoje em dia discordo inteiramente. P: A que se devia a oferta sucessiva de Cursos Intensivos de Cálculo I e Cálculo II? 127 R: Ao alto índice de repetência. O índice de reprovação era considerável em Cálculo, e o Departamento ofertava cursos intensivos sérios e de bom nível. Não existia trenzinho46 da alegria, pelo contrário, eram cursos muito sérios. P: O fato de terem muitos professores engenheiros poderia implicar em cursos de Cálculo voltados para a Engenharia, quando tais cursos fossem ministrados por estes professores? R: Não acredito. Embora não possa falar por eles, penso que os exemplos, os exercícios feitos em sala não eram voltados especificamente para a Engenharia. Eles davam os exemplos que estavam nos livros. P: Uma mudança significativa na disciplina Cálculo Diferencial e Integral I ocorre na reunião do dia 23 de junho de 1979 quando é apresentada uma proposta do acréscimo de mais 2 aulas semanais para a disciplina Cálculo I, mas sem alterar o número de créditos, que era de quatro. A sugestão é aprovada e entra em vigor a partir do primeiro semestre de 1980. Este aumento no número de aulas semanais resultou em alguma melhoria sensível no aprendizado e no rendimento dos estudantes em relação à aprovação? R: Embora tenha ocorrido um aumento de 50 % na quantidade de aulas por semana, não houve um aumento significativo no conteúdo programático, pouca coisa, 20% no máximo, quase nada. Era apenas para dar mais chance para o professor fazer mais exemplos, mais revisões, mais trabalhos, por isso mais 2 aulas semanais trouxeram benefícios neste sentido. Acredito na época que houve uma melhora no aprendizado e no rendimento dos alunos devido a este aumento do número de aulas semanais, não sei se muito significativa, mas que houve uma melhora, houve. 46 Trenzinho da alegria é uma expressão cunhada pelos estudantes para expressar que o curso é fácil, pouco exigente, ocorrendo uma aprovação em massa sem esforço. 128 129