1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL “IMPERMANÊNCIA ENTUSIASTA” TRANSMUTAÇÕES DO MODELO ROMERIANO DE HORROR Juiz de Fora Março de 2012 2 Lúcio De Franciscis dos Reis Piedade Filho “IMPERMANÊNCIA ENTUSIASTA” TRANSMUTAÇÕES DO MODELO ROMERIANO DE HORROR Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora Orientador: Prof. Dr. Alfredo Suppia Juiz de Fora Março de 2012 3 Lúcio De Franciscis dos Reis Piedade Filho “Impermanência Entusiasta”: Transmutações do Modelo Romeriano de Horror Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Comunicação Social na Faculdade de Comunicação Social da UFJF Orientador: Alfredo Suppia Dissertação aprovada em 28/03/2012 pela banca composta pelos seguintes membros: _____________________________________ Prof. Dr. Alfredo Suppia (UFJF) – Orientador _____________________________________ Prof. Dr. Potiguara Mendes da Silveira Júnior - Convidado _____________________________________ Profª. Drª. Laura Loguercio Cánepa (Universidade Anhembi Morumbi - SP) Conceito Obtido: ______________________ Juiz de Fora Março de 2012 4 E foi então que reconheceram estar ali presente a “Morte Rubra”. Ali penetrara, como um ladrão noturno. E um a um, foram tombando os foliões, nos salões de orgia, orvalhados de sangue, morrendo na mesma posição desesperada de sua queda. E a vida do relógio de ébano se extinguiu com a do último dos foliões. E as chamas das trípodes expiraram. E o ilimitado poder da Treva, da Ruína e da “Morte Rubra” dominou tudo. Edgar Allan Poe, A Máscara da Morte Rubra, 1842. 5 Àqueles que sentaram-se noutro mundo, À ceia de seus ancestrais, Dedico. 6 AGRADECIMENTOS A Alfredo Suppia, pela orientação sempre sincera. À minha família, pela paciência, carinho e apoio. Às amigas de mestrado Debora Faccion, Marília Lima e Fernanda Viana, pelo companheirismo e pelas aprazíveis horas de conversa. A Beth Honorato, pelo incentivo. Às professoras Edna Mara Ferreira, Patrícia Vargas e Cirinéia Arantes, pela inspiração e exemplo inestimáveis. À Pró-Reitoria de Pós-Graduação, pela bolsa de monitoria. Ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, pela acolhida do projeto. A George Romero, pelo seu legado. E a todos os demais colegas e profissionais que, direta ou indiretamente, colaboraram para a realização deste trabalho. 7 RESUMO Primeiramente, pretendemos analisar o filme A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968), de George A. Romero, observando o contexto histórico de sua produção, conectando-o ao espírito do tempo da era atômica e aos movimentos contraculturais de fins dos anos de 1960. Em seguida, realizaremos um estudo minucioso acerca do modelo romeriano de horror – a representação moderna do zombie e suas nuances. Por fim, identificaremos a permanência deste modelo na atualidade e as transmutações que vem sofrendo nas novas mídias, na esteira do desenvolvimento científico e tecnológico. Consideraremos, ainda, a perspectiva de retorno do gótico no fim do milênio e o subsequente período de crise política e econômica da primeira década do século XXI, marcado pelo surgimento de novos movimentos contraculturais de propagação viral. Dentro desse contexto, o zombie parece retornar, uma vez mais, enquanto representação das classes oprimidas na era do capitalismo “pós-industrial”. Palavras-Chave: George Romero; A Noite dos Mortos-Vivos; Cinema de Horror; Contracultura. 8 ABSTRACT Firstly, we intend to analyze George A. Romero’s Night of the Living Dead (1968) aiming at the historical context of the film, connecting it to the atomic age’s spirit of the time and the countercultural movements of the late 1960’s. Secondly, we will conduct a detailed study on the Romerian’s model of horror – the modern representation of the zombie and its nuances. Finally, we will identify the permanence of this model nowadays and the transmutations that undergoes in new media, following the scientific and technological development. We will also consider the return of the Gothic style at the end of the millennium and the subsequent period of political and economic crisis at 21 st century’s first decade, characterized by the emergence of new countercultural movements of viral propagation. Inside this context, the zombie returns once more, as a representation of the oppressed classes, at the post-industrial capitalism era. Keywords: George Romero; Night of the Living Dead; Horror Cinema; Counterculture. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11 CAPÍTULO I: O MODELO DE ROMERO........................................................................20 1. Genealogia do Zumbi....................................................................................................20 2. A Condição do Zombie.................................................................................................29 2.1. Natureza Epidêmica do Horror..........................................................................29 2.1.1 Estranha Fascinação...............................................................................29 2.1.2. Cidade dos Mortos.................................................................................37 2.2. Perspectiva do Mundo Estranhado....................................................................40 2.3. Anti-Sujeito | Crise da Corporeidade.................................................................43 2.4. Ideologia Imperialista........................................................................................46 2.5. Sociedade de Consumo......................................................................................51 CAPÍTULO II: “IMPERMANÊNCIA ENTUSIASTA”.....................................................56 1. O Microcosmo do Medo...............................................................................................56 2. Era de Mudança e Inquietação Social...........................................................................63 3. “Impermanência Entusiasta”.........................................................................................67 4. O Poder das Ideias........................................................................................................74 5. Repensando a Mudança.................................................................................................78 CAPÍTULO III: O MAL RESIDENTE................................................................................83 1. Função Política da Alegoria..........................................................................................83 2. Morte versus Poder........................................................................................................87 3. A Noite que Não Terminou...........................................................................................94 3.1. A Ameaça do Corpo..........................................................................................94 3.2. A Esfera Privada................................................................................................97 4. Transgressão e Mudança.............................................................................................100 10 5. Matriz Contracultural..................................................................................................103 5.1. Nova Linguagem & Novas Técnicas...............................................................103 5.2. Cabos de Conexão...........................................................................................104 a) Contato Direto.................................................................................................105 b) Contato Indireto...............................................................................................106 CAPÍTULO IV: TRANSMUTAÇÕES...............................................................................111 1. 1968 e Início do Século XXI: Equivalências..............................................................111 2. O Retorno do Gótico: Prelúdio de uma Nova Era......................................................114 3. Fator Resident Evil......................................................................................................121 3.1. Estética Visceral..............................................................................................121 3.2. Recurso ao Gótico...........................................................................................129 3.3. Metáfora Viral.................................................................................................134 4. Transmutações do Modelo Romeriano.......................................................................139 5. Racionalização do Subgênero.....................................................................................144 6. Epidemia Contracultural.............................................................................................148 7. Movimentos Populares: Reavaliação..........................................................................155 EPITÁFIO.............................................................................................................................159 REFERÊNCIAS....................................................................................................................162 FILMES CITADOS..............................................................................................................171 ANEXOS................................................................................................................................175 11 INTRODUÇÃO O interesse nos mortos-vivos enquanto alegoria social surgiu durante pesquisas preliminares, quando foram levantados documentos que permitiram estabelecer conexões entre a hanseníase e certos aspectos do que denominaremos “modelo romeriano de horror”, em especial a sua natureza epidêmica. De maneira geral, as analogias entre a lepra e a ficcional epidemia dos zumbis referem-se a elementos que compreendem as misteriosas condições do contágio; as implicações da doença, como a degeneração dos traços fisionômicos; e o medo da infecção. Consideramos também, por um lado, o histórico isolamento social dos hansenianos, e, por outro, o isolamento dos sãos em face da invasão dos mortos-vivos, nas narrativas ficcionais. Esses apontamentos nos aproximaram da obra que, pela primeira vez, despertou os mortos do sereno descanso em sua configuração moderna. A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, EUA, 1968), de George Andrew Romero, fundou um subgênero cinematográfico que influencia até hoje produções de um gênero que extravasa as fronteiras da mídia cinema, contaminando a televisão, os videogames, a música, a literatura e as histórias em quadrinhos. A Noite..., 1 filme independente de horror realizado com poucos recursos, na zona rural de Pittsburgh, no estado norte-americano da Pensilvânia, oferece múltiplas leituras a respeito do contexto de fins dos anos 1960, da contracultura e da tensa geopolítica vigente no momento de sua produção. Pretendemos, aqui, analisar os elementos textuais, intertextuais e extratextuais deste filme, no que se refere ao pano de fundo da história norte-americana da década de 1960, da contracultura e do cinema independente. Acreditamos que vale a pena resgatar a obra de Romero hoje — quarenta e quatro anos após o seu lançamento — considerando que o 1 Para evitar a repetição do título, A Noite dos Mortos-Vivos será abreviado para A Noite... 12 subgênero iniciado pelo cineasta permanece vivo, tendo inspirado ao longo do tempo não só o cinema independente e industrial, mas também a indústria emergente de videogames. * Segundo Peter Burke (1992), a nova história é a história escrita como uma reação deliberada contra o “paradigma” tradicional, de acordo com o qual a história diz respeito essencialmente à política. O movimento da nova história, por sua vez, começou a se interessar por virtualmente toda a atividade humana. Nosso estudo fundamentar-se-á dentro do campo em que o fazer historiográfico procura integrar a dimensão imagética. Sabe-se que “embora os historiadores utilizem diversos tipos de material como fonte, seu treinamento em geral os leva a ficarem mais à vontade com documentos escritos” (GASKELL, 1992, p. 236). Contudo, Peter Burke (1992, p. 14) oferece uma alternativa: “se os historiadores [da nova história] estão mais preocupados que seus antecessores com uma maior variedade de atividades humanas, devem examinar uma maior variedade de evidências”. Em defesa da utilização das imagens como fonte, Ivan Gaskell (1992, p. 236) complementa: “Alguns historiadores têm proporcionado valiosas contribuições à nossa visão do passado — e do local em que nele está inserido o material visual — usando as imagens de uma forma sofisticada e especificamente histórica”. Partindo dessa assertiva, destacamos a importância de trazer o filme para dentro do laboratório, uma vez que a própria noção do tempo histórico se modificou. “Nos rescaldos pós-maio de 1968, uma série de historiadores franceses discutiam novos problemas, novas abordagens, novos métodos”, explica Silvio Tendler (2001, p. 7). Naquele mesmo ano, François Furet escreveu, no Social Science, Information sur les sciences sociales, que 13 O historiador deixou de ser o maestro que fala de tudo a propósito de tudo, do alto da indeterminação e da universalidade de seu saber, a história. Ele deixou de contar o que se passou, isto é, deixou de escolher, naquilo que se passou, o que lhe parece apropriado para seu relato, para seu gosto ou para sua interpretação. Como seus colegas de outras ciências humanas, ele deve dizer o que busca, constituir os materiais pertinentes à sua questão, mostrar hipóteses, resultados, provas, incertezas (FURET apud FERRO, 1992, p. 84). Segundo Ferro (1992), não é suficiente constatar que o cinema fascina e inquieta, pois os poderes públicos e privados pressentem também que ele pode ter um efeito corrosivo. Ben Hervey (2008, p. 8) rememora filmes que foram difamados pela mídia mainstream, ora pelas cenas de transgressão e anormalidade, como Monstros (Freaks, dir. Tod Browning, 1932) e Pink Flamingos (dir. John Waters, 1972); ora pela política anti-establishment, a exemplo do antibelicista Esse Mundo É dos Loucos (King of Hearts, dir. Philippe de Broca, 1966). No caso de A Noite dos Mortos-Vivos, nos deteremos, mais adiante, sobre a função política que comporta e o princípio da representação alegórica presente em sua narrativa. Quanto ao poder subversivo das imagens, Ferro aponta que “a câmera [...] desvenda o segredo, apresenta o avesso de uma sociedade, seus lapsos” (FERRO, 1992, p. 85-6). Para o autor, esses “lapsos” podem estar relacionados a um criador, a uma ideologia, a uma sociedade, e podem produzir-se em todos os níveis do filme, como também em sua relação com a sociedade. Assinalar tais lapsos, bem como suas concordâncias ou discordâncias com a ideologia, ajudaria a descobrir o que está latente por trás do aparente, o não-visível através do visível (1992, p. 88). Talvez a própria estrutura do poder, este considerado por Michel Foucault algo ao mesmo tempo visível e invisível 2 (2011, p. 75). “Analisando as estruturas, ele [o historiador] se interessa pelas permanências e mutações invisíveis de longa duração, 2 De acordo com Roberto Machado, na introdução de Microfísica do Poder, não existe em Foucault uma teoria geral do poder. Suas análises não consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir por suas características universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. Portanto, o poder não seria um objeto natural, uma coisa; e sim uma prática social e, como tal, constituída historicamente. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011, p. x. 14 estas terminando às vezes por eclipsar um pouco as outras” (FERRO, 1992, p.84-5). No presente estudo, consideramos que os lapsos no interior da sociedade norte-americana dos anos de 1960 sejam o movimento contracultural e suas múltiplas repercussões na esfera social e política, revelados alegoricamente pelo filme de Romero. Enfim, Gaskell (1992, p. 268-9) salienta que a nova história interessa-se virtualmente por toda a atividade humana, preocupando-se com a análise das estruturas da sociedade, e espera que os historiadores voltem cada vez mais sua atenção para o material visual, tendo como tarefa recuperar a visão do período estudado: “a contribuição para o estudo do material visual que o historiador está provavelmente mais bem equipado para realizar é a discussão de sua produção e de seu consumo como atividades sociais, econômicas e políticas”. Nesse sentido, adotaremos uma orientação metodológica com o aporte da nova história, campo que se debruça sobre diversos tipos de fonte, ao invés de se preocupar meramente com os documentos oficiais com os quais o paradigma tradicional fundamentava seus estudos; uma história cuja base filosófica parte da idéia de que “a realidade é social ou culturalmente constituída” (BURKE, 1992, p. 11). Encaminharemos nosso estudo nessa direção. * Adotaremos a abordagem metodológica proposta por Marc Ferro (1992, p. 87). A Noite... será observado não apenas enquanto narrativa, ou obra de arte, mas como um produto, uma imagem-objeto, cujas significações vão além do campo cinematográfico e refletem os valores culturais da sociedade que o produziu. Dessa maneira, trataremos não apenas dos elementos fílmicos de A Noite..., mas também dos extra-fílmicos, considerando a integração 15 do mesmo ao mundo social — com o qual se comunica, necessariamente. Este mundo se refere tanto ao final da década de 1960 quanto ao tempo presente. De acordo com Ferro, um filme “não vale somente por aquilo que testemunha, mas também pela abordagem sócio-histórica que autoriza” (1992, p. 87). O autor atesta a multiplicidade das interferências entre cinema e história. Nesse sentido, o cinema interviria na História que se faz e na História compreendida como explicação do devir das sociedades. Para Ferro, desde o momento em que os dirigentes compreenderam a função que o cinema pode desempenhar, tentaram apropriar-se dele e pô-lo a seu serviço. Lênin considerava o cinema a principal arte no contexto revolucionário e Goebbels manipulou intensivamente a indústria cinematográfica alemã em favor da propaganda nazista. Se tanto no Ocidente como no Oriente os dirigentes tiveram a mesma atitude, as diferenças entre as formas de apropriação situar-se-iam no nível da tomada da consciência, não no nível das ideologias. As autoridades, sejam as representativas do Capital, dos Sovietes ou da Burocracia, desejam tornar submisso o cinema. Este, entretanto, pretende permanecer autônomo, agindo como contra-poder, [...] como os escritores de todos os tempos procederam. Sem dúvida, esses cineastas, conscientemente ou não, estão cada um a serviço de uma causa, de uma ideologia, explicitamente ou sem colocar abertamente as questões. Entretanto, isso não exclui o fato de que haja entre eles resistência e duros combates em defesa de suas próprias idéias. À sua maneira, o Jean Vigo de Zéro de Conduite, o Réne Clair de A nós a liberdade, e Louis Malle de Lacombe Lucien, ou ainda o Alains Resnais de Stavisky, sem falar em quase todos os filmes de Godard, manifestam uma independência diante das correntes ideológicas dominantes, criando e propondo uma visão de mundo inédita, própria de cada um deles, o que vigorosamente suscita uma tomada de consciência, de tal forma que as instituições ideológicas instauradas [...] entram em disputa e rejeitam tais obras, como se apenas essas instituições tivessem o direito de se expressar em nome de Deus, da nação ou do proletariado, e como se apenas elas dispusessem de outra legitimidade além daquela que elas próprias se outorgaram (FERRO, 1992, p. 14). Nosso enfoque recairá sobre o cinema independente americano, que promoveu transformações radicais no fazer cinematográfico e seguiu caminhos divergentes das funções ideológicas consideradas importantes pela estrutura “clássica” da narrativa.3 De certa maneira, 3 “Cinema clássico hollywoodiano” / “narrativa clássica”: refere-se à tradição dominante na produção de Hollywood dos anos de 1930 a 1960, mas que também permeou o cinema ocidental mainstream. Sua herança 16 os gêneros cinematográficos 4 eram percebidos pelos cineastas independentes como um “conjunto de regras e convenções que poderiam ser exploradas, questionadas e frequentemente subvertidas, o que resultaria num desordenamento das expectativas do espectador” (TZIOUMAKIS, 2006, p. 180). Assim, a contribuição do cinema independente americano, muitas vezes marginalizado pelas instituições hegemônicas, parece ter sido uma visão de mundo original, que suscitou uma tomada de consciência. Portanto, tendo em A Noite dos Mortos-Vivos o nosso objeto, apontaremos para três domínios: o processo criativo, a obra e a sua recepção. Em relação a este último, Ferro rememora as palavras de Sergei Eisenstein, segundo o qual toda sociedade recebe as imagens em função de sua própria cultura (1992, p. 17). Burke assinala que “só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra” (1992, p. 15). Aspecto igualmente importante refere-se ao diálogo entre o cinema e outros suportes de veiculação de imagem. De acordo com Maria Helena Capelato e os demais organizadores da coletânea História e Cinema, Com o exame detalhado dos filmes poderemos entender o cinema de uma época como uma expressão de valores, não só delimitados pela maneira de abordar o tema encenado, mas, de modo mais decisivo, pela forma como foram concebidos os registros visuais e sua organização na forma fílmica. Nesse ponto há uma dupla dimensão: a primeira diz respeito às linguagens, técnicas e estilos que marcam o cinema como área de expressão artística; a segunda, envolvendo o aspecto iconográfico e ideológico de análise, ou seja, de que modo o cinema dialoga com outros suportes de veiculação de imagem que lhe são contemporâneos e que ajudam a compor o leque de opções que o contexto sociocultural oferece (CAPELATO et al., 2007, p. 10). remonta ao melodrama do primeiro cinema europeu e americano e ao teatro melodramático que o antecedeu. Essa tradição ainda se faz presente no cinema dominante ou mainstream, em algumas ou todas as suas partes. HAYWARD, Susan. Cinema studies: the key concepts. 3. ed. New York: Routledge, 2006, p. 82-5. 4 “Gênero”: mais do que mera catalogação genérica, não se refere apenas a um tipo de filme, mas à expectativa e à hipótese do espectador. Também se refere à função de discursos institucionais específicos que formam estruturas genéricas. Em outras palavras, deve ser visto como parte de um processo tripartite de produção, mercado (incluindo distribuição e exibição) e consumo. Os gêneros não são estáticos, mas mutáveis, compostos por diversos intertextos. Os gêneros são flexionados tanto pelos imperativos capitalistas da indústria cinematográfica como pela preferência do público e pelas realidades sócio-históricas de um dado período. HAYWARD, Susan. Cinema studies: the key concepts. 3. ed. New York: Routledge, 2006, p. 185-91. 17 Dessa maneira, pretendemos estudar A Noite dos Mortos-Vivos, de George Romero, associando o filme ao mundo que o produz e ao mundo que o consome/recebe, no intuito não somente de analisar as relações mais amplas entre cinema e história, mas de pensar o filme como documento que possibilita a discussão de uma época, considerando seu estatuto de objeto da cultura e as releituras que sofre no decorrer do processo histórico. Em seguida, observaremos o diálogo entre o cinema e as novas mídias, levantando a hipótese do caráter perene do “modelo romeriano” de horror e suas transmutações em tempos de crise política e econômica, releituras estas que parecem seguir as correntes contraculturais e os “medos epidêmicos”5 numa determinada sociedade. Nesse sentido, são relevantes as considerações de Milena Kalinovska, em prefácio à obra Gothic, de Christoph Grunenberg (1997, p. 218), a respeito de uma importante tendência dentro da arte contemporânea. Kalinovska trata da captura de metáforas, em estilo “gótico”, promovida por diversos artistas, sobre os extremos emocionais que nos assombram: “aquilo que mais tememos, e o que esses artistas representam, na verdade, somos nós mesmos. A possibilidade de circunstâncias incontroláveis e irracionais permite um desenvolvimento estético que exprime nosso desconforto e desorientação”. Nos capítulos finais analisaremos com maior cuidado esse movimento que, até certo ponto, pode ter sido inspirado pela estética de A Noite..., ganhando força durante a última década do século passado. Tentaremos demonstrar porque a obra de George Romero se mostra inquietante em ambiente externo à moldura alegorizante, e qual a razão de retornar a essa obra ainda hoje, numa sociedade marcada pelos atentados de 11 de Setembro 2001. Em suma, debateremos a importância de tratar 1968 agora, estimulados por um subgênero cinematográfico que conquistou terreno em diversas mídias na década de 1990, sofreu significativas transmutações no mundo pós-11/9, e continua se expandindo significativamente na atualidade. Pretendemos, 5 Consideramos “medos epidêmicos” os temores que afligem determinadas sociedades e que ganham cores extremadas num dado período, como, por exemplo, o medo da aniquilação nuclear ou do terrorismo. 18 também, observar a usabilidade do morto-vivo enquanto metáfora que dialoga com alguns dos elementos mais tensos e delicados da geopolítica atual e do momento sócio-histórico em que vivemos, estabelecendo pontos de contato entre a representação do zombie, o espírito contagioso da rebelião e os movimentos de protesto que sacudiram o mundo a partir de 2010. Para tanto, trabalharemos com a distinção tipológica proposta por Sarah Juliet Lauro e Karen Embry em A Zombie Manifesto: The Nonhuman Condition in the Era of Advanced Capitalism (2008): “em sua passagem de zumbi para zombie, essa figuração que, primeiramente, se tratava apenas de um escravo sonâmbulo, despertado individualmente dos mortos, tornou-se maligna, contagiosa e plural” (2008, p. 88). Acreditamos que o termo “zumbi” é impreciso para definir a versão contemporânea do monstro e suas muitas reformulações — por ser originariamente africano, denotativo de uma manifestação própria da religião vodu e ter sido utilizado para definir o morto-vivo no cinema dos anos de 1930. Logo, utilizaremos o termo “zombie” sempre que abordarmos essa forma de representação (o “modelo romeriano” e seu legado), considerando a diferença radical no ethos e na iconografia desse monstro contemporâneo em relação ao seu precursor haitiano. No capítulo I, construiremos uma genealogia do monstro, partindo dos primórdios de sua representação até o advento do “morto-vivo moderno”. Então, observaremos a condição do zombie, ou seja, os aspectos fundamentais do “modelo romeriano”: a natureza epidêmica do horror e o estatuto de impureza; a perspectiva do mundo estranhado; o anti-sujeito, a ascensão ao espectro pós-humano através da morte e a crise da corporeidade; a ideologia imperialista, a revisão capitalista do monstro e a metáfora da sociedade de consumo. No capítulo II, traçaremos um panorama de fins dos anos de 1960, contexto sócio- histórico em que A Noite... foi produzido. Partindo das relações entre Cinema e História, conectaremos a obra e seu tempo, observando a geração contracultural e as novas formas de fazer cinema surgidas a partir de uma contraposição ao mainstream escapista. 19 No capítulo III, analisaremos a estética do filme e a função política da alegoria presente no mesmo, bem como a nova linguagem e as novas técnicas empregadas pelos jovens cineastas da era contracultural e seu desejo de transgressão e mudança. Observaremos até que ponto a morte pode ser considerada uma forma de reação ao poder, e como ela aparece em A Noite..., e também a matriz contracultural do “modelo romeriano” de horror e os cabos de conexão existentes entre essa obra e os produtos culturas que a antecedem. No capítulo IV abordaremos a transmutação mais recente do “modelo romeriano” de horror, ocorrida em fins do século XX e no início do XXI, buscando as equivalências entre esse período e os anos finais da década de 1960. Analisaremos a reconfiguração do morto-vivo na sociedade contemporânea a partir das novas mídias, considerando o impacto do game Resident Evil e o retorno do gênero gótico à cultura popular, no final do milênio. 20 Capítulo I O MODELO DE ROMERO (...) Só um artista de verdade conhece a fundo a anatomia do terror ou a psicologia do medo — o tipo exato de linhas e proporções que se ligam a instintos latentes ou memórias hereditárias de pavor, e os contrastes e a iluminação que despertam o sentimento de estranheza adormecido. H.P. Lovecraft, O Modelo de Pickman, 1927. 1. Genealogia do Zumbi Não faria sentido abordar a figura do zombie, ou tentar discutir seus modos de representação e as transmutações que sofre no imaginário social da contemporaneidade, sem antes buscarmos, em suas origens mais remotas, os aspectos que se constituem enquanto permanências dentro do “modelo romeriano de horror”. Dessa maneira, antes de nos determos sobre esse modelo e a sua transmutação no final do século XX, é necessário, primeiramente, observar a figura bastante peculiar do “morto que retorna à vida”. O imaginário da morte constitui parte essencial das crenças religiosas das sociedades. De acordo com Jean Claude-Schmitt, as crenças e o imaginário dependem, antes de tudo, das estruturas e do funcionamento da sociedade e da cultura em uma época dada. O autor continua a argumentação, sugerindo que os homens atribuem aos mortos representações do que esperam para si próprios, de acordo com a cultura e o contexto histórico. Assim, os mortos teriam apenas a existência que os vivos imaginam para eles. “A dimensão antropológica e 21 universal do retorno dos mortos está presente, entre outras, na tradição ocidental, desde a Antiguidade, na Idade Média e até no folclore contemporâneo” (SCHMITT, 1999, p. 17). Os mortos que retornam à vida aparecem nas narrativas mitológicas de diversas culturas, assumindo a forma de vampiros e espíritos em muitas delas. Michael Page e Robert Ingpen (1985) sugerem que as lendas de vampiros — ora fantasmas, ora mortos-vivos — remontam ao Egito Antigo e, provavelmente, aos séculos mais primitivos. Na mitologia nórdica, diz-se que durante o Ragnarök (batalha apocalíptica que resultaria no fim do mundo) os mortos-vivos formariam um exército para acabar com os vivos (CUETO, 2009, p. 24). Na Idade Média, “em uma cultura eminentemente religiosa e familiar à morte e aos mortos, a ‘crença nos fantasmas’ era admitida por todos” (SCHMITT, 1999, p. 17). De acordo com Philippe Ariès (2003, p. 206), o início do século XIX assistiu a uma “exaltação da morte na época romântica”. José Manuel Serrano Cueto assinala o grande número de narrativas sobre amantes ressuscitados que vagam por cemitérios góticos, mortos que regressam de suas tumbas como os monges esqueléticos de El Miserere (1862), de Gustavo Adolfo Bécquer. Na exploração do mundo confuso onde se misturam as águas subterrâneas do mundo imaginário e as correntes da ciência, destacamos Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1818, revisado em 1831), de Mary Wollstonecraft Shelley, romance gótico de destaque responsável por engendrar um monstro icônico com idiossincracia particular, “uma clara referência ao mundo zumbi” (CUETO, 2009, p. 33). A abominação de Shelley surge pelas mãos de Vítor Frankenstein e sua ciência com intenções divinas, capaz de insuflar vida num emaranhado de cadáveres. O extraordinário projeto de recriação do ser consolida-se graças à fermentação e à eletricidade, o que evoca o certo “fascínio romântico pela ciência” por parte do poeta Percy Bysshe Shelley e a influência deste sobre a companheira Mary Wollstonecraft, num período em que progressos científicos como os experimentos de Galvani eram comentados com expectativa nos círculos intelectuais. 22 Segundo Ariès (1990, p. 423), Frankenstein extrai o segredo da vida do milagre dos cadáveres, nos quais estaria inscrito o conhecimento e também subsistiria um elemento vital. Essa “exaltação da morte” também pode ser identificada na obra de Edgar Allan Poe, em seu universo de enterrados vivos e espectros. Posteriormente, H.P. Lovecraft também escreveria diversas histórias com ressuscitados. Uma forma de representação bastante distinta do “morto que retorna à vida” pode ser identificada na tradição religiosa afro-caribenha. De acordo com Page e Ingpen (1985, p. 231), as antigas religiões da África Ocidental deram origem ao vodu, e, segundo Peter Dendle, é no contexto dessa religião que se encontram as raízes da palavra “zumbi”. Em sua etimologia originária do quimbundo, 6 a palavra relaciona-se à idéia do morto que se ergue da sepultura e denota a importância do conceito da ressurreição no interior daquela religião. Vale a ressalva de que as associações entre a figura do zumbi e as religiões afro-caribenhas não são automáticas. A própria idéia de “feitiço”, nas religiões americanas de origem africana, está sujeita a discussões. Além disso, o discurso de ligação automática entre vodu e feitiçaria visando o malefício, vulgarmente propagado no cinema comercial, notadamente o cinema anglófono, revela uma perspectiva eurocêntrica que deturpa a realidade cultural afro- caribenha e ignora suas nuances. Sabe-se que “a forma dominante euroamericana de cinema não apenas herdou e propagou um discurso colonial hegemônico, como também criou uma poderosa hegemonia por intermédio do controle monopolístico da distribuição e da exibição cinematográficas [...]” (STAM, 2003, p. 34). Para o espectador europeu, portanto, a experiência cinematográfica promovia uma gratificante sensação de pertencimento nacional e imperial, mas, para o colonizado, o cinema deflagrava uma sensação de extrema ambivalência, mesclando a identificação provocada pela narrativa cinematográfica com um intenso ressentimento (STAM, 2003, p. 34). 6 O kimbundu é a língua da região de Luanda, Catete, Malanje e as áreas de fronteira no Norte (Dembos - variante crioula kimbundu/kikongo) e no Centro (Kuanza Sul - variante crioula kimbundu/umbundu). É falada por mais de um milhão e meio de pessoas. RAMOS, Rui. A língua kimbundu. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2012. 23 Nas décadas de 1930 e 1940, filmes como Zumbi Branco (White Zombie, dir. Victor Halperin, 1932), Ouanga (dir. George Terwilliger, 1936), Revolt of the Zombies (dir. Victor Halperin, 1936), I Walked with a Zombie (dir. Jacques Tourneur, 1943), entre outros, evocavam a discriminação racial através da relação de domínio e submissão entre o zumbi e seu mentor. Luciano Saracino explica que os zumbis são cadáveres animados mediante espíritos escravos, utilizados pelo bokor 7 para o seu benefício pessoal. Considerando o cinema euroamericano herdeiro e propagador do discurso colonial hegemônico imperialista (STAM, 2003, p. 34), a relação entre o zumbi e o sacerdote parece ter sido construída justamente a partir dessa óptica, que será mais bem explicada adiante. Saracino considera Zumbi Branco a produção pioneira do subgênero do zumbi, e sugere que I Walked with a Zombie tenha explorado temas como o passado obscuro, os amores proibidos, os tambores negros e os rituais (2009, p. 19-20). Naquela época, entretanto, o zumbi funcionaria essencialmente como pano de fundo para complementar um vilão humano, ou seja, seria antes a representação de um objeto de horror visual do que uma ameaça para os protagonistas. O zumbi em I Walked with a Zombie (1943). 7 Sacerdote da religião vodu. 24 Dendle aponta que a representação do zumbi no cinema dos anos 1930 e 1940 esteve atrelada às suas “raízes folclóricas”, ora conectada à religião afro-caribenha, ora à mitologia egípcia (2001, p. 3). Tomamos como exemplo O Ressuscitado (The Ghoul, 1933), uma produção da Gaumont-British Picture Corporation, dirigida por T. Hayes Hunter. Nele, Boris Karloff interpreta o Professor Morlant, egiptólogo obcecado pela idéia da imortalidade, alcançada por meio de um contrato com Anúbis. Mas os planos de Morlant são desrespeitados e o Professor retorna à vida como um zumbi para se vingar dos violadores de sua tumba. Dendle considera os anos de 1950 e 1960 um “estranho período de transição” (2001, p. 5), em que a figura do zumbi teria experimentado certa confusão, tateando em busca de novos rumos, embora já não estivesse presa ao “modelo religioso” das duas décadas anteriores. A confusão tornou-se nítida a partir de 1950, quando o termo quimbundo passou a ser utilizado na definição de gêneros distintos de criaturas: invasores marcianos humanóides (Zombies of the Stratosphere, dir. Fred C. Brannon, 1952), seres subaquáticos (Zombies of Mora-Tau, dir. Edward L. Cahn, 1957), jovens de classe média sob o efeito de drogas hipnóticas (Teenage Zombies, dir. Jerry Warren, 1959), peixes mutantes radioativos (The Horror of Party Beach, dir. Del Tenney, 1964) e andróides cibernéticos (The Astro-Zombies, dir. Ted V. Mikels, 1968). Entretanto, certa veia de coerência podia ser identificada nesse pout-pourri conceitual. Filmes como Plano 9 do Espaço Sideral (Plan 9 from Outer Space, dir. Ed Wood, 1959) e Invasores Invisíveis (Invisible Invaders, dir. Edward L. Cahn, 1959) “compartilhavam uma ansiedade comum ao insistir que os mortos redivivos não eram, de forma alguma, sensitivos”, mas “radicalmente distintos de qualquer concepção de mente ou alma” (DENDLE, 2001, p. 4- 5). Argumento reconfortante para que o zumbi pudesse ser tratado como “Outro”, animal ou escravo, e, portanto, livremente trucidado sem ônus moral ou judicial ao homem branco. 25 A partir desse argumento, estabelecemos um diálogo com o artigo A Zombie Manifesto: The Nonhuman Condition in the Era of Advanced Capitalism (2008), de Sarah Juliet Lauro e Karen Embry. O manifesto trata do zumbi étnico, de origem histórica e religiosa, que diz respeito à posição do sujeito na sociedade haitiana e à sua relação com a dialética mestre/escravo; e dos zombies, os mortos-vivos dos filmes contemporâneos, que parecem escapar, cada vez mais, da tela para o mundo real. Enquanto metáfora, o “modelo romeriano” e suas transmutações são muito reveladores da maneira pela qual se consideram indignos de vida os sujeitos ditos inferiores. De maneira geral, Lauro e Embry sustentam que o zumbi está historicamente vinculado à expansão do capitalismo global, “é uma importação colonial que infiltrou o imaginário cultural norte-americano no início do século XX, durante a ocupação dos Estados Unidos no Haiti” (2008, p. 96). Daniel Cohen, em suas pesquisas sobre os ritos religiosos haitianos, aponta que se deve entender o zumbi, primeiramente, como um cadáver andarilho e sem alma, e que o mesmo “não é inerentemente mau, como um vampiro; é um mero servo” (apud LAURO; EMBRY, 2008, p. 97-8). Em Voodoo, Devils and the Invisible World (1972), Cohen explica que tanto o zumbi original como sua encarnação contemporânea derivam do vodu, religião em que a palavra “zombi” significaria não apenas “um corpo sem alma”, mas também “uma alma sem corpo” (apud LAURO; EMBRY, 2008, p. 97). Porém, se a questão das fronteiras nunca foi limitante para essa figura mitológica, Lauro e Embry sugerem que o zombie possui um corpo fluido que transgride suas próprias fronteiras através da mordida e da infecção de suas vítimas, enquanto o zumbi haitiano podia ser criado apenas por um não-zumbi (2008, p. 97). Na segunda metade dos anos 1960, o zumbi sofreria importante reformulação, pavimentando o caminho para uma nova vertente cultural e um novo subgênero dentro do cinema de horror. De acordo com Luciano Saracino, nesse período nasceu uma nova vertente 26 dentro do gênero, denominada gore, splatter ou splatterpunk, 8 e a imagem do zumbi começou a ser repensada (SARACINO, 2009, p. 39-40). Segundo Dendle, dois filmes contribuíram de forma significativa para a reconstrução do morto-vivo: A Epidemia dos Zumbis (Plague of the Zombies, dir. John Gilling, 1966) e A Noite dos Mortos-Vivos. O primeiro, romperia o tabu relacionado à exibição de cadáveres decompostos no cinema; o segundo, ao libertar os zumbis do controle místico, daria início a um mythos contemporâneo essencialmente corporal (DENDLE, 2001, p. 6), com monstros dotados de anseios físicos e biológicos: A inovação mais peculiar de A Noite dos Mortos-Vivos é a idéia de que os zombies só podem ser destruídos se alvejados na cabeça, ou de outra maneira que desative o núcleo do cérebro. Isso é compatível com o fisicalismo 9 [...]: embora anômala, a força vital que habita os corpos errantes está intrinsecamente conectada aos processos físicos cerebrais (DENDLE, 2001, p.6). O primeiro filme de Romero tornar-se-ia a produção “responsável por iniciar um subgênero inteiramente novo: o filme de zombies” (STINE, 2001, p. 16). O cineasta criou a figura contemporânea do zumbi — aqui também definido como zombie ou “modelo romeriano” — através do abandono de suas formas iniciais/religiosas de representação. Dessa maneira, A Noite... estabeleceu o “zumbi secular” ou “laico” em oposição ao modelo anterior, ligado a rituais religiosos. Essa transmutação se deu no momento considerado por Dendle (2001, p. 6) o período de estabilização do mythos contemporâneo do monstro. O “modelo romeriano” foi responsável para a “primeira onda” de filmes de zumbis, as mais de trinta produções que surgiram entre 1969 e 1977, em diversos países. Podemos mencionar A Virgin Among the Living Dead e a série Tombs of the Blind Dead, de Amando De Ossorio. Embora o entusiasmo inicial tenha começado a declinar entre 1975 e 1978, a 8 “Splatter film” – 1. Qualquer filme que contenha cenas de extrema violência com detalhes gráficos macabros, especialmente as produções que recaem na categoria mais ampla dos filmes de horror. 2. Todos os filmes produzidos desde 1963 que têm os efeitos especiais sangrentos como ponto central, à custa de pequenos recursos técnicos. STINE, Scott Aaron. The gorehound’s guide to splatter films of the 1960s and 1970s. Jefferson, NC: McFarland, 2001, p.2. 9 Fisicalismo é a tese de que tudo é físico ou, como argumenta a filosofia contemporânea, que tudo sobrevém ou decorre do físico. Fonte: Physicalism. Stanford encyclopedia of philosophy. Disponível em: http://plato.stanford.edu/ entries/physicalism/. Acesso em 18 jul. 2010 27 recessão terminou com o lançamento de Zumbi – O Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, 1979), o segundo filme de Romero sobre os morto-vivos (DENDLE, 2001, p. 7). Zumbi, cujo enredo trata do momento em que a epidemia perde o controle e a sociedade caminha rumo ao colapso, inaugura a “segunda onda”, com proporções ainda maiores. A partir desse ponto, a narrativa dos filmes de zombies foca especificamente no tema do apocalipse, associado ao contágio que se espalha com os mortos-vivos. Nesse momento, a Itália assume a posição de grande produtora do subgênero, com diversos filmes importantes, entre eles Zumbi 2 – A Volta dos Mortos (Zombi 2, dir. Lucio Fulci, 1979), Burial Ground (Le notti del terrore, dir. Andrea Bianchi, 1980), City of the Walking Dead (Incubo sulla città contaminata, dir. Umberto Lenzi, 1980), Pavor na Cidade dos Zumbis (Paura nella città dei morti viventi, dir. Lucio Fulci, 1980) e Virus (Night of the Zombies, dir. Bruno Mattei, 1981). * A partir de certo momento, segundo Dendle, os corpos redivivos passaram a ser “radicalmente distintos de qualquer concepção de mente ou alma” (2001, p. 4-5). Em consonância, Lauro e Embry sustentam que o zumbi articula ansiedades relacionadas à fragmentação do corpo e da mente/alma, embora consideremos que o corpo e o pensamento estão imbricados. Além disso, suas narrativas estariam comprometidas com o ardil de crises políticas e sociais ao longo da história. Nesse sentido, o zumbi não seria uma mera representação das preocupações sociais prementes do momento histórico no qual aparece — sejam essas preocupações concernentes à colonização, à escravidão ou à servidão capitalista. Antes disso, seria produto da estrutura desses eventos históricos, significando nas profundezas 28 uma crise tão antiga como a própria compreensão da mortalidade física. As autoras consideram, ainda, que o zumbi reconfigura a dinâmica do poder (2008, p. 101). Atualmente, de acordo com Lauro e Embry, cineastas e críticos têm percebido a ressonância do zombie com diversos aspectos do modo de produção vigente: o desempenho mecânico do operário das fábricas; a morte-cerebral; o servo da indústria, alimentado pela ideologia; os escravos do capitalismo, meramente iludidos a pensar que são livres; e a boca sempre voraz do Estado-nação. “O indivíduo, sob o jugo do capitalismo, é, com freqüência, caracterizado como um zumbi” (2008, p. 92). No entanto, não desconsideraremos a permanência de elementos do zumbi étnico no interior do “modelo romeriano”, uma vez que o processo perene de transmutação deste — per se uma revisão capitalista do zumbi afro- caribenho — parece ter se configurado a partir da ideologia imperialista. No capítulo final, analisaremos a transmutação do “modelo romeriano” de horror e a reconfiguração do morto-vivo nos anos finais do século XX e no início do XXI. Entrementes, pontuaremos os aspectos fundamentais da condição do zombie, considerando: o estatuto de impureza e a natureza epidêmica do horror; a perspectiva do mundo estranhado; o anti- sujeito, a ascensão ao espectro pós-humano através da morte e a crise da corporeidade; a releitura capitalista e a ideologia imperialista; a metáfora da sociedade de consumo — o zombie enquanto máquina consumidora não-consciente. Para tanto, traçaremos paralelos entre A Noite dos Mortos-Vivos e seu legado. 29 2. A Condição do Zombie 2.1. Natureza Epidêmica do Horror 2.1.1. Estranha Fascinação Como observou Schiller em Sobre a arte trágica (1792), “é um fenômeno geral na nossa natureza que aquilo que é triste, terrível, até horrendo nos atraia com irresistível fascínio; que nos sintamos repelidos e atraídos com a mesma força por cenas de dor e terror” e que devoremos com avidez histórias de espectros capazes de arrepiar os cabelos (apud ECO, 2007, p. 282). De acordo com Umberto Eco, nesse espírito nasceu o romance gótico, povoado de castelos e monastérios em ruínas, subterrâneos aterradores, crimes sangrentos, aparições diabólicas, fantasmas e corpos em decomposição. Se em Crítica da faculdade do juízo (1790) Kant sustenta que a feiura que provoca repulsa não pode ser representada sem que se destrua qualquer prazer estético (apud ECO, 2007, p. 282), com o romantismo esse limite foi superado. Doravante, a beleza deixou de ser a ideia dominante de estética, ou, nas palavras de Nietzsche, em O nascimento da tragédia (1872), o Sublime colocou-se como “sujeição estética do horrível” (apud ECO, 2007, p. 276). No interior da esfera de tudo o que é triste e horrendo, destacamos a atração que a doença exerce sobre a natureza humana. Segundo Nietzsche, também os “doentes e fracos têm a seu favor a fascinação” ([s.d.], p. 282), mas ao mesmo tempo “a doença carrega consigo a 30 feiura” (ECO, 2007, p. 302). Na primeira e mais completa Estética do feio (1853), Karl Rosenkrantz aborda essa questão: A doença é sempre causa de feio quando comporta a deformação de ossos, esqueleto e músculos, como a tumefação dos ossos na sífilis, nas devastações gangrenosas. E igualmente quando tinge a pele, como na icterícia, quando cobre a pele de exantemas, como na escarlatina, na peste, em certas formas de sífilis, na lepra, no herpes, no tracoma. As mais horrendas deformidades advêm, sem dúvida, da sífilis, pois ela não causa apenas erupções nauseabundas, mas também chagas putrescentes e devastações ósseas. Exantemas e abscessos são assimiláveis ao bicho-geográfico, que escava seus sinais sob a pele; são, em certa medida, indivíduos parasitários, cuja existência contradiz a natureza do organismo como unidade e na qual ele se desintegra [...] De uma maneira geral, a doença é causa de feio quando modifica de modo anormal a forma [...] (ROZENKRANTZ apud ECO, 2007, p. 256). De acordo com Peter Dendle (2001, p. 12), as sociedades exibem uma ansiedade aguda com relação à morte. O autor considera a ansiedade desencadeada pelas pragas historicamente multiforme — remontaria à bíblica repulsa pela lepra,10 aos sintomas hemorrágicos do ebola 11 e à recente perplexidade da mídia em relação ao estreptococo do grupo A, conhecido como a “doença comedora de carne”.12 No intuito de traçar um paralelo entre a ideia de feiura/fascinação e o “modelo romeriano”, conectando este ao imaginário acerca das enfermidades e do contágio, abordaremos dois exemplos distintos, sem perder de vista que “a doença é causa do feio quando modifica de modo anormal a forma” 10 A hanseníase, doença crônica infecciosa, geralmente afeta a pele e os nervos periféricos, mas possui uma vasta gama de possíveis manifestações clínicas. O mal de Hansen é associado a lesões cutâneas simétricas, nódulos, placas, espessamento da derme e acometimento frequente da mucosa nasal. O bacilo Mycobacterium leprae se multiplica de forma lenta, afetando principalmente a pele, os nervos e as membranas da mucosa. Apesar do modo de transmissão permanecer incerto, a maioria dos pesquisadores acredita que a disseminação ocorra através de gotículas respiratórias. Dados de acordo com: . Acesso em: 15 jan. 2012. 11 A febre hemorrágica ebola é uma doença infecciosa grave, frequentemente fatal, que atinge humanos e primatas (macacos, gorilas e chimpanzés) e tem se manifestado esporadicamente desde a sua identificação inicial em 1976. A doença é causada pela infecção com o vírus ebola, assim denominado em função de um rio da República Democrática do Congo (antigo Zaire), na África. Dados de acordo com: . Acesso em: 6 out. 2011. 12 A fasceíte necrotizante é uma infecção rara que resulta na necrose das camadas mais fundas da pele e dos tecidos subcutâneos no plano fascial. Tem-se observado que as taxas de mortalidade chegam a 73%. Os pacientes geralmente se queixam de dor excessiva e os sintomas cutâneos incluem vermelhidão difusa e edema, que progride para a necrose e bolhas hemorrágicas. Apesar do termo fasceíte necrotizante ser utilizado desde 1952, ao longo dos anos outras denominações têm sido usadas para se referir à doença, incluindo “síndrome da bactéria comedora de carne”, “fasceíte supurativa”, “gangrena hospitalar” e “erisipela necrotizante”. Dados de acordo com: http://www.medscape.com/viewarticle/444061. Acesso em: 6 out. 2011. 31 (ROZENKRANTZ apud ECO, 2007, p. 256). Primeiramente, observaremos o imaginário medieval a respeito dos “leprosos”, considerados objetos de horror pela doença que “desfigura-lhes os traços, quase dissolvendo sua aparência humana” (GINZBURG, 1991, p. 50), e sua permanência ainda na primeira metade do século XX. Em seguida, lançaremos um breve olhar sobre o medo contemporâneo incitado pela fasceíte necrotizante, a assustadora “doença comedora de carne”. Textos do século XIV relatam o extermínio dos “leprosos”, motivado pelo temor que a hanseníase despertava. Segundo uma crônica do mosteiro de Santa Catarina de Monte Rotomagi, “Em todo o reino da França, os leprosos foram aprisionados e condenados pelo papa; muitos foram mandados para a fogueira [...]. Alguns confessaram ter conspirado para matar todos os sãos [...] para ter o domínio sobre o mundo inteiro” (GINZBURG, 1991, p. 43). Carlo Ginzburg considera ainda mais abrangentes os escritos do inquisidor dominicano Bernardo Gui, segundo o qual os “doentes no corpo e na alma” haviam espalhado pó envenenado nas fontes, nos poços e nos rios, para transmitir a lepra aos sãos e fazê-los adoecer ou morrer. “Parece incrível, diz Gui, mas aspiravam ao domínio das cidades e dos campos” (1991, p. 43). Essa ameaça teria conduzido à política de marginalização dos hansenianos. Pela primeira vez na história da Europa, estabelecia-se um programa de reclusão tão maciço. Nos séculos seguintes, aos leprosos se seguiriam outras personagens: loucos, pobres, criminosos, judeus. Mas os leprosos abriram o caminho. Até então, apesar do medo de contágio, que inspirava complexos rituais de separação [...], os leprosos viviam em instituições de tipo hospitalar, quase sempre administradas por religiosos, bastante abertas para o exterior, nas quais se entrava voluntariamente. Na França, a partir daquele momento, passaram a ser segregados em caráter perpétuo em lugares fechados (GINZBURG, 1991, p. 45). Naquele período, explica Ginzburg, os cagots ou “leprosos brancos”, que no senso comum medieval distinguiam-se dos sãos apenas pela falta dos lobos das orelhas e pelo hálito fedorento, deviam usar roupas especiais e sinais de reconhecimento. O estigma costurado nas 32 roupas evidenciava o profundo estranhamento físico com relação àqueles considerados difusores do contágio. Entretanto, como destaca o autor, a repulsa que inspiravam e que os mantinha à distância, com tendência à marginalização, tratava-se de uma atitude complexa e contraditória. “Sua condição era ambígua, limítrofe. Os leprosos são objetos de horror porque a doença, entendida como símbolo carnal do pecado, desfigura-lhes os traços, quase dissolvendo sua aparência humana” (GINZBURG, 1991, p. 50). A representação do “leproso” enquanto objeto de horror tem sido constante ao longo do processo histórico. Na edição de 16 de março de 1946 da revista portuguesa O Século Ilustrado, por exemplo, encontramos a matéria intitulada “40.000 leprosos vivem isolados do mundo: uma cidade modelo de mortos-vivos, no Brasil”.13 De acordo com a notícia: Curupaiti, nova cidade da felicidade filosófica, lembra de perto Shangri-La, o lendário e maravilhoso país do filme “Horizontes perdidos”. No entanto, Curupaiti é a cidade dos leprosos, a urbe dos mortos-vivos. Fica a poucos quilômetros do Rio de Janeiro e é uma das maravilhas do mundo porque os doentes condenados a uma morte lenta ali criaram o seu paraíso. O governador, o prior, a mestra-escola, os médicos, os engenheiros, os diretores de cinema, os presidentes dos clubes desportivos, os jardineiros e os carcereiros duma prisão sem presos — todos são leprosos. Outro caso que merece nota também ocorreu no Brasil, e foi narrado pela edição n.39 do jornal O Campanhense, de 17 de novembro de 1929. “Ainda sobre o problema da lepra”14 sustenta que “Ha ainda entre leprosos — as mais das vezes entre os que se apresentam em peor estado, horrendamente deformados — a velha e estupida lenda de que, para se curarem, devem transmittir a molestia a sete pessoas”.15 A notícia narra, então, um “fato horripilante”: durante os festejos do jubileu de Congonhas, em Minas Gerais, um romeiro, acompanhado de sua filha pequena, resolveu distribuir determinada quantia entre os “lázaros”. Porém, antes de terminar a doação, um “morfético” de aparência jovem raptou a criança e saiu correndo em 13 Ver Anexo A e Anexo B, p. 176-7. 14 Ver Anexo C, p. 178. 15 O fragmento citado foi transcrito tal qual aparece na matéria “Sobre o problema da lepra”, datada de 17 de novembro de 1929, de acordo do as normas ortográficas vigentes na época de sua publicação. 33 meio à multidão. Com o auxílio da polícia, o pai saiu no encalço da “repelente criatura”, que somente foi encontrada horas depois. Na ânsia de se ver curado, o “maldito” procurava “contaminar a infeliz menina, cujo corpo, pelas mordeduras do monstro, era uma chaga viva”. Então, “A policia narrou [...] a antiga historia das sete victimas que cada um deles deve fazer para alcançar a cura. Aquella menina era a sua terceira victima”. Em suma, “Não são raros os exemplos de morpheticos que atacam e mordem pessoas sãs, de preferência as creanças, que, inermes, não lhes podem oppôr resistencia á agressão assassina”.16 “O ato de comer carne humana enquanto rito social tem sido notado em todas as partes do mundo, exceto na Europa continental”, explica Jay Slater (2006, p. 12). Nas notícias supracitadas, identificamos similitudes entre o imaginário acerca da lepra e o “modelo romeriano” de horror, considerando as definições pejorativas concedidas aos hansenianos (“mortos-vivos”, “malditos”, “monstros”) e o modo pelo qual, em certos casos, tentavam transmitir a sua doença aos sãos. Em suma, observamos arquétipos relacionados ao contágio e à impureza. Segundo Mary Douglas, a reflexão sobre esta última é fruto do cuidado com a higiene e do respeito pelas convenções que nos são próprias. Refere-se à relação entre a ordem e a desordem, o ser e o não-ser, a forma e a ausência dela, a vida e a morte. A impureza seria essencialmente a desordem, e esta, “ao mesmo tempo, símbolo de perigo e poder” (1991, p. 114). Para a autora, concebemos a impureza como uma espécie de compêndio de elementos repelidos pelos nossos sistemas ordenados, ou seja, o impuro é o que não está no seu devido lugar. Portanto, “devemos abordá-lo pelo prisma da ordem. O impuro, o poluente, é aquilo que não pode ser incluído se quiser manter esta ou aquela ordem” (1991, p. 55). Prosseguindo com a argumentação, Douglas sugere que quanto mais examinamos as regras e as condutas rituais de diversos povos, mais evidente se torna a concepção de que estamos nos confrontando com sistemas do domínio simbólico. “A impureza nunca é um 16 O fragmento citado foi transcrito tal qual aparece na matéria “Sobre o problema da lepra”, datada de 17 de novembro de 1929, de acordo do as normas ortográficas vigentes na época de sua publicação.. 34 fenômeno único, isolado. Onde houver impureza, há sistema. Ela é o subproduto de uma organização e de uma classificação da matéria, na medida em que ordenar pressupõe repelir os elementos não apropriados” (1991, p. 50). [...] As nossas ideias sobre impureza estão dominadas pelo nosso conhecimento dos organismos patogênicos. No século XIX descobriu-se que as bactérias transmitem doenças. Esta grande descoberta esteve na origem da evolução mais radical da medicina. Transformou de tal maneira a nossa existência que hoje nos é difícil pensar na impureza sem evocar de imediato o seu caráter patogênico (DOUGLAS, 1991, p. 50). Uma gama de monstros da literatura representa arquétipos relacionados ao contágio, ou seja, construções simbólicas e metafóricas que os conectam a determinadas doenças e epidemias que assolam a humanidade desde os tempos mais remotos da história. Sabe-se, por exemplo, que outrora a anemia foi associada ao vampirismo. “É de certa forma interessante observar que Drácula [1897] foi escrito no momento em que a moderna medicina estava emergindo, e Bram Stoker misturou as crenças tradicionais sobre o sangue com a nova medicina” (MELTON, 1995, p. 691). A ideia de fazer uma transfusão para rebater o vampiro introduziu uma nova inquietação no crescente mito do vampiro no século XX, especialmente porque os elementos sobrenaturais do mito estavam sendo descartados. Se o vampirismo não era um estado sobrenatural e se, ao contrário, era causado afinal por uma falha teológica ou moral dos vampiros originais, então era possível que a sede de sangue fosse um sintoma de doença causada por um germe ou por uma perturbação química do sangue, ambos possíveis de serem transmitidos pela mordida do vampiro. [...] No decorrer do século XX, e à medida que os conhecimentos dos detalhes relativos à função e composição do sangue humano foram explorados pelos pesquisadores e especialistas, os romancistas e roteiristas cogitaram que o vampirismo era uma doença (MELTON, 1995, p. 691-2). Segundo a lenda citada em “Ainda sobre o problema da lepra”, os hansenianos buscavam transmitir a sua doença através da mordida. Entre os brâmanes havik, aponta Douglas, “o ato de comer pode transmitir impureza, mas é a maneira de comer que determina a sua intensidade. A saliva polui [...] ao mais alto grau [...]” (1991, p. 48). Além desta, todas 35 as secreções corporais seriam fonte de impureza, explica a autora, incluindo o sangue ou o pus de uma ferida. Em analogia, talvez nenhum local seja mais emblemático da fome insaciável e da permeabilidade onipresente do que a boca do zombie. “Por isso é sempre pela boca que o zombie se alimenta, e é neste local que a fronteira física entre zombie e não-zombie se oblitera, através da mordida” (LAURO; EMBRY, 2008, p. 99). De acordo com Luiz Nazário (1998), um dos motivos para os mortos retornarem ao convívio social, no universo imaginário, seria a necessidade de arrebanhar, através do contágio, novos companheiros de tumba. Dessa maneira, o vampiro multiplica sua espécie através da contaminação do sangue; os lobisomens e zombies, por meio da mordida e da “devoração” do corpo. Em todos esses casos, no entanto, parece insinuada a impureza de uma secreção corporal em particular, a saliva, por meio da qual determinada magia ou contágio se opera. O autor prossegue: Quando se processa num corpo humano, a transformação implica na perda de identidade e/ou caráter, na degradação física e/ou moral [...] Em casos assim, a vítima escapa das leis naturais da condição humana para ver-se submetida a leis estranhas, ditadas com sinistra regularidade por uma lógica sobrenatural [...] As transformações são o efeito de um pacto com o demônio, de possessão, contágio, magia negra, experiência científica ou maldição [...] [que] abate-se sobre um indivíduo que, depois, transmite seu mal por contágio (NAZÁRIO, 1998, p. 40). Segundo Andrew Delbanco (apud GRUNENBERG, 1997, p. 202), “conforme perdemos contato com a ideia de Mal, parecemos necessitar de mais e mais representações desse conceito — como se o mesmo fosse uma droga cujo potencial diminui com o uso”. Tendo em mente as implicações fisiológicas e sociais das doenças de difícil erradicação, observemos o questionamento de Eco a respeito da possibilidade de o “recurso ao feio” ser um meio de denunciar a presença do Mal: “E se cyborg, splatter e mortos-vivos fossem manifestações de superfície, enfatizadas pelos mass media, através das quais exorcizamos uma feiura bem mais profunda que nos assola, nos aterra e que gostaríamos de ignorar?” (ECO, 2007, p. 431). O autor continua: 36 Na vida cotidiana somos cercados por espetáculos horríveis. Vemos imagens de populações onde as crianças morrem de fome, reduzidas a esqueletos de barriga inchada, de países onde as mulheres são estupradas por invasores, de outros onde corpos humanos são torturados, assim como ressurgem continuamente sob nossos olhos as visões não muito remotas de outros esqueletos vivos à espera de entrar em uma câmara de gás. Vemos membros dilacerados pela explosão de um arranha-céu ou de um avião em voo e vivemos no terror de que isso possa acontecer conosco. Tais coisas são feias, não apenas no sentido moral, mas em sentido físico, isso porque suscitam nojo, susto, repulsa – independentemente do fato de que possam inspirar piedade, desdém, instinto de rebelião, solidariedade, mesmo quando aceitas com o fatalismo de quem acredita que a vida nada mais é que uma história contada por idiotas, cheia de som e fúria e vazia de significado. Nenhuma consciência da relatividade dos valores estéticos elimina o fato de que, nestes casos, reconhecemos sem hesitação o feio e não conseguimos transformá-lo em objeto de prazer. Compreendemos então por que a arte dos vários séculos tem voltado com tanta insistência a representar o feio. Por mais marginal que seja, sua voz tenta recordar que há neste mundo algo de irredutível e maligno (ECO, 2007, p. 436). Nos dias de hoje, explica Barry Glassner, a extensão dos medos humanos em relação à saúde parece ilimitado, pois além de nos preocuparmos com enfermidades autênticas, de forma desproporcional, e com pseudo-doenças, de forma prematura, continuamos nos afligindo com perigos já refutados. “A questão é que no mundo ocidental nascemos e crescemos numa cultura de medo” (2003, p. 11). O autor demonstra que algumas pessoas ainda parecem se preocupar com a “bactéria comedora de carne”, doença que veio à tona em 1994 quando a imprensa americana reproduziu a manchete histérica de um tabloide britânico: “micróbio assassino comeu meu rosto”. Dizia-se que a bactéria, descrita como a coisa mais cruel jamais vista nos tempos modernos, estava se alastrando rapidamente. “[...] No entanto, não estávamos ‘tremendamente vulneráveis’ a esses supermicróbios’, nem se tratavam ‘do pior pesadelo da medicina’, como alertavam as vozes da mídia”. Porém, mesmo após o alarmismo ter sido refutado por especialistas, 17 o medo persistiu. Anos após a onda inicial de pânico, reportagens horripilantes continuavam a aparecer com fotos grotescas das vítimas (GLASSNER, 2003, p. 21). 17 O estreptobacilo do grupo A, uma variedade cíclica que existe há eras, ficou adormecido por meio século ou mais antes de ressurgir. Especialistas médicos refutaram veementemente o alarmismo, observando que das 20 ou 30 milhões de infecções por bactérias que ocorrem todos os anos nos Estados Unidos, menos de uma em mil envolvem complicações sérias dessa pseudo-epidemia, e apenas de 500 a 1500 pessoas sofrem da síndrome da bactéria comedora de carne, cujo nome correto é fasceíte necrotizante. Glassner, Barry. Cultura do medo. São Paulo: Francis, 2003. 37 2.1.2. Cidade dos Mortos Admitindo o caráter essencialmente corporal do zombie cinematográfico e sua conexão com diversas doenças, entre elas a peste bubônica, o câncer, a AIDS e até mesmo a acne (DENDLE, 2001, p. 12), além da lepra e da fasceíte necrotizante, observaremos o conceito da tecnologia de poder surgida na segunda metade do século XVIII, denominada “biopolítica”. De acordo com a definição foucaultiana, Essa biopolítica não está preocupada apenas com a fertilidade. Também lida com o problema da morbidez, mas não simplesmente [...] no nível das famosas epidemias, as ameaças que têm assombrado os poderes políticos desde a Idade Média (essas famosas epidemias foram desastres temporários causadores de múltiplas mortes, em tempos nos quais todos pareciam estar sob o risco de morte iminente). No final do século XVIII, a questão não eram as epidemias, mas algo mais – o que poderia ser amplamente chamado de endemia, ou, em outras palavras, a forma, a natureza, a extensão, a duração e a intensidade da doença prevalente em uma população. Essas eram moléstias difíceis de serem erradicadas, consideradas não como epidemias causadoras de mortes frequentes, mas como fatores permanentes que [...] minavam o vigor da população, encurtando a semana de trabalho, despediam energia e custavam dinheiro, porque levavam a uma queda na produção e era caro tratá-las (FOUCAULT, 1997, p. 244). Lauro e Embry (2008, p. 100) compreendem a representação do zombie enquanto uma ilustração do esforço da humanidade em transferir para outrem a sua carga (nesse sentido, o medo de doenças cada vez mais divulgadas). Assim, além de simbolizar toda sorte de infecções virais recorrentes, de ampla propagação e difícil erradicação, o zombie surge como representação do indissociável medo da morte. Entretanto, ultimamente a própria morte parece ser a doença, não a lepra ou a AIDS. “A morte é uma vírgula no meio de uma existência conturbada, [...] ao invés de um ponto final [...]” (DENDLE, 2001, p. 12). No filme Fonte da Vida (The Fountain, dir. Darren Aronofsky, 2006), o personagem Tom Creo (Hugh Jackman) afirma: “A morte é uma doença. Como qualquer outra. E existe uma cura [...]”. Para Foucault, 38 “a morte deixou de ser algo que se abateu repentinamente sobre a vida — como em uma epidemia. A morte passou a ser, agora, algo permanente, algo que adentrou na vida e que perpetuamente a corrói, diminui e enfraquece” (FOUCAULT, 1997, p. 244). A imagem da morte e sua onipresença são constantes no legado romeriano. Veremos ao longo deste estudo que A Noite dos Mortos-Vivos introduziu uma série de elementos que se tornariam cânones do subgênero dos zombies: a epidemia mortal e inexplicável, o medo da morte, a desestruturação da sociedade, o poder político desarticulado, o esfacelamento dos valores tradicionais da classe média, a desintegração da instituição burguesa da família nuclear, o universo de desconfiança, o silêncio opressivo, a ineficácia dos meios de comunicação, as casas abandonadas, os ambientes urbanos desertos e silenciosos, entre outros. Percebemos que esses aspectos também são característicos das sociedades que viveram o tempo da peste, entre os séculos XIV e XVII. Observaremos a seguir alguns trechos do capítulo de História do medo no Ocidente dedicado à doença, grifando os elementos que aproximam o “modelo romeriano” de horror ao imaginário da peste. Os escritos do religioso português F. de Santa-Maria, datados de fins do século XVII, representam um bom testemunho das imensas perturbações que a peste provocava nos comportamentos cotidianos: A peste é sem nenhuma dúvida, entre todas as calamidades desta vida, a mais cruel e verdadeiramente a mais atroz. É com grande razão que é chamada por antonomásia de o Mal. Pois não há sobre a terra nenhum mal que seja comparável e semelhante à peste. Desde que se acende num reino ou numa república esse fogo violento e impetuoso, vêem-se os magistrados atordoados, as populações apavoradas, o governo político desarticulado. A justiça não é mais obedecida; os ofícios param; as famílias perdem sua coerência e as ruas, sua animação. Tudo fica reduzido a uma extrema confusão. Tudo é ruína. Pois tudo é atingido e revirado pelo peso e pela grandeza de uma calamidade tão horrível. As pessoas, sem distinção de estado ou de fortuna, afogam-se numa tristeza mortal. Sofrendo, umas da doença, as outras do medo, são confrontadas a cada passo ou com a morte, ou com o perigo. Aqueles que ontem enterravam, hoje são enterrados e, por vezes, por cima dos mortos que na véspera haviam posto na terra. Os homens temem até o ar que respiram. Têm medo dos defuntos, dos vivos e de si mesmos, pois que a morte muitas vezes envolve-se nas roupas com que se cobrem e que à maioria servem de mortalha, em razão da rapidez do desfecho [...]. As ruas, as praças, as igrejas cobertas de cadáveres apresentam aos olhos um espetáculo pungente, 39 cuja visão torna os vivos invejosos da sorte daqueles que já estão mortos. Os locais habitados parecem transformados em desertos e, por si só, essa solidão inusitada aumenta o medo e o desespero. Recusa-se qualquer piedade aos amigos, já que toda piedade é perigosa. Estando todos na mesma situação, mal se tem compaixão uns dos outros. Estando sufocadas ou esquecidas, em meio aos horrores de tão grande confusão, todas as leis do amor e da natureza, as crianças são subitamente separadas dos pais, as mulheres dos maridos, os irmãos ou os amigos uns dos outros — ausência desoladora de pessoas que são deixadas vivas e que não se voltará a ver (SANTA-MARIA apud DELUMEAU, 2002, p. 121-2). Certamente importante dentro da iconografia do “modelo romeriano” é a imagem da cidade sitiada pela doença. No contexto da peste, Jean Delumeau aponta que a cidade é “posta em quarentena, se necessário cercada pela tropa, confrontada com a angústia cotidiana e obrigada a um estilo de existência em ruptura com aquele a que se habituara”. Dentro desse ambiente, os quadros familiares são abolidos e a insegurança nasce não apenas da presença da doença, mas também de uma desestruturação dos elementos que construíam o meio cotidiano. “Tudo é outro. Antes de mais nada, a cidade está anormalmente deserta e silenciosa. Muitas casas estão doravante desabitadas” (DELUMEAU, 2002, p. 120). Podemos observar a presença dessa imagem em pelo menos três filmes de Romero: Zombie – O Despertar dos Mortos (1978), Dia dos Mortos (Day of the Dead, 1985) e Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005); e também em obras importantes que constituem o seu legado, como Extermínio (28 Days Later, dir. Danny Boyle, 2002), a série em quadrinhos Os Mortos-Vivos (2003-) e os games Resident Evil 2 (1998) e Resident Evil 3: Nemesis (1999). Cortados do resto do mundo, os habitantes afastam-se uns dos outros no próprio interior da cidade maldita, temendo contaminar-se mutuamente. Evita-se abrir as janelas da casa e descer à rua. As pessoas esforçam-se em resistir, fechadas em casa, com as reservas que se pode acumular. [...] muitos são bloqueados em sua casa declarada suspeita e doravante vigiada por um guarda, ou até trancada com pregos ou cadeado. Assim, na cidade sitiada pela peste, a presença dos outros já não é um reconforto. A agitação familiar na rua, os ruídos cotidianos que ritmavam os trabalhos e os dias, o encontro do vizinho na soleira da porta: tudo isso desapareceu. D. Defoe constata com estupor essa ‘falta de comunicação entre os homens’ que caracteriza o tempo da peste [...] (DELUMEAU, 2002, p. 122). 40 A Noite... parece reunir todos os principais elementos desse imaginário acerca da peste. Veremos no próximo capítulo, em nossa análise do primeiro filme de Romero, que os personagens humanos tentam resistir ao ataque dos mortos-vivos trancando-se numa casa de fazenda abandonada, selando as portas e janelas com tábuas de madeira. Sabem que não podem contar com os meios de comunicação nem com os seus governantes. O próprio cineasta declarou que o seu filme trata, especificamente, da falta de comunicação entre as pessoas (HERVEY, 2008, p. 75). A tensão entre os personagens Ben (Duane Jones) e Harry Cooper (Karl Hardman) também é representativa do universo de desconfiança presente numa crônica italiana da peste de 1630, recopiada por Manzoni: [...] Enquanto as pilhas de cadáveres, amontoados sempre sob os olhos, [...] faziam da cidade inteira uma vasta sepultura, havia algo de mais funesto, de mais hediondo ainda: era a desconfiança recíproca, a monstruosidade das suspeitas [...]. Não se suspeitava apenas do vizinho, do amigo, do hóspede: esses doces nomes, esses ternos laços de esposo, de pai, de filho, de irmão eram objetos de terror; e, coisa indigna e horrível de dizer, a mesa doméstica, o leito nupcial eram temidos como armadilhas, como locais onde se escondia o veneno (DELUMEAU, 2002, p. 123). 2.2. Perspectiva do Mundo Estranhado A causa do despertar dos mortos não é explicada, em A Noite..., é apenas sugerida sob a forma da suposta “radiação misteriosa” de uma sonda espacial que retornou de Vênus. De acordo com Todorov (2007, p. 47), o gênero do fantástico ocorre nesta incerteza e dura apenas o tempo de uma hesitação, esta comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da “realidade”. Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos [...], produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar 41 por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós [...] (TODOROV, 2007, p. 30). No caso do nosso objeto de estudo, a hesitação se dá em relação ao espectador e aos personagens do filme, dentre os quais destacamos os protagonistas Barbra (Judith O’Dea) e Ben (Duane Jones). Sabemos que o retorno à vida de cadáveres não enterrados não pode ser explicado pelas leis da natureza tais como são conhecidas. Então, a obra de Romero parece adentrar no campo do fantástico-maravilhoso, [...] classe das narrativas que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do sobrenatural. Estas são as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de permanecer sem explicação, não racionalizado, sugere-nos realmente a existência do sobrenatural (TODOROV, 2007, p. 58). A despeito dessa aproximação com o gênero do fantástico-maravilhoso, Todorov (2007, p. 26) observa que “uma obra pode [...] manifestar mais de uma categoria, mais de um gênero”. Contudo, levando em conta a indeterminação de A Noite..., aspecto presente em toda a obra de Romero, faz-se necessário observar o teor grotesco de seu primeiro filme, no domínio de sua recepção — partindo da perspectiva do mundo estranhado. O fato de o “grotesco” apontar para os três domínios, o processo criativo, a obra e a sua recepção, é significativo e corresponde às coisas, indicando que o conceito encerra o instrumento necessário a uma noção estética fundamental. Pois este aspecto tríplice é próprio, em geral, de toda a obra de arte que é criada, palavra a ser aqui entendida em oposição expressa a outras espécies de produção. Esta obra possui uma estrutura de caráter especial, que a capacita a perdurar em si mesma, por mais que nela haja influído aquilo que lhe deu azo, pois ela dispõe da força para elevar-se acima da “ocasião”. Finalmente, porém, a obra de arte é “recebida” – empregamos aqui o termo tendo também em vista outros que designam modalidades diferentes de uso do idioma; só no ato da recepção é possível experimentá-la, por modificante que seja o ato (KAYSER, 1986, p. 156). De acordo com Wolfgang Kayser, “o grotesco é o mundo alheado”, ou seja, o mundo tornado estranho. Mas isto exige uma explicação. O mundo dos contos de fadas, quando visto 42 de fora, poderia ser caracterizado como estranho e exótico. Mas não é um mundo alheado. Para pertencer a ele, é preciso que aquilo que nos era conhecido e familiar se revele, de repente, estranho e sinistro. Pois foi o nosso mundo que se transformou (1986, p. 159). O repentino e a surpresa são partes essenciais do grotesco. [...] O horror nos assalta, e com tanta força, porque é precisamente o nosso mundo cuja segurança se nos mostra como aparência. Concomitantemente, sentimos que não nos seria possível viver neste mundo transformado. No caso do grotesco não se trata de medo da morte, porém de angústia de viver. Faz parte da estrutura do grotesco que as categorias de nossa orientação no mundo falhem. Desde a arte ornamental renascentista, observamos processos de dissolução persistentes, como a mistura de domínios para nós separados, a abolição da estética, a perda da identidade, a distorção das proporções naturais e “assim” por diante. Deparamo-nos agora com novas dissoluções: a suspensão da categoria de coisa, a destruição do conceito de personalidade, o aniquilamento da ordem histórica (KAYSER, 1986, p. 159). “Mas quem efetua o estranhamento no mundo, quem se anuncia no plano de fundo ameaçador?”, indaga-se Kayser. Para o autor, é a partir dessa questão que alcançamos a profundeza última do horror ante o mundo transmutado, pois as perguntas ficam sem resposta. Isso se dá justamente porque “as plasmações do grotesco constituem a contradição mais ruidosa e evidente a todo racionalismo e a qualquer sistemática do pensar” (1986, p. 161). Do “abismo” surgem os animais do apocalipse, demônios irrompem na vida cotidiana. Tão logo pudéssemos nomear os poderes e assinalar-lhes um lugar na ordem cósmica, o grotesco perderia algo de sua essência [...]. O que irrompe permanece inconcebível, impessoal (KAYSER, 1986, p. 159). Kayser sustenta que “o elemento mecânico se faz estranho ao ganhar vida; o elemento humano, ao perder a vida. São motivos duradouros os corpos enrijecidos em bonecas, autômatos, marionetes, e os rostos coagulados em larvas e máscaras” (1986, p. 158). Aplicamos essa definição ao “modelo romeriano” de morto-vivo, que existiria dentro de um mundo estranhado em função da indeterminação de sua gênese. O mundo estranhado não nos permite uma orientação, aparece como um absurdo. Vemos a diferença em relação ao trágico, pois também o trágico agasalha 43 inicialmente o absurdo. Depreendemo-lo das células germinais trágicas da tragédia grega: É absurdo, quando uma mãe mata os filhos, quando um filho mata a sua mãe, quando um pai mata um filho, quando a carne dos filhos serve de comida para alguém [...]. Mas de início se tratam de “ações” isoladas. Além do mais, são ações que parecem ameaçar de destruição os princípios da ordem moral de nosso mundo. No caso do grotesco não se trata de ações que, como tais, estejam isoladas, nem da destruição da ordem moral do universo (esta pode constituir um elemento parcial): primordialmente a questão é do fracasso da própria orientação física do mundo (KAYSER, 1986, p. 159). Kayser fala da destruição da ordem moral, do absurdo que seria um filho matar a sua mãe. O matricídio, em A Noite..., parece funcionar como um registro da morte da família nuclear. Hervey (2008, p. 102) resume uma das cenas finais do filme. Aos 84 minutos, Romero corta para o porão de forma contundente: Harry (Karl Hardman) está morto e lhe falta um braço. Karen (Kyra Schon) ajoelha-se sobre ele com sangue na boca, devorando a carne de seu pai. Helen (Marilyn Eastman) adentra no nauseante momento íntimo, reagrupando a família nuclear, e Karen cambaleia em sua direção. Helen ainda não se deu conta da morte do marido e da transformação da filha. Quando tropeça, permanece no chão e mal tenta escapar. Karen escolhe uma espátula afiada e se aproxima. Então, da perspectiva de Helen, a menina eleva-se como um pai quando castiga o filho. Não vemos a espátula perfurar Helen — é mais do que o suficiente ver os jorros de sangue e ouvir a carne se rasgando. 2.3. Anti-Sujeito | Crise da Corporeidade Um ponto fundamental do “Manifesto Zumbi” é a suposta existência, defendida por Lauro e Embry, de uma tensão implacável entre o capitalismo global e a escola teórica do pós-humanismo (2008, p. 86-7). Partindo dessa asserção, as autoras buscam desenvolver um modelo de zumbi ainda inexistente, um ser desprovido de consciência, um organismo-enxame que consistiria numa experimentação mental que expõe os limites da teoria pós-humana ao 44 demonstrar que a pós-humanidade só pode ser alcançada através da morte do sujeito. O inconciliável corpo do zombie (tanto vivo quanto morto) provocaria a “insuficiência do modelo dialético (sujeito/objeto), sugerindo com sua própria dialética negativa, que a única maneira de atingir verdadeiramente a pós-humanidade é tornar-se anti-sujeito” (2008, p. 87). O zombie fala à ansiedade humana sobre o seu isolamento dentro do corpo individual, e nossa mortalidade é satirizada pela grotesca provocação do zombie para com a existência humana, colocando em questão o que é mais terrível: a separação definitiva de nossos companheiros humanos, ou a fantasia distópica de um organismo-enxame. O que podemos perceber ao examinar a trajetória histórica da evolução zumbi é que os nossos medos, os impulsos mediados que traduzem a nossa maquiagem psicológica, são narrativas informadas pelas condições materiais da sociedade (LAURO; EMBRY, 2008, p. 101). Lauro e Embry propõem uma leitura do zombie que muito tem a revelar sobre a crise da corporeidade humana, a forma como o poder funciona, e a história da opressão e da subjugação para com os “Outros”. Esses pontos serão esmiuçados nos próximos tópicos deste capítulo. Partindo dessa análise, as autoras observam o zombie desde as suas origens haitianas até suas mais recentes representações na cultura popular, e designam a distinção tipográfica que adotamos neste trabalho. Falamos da transmutação do zumbi para o zombie. Ou seja, da transição de um escravo sonâmbulo, despertado individualmente dos mortos, para uma figuração “maligna, contagiosa e plural” (2008, p. 88). Considerando as múltiplas valências em jogo, parece mais coerente designar a distinção tipograficamente: há o zumbi haitiano, um corpo que se ergue da morte para trabalhar nas plantações, profundamente associado àqueles que desempenharam um papel na Revolução haitiana [...]; e há o zombie, a importação americana do monstro, que em sua encarnação cinemática se transformou em um “bicho-papão”, conveniente no que se refere à representação de várias preocupações sociais (LAURO; EMBRY, 2008, p. 87). Em relação à “crise da corporeidade”, Lauro e Embry apontam que o espectro decadente e claudicante do zombie afirma a incapacidade inerente ao corpo, a mortalidade. 45 “Nesse sentido, de alguma forma nós já somos todos zombies [...], pois eles representam o fim ao qual cada um de nós se destina” (2008, p. 90). O corpo humano, mais diretamente que o do animal, é matéria de simbolismo. É o modelo por excelência de todo o sistema finito. Os seus limites podem representar as fronteiras ameaçadas ou precárias [...]. O corpo é um símbolo da sociedade, e [...] o corpo humano reproduz, a uma pequena escala, os poderes e os perigos atribuídos à estrutura social (DOUGLAS, 1991, p. 138). Em suas origens e encarnações folclóricas, nos lembram Lauro e Embry, “o zumbi é literalmente um escravo, erguido pelos sacerdotes vodu para trabalhar nos campos. Mas a metáfora do zumbi também revela o aprisionamento do ser humano ao próprio corpo, finito e frágil”. Como escreveu Platão, “o corpo é a tumba da alma” (apud LAURO; EMBRY, 2008, p. 90). As autoras continuam a argumentação. Assim como o próprio corpo do escravo torna- se a sua prisão, o zumbi ilustraria uma forma de aprisionamento inerente a toda a humanidade. Revelaria, portanto, aquilo que somos: seres irrevogavelmente confinados em nossos corpos e já consortes do túmulo; também nos lembra da nossa impossibilidade, enquanto seres humanos, criaturas vivas e conscientes, de sobreviver à morte do corpo. Para Lauro e Embry, a metáfora do zumbi não representa apenas o escravo, mas também a rebelião dos escravos. Enquanto o humano está encarcerado num corpo mortal, o zombie oferece uma imagem grotesca que resiste ao confinamento, pela reanimação do corpo após a morte. Ao mesmo tempo em que enfatiza a corporeidade humana, também desafia os próprios limites que estabelece. O que sustenta essa dualidade simbólica, entretanto, é o fato de o zombie, nem mortal nem consciente, ser uma figura de fronteira (2008, p. 90). A ameaça que representa às estáveis posições do sujeito e do objeto, através da ocupação simultânea de um corpo que é ao mesmo tempo vivo e morto, cria um dilema para as relações de poder e um risco de destruir as dinâmicas sociais que permanecem [...] largamente incontestes na superestrutura econômica atual (LAURO e EMBRY, 2008, p. 90). 46 Ainda de acordo com as autoras, o zombie (vivo/morto, sujeito/objeto) “apresenta um espectro pós-humano informado pela dialética (negativa) das relações de poder, ao invés das relações de gênero” (2008, p. 91). A partir dessa dualidade, entendemos o zombie também como uma anomalia — “um elemento que não se insere numa dada série ou num dado conjunto” (DOUGLAS, 1991, p. 52). Considerando ainda a significância cultural do morto- vivo no contexto da industrialização e do colonialismo, Lauro e Embry destacam, ainda, os vários discursos com os quais o zombie pode dialogar: o discurso marxista e pós-colonial, a psicanálise e a história e, de maneira mais promissora, a filosofia e a teoria pós-humanista. O zombie seria um antagonismo mantido irrevogavelmente em tensão. Interessa-nos ler o zombie enquanto “negação determinada” do indivíduo na era pós-industrial, pós-holocausto, para a qual [...] não seria meramente a negação do sujeito: apropria- se do “sujeito” e do “não-sujeito”, tornando esses termos obsoletos por ser inerente a ambos. A falta de consciência do zombie não faz dele puro objeto, mas oferece a possibilidade de uma negação do sujeito/objeto. Nesse sentido, não seria um híbrido, como o ciborgue, nem a multiplicidade, como no esquizofrênico de Gilles Deleuze e Félix Guattari; ao contrário, o zombie é um paradoxo que rompe com todo o sistema (LAURO e EMBRY, 2008, p. 95). 2.4. Ideologia Imperialista Aquilo que aparentemente se considera “disciplinas culturais imparciais e apolíticas”, na verdade muitas vezes consiste em histórias “bastante sórdidas da ideologia imperialista e da prática colonialista”, adverte Edward Said em Culture and Imperialism (1993) (apud LAURO; EMBRY, 2008, p. 96). Sabe-se que a ideologia imperialista é filha de uma série de operações intelectuais do discurso eurocêntrico. Para Shohat e Stam, o eurocentrismo surgiu, inicialmente, como discurso de justificação do colonialismo, quando as potências européias atingiam posições hegemônicas em grande parte do mundo (2006, p. 21). 47 Como base ideológica comum ao colonialismo, ao imperialismo e ao discurso racista, o eurocentrismo é uma forma de pensar que permeia e estrutura práticas e representações contemporâneas mesmo após o término oficial do colonialismo (SHOHAT e STAM, 2006, p. 21). Gerry Canavan sustenta que a narrativa dos zombies deve ser entendida como algo que opera, precisamente, sob o olhar colonial. “Os zombies — desprovidos [...] de mente — não podem fazer considerações; são, por essa razão, objetos coloniais completamente consumados. [...] uma vez identificados, devem ser mortos imediatamente” (2010, p. 437). Esse traço da ideologia imperialista fica evidente tanto em A Noite... como no legado da obra romeriana. Aos 78 minutos de filme, aproximadamente, um repórter pergunta ao Xerife McClelland: “Chefe, se eu for cercado por oito ou dez dessas coisas, eu teria uma chance?”. Então o Xerife responde: “Bem, isso não é um problema, se você tem uma arma, atire na cabeça. Essa é a maneira certa de matá-los. Caso não tenha, arrume um taco, bata neles ou queime-os. Eles cedem facilmente”. Em Resident Evil: The Umbrella Conspiracy (1998), adaptação literária do primeiro jogo da série, identificamos uma passagem que exemplifica essa ideologia. No momento em que se depara com um zombie, o personagem Chris Redfield [...] disparou novamente, dois tiros na face erguida e decadente da coisa. Buracos escuros se abriram no crânio nodoso, lançando pequenos rios de fluido e tecido carnoso através do maxilar inferior. Com um suspiro profundo, a coisa apodrecida desabou no chão sobre um lago vermelho que se espalhava (PERRY, 1998, p. 62-3). De volta ao contexto histórico de A Noite..., Hervey nos lembra que a Ofensiva de Tet, um ataque surpresa do Vietnã do Norte sobre centenas de cidades e vilarejos do Sul, em 30 de janeiro de 1968, trouxe imagens perturbadoras e sem precedentes ao horário nobre da televisão — notoriamente, o registro de um chefe de polícia do Vietnã do Sul atirando sem cerimônia e à queima-roupa num suspeito vietcongue capturado. “‘Atirem na cabeça’, como disse o líder do pelotão de fuzilamento em A Noite...” (2008, p. 22). Esse elemento é importante no legado de Romero. Na série em quadrinhos Os Mortos-Vivos, ou em qualquer 48 narrativa de zombies inspirada no “modelo romeriano”, os instrumentos e a tecnologia do império são continuamente apropriados com a finalidade de condicionar precisamente esse tipo de fantasia colonialista violenta (CANAVAN, 2010, p. 442). Espadas e pistolas, tanques e caminhões, referências recorrentes à violência física e sexual da escravidão e ao imaginário do cowboy da “fronteira” [...] são empregados num bizarro pasticho pós-moderno da história do imperialismo dos Estados Unidos, conforme diferentes momentos do seu império colidem em um único instante simultâneo em face de uma ameaça racial essencialmente hostil e totalmente implacável (CANAVAN, 2010, p. 442). Para Foucault, “conquanto o tema da raça não desapareça, torna-se parte de algo muito diferente, denominado racismo de Estado” (1997, p. 239), que seria permanência de um fenômeno básico do século XIX, o domínio do poder sobre a vida. O que o filósofo pretende explicar é a aquisição de poder sobre o homem na medida em que o homem é um ser vivo, de forma que o biológico ficaria sob o controle do Estado. Se na teoria clássica da soberania o direito de vida e morte era um dos atributos básicos do soberano, pendendo a balança em favor da morte, Foucault considera que uma das grandes mudanças do século XIX não tenha sido a substituição desse antigo direito do soberano, e sim a sua complementação por um novo direito que não o oblitera, mas o penetra e permeia: “o direito de fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT, 1997, p. 241). Canavan sustenta que o estado biopolítico necessita criar uma espécie de imaginário racial, a fim de preservar o seu poder de matar. Sob o jugo do bio-poder, aqueles imaginados enquanto ameaças para a população tornam-se não apenas um perigo, mas uma espécie de anti-vida que deve ser isolada a todo custo da vida do homem branco. “Qualquer contato com um zombie [...] pode levar à infecção, assim como o Outro racial deve ser disciplinado e posto em quarentena para prevenir a ‘miscigenação’” (2010, p. 437). O homem branco, de acordo com a lógica racista empregada pelo imaginário colonial para justificar a sua violência, costuma ser entendido como a forma de vida mais avançada da humanidade, sendo as outras 49 “raças” vistas ideologicamente como primitivas ou perigosamente obsoletas, sujeitas à ruptura, ao deslocamento e mesmo ao extermínio sistemático. Ella Shohat e Robert Stam explicam que o processo de animalização pode ser entendido como parte do mecanismo mais amplo e difuso da naturalização. Consistiria, portanto, na redução do elemento cultural ao biológico e na associação do colonizado a fatores vegetativos e instintivos em lugar de aspectos culturais e intelectuais. Através da naturalização, os povos colonizados teriam sido representados como corpos em vez de mentes (1988, p. 200). Para Hannah Arendt (1995, p. 94), “a degradação do escravo era um rude golpe do destino, um fado pior que a morte, por implicar a transformação do homem em algo semelhante a um animal doméstico”. Stam nos lembra de que em Culture industry: Enlightenment as mass deception, publicado em 1944 como parte de A dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos (1944), Adorno e Horkheimer delinearam sua crítica da cultura de massa. “Esta fazia parte de uma crítica mais ampla do Iluminismo, cujas promessas de libertação jamais haviam sido cumpridas” (STAM, 2009, p. 87). Se por um lado a liberdade científica libertara o mundo das formas tradicionais de autoridade, também possibilitara o surgimento de novas e opressivas formas de dominação [...]. Mas Adorno e Horkheimer eram igualmente críticos das sociedades capitalistas liberais, cujos cinemas produziam espectadores como consumidores. [...], os autores viam o consumo de massa como uma conseqüência da indústria que ditava e canalizava o desejo do público (STAM, 2009, p. 87). Lauro e Embry sugerem que, embora o zumbi haitiano tenha sido “canibalizado” pelo cinema ocidental e pela mitologia do horror, e apesar da possibilidade de se fazer uma leitura do monstro enquanto difamação racista dos povos ditos “selvagens”, a questão do poder implícita em sua história é passiva de análise e ainda há muito a ser dito; as autoras reafirmam que “a narrativa do zumbi é, em alguns aspectos, uma represália da Revolução Haitiana e uma história da rebelião dos escravos” (2008, p. 96). 50 O escravo haitiano literalmente derrubou o jugo da servidão colonial, mas o país teve uma história nacional infeliz, atormentada pela ocupação estrangeira, distúrbios civis e epidemias. De maneira similar, o zumbi/zombie parece incorporar esse tipo de desapontamento: desafia a mortalidade apenas simbolicamente: mesmo a sobrevivência do zumbi à morte é anti-celebratória, uma vez que ele permanece preso em um corpo de cadáver (LAURO e EMBRY, 2008, p. 97). Numa época em que a ideologia do imperialismo defendia a incapacidade de um Estado negro governar-se por si só, Leslie Manigat (2004, p. 247) aponta que a própria ideia de uma república negra era considerada uma anomalia — “um elemento que não se insere numa dada série ou num dado conjunto”, recorrendo novamente à definição de Douglas (1991, p. 52). Segundo Manigat, “essas teorias tinham por função justificar, de um lado, as partilhas da África entre as potências ocidentais, e, de outro, manter a discriminação racial na sociedade americana, embora esta última se apresentasse como a garantia dos princípios democráticos” (2004, p. 247). Nesse sentido, Lauro e Embry interpretam a revisão capitalista do zumbi como mais um ato imperialista “que dissipa a fúria do escravo negro, ao transformar a iconografia de dentro para fora, fazendo com que a fome insaciável do zombie passe a simbolizar o consumidor branco, engolindo o corpo do escravo conforme o ícone é reapropriado” (2008, p. 97). Sustentam ainda que, em certo nível, essa narrativa recupera o poder intransponível do zumbi ao “alegorizar” a estrutura capitalista, imperial e colonial, ao invés do corpo humilhado do escravo negro. Quando os escravos haitianos pegaram em armas, estavam rejeitando o status de objeto e reivindicando a posição de sujeito; dessa maneira, para superar o imperialismo, o indivíduo precisava se afirmar como detentor de agência. Aqui, numa época em que o capitalismo global exclui todas as tentativas de afastar-se do sistema, a única opção é desligar o sistema e o indivíduo em seu interior (LAURO e EMBRY, 2008, p. 107-8). Atual e simultaneamente, o zombie é compreendido como um ser ao mesmo tempo impotente e poderoso. De acordo com Lauro e Embry (2008, p. 98), “esse é um ponto central para o nosso entendimento do mesmo enquanto uma figura de fronteira”. O potencial dual do 51 zumbi de representar tanto a escravidão como a rebelião escrava seria um elemento chave para a captura do imaginário ocidental. Dessa maneira, reafirmamos que o zombie torna-se inseparável de seu passado colonial a partir do momento que reconhecemos a potencial apropriação indébita visando propósitos ideológicos. 2.5. Sociedade de Consumo De acordo com Lauro e Embry (2008, p. 99), o zombie cinemático, máquina de consumo não-consciente, apavora por ser um reflexo da sociedade de consumo atual, impulsionado apenas pela necessidade de consumir perpetuamente. Hoje a associação do zombie com a sociedade de consumo parece bastante disseminada na cultura popular. Por exemplo, a música Macy’s Day Parade, da banda norte-americana Green Day, lançada no álbum Warning (2000), abre com os seguintes versos: “Hoje é o dia do desfile de Ação de Graças/ A noite dos mortos-vivos está a caminho”.18 Segundo Bernice M. Murphy (2009, p. 86), ao fazer de seus zombies criaturas canibais, uma característica ausente nos precursores do gênero, Romero catalisou a transmissão de seu comentário a respeito daqueles que via como o materialismo e o consumismo da vida norte-americana de fins do século XX. Assim, o “modelo romeriano” tornou-se um símbolo capitalista, uma preocupação constante em sua série de filmes, porém mais patente em Zombie – O Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, 1978), o segundo filme de Romero sobre os mortos-vivos. 18 Livre tradução de: “Today’s the Macy’s Day Parade / The night of the living dead is on its way”. 52 Tão logo escapam da cidade de Filadélfia, que se desintegra rapidamente, num helicóptero roubado, o quarteto de sobreviventes de Romero – Fran (Galen Ross), a funcionária de uma emissora de televisão, o seu namorado Steven (Scott Reiniger), e os membros da SWAT Peter (Ken Foree) e Roger (David Emge) – é forçado a se refugiar em um shopping. A surpresa […] é que o lugar está absolutamente infestado de zombies […]. Conforme o filme timidamente sugere, e os próximos adendos de Romero à série reforçam [Dia dos Mortos (1985), Terra dos Mortos (2005), Diário dos Mortos (2007) e Ilha dos Mortos (2009)], fica claro que os zombies deste filme ainda mantêm um traço residual de suas antigas personalidades. Os zombies [...] vêem-se cambaleando ao redor do complexo do shopping, apesar de terem perdido a habilidade de entender o porquê. A opinião mordaz de Romero a respeito da sociedade contemporânea torna-se mais desconcertante conforme os paralelos entre seus protagonistas vivos e suas contrapartes não-mortas tornam-se cada vez mais óbvios. Numa sequência pastelão, zombie após zombie é alegremente executado pelos humanos, e o shopping, o último refúgio do mundo exterior, em pouco tempo é deles (MURPHY, 2009, p. 87). O enredo da produção trata do momento em que a epidemia dos zombies foge ao controle e a sociedade caminha rumo ao colapso. Considerada uma catástrofe pós-industrial e uma parábola da deterioração do meio ambiente nos anos de 1970, essa alegoria social expõe “o vazio da sociedade de consumo, a derrocada da civilização Ocidental e apresenta o zombie como uma paródia do homem moderno” (DENDLE, 2001, p. 42). Peter Dendle sugere que a narrativa dos filmes de zombies, a partir desse momento, enfoca especificamente no tema do apocalipse, associado ao contágio que se espalha com os mortos-vivos. Segundo Lauro e Embry, “nessa interpretação bastante comum do zombie como símbolo capitalista, a figura monstruosa do capitalismo global é alimentada pelo labor 19 dos pobres, a mão-de-obra do ‘terceiro mundo’”. Dessa maneira, o zumbi transitou de uma representação do corpo colonial escravizado para uma imagem dual do escravismo capitalista: “o zumbi agora representa o novo escravo, o trabalhador capitalista, mas também o consumidor, atado no interior do construto ideológico que garante a sobrevivência do 19 É importante considerar que Hannah Arendt, em A condição humana, distingue três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação, fundamentais no sentido de que a cada uma delas corresponde uma das condições básicas da vida. O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último. A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 15. 53 sistema”. Em resumo, esse notívago voraz, que vagueia cegamente em busca da próxima refeição, seria uma máquina que realiza duas funções: consumir e produzir mais consumidores (2008, p. 99). A despeito de suas raízes no escravismo imperialista, o zombie atual, que segue os parâmetros do “modelo romeriano”, não produz nada exceto mais zombies. Procuraremos explicar melhor. Em A condição humana (1958), Hannah Arendt identifica a antiga justificativa da escravidão enquanto uma tentativa de transferir o peso da necessidade humana. A autora sustenta que, pelo fato de serem sujeitos às necessidades da vida, “os homens só podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força, submetiam à necessidade” (1995, p. 94). “Tanto o zombie quanto o escravo são sujeitos de pura necessidade, mas o escravo desempenha o labor de outrem, como uma máquina, ao passo que o zombie não trabalha para ninguém e apenas produz mais zombies” (LAURO; EMBRY; 2008, p. 99). No zombie, o status colapsado da relação sujeito/objeto nos lembra que essa característica distintiva é capaz de descrever tanto o autômato quanto o escravo, com a eficácia que nenhuma outra figura monstruosa ou pós-humana poderia dispor. Embora o zombie seja incapaz de pensar, é um monstro de duas cabeças. Os zombies, como todas as coisas que se pode temer, são produtos da cultura que os molda e trazem em seus mitos a marca de condições sociais existentes. A teoria marxista ressoa com diversos aspectos dessa figura sinistra (no nível mais óbvio, o zumbi se assemelha tanto ao consumidor, ao devorar a carne humana, quanto ao trabalhador zumbificado), que também pode ser lida como um fulcro que une abordagens materialistas e psicanalíticas (LAURO e EMBRY, 2008, p. 100-1). Segundo Lauro e Embry, a atividade reprodutiva do zombie seria um desejo inconsciente ou um efeito colateral de sua própria fome, pois é através da mordida que o mesmo se reproduz. Em seu estado frenético de puro consumo, o monstro busca infectar aqueles que ainda não compartilham a opressão do seu próprio estado. Sabe-se que o zombie nunca ataca outros zombies. Destina-se a transferir a sua carga, mas o resultado é apenas a multiplicação de sua condição: nenhum zombie é libertado de sua condição ao passá-la adiante. Portanto, o zombie, mais uma vez, impede a possibilidade de catarse. A fronteira 54 entre homem e escravo, que permite transferir a carga da necessidade para outro — seja na Grécia Antiga ou na superestrutura capitalista global de hoje —, é ameaçada pelo zombie. Uma vez que o apetite não é saciado, todos se tornam escravos (2008, p. 100). Conforme sugerem Lauro e Embry, esse perigo é evidente na metáfora da infecção do espaço público. “O corpo do zombie é visto com frequência na esfera pública: praças, cemitérios, escolas, ruas, e até mesmo em shoppings — proporcionando uma crítica social evidente” (2008, p. 100). Zombie – O Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, dir. George Romero, 1979) e Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead, dir. Zack Snyder, 2004), sua refilmagem, exemplificam essa metáfora. O temor de que a esfera pública seja invadida por pura necessidade, ou pura necessidade de consumo, é expressa pelo drama do zombie enquanto (eterno) consumidor. Para Hannah Arendt, a “economia do desperdício”, no sistema capitalista, resulta nos males da “cultura de massa”, na qual “todas as coisas devem ser devoradas e abandonadas quase tão rapidamente quanto surgem no mundo, a fim de que o processo não chegue a um fim repentino e catastrófico” (1995, p. 147). Portanto, notamos que a figura do zombie semidecomposto e insaciável aparece hoje em diversas mídias na condição de crítica social ou prognóstico do monstruoso futuro do capitalismo. [...] O que o zumbi revela, portanto, é que a inauguração do pós-humano só poderá advir com o fim do capitalismo. Essa não é uma visão utópica, nem uma chamada às armas. Estamos apenas apontando que o capitalismo e o pós-humanismo estão mais conectados do que se articulou anteriormente: um deverá morrer para que o outro possa nascer. O zumbi “sabe” (naturalmente, o zumbi não sabe nada) que o pós- humano é o fim do jogo: é o devir que sinaliza o fim de todos os devires. [...] O capitalismo depende da nossa percepção de nós mesmos como portadores de consciências individuais para proibir o desenvolvimento de um coletivo revolucionário e reforçar a atitude que o move: cada um por si (LAURO e EMBRY, 2008, p. 106). 55 Os mortos-vivos invadem o shopping em Zombie – O Despertar dos Mortos (George Romero, 1978). Os mortos-vivos no espaço urbano. KIRKMAN, Robert. The Walking Dead, v.1, n.4. Orange/Ca: Image Comics, jan. 2004. 56 CAPÍTULO II IMPERMANÊNCIA ENTUSIASTA Changes are taking the pace I'm going through. David Bowie, 1971 For the times they are a-changin’. Bob Dylan, 1964 1. Microcosmo do Medo Na zona rural da Pensilvânia, numa estranha noite de outono, Barbra (Judith O’Dea) se tranca numa casa de fazenda. A casa estava aparentemente abandonada. Então, une-se a Ben (Duane Jones) e a outros cinco sobreviventes, que selam as portas e janelas com tábuas, contra o número crescente de agressores que os cercam. Aquela seria “a noite dos mortos- vivos”. Harry Cooper (Karl Hardman) e sua esposa Helen (Marilyn Eastman), Tom (Keith Wayne) e sua namorada Judy (Judith Ridley), junto dos protagonistas e de Karen (Kyra Schon) — a filha do primeiro casal, doente após ter sido mordida por uma das criaturas —, bem sabem que não podem contar com os meios de comunicação, tampouco com o Estado. 20 Fugindo de uma horda de cadáveres reanimados, os sete indivíduos lutam por suas vidas e defendem-se da fúria dos mortos-vivos por horas a fio. Alguns respondem ao desafio com bravura e de maneira racional, outros com medo e histeria. O grupo resiste desesperadamente, 20 Hegel define o Estado como um modo de organização social surgido no mundo moderno. Mais precisamente, com a Revolução Francesa, o Império napoleônico e a nova ordem que um e outro, de bom ou mau grado, impuseram às sociedades civilizadas. Com essa nova ordem teria se engendrado uma prática de Estado que apreende apenas confusamente seu sentido, mas que oferece ao pensamento a possibilidade de definir a essência do Estado, isto é, o lugar onde Razão e liberdade se identificam efetivamente. CHÂTELET, François, DUHAMEL, Olivier, PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das ideias políticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000, p. 124. 57 mas a conexão humana, a empatia e a solidariedade vão aos poucos desaparecendo. Logo, começam a se hostilizar, até sucumbirem às suas próprias rivalidades e aos trabalhadores rurais contaminados. Segundo Peter Dendle (2001, p. 121), “a incapacidade para trabalhar em equipe sela os seus destinos. A tensão é implacável: não há tramas românticas secundárias ou entreatos humorísticos, apenas um senso de impotência e claustrofobia” — embora acreditemos que tramas secundárias possam ser ao menos sugeridas, por exemplo, a rivalidade entre Ben, o protagonista negro, e Harry Cooper, o chefe de família. Esta é uma breve sinopse de A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968), o primeiro filme de George Romero e o objeto de nossa análise. * Em A Noite dos Mortos-Vivos, filme rodado na inquietude da era atômica, Romero parece exteriorizar a falha das relações sociais. De acordo com Joseph Maddrey, espécie alguma de autoridade une os personagens, seja ela natural ou sobrenatural. “A religião está conspicuamente ausente do filme. Nem os políticos nem a mídia são capazes de oferecer respostas decisivas. Eventualmente, o elo entre os sobreviventes [...] se desintegra” (2004, p. 50). Para o crítico Stuart M. Kaminsky, o próprio cenário, uma casa de fazenda isolada e desanimadoramente mundana em Evans City, Pittsburgh, a oeste da Pensilvânia, é transformado em um microcosmo da sociedade norte-americana daquele momento histórico, o fim dos anos de 1960 (apud HOBERMAN; ROSENBAUM, 1983, p. 123-4). Luciano Saracino aponta uma singularidade de Romero. Segundo o autor, o cineasta soube transmitir na tela, de modo crível e cotidiano, o medo máximo da humanidade: a morte 58 e o que sucede depois dela. Dessa forma, o cineasta pode aferir até que ponto o que acontece no interior de uma casa consegue ser muito pior do que aquilo que ocorre em seu exterior, apesar de o quintal estar repleto de mortos-vivos (2009, p. 41). Rodar o filme em preto-e- branco teria resultado em “um ambiente plano e tenebroso, perfeito para o cenário gótico norte-americano, em ruínas, no qual os eventos se dão” (STEIN apud DILLARD, 1987, p. 18). Para Christoph Grunenberg, foi a partir do doloroso contraste entre comunidade pacífica e “ordinariedade” dos personagens que A Noite... floresceu. E, desde o seu lançamento, o horror parece ter se instalado nas pequenas cidades suburbanas dos EUA (1997, p. 176-5), embora essa tendência tenha tido precursores no cinema, como Herschell Gordon Lewis, e na literatura, como Richard Matheson — mais adiante analisaremos suas obras. De fato, ao longo das últimas décadas do século XX, o último refúgio da classe média parece ter realmente se transformado no local preferido para defrontar-se com estranhos, assassinos em série e o sobrenatural (GRUNENBERG, 1997, p. 176-5). Nessa categoria de filmes podemos citar O Exorcista (The Exorcist, dir. William Friedkin, 1973), A Fúria (The Fury, dir. Brian De Palma, 1978), The Amityville Horror (dir. Stuart Rosenberg, 1979) e Poltergeist – O Fenômeno (Poltergeist, dir. Tobe Hooper, 1982). Segundo Grunenberg, a presença intrusiva de assassinos ensandecidos e de monstros alienígenas nas casas de cidadãos norte-americanos comuns teria um significado ainda mais amplo: a desintegração da instituição burguesa da família nuclear (1997, p. 175). Mais do que servir ao patriarcado burguês como um lugar de refúgio das convulsões sociais das últimas duas décadas (muitas das quais foram iniciadas pelos jovens e pelas mulheres), a família tornou-se o lugar das mesmas – e agora serve como um sinal de sua representação (SOBCHACK, 1987, p. 178). Bernice M. Murphy (2009, p. 12) sustenta que o “horror nos subúrbios” apareceu pela primeira vez nos três contos mais significativos de Richard Matheson, publicados nos anos 1950: Eu Sou a Lenda (1954), The Shrinking Man (1956) e A Stir of Echoes (1958). Na 59 década seguinte seria lançado o filme que apresenta “uma visão terrivelmente convincente das massas norte-americanas como consumidores irracionais e sem emoção” (MURPHY, 2009, p. 85): a autora considera A Noite dos Mortos-Vivos uma obra-prima romeriana que deve muito a Eu Sou a Lenda, cujo protagonista também se vê cercado por uma horda de criaturas vampirescas infectadas por uma praga misteriosa. Deveras, a primeira adaptação cinematográfica da novela, intitulada Mortos que Matam (The Last Man on Earth, dir. Ubaldo Ragona, 1964), guarda similitudes com o primeiro filme de Romero, tendo o antecedido e, possivelmente, influenciado. No capítulo II, construiremos uma análise comparativa mais abrangente entre a novela de Matheson e a produção do cineasta. Murphy (2009, p. 2) aponta que o gótico suburbano, subgênero que aloca a presença do Mal no interior dos lares americanos, remonta à era do pós-guerra, quando teve início o movimento populacional maciço em direção aos subúrbios dos EUA. Ao longo desse processo, escritores, cineastas e o público em geral começaram a se mostrar dispostos a lidar com narrativas nas quais se confirma, dramaticamente, a suspeita de que algo sombrio se esconde sob a pacífica fachada do subúrbio. De acordo com Murphy (2009, p. 2), “o gótico suburbano é um subgênero de toda a tradição gótica norte-americana, que, com frequência, dramatiza as ansiedades decorrentes da ‘suburbanização’ em massa dos Estados Unidos e, em geral, apresenta cenários, preocupações e protagonistas suburbanos”. Em suma, [...] é um subgênero que se preocupa, em primeiro lugar, em tocar na duradoura suspeita de que mesmo as casas, famílias ou vizinhanças de aparência mais comum têm algo a esconder, e que não importa o quão calmo e tranquilo um lugar pareça ser, ele estará sempre a um momento de distância de um incidente dramático (e sinistro). O tropo da casa suburbana aparentemente pacífica com um SEGREDO TERRÍVEL em seu interior é tão familiar que se tornou clichê. Reflete o medo de que as aceleradas mudanças nos modos e estilos de vida que tomaram forma nos anos de 1950 e no início de 1960 tenham causado danos irreparáveis, não apenas ao ambiente, mas ao estado psicológico das pessoas que migraram para esses novos locais e romperam com os velhos padrões de existência. Deve-se muito à onda de comentários intelectuais, com frequência cáusticos, que acompanharam essas mudanças e previram a sucessão de terríveis conseqüências: significativamente, a linguagem e as imagens utilizadas por tais comentaristas em geral devia muito ao estilo gótico (MURPHY, 2009, p. 2). 60 A partir do momento em que os primeiros empreendimentos habitacionais em massa começaram a se expandir pelos EUA, sugere Murphy, os subúrbios se estabelecem, ao menos parcialmente, enquanto espaço estranhamente dualista para os escritores, cineastas e comentaristas culturais, porque passaram a ser vistos, desde o início, como detentores de uma conexão inata com as características basilares da própria nação. Se por um lado o meio social foi considerado uma espécie de paraíso utópico para as pessoas comuns e sua prole crescente, também existiam narrativas paralelas, sombrias, não menos visíveis a respeito do sonho americano de otimismo e progresso. Essas narrativas tinham no subúrbio a personificação de tudo o que havia de errado na sociedade norte-americana, eram um terreno fértil para o descontentamento e para o convencionalismo irracional (2009, p. 5). Identificamos pontos de contato entre A Noite... e o gênero do gótico suburbano. Porém, vemos a necessidade de ampliar o escopo da analogia para fora das vizinhanças de classe média. Observaremos, agora, a despersonalização do sujeito e sua transformação em objeto. [...] Diferente do vampiro, o zombie proporciona um terror de duas faces: o medo primário de ser devorado, uma ameaça para o corpo físico, principalmente, e o medo secundário de perder a consciência e tornar-se parte da horda monstruosa. Esses dois temores refletem o reconhecimento do indivíduo a respeito da própria mortalidade e revela, em última análise, o medo primordial de perda do “eu”; na figura do zombie, entretanto, corpo e mente são antinomias separadas. O zombie é diferente de outros monstros porque o corpo é ressuscitado e conservado: apenas a consciência está permanentemente perdida. Assim como o vampiro e o lobisomem, o zombie ameaça com a sua forma material. Enquanto o vampiro e mesmo o intangível fantasma preservam as suas faculdades mentais, e o lobisomem pode tornar-se irracional e bestial durante algum tempo, apenas o zombie perdeu completamente a sua mente, tornando-se uma tábula rasa – animada, porém desprovida de consciência (LAURO; EMBRY, 2008, p. 88). No prefácio de A dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer escreveram que “o indivíduo é inteiramente anulado em face dos poderes econômicos. Esses poderes estão conduzindo a alturas inimagináveis o domínio da sociedade sobre a natureza” (apud LAURO; EMBRY, 2008, p. 96). Se o indivíduo é uma ficção conjurada pela estrutura econômica para garantir maior dominação, como sugerem os autores, então a única resposta para esse dilema 61 viria na forma do zombie, uma representação literal do que já aconteceu e continua a se arrastar: a morte do indivíduo. Assim, a figura do zombie sugere a premente destruição do indivíduo para que possamos atingir, verdadeiramente, o estágio da pós-humanidade. Na esfera política e econômica, o capitalismo seria o responsável pela despersonalização do sujeito. Dessa maneira, pretendemos relacionar a referida “despersonalização” (a “reificação”, em termos marxistas) ao processo de “zumbificação”. Horkheimer e Adorno afirmam que sujeito e objeto tornam-se categorias ineficazes sob o capitalismo, conforme o fetiche pelos bens de consumo insufla vida nos objetos, e a reificação transforma os trabalhadores em objetos. Porém, identificar essa fusão não é o bastante, pois, na figura do zombie, sujeito e objeto estão obliterados. Essa figura, simultaneamente representativa da escravidão e da rebelião escrava, é a reflexão mais apropriada a respeito do capitalismo no momento em que vivemos [...] (LAURO; EMBRY, 2008, p. 92-3). Segundo Murphy (2009, p. 103), as narrativas que exploram a desumanização e a alienação fazem parte de uma das vertentes mais poderosas do gótico suburbano. Ao refletir sobre A Noite..., Romero explica que “o mais assustador é que ninguém se comunica, todos estão isolados e sós com as suas versões particulares do mundo. Estão, de certo modo, loucos” (apud MADDREY, 2004, p. 50). Certa indefinição paira sobre A Noite..., no que diz respeito à confiança depositada nos meios de comunicação, em especial a televisão. Nas palavras do próprio cineasta, o filme “fala especificamente que... a mídia eletrônica não funciona, as pessoas não se comunicam” (ROMERO apud HERVEY, 2008, p. 75). Considerando que o primeiro filme de Romero não faz menção a outros países, Maddrey sugere que a epidemia dos mortos-vivos seja “sintomática” da própria vida nos EUA. Nesse sentido, A Noite... teria funcionado como um indicador do quão desarticulado o país se encontrava para sobreviver a uma violenta crise como a Guerra no Vietnã (2004, p. 51). O foco desolador de Romero na destruição da ordem atual dizia muito sobre as mudanças cataclísmicas que aconteciam no subconsciente norte-americano desde o assassinato do presidente Kennedy, em 1963. Ao imaginar uma catástrofe 62 apocalíptica de proporções tais que a esperança de regeneração social se mostre impossível, Romero levou seu público numa jornada ao coração negro dos EUA. Enquanto a guerra do Vietnã saía do controle e os sonhadores idealistas da contracultura acordavam de ressaca diante dos assassinatos cometidos por Manson, da violência no festival de Altamont e da vergonha diante do escândalo Watergate, o niilismo de Romero parecia muito sintonizado com o seu tempo (RUSSEL, 2010, p. 119). De acordo com os críticos James Hoberman e Jonathan Rosenbaum (1983, p. 125), A Noite... representaria “não apenas um clássico do horror, mas uma visão singular do fim dos anos 1960 — que oferece uma representação o mais literal possível dos EUA devorando a si próprios”. Os autores sustentam, ainda, que a obra faz uma projeção de 1968 como nenhum outro filme ousara realizar anteriormente. Ao tratar de uma nação que enfrenta violenta crise interna, caracterizada pelos movimentos sociais de massa e a subsequente repressão destes pelas autoridades, o filme exibe, de forma alegórica, imagens de uma mesma família devorando seus próprios membros e vigilantes armados abatendo a tiros cidadãos comuns. Hoberman e Rosenbaum concordam com Jamie Russel (2010, p. 119), para o qual o “niilismo de Romero parecia muito sintonizado com o seu tempo”. Em retrospecto, é interessante observar A Noite... do ponto de vista de sua recepção: Na manhã seguinte ao assassinato de Robert Kennedy, Arthur Schlesinger, o redator de seu discurso, emitiu seus pensamentos para os Estados Unidos: “Somos, hoje, a nação mais assustadora do planeta”. Não é de se admirar que os jovens espectadores tenham reagido ao filme de horror brutalmente violento [A Noite...], ambientado aqui e agora, que descartou as ameaças estrangeiras ou alienígenas e colocou os americanos contra os americanos. Não é de se admirar que a sua ambigüidade moral pareceu verdadeira para eles, em sua recusa de idolatrar heróis ou demonizar monstros, ou regozijar quando a ordem e a normalidade prevalecem (HERVEY, 2008, p. 23-4). Sugerimos que “os monstros” que ameaçam os cidadãos comuns desde o final dos anos 1960 funcionem como metáfora das realidades econômicas, das mudanças demográficas e da ruptura dos tradicionais papéis de gênero. Como aponta Judith Halberstam, os monstros góticos que nos aterrorizam nunca são “unitários, mas sempre um agregado de raça, classe e gênero (apud GRUNENBERG, 1997, p. 175). O monstro de Frankenstein, no romance de 63 Mary Shelley, já foi lido como uma metáfora da classe trabalhadora, enquanto o vampiro em Nosferatu (1922), de F.W. Murnau, pode ser interpretado como personagem representativo de uma aristocracia decadente em face da escalada burguesa. Nesse sentido, faz-se necessário lançar um breve olhar sobre aquele período conturbado da história dos EUA. Para tanto, analisaremos o contexto sócio-histórico, político e econômico do filme de Romero. 2. Era de Mudança e Inquietação Social A poucos minutos da meia-noite, em qualquer final de semana durante o verão de 1971, o primeiro filme de Romero era exibido no Waverly Cinema, em Nova York, na esquina da Washington Square, no coração de Greenwich Village: um ponto central na cena da música folk de protesto, da liberação gay, da literatura de vanguarda, do movimento anti-belicista e da contracultura em geral. O Waverly ficava a três quadras da Universidade de Nova York. A quinze minutos a pé do Centro de LSD de Timothy Leary [...], e a dez apenas do esconderijo Weather Underground, no qual três militantes radicais explodiram-se em 1970 [...]. Greenwich Village era mundialmente famosa, sinônimo da juventude hip, politizada e intelectual (HERVEY, 2008, p. 7-8). No final do decênio anterior, como nos lembra Robert Stam (2003, p. 152), “o Primeiro Mundo, como antes o Terceiro, testemunhou um período de efervescência cultural e política, em culminância à fermentação revolucionária que se seguiu à derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial e a dissolução dos impérios coloniais no pós-guerra”. O autor continua a argumentação: em maio de 1968, o annus mirabilis, a insurreição liderada pelos estudantes quase derrubou o regime de De Gaulle na França. Aquele ano também anunciaria o princípio do fim da Guerra Fria entre as duas superpotências: EUA e União Soviética. 64 O ano de 1968 foi o da diáspora do “político”, que se disseminou pela teoria e pela vida cotidiana. Maio de 68 foi precedido pelo profético filme A chinesa (1967), de Godard, sobre uma célula maoísta em Paris, e pelo visionário livro-manifesto de Guy Debord, Sociedade do Espetáculo (também de 1967) [...]. Para Debord, tanto o capitalismo de estado do bloco socialista quanto o capitalismo de mercado do Ocidente alienavam os trabalhadores por meio da horrível unidade de um “espetáculo” passivamente consumido. [...] Os situacionistas também desafiaram o sistema artístico em si, reivindicando não uma “crítica da arte revolucionária” mas uma “crítica revolucionária de toda a arte” (STAM, 2003, p. 153). Dentro dos EUA, explica Sean Purdy, a situação era de crise no final da década de 1960. Estudantes fortemente inspirados pelos movimentos negros começaram a apoiar a luta pelos direitos civis, o desenvolvimento econômico em comunidades pobres e, especialmente, o movimento contra a Guerra no Vietnã (PURDY, 2010, p. 249). “No início de 1968, a juventude americana estava mais propensa do que nunca a se alistar, e a guerra parecia ainda mais perigosa, fútil e revoltante [...]” (HERVEY, 2008, p. 22). Nas palavras de Charles Sellers (1990, p. 403), “o país asiático, outrora interesse remoto e periférico dos Estados Unidos, tornara-se o cenário da mais demorada (1950-1975) e impopular guerra da história da nação”. Além disso, o sangrento conflito e os massacres da população civil vietnamita por tropas americanas afetavam a opinião pública. Em 1968 [...] o país era atormentado por múltiplas crises internas e externas. Pareciam tão esquivos como sempre os objetivos gêmeos da justiça social e econômica. Política e culturalmente polarizada, atolada até o pescoço em uma guerra que não conseguia vencer, a nação chafurdava em descontentamento. Preocupados, alguns observadores diziam que a América perdera sua coesão e estava caindo aos pedaços (SELLERS, 1990, p. 395). Em 1967, lembra Purdy, centenas de milhares de pessoas marcharam em direção ao Pentágono, e, até 1968, irromperam manifestações, motins e ocupações em universidades por todos os EUA (2010, p. 250). Para Ken Goffman (2007, p. 311), “esse período selvagem da história humana e da contracultura foi a grande época contracultural”. Ainda na primeira metade do decênio, marcada pelos “exuberantes ataques juvenis às suposições culturais e às instituições políticas do mundo ocidental”, Goffman destaca o grande número de jovens que 65 berrava por libertação. Entretanto, se no início de 1968 a contracultura era ainda jovem e ganhava momentum, o autor sugere que o movimento tenha sido aos poucos empurrado para um padrão reativo. Esse conturbado período da história foi definido por Charles Sellers (1990, p. 410) como uma “era de mudança e inquietação social”. Luciano Saracino e François Châtelet esboçam um panorama da época: Em fins da década de 60, o mundo parecia estar mudando. Uma nova música levara os jovens a um lugar cujo acesso nunca lhes havia sido permitido [...] e assim, os Beatles e seus seguidores propunham cada vez mais claramente a união pelo início de uma luta pacífica. O mesmo acontecia nos campos da arte e seus manifestos de liberdade. As drogas haviam chegado, e com elas a experimentação com a própria mente [...] Martin Luther King, Malcolm X e os Panteras Negras, cada qual a partir do seu ponto de vista, propunham como nunca a igualdade racial. Cuba representava um novo olhar sobre as utopias. O Maio francês, por sua vez, desejava o impossível e apregoava que era a imaginação que deveria dominar o mundo. Os hippies falavam sobre paz e amor livre, contrariando aqueles que tomavam o mundo com a guerra do Vietnã. As mulheres se movimentavam e requeriam concretamente seu lugar na sociedade [...] (SARACINO, 2009, p. 39). Jovens americanos recusam fazer a guerra e preferem a prisão e o exílio; jovens alemães se insurgem em Berlim, em abril de 1968, contra o magnata da imprensa sensacionalista; jovens franceses desencadeiam uma revolta generalizada em maio de 1968; os tchecos inventam a primavera na política para libertar o socialismo do stalinismo; e, nos anos 1970, multiplicaram-se no Leste as dissidências de intelectuais que preferem correr o risco de ir para um hospital psiquiátrico e pensar como bem entendem a ingressar nas academias pensando o que lhes ordenam pensar (CHÂTELET, 2000, p. 371). Ben Hervey (2008, p. 23) também levantou dados importantes sobre o período. Segundo o autor, antes da estréia de A Noite dos Mortos-Vivos no Waverly, os EUA assistiram aos sangrentos espasmos da morte dos anos 1960. Na primavera de 1968, uma ofensiva repressora teve início. Entre março e abril, manifestantes estudantis ocuparam prédios da Universidade de Columbia, antes de serem removidos violentamente pela polícia. O autor aponta que “figuras progressistas, notadamente Martin Luther King e Robert Kennedy, o candidato anti-belicista à presidência, foram assassinadas em circunstâncias ainda misteriosas”. A morte de King provocou sangrentos distúrbios raciais em toda a parte, ainda piores do que as manifestações que atingiram centenas de cidades em 1967. Cinco semanas 66 antes da première de A Noite..., a polícia de Chicago investiu contra manifestantes pacifistas do lado de fora da Convenção Democrática. Em novembro, a vitória estava nas mãos dos falcões da guerra: “Nixon foi eleito presidente pelo que ele denominou de [...] ‘Maioria Silenciosa’ de conservadores nacionalistas” (HERVEY, 2008, p. 23). Naquele período intricado, o debate parecia girar em torno da questão do poder. De acordo com François Châtelet (2000, p. 371), movimentos novos entravam em choque com a ordem social, sem se inscreverem na perspectiva da luta contra o poder central. Então, contestações inesperadas surgiam à luz do dia. “Em maio de 1970, após a invasão americana ao Camboja, a Guarda Nacional abriu fogo contra manifestantes na Universidade de Kent State [...]. Dez dias depois, a polícia atirou em estudantes da Universidade de Jackson State” (HERVEY, 2008, p. 23). Para Châtelet, esses movimentos eram as rebeliões contra os poderes, que o filósofo Herbert Marcuse 21 empenhou-se em teorizar. Essas sublevações não foram previstas pela ciência política, que não as compreende de modo algum; não foram controladas pelas instituições políticas (incluídos os partidos), das quais elas se desviam; não podem ser explicadas pelas categorias clássicas do marxismo (CHÂTELET, 2000, p. 371). Evocando Joseph Maddrey (2004, p. 123-4), reafirmamos o caráter de acusação da vida moderna presente em A Noite dos Mortos-Vivos, uma vez que o filme propaga as ansiedades da vida nos EUA em tempos de incertezas políticas e teológicas, ao tratar de uma nação subjugada por forças ocultas, irracionais e indestrutíveis; numa realidade em que, segundo Kellner (2001, p. 166), a violência horrífica e a desintegração social eram forças onipresentes e poderosas. Dillard complementa. O autor considera o filme, como um todo, um 21 Quanto à recepção anglo-americana da teoria crítica de Herbert Marcuse, John Abromeit e W. Mark Cobb consideram que a reputação contemporânea de Marcuse, ainda largamente determinada pelo seu envolvimento ativo com os movimentos de protesto dos anos de 1960, tende a esconder o fato de que ele passou mais de cinco décadas engajado com o trabalho da crítica teórica. ABROMEIT, John, COBB, W. Mark (eds.). Herbert Marcuse: a critical reader. New York: Routledge, 2004, p.1. 67 rebaixamento dos valores mais estimados da civilização Ocidental, valores estes definidos por William Faulkner como “as eternas verdades” (apud DILLARD, 1987, p. 28). A Noite... ridiculariza o governo, denigre a organização familiar, leva ao colapso o valor da identidade individual, e nega a própria racionalidade, “a virtude que tradicionalmente separa o ser humano do restante da natureza” (DILLARD, 1987, p. 28). Em Do Contrato Social, Jean-Jacques Rousseau trata da passagem do estado natural para o estado civil, o que produziu no homem uma mudança considerável ao substituir em sua conduta a justiça ao instinto, imprimindo às suas ações a moralidade que anteriormente lhe faltava. “Foi somente então que a voz do dever, sucedendo ao impulso físico, e o direito ao apetite, fizeram com que o homem, que até esse momento só tinha olhado para si mesmo, se visse forçado a agir por outros princípios e consultar a razão antes de ouvir seus pendores” (1923, p. 18). Segundo Stam (2003, p. 153), os acontecimentos de Maio de 68 reverberaram no mundo artístico em geral, particularmente no cinematográfico. No próximo tópico, observaremos o movimento contracultural dentro do cinema, na tentativa de compreender em que sentido as produções de 1967-75 alteraram o panorama do cinema norte-americano, abrindo caminho para novas formas de se pensar a sociedade. 3. “Impermanência Entusiasta” Acreditamos que o termo “impermanência entusiasta” defina bem este trabalho, pois sintetiza a inquietude nas duas temporalidades analisadas: em fins dos anos 1960, momento em que a geração contracultural defendia a mudança, entusiasticamente engajada com as lutas sociais; e ao longo de 2011, quando eclodiram diversos movimentos de protesto, ávidos por 68 orientar o planeta através de um caminho mais democrático. “Impermanência entusiasta” trata-se de uma livre tradução de “warm impermanence”, expressão extraída da música Changes, do músico britânico David Bowie, lançada no álbum Hunky Dory (1971). Dentro de seu contexto, a música surgiu como uma defesa dos ideais da nova geração e teve na “mudança” o seu mote. De forma genérica, utilizaremos o termo como símbolo de toda a gama de mudanças ocorridas durante os anos 1960, entre as quais podemos citar: as conquistas na esfera dos direitos civis; as transformações no modo de se fazer cinema, advindas da constante experimentação promovida pelos realizadores independentes; e o surgimento de novas abordagens metodológicas dentro da historiografia. Considerando o desejo de mudança almejado pela juventude dos anos 1960, para além de toda a gama de movimentações sociais e da revisão dentro do próprio fazer historiográfico, Maddrey considera que o ano de 1968 também anunciaria uma nova postura no cinema, processo que levou realizadores independentes a refletir sobre o caos da vida no país (2004, p. 122). Durante o curto espaço de tempo em que a juventude explorou a sua própria cultura e os jovens cineastas geravam parte dessa cultura para si, no intuito de desenvolver uma abordagem singular para o cinema, mudar os EUA e o próprio cinema tornaram-se objetivos coincidentes (TZIOUMAKIS, 2006, p. 181). “Romero, como muitos membros de sua geração, abraçou tal revolução, reconhecendo as possibilidades tanto de um futuro desanimador como de um amanhã melhor” (MADDREY, 2004, p. 122). Para Goffman (2007, p. 53), os contraculturalistas realizaram apaixonadamente o que Nietzsche chamou de “transmutação de todos os valores”. Esta, “não mais o prazer causado pela certeza, mas pela incerteza; não mais a ‘causa’ e o ‘efeito’, mas a criação contínua; não mais a vontade de conservação, mas a vontade de potência” (NIETZSCHE, [s.d.], p. 285). Em suma, uma filosofia e um estilo de vida que implicam numa contínua transformação, com sistemas de valores, percepções e crenças mutáveis, como o objeto em si. 69 Retomando o panorama de fins dos anos de 1960, Tzioumakis considera este um dos períodos mais voláteis na história dos EUA — caracterizado pela inquietação política nas ruas de grandes metrópoles, como Nova York e Chigaco; pelo assassinato de figuras políticas extremamente influentes, como Robert Kennedy, Martin Luther King e Malcolm X; pela escalada da Guerra no Vietnã; pela continuidade da Guerra Fria com a União Soviética; e pelo ativismo de grupos sociais em termos de raça e sexualidade, e sua visibilidade crescente. Todos esses fatores teriam contribuído para uma mudança singular nas atitudes culturais, e essa nova postura refletiria nos filmes do período, originando uma “guerra dos novos independentes contra o cinema mainstream” (TZIOUMAKIS, 2006, p. 169). Scott Aaron Stine (2001, p. 12) aponta que os sinais de repressão sócio-política figuraram de forma proeminente na década anterior. Os anos de 1950 foram a época do Macartismo, 22 do prenúncio de uma catástrofe nuclear iminente, e do crescimento da ameaça da delinqüência juvenil. No cinema, Stine explica que “os espectadores estavam cansados de olhar para essa representação irreal e insípida do mundo, que terminava fora das telas, e exigiam ver algo mais”. Dessa maneira, mesmo os filmes mais liberais do final dos anos 1950 e início dos 1960 passaram a ser vistos como ingênuos construtos hollywoodianos. Essa “ingenuidade” pode ser considerada fruto de um mainstream escapista, que moldou nas telas um “mundo de fantasia” (STINE, 2001, p. 12). O resultado era tão simples moralmente, afirmou o produtor [de Os Boinas Verdes] à Variety, quanto ‘Cowboys e Índios. [...] Os americanos são os mocinhos e os vietcongues são os bandidos’. Os filmes de mensagem racial hollywoodianos eram apenas banais e anacrônicos. Espectadores jovens e politicamente engajados deviam estar desesperados para assistir a filmes que abordassem a desordem de sua época, ou que ao menos a admitisse – e, de preferência, sem sermões morais e elevação do moral (HERVEY, 2008, p. 24). 22 A histeria contra o comunismo, a “Caça aos vermelhos”, ficou conhecida popularmente como Macartismo. Foi uma campanha contra a subversão em todos os aspectos da vida americana. As investigações publicadas contra a suposta subversão de intelectuais, artistas e funcionários do governo federal, que resultaram em inúmeras demissões, centenas de sentenças de prisão e algumas execuções tornaram o senador anticomunista Joseph McCarthy o rosto público do anticomunismo. PURDY, Sean. O século Americano. In: KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2010, p. 173-195. 70 Enquanto isso, “a situação estava fora de controle no Vietnã, exceto para John Wayne, que dirigiu Os Boinas Verdes [The Green Berets, 1968] com a benção de Lyndon Johnson e a assistência massiva do Departamento de Defesa” (HERVEY, 2008, p. 24). Segundo Júlio César Lobo, esse filme se articula como um discurso persuasivo em meio às várias batalhas culturais em torno dos significados do conflito. “Trata-se de um filme político, destinado a marcar posições frente à opinião pública, aos políticos, aos militares, à imprensa etc.” (LOBO, 2007, p. 289). Nesse sentido, o cinema independente consolidou-se como um diferencial e uma alternativa divergente em relação ao modelo de narrativa hollywoodiano. A nova condição do cinema americano, afetado pela Renascença de Hollywood, esteve consideravelmente em maior sintonia com a situação social da cultura americana durante o período de 1967-75. A mudança nas atitudes e nos costumes [...] que a contracultura proporcionou não foi apenas o tema de muitos filmes do período [...]. Também refletiu na estilística e na experimentação narrativa que jovens cineastas, como Brian De Palma, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Paul Schrader, Dennis Hopper e muitos outros estavam praticando (TZIOUMAKIS, 2006, p. 169). Entretanto, ainda que mudanças na sociedade e na cultura tenham desempenhado um papel importante, Tzioumakis considera o fator econômico o fio condutor da evolução do cinema independente americano no fim dos anos 1960. “Enquanto o país estava em meio à convulsão social e cultural, a indústria cinematográfica americana defrontou-se com o seu próprio cenário de graves problemas [...]” (TZIOUMAKIS, 2006, p. 169-70). Esses problemas incluíam: a sobreposição financeira [...] do grande número de filmes familiares caros, que crescentemente começaram a vacilar na bilheteria [...]; o declínio contínuo das audiências [...]; o decréscimo no número de teatros; a entrada das redes de televisão no mercado, o que aumentou a competição e contribuiu com um excesso de produção [...]; e um Código de Produção extremamente obsoleto, que a indústria ainda tentava aplicar em tempo de vastas mudanças nos costumes sexuais. Em conjunto com os grandes problemas sociais e políticos que o país estava experimentando, os mesmos representaram uma série de obstáculos com risco de morte da indústria fílmica (TZIOUMAKIS, 2006, p. 169-70). 71 Continuando a argumentação, Tzioumakis explica que a recessão teve a sua presença sentida particularmente no período de 1969 a 1971. Em contrapartida, surgiu um modelo de produção independente de baixo orçamento, liderado por cineastas que se tornariam modelo para o mainstream hollywoodiano durante um breve período. Os filmes dessa “Nova Hollywood” combinavam estratégias de exploitation, técnicas artísticas de filmagem e uma ênfase em temas distintamente americanos. A diferença principal entre a “Nova Hollywood” e seus antecedentes, continua o autor, era o grau sem precedentes de controle criativo no processo de filmagem. Como resultado, o cinema americano entrou numa fase caracterizada pela realização de filmes estilisticamente diversificados e narrativamente desafiadores, produções mais sintonizadas com a atmosfera sócio-política da época (2006, p. 170). No fim dos anos 1950 e início dos 1960, explica Tzioumakis, um grupo de cineastas, que incluía John Cassavetes, Jonas e Adolfas Mekas, Shirley Clarke, Edward Bland, Alfred Leslie, Lionel Rogosin e Robert Frank, entre outros, desenvolveu uma abordagem distintamente anti-hollywoodiana. O movimento do New American Cinema pretendeu romper radicalmente com a corrente cinematográfica “oficial” do país, nutrindo forte afinidade com os movimentos que ocorriam em diversos países europeus, como a Nouvelle Vague, 23 na França; o Free Cinema, 24 na Grã-Bretanha; e outras tentativas similares de desenvolver o cinema independente na Itália, na Polônia e na União Soviética (2006, p. 172). Partindo dessa conjuntura, tentaremos aproximar a produção independente e a contracultura — esta “uma ‘ruptura’ por definição”, segundo Dan Joy, mas também uma 23 “Nouvelle vague”: Certamente um momento importante na história do cinema. A French New Wave surgiu no fim dos anos de 1950, apesar de ter tido precursores. O termo refere-se aos filmes feitos, em geral, por uma nova geração de cineastas franceses que produziam com baixo-orçamento e, de contrapunham-se às tendências dominantes do cinema de sua geração. HAYWARD, Susan. Cinema studies: the key concepts. 3. ed. New York: Routledge, 2006, p. 165-70. 24 “Free Cinema”: Termo cunhado por Lindsay Anderson em 1956 para designar uma série de documentários e curtas exibida no National Film Theatre. O primeiro programa (fevereiro de 1956) lançou o manifesto “Free Cinema”, no qual Anderson e um pequeno grupo de cineastas apelaram pela mudança na forma como era feito o cinema britânico e comprometeram-se com a inovação tanto em nível técnico quanto narrativo. Mais do que um movimento, pode-se falar em uma tendência do cinema. HAYWARD, Susan. Cinema studies: the key concepts. 3. ed. New York: Routledge, 2006, p. 162-65. 72 espécie de tradição, “a tradição de romper com a tradição, ou de atravessar as tradições do presente de modo a abrir uma janela para aquela dimensão mais profunda da possibilidade humana” (apud Goffman, 2007, p. 13). Para Goffman e Joy, essa dimensão seria a fonte perene do verdadeiramente novo na expressão e no esforço humano. Os autores definem a contracultura, em sua essência, como um fenômeno histórico perene, caracterizado pela afirmação do poder individual de criar sua própria vida, mais do que aceitar os ditames das autoridades sociais e convenções circundantes, sejam elas dominantes ou subculturais; Também rejeitam a definição de contracultura como um estilo de vida que simplesmente difere da cultura dominante. Ao identificarem no movimento uma característica antiautoritarista e não-autoritária, sustentam a intenção mútua e específica que serviu de motivação a praticamente todos aqueles que vestiram a camisa contracultural até os últimos anos (2007, p. 49). Nas palavras de Timothy Leary: A contracultura floresce sempre e onde quer que alguns membros de uma sociedade escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamento e comportamento que sinceramente incorporam o antigo axioma segundo o qual a única verdadeira constante é a própria mudança. A marca da contracultura não é uma forma ou estrutura em particular, mas a fluidez de formas e estruturas, a perturbadora velocidade e flexibilidade com que surge, sofre mutação, se transforma em outra e desaparece. A contracultura é a crista movente de uma onda, uma região de incerteza em que a cultura se torna quântica [...]. Aqueles que fazem parte de uma contracultura se desenvolvem nessa região de turbulências [...]. Na contracultura, as estruturas sociais são espontâneas e efêmeras. Os que fazem parte de contraculturas estão constantemente se reunindo em novas moléculas, se fissionando e reagrupando em configurações adequadas aos interesses do momento, como partículas se esbarrando em um acelerador de grande potência, trocando cargas dinâmicas. Nessas configurações eles colhem vantagem de trocar idéias e criações por intermédio de resposta rápida em pequenos grupos, conseguindo uma sinergia que permite que seus pensamentos e suas visões cresçam e se modifiquem quase no mesmo instante em que são formulados. A contracultura não tem uma estrutura formal nem uma liderança formal. Em certo sentido, ela não tem liderança; em outro sentido, é abarrotada de líderes, com todos os seus participantes inovando constantemente, invadindo novos territórios em que outros podem acabar penetrando [...]. Mas o que interessa à contracultura é o poder das idéias, imagens e da expressão artística, não a obtenção de poder pessoal ou político (LEARY apud GOFFMAN, 2007, p. 9-10). Apesar do caráter não-comercial das produções do “Novo Cinema Americano”, que não podiam sustentar financeiramente uma distribuidora, foi inevitável tomar uma direção 73 mais comercial, a partir de meado dos anos 1960, com a abertura do circuito mainstream para a exibição desses filmes. A produção de filmes comerciais possibilitou o trabalho de cineastas independentes originais, como Stan Brakhage, Gregory Markopoulos, Kenneth Anger, Michael Snow, Jack Smith, Robert Breer, James Broughton e Andy Warhol, defensores de um cinema alternativo que se dedicaram às produções não-narrativas, ao avant-garde e ao experimental (TZIOUMAKIS, 2006, p. 173). Nesse sentido, Ken Goffman sugere que as contraculturas sejam “movimentos de vanguarda transgressivos”, uma vez que “o apego contracultural à mudança e à experimentação inevitavelmente leva à ampliação dos limites de estética e das visões aceitas” (GOFFMAN, 2007, p. 54). “Apesar do fenômeno do Novo Cinema Americano ter sido de extrema curta-duração [...], ainda assim exerceu imensa influência [...], de maneira geral, nos rumos que o cinema americano independente tomou a partir de 1970” (TZIOUMAKIS, 2006, p. 173-4). O que tornou essa categoria independente especialmente importante não foi tanto o fato de a produção fílmica ter sido realizada por outras companhias, que não os grandes estúdios, mas sim o grande número de produtores independentes que atacaram, conscientemente, os códigos e as convenções do cinema americano mainstream, firmemente estabelecidos durante mais de um século. Falamos, aqui, de uma forma de resistência contra o poder previamente estabelecido dos grandes estúdios cinematográficos. Enquanto a sociedade americana estava em processo de questionamento de seus próprios alicerces, sepultando “o otimismo que dominara a vida e o espírito americanos desde a Segunda Guerra Mundial” (QUART; AUSTER apud TZIOUMAKIS, 2006, p. 179), os filmes independentes eram consideravelmente mais sensíveis às extensas mudanças culturais do período. Eram representantes da contracultura, ou seja, surgiam como uma forma alternativa de cultura desenvolvida com base nas diferenças de atitudes, costumes e estilos 74 entre a juventude americana e as gerações mais velhas, pois estas ainda representavam a cultura oficial, o establishment (TZIOUMAKIS, 2006, p. 179). Com os ex-estúdios [...] representando, claramente, o establishment do cinema americano, não era de surpreender que o novo cinema independente, de baixo- orçamento, fosse automaticamente considerado o cinema da contracultura, um cinema orientado especificamente pela juventude e firmemente endossada por ela (TZIOUMAKIS, 2006, p. 179). 4. O Poder das Ideias Elegemos A Noite dos Mortos-Vivos o objeto de nossa análise devido à grande importância que assume em diversas esferas. Contudo, dentro da vertente cinematográfica que se desenvolveu à margem do establishment, devemos considerar o primeiro filme de Romero uma manifestação contracultural em meio a tantas outras. Falamos aqui do cinema independente, capaz de capturar o estado de espírito de uma nação em desordem. Neste tópico analisaremos o ambiente social que fomentou o interesse pelo cinema nos “filhos dos anos 1950” (HOBERMAN; ROSENBAUM, 1987, p. 115) — a nova geração, desiludida com o status quo —, estimulando a produção de filmes de baixo orçamento. Sabe-se que o interesse pelo cinema, aliado ao engajamento político e à maior liberdade de expressão autorizada pela produção independente, resultaria na produção fílmica de diversos cineastas. Para Sean Purdy, as rebeldias sociais e políticas que marcaram os anos 1960 evidenciavam descontentamentos e conflitos dentro dos EUA. Os movimentos sociais que tomavam forma eram caracterizados pela valorização da juventude, pelas idéias antielitistas e pela ênfase no combate à hipocrisia e à alienação da sociedade americana em detrimento da preocupação com luta de classes e miséria econômica (2010, p. 249). Essas manifestações 75 tendiam a atuar entre estudantes e grupos oprimidos, alimentando movimentações contra a Guerra no Vietnã, em favor dos direitos estudantis e por maior liberdade individual na vida cotidiana. Podemos identificar os princípios ideológicos desses jovens, que propagaram a revolução ao redor do globo, na Declaração da organização nacional de estudantes, o Students for a Democratic Society (SDS), de Port Huron, movimento em prol de uma sociedade mais democrática e igualitária. O documento, datado de 1962, foi transcrito por Ken Goffman: Nós somos pessoas desta geração, criados em conforto modesto, agora instalados nas universidades, olhando desconfortavelmente para o mundo que herdamos [...]. À medida que crescemos, porém, nosso conforto foi invadido por acontecimentos perturbadores demais para serem ignorados. Primeiramente, o fato disseminado e cruel da degradação humana, simbolizado pela luta do Sul contra a intolerância racial, levou a maioria de nós do silêncio para o ativismo. Depois, a Guerra Fria, simbolizada pela presença da Bomba, trouxe a consciência de que nós e nossos amigos e milhões de outros “abstratos” podemos morrer a qualquer momento [...]. Nós consideramos os homens infinitamente preciosos e dotados de capacidades não realizadas de razão, liberdade e amor. Ao afirmarmos esses princípios estamos conscientes de sermos contrários talvez às concepções dominantes do homem no século XX: de que ele é algo para ser manipulado, e que ele é inerentemente incapaz de conduzir seus próprios negócios. Nós nos opomos à despersonalização que reduz os seres humanos aos status de coisas [...] (apud GOFFMAN, 2007, p. 279). A Declaração aborda a degradação humana e o medo da morte iminente, e clama por valores humanos fundamentais: as “capacidades não realizadas de razão, liberdade e amor”. Considerando essas ansiedades, pretendemos analisar a questão da moral e o medo da morte em A Noite..., partindo do princípio de que o filme seria uma projeção alegórica do ano de 1968. Segundo a análise de Richard H. W. Dillard (1987, p. 27), a fonte de horror do filme advém do medo do próprio mundo comum e das limitações humanas. Em relação a esse ponto, o argumento do autor vai ao encontro do discurso da SDS, principalmente no que se refere à “intolerância racial” e “à consciência de que nós e nossos amigos e milhões de outros ‘abstratos’ podemos morrer a qualquer momento” (apud GOFFMAN, 2007, p. 279). No momento em que o tradicional medo da morte perde força no filme, ele é substituído por outro medo, um menos fácil de ser definido e muito mais difícil de ser superado depois que se estabelece. Os personagens mortos do filme, bem como 76 os vivos, são pessoas comuns – desfiguradas pela morte e pela vida artificial, mas ainda assim nitidamente comuns. Alguns deles estão completamente vestidos; um deles é um tanto gordo e usa apenas calções; outro é uma mulher jovem, e ela está nua. Eles aparentam vulnerabilidade, e eles são vulneráveis, a um golpe na cabeça ou ao fogo. Conforme o perigo que representam torna-se mais trivial no filme, o outro medo se revela. As pessoas vivas são perigosas umas para as outras. Não apenas por serem mortos-vivos em potencial, pois podem morrer, mas porque são humanos, e possuem todas as ordinárias fraquezas humanas [...]. Muito mais aterrorizante do que os riscos familiares, são os riscos do próprio mundo ordinário (DILLARD, 1987, p. 21-2). Para Dillard, A Noite... transforma um mundo trivial e familiar num panorama de horror interminável, processo que revelaria a natureza moral do filme e o sentimento de medo incitado nos espectadores. Entretanto, se a fonte de horror não advém, meramente, do medo da morte e do mundo ordinário, residiria na negação de vencer esses mesmos temores de modo a não sacrificar a dignidade e os valores humanos (1987, p. 27). Em A Noite..., sempre que alguém morre os seus valores morrem consigo. Ao mesmo tempo, podemos dizer que o temor alojado nas profundezas da consciência humana não se refere apenas à morte, mas à morte certa. O medo da morte iminente, evidente no trecho supracitado da Declaração da SDS, corrobora o argumento de Dillard, além de relacionar a obra e o momento histórico de sua produção — o contexto da Guerra Fria, período marcado pelo temor da aniquilação nuclear. De acordo com Timothy Leary, “o que interessa à contracultura é o poder das idéias, imagens e da expressão artística, não a obtenção de poder pessoal ou político” (apud GOFFMAN, 2007, p. 9-10). Nesse sentido, Goffman considera a comunicação intelectual fundamental para a formação de contraculturas: a comunicação aberta, o livre intercâmbio de arte e pensamento entre semelhantes, constituiria um elemento importante de multiplicação de comunidades contraculturais (2007, p. 55). Se por um lado os artistas posteriores recorrem, conscientemente, em suas produções, aos mestres anteriores (KAYSER, 1986, p. 162), Marc Bloch (2001, p. 151) aponta que os homens nascidos em um mesmo ambiente social, em datas próximas, constituem uma geração e sofrem, necessariamente, influências análogas, em particular em seu período de formação. Bloch continua a argumentação: 77 A experiência prova que seu comportamento apresenta, em relação aos grupos sensivelmente mais velhos ou mais jovens, traços distintivos geralmente bastante nítidos. Isso até em suas discordâncias, que podem ser das mais agudas. Apaixonar- se por um mesmo debate, mesmo em sentidos opostos, ainda é assemelhar-se. Essa comunidade de marca, oriunda de uma comunidade de época, faz uma geração (BLOCH, 2001, p. 151). Em sua juventude, nos anos 1950, Romero não era o único que nutria interesse pelo cinema. Naquela época, de acordo com os críticos James Hoberman e Jonathan Rosenbaum, uma nova geração de crianças americanas estava colocando as mãos em câmeras. Vários quilômetros ao sul de Parkchester, o agradável bairro em que vivia Romero, os gêmeos George e Mike Kuchar, filhos da classe trabalhadora, com apenas doze anos de idade, tinham acabado de finalizar a sua primeira produção em oito milímetros, The Wet Destruction of the Atlantic Empire, filmada do telhado de um cortiço do Bronx. Em Denver, Stan Brakhage, aos vinte anos, envolvia-se com uma narrativa expressionista adolescente. Enquanto isso, nas salas de cinema ao redor dos EUA, alguém perguntava a Marlon Brando, o anti-herói de jaqueta de couro de O Selvagem (The Wild One, dir. Laslo Benedek, 1953), contra o quê ele estava se “rebelando” (HOBERMAN; ROSENBAUM, 1983, p. 113). Falamos aqui de um novo modo de fazer cinema, conectado aos ideais do movimento contracultural e de sua busca por uma reflexão sobre o caos da vida nos EUA. Dentro desse modo, que se desenvolveu nas décadas de 1950 e 1960, atingindo o ápice nesta última, destacamos A Noite dos Mortos-Vivos, “um filme independente rodado longe dos holofotes de Hollywood” (MADDREY, 2004, p. 50). Consideramos o nosso objeto a representação de algo novo para a época, “um filme feito por jovens politicamente engajados, sem os olhares da geração mais velha sobre seus ombros” (HERVEY, 2008, p. 27). Segundo Mary Douglas (1991, p. 54), a cultura exerce certa autoridade e, por serem públicas, as categorias culturais são ainda mais rígidas. Porém, “[...] qualquer cultura deve, mais tarde ou mais cedo, deparar com acontecimentos que parecem desinquietar as suas idéias pré-concebidas”. 78 Na canção-título de seu terceiro álbum de estúdio, The Times They Are a-Changin’ (1964), o músico americano Bob Dylan clama: “Venham mães e pais/ De toda a terra/ E não critiquem/ O que não podem entender/ Seus filhos e filhas/ Estão além de seu comando/ Sua velha estrada/ Está rapidamente envelhecendo/ Por favor, saiam da nova [...] Pois os tempos estão mudando”.25 Igualmente, a canção Changes, de David Bowie, indica as “mudanças” que se processavam naquele período. Considerada um manifesto, a melodia revela, de maneira crítica e pungente, o Zeitgeist de início dos anos 1970; destaca, ainda, o posicionamento da juventude em sua época e serve de mensagem à geração de seus pais: “Assim, os dias passam diante dos meus olhos/ Mas os dias ainda parecem os mesmos/ E essas crianças nas quais você cospe/ Enquanto tentam mudar seu mundo/ São imunes aos seus conselhos/ Elas bem sabem pelo que estão passando […]”.26 Entretanto, devemos relativizar a questão da mudança. Faremos isso com base num dos subtítulos do texto de Hervey: “o mundo não mudou”. 5. Repensando a Mudança Quando a noite dos mortos-vivos chega ao fim, dando lugar à luz do dia que drena a atmosfera da casa de fazenda abandonada, Ben, o último sobrevivente, destranca a porta do porão, onde estivera escondido durante a madrugada, e começa a explorar o andar superior. As criaturas haviam desaparecido. Do lado de fora, o pelotão de fuzilamento acaba com os últimos retardatários, quando um dos homens ouve um barulho dentro da casa. Vemos Ben da 25 Livre tradução de: “Come mothers and fathers/ Throughout the land/ And don’t criticize/ What you can’t understand/ Your sons and your daughters/ Are beyond you command/ Your old road is/ Rapidly agin(g)’/ Please get out of the new one/ […] For the times they are a-changin’”. Bob Dylan, The Times They are a- Changin’, 1964. 26 Livre tradução de: “So the days float through my eyes / But still the days seem the same / And these children that you spit on / As they try to change their worlds / Are immune to your consultations / They're quite aware of what they're going through […]”. David Bowie, Changes, 1971. 79 perspectiva do pelotão, aproximando-se cautelosamente da janela — ele não se parece com um zombie. Alheio a esse fato, um trabalhador rural branco aponta para ele a sua arma, o xerife se inclina para ajudar, e então atira. Subitamente, Ben está morto. A morte de Ben nos atinge mais duramente porque pouco se faz a respeito. Não há música, e os efeitos sonoros são subestimados. Um [...] close-up mostra o projétil derrubando Ben fora de quadro, e um plano médio de um segundo mostra o seu corpo sem vida atingindo o chão. Isso é tudo: não há cena de morte elaborada nem momento de glória para esse herói. [...] “Belo tiro”, diz o xerife McClelland. Ele parecia entediado ao entoar a última frase do filme, cruelmente banal: “OK, ele está morto. Vamos pegá-lo. Será mais um para a fogueira” (HERVEY, 2008, p. 113). De acordo com Hervey (2008, p.118), “nosso herói não está apenas morto, mas obliterado. Não haverá registro de sua luta, nenhum enterro ou memorial, nem esperança ou justiça”. Duane Jones, o ator que interpretou Ben, declarou ter sido sua a ideia do pelotão atirar no personagem. “Eu convenci George de que a comunidade negra preferiria me ver morto a ser salvo [...] de uma forma piegas e simbolicamente confusa” (apud HERVEY, 2008, p. 113). O final do filme parece ainda mais chocante por mostrar-se de certa forma inevitável — um negro que se tornara líder sendo morto pelos seus “inimigos naturais, os policiais de Pittsburgh e os fazendeiros” (McGUINNESS apud HERVEY, 2008, p. 114). Quando de seu lançamento, igualmente inevitável foi a associação de A Noite... com o assassinato de Martin Luther King. Antes dele, aponta Hervey, outros líderes negros haviam sido mortos, notadamente Medgar Evers, em 1963, e Malcolm X, em 1965, sem contar os linchamentos de menor visibilidade. Então, a implicação do filme seria a seguinte: os atiradores brancos sabiam que sua vítima negra estava viva, e não se arrependeram disso. “Sombras da guerra e do racismo se misturam conforme os homens derramam gasolina sobre Ben e ateiam fogo (HERVEY, 2008, p. 116)”. Segundo o autor, “o mundo não mudou”: Todos morrem: essa é a verdade fundamental, mas nenhum filme de horror havia terminado dessa forma, antes. A Noite... encara a realização do pesadelo contra o qual a geração de Romero lutava [...]: [os jovens] poderiam seguir todas as regras, 80 ou fazer tudo que a televisão dissesse, mas ainda assim morreriam, condenados pela loucura de seus líderes, cientistas e generais. E, além disso, todos morreriam, coletivamente e sem cerimônia: misturados em ilhas irreconhecíveis de carne e cinzas. A fogueira, no final, nos deixa irritados com relação aos atiradores, mas também nos deixa no nítido aguilhão da insignificância, o absurdo de um mundo que pode virar fumaça “sem qualquer aviso!” (HERVEY, 2008, p. 118). Esses apontamentos estabelecem uma relação entre cinema e história, a obra e seu tempo. O próprio Romero definiu o sentido de realizar o seu primeiro filme naquele dado contexto. De acordo com o cineasta, A Noite... falava sobre a revolução, sobre as novas gerações tomando o lugar das mais velhas. Nosso conceito era de que uma revolução e um novo mundo estavam a caminho. No fim dos anos sessenta esperávamos mudar o mundo de alguma forma. Queriam alcançar uma mudança que por fim nunca ocorreu, e nesse momento todos nos decepcionamos muito. Eu tentei usar isso. Na noite em que terminamos o filme, entramos no carro e viajamos a Nova York para ver se alguém se interessava em exibi-lo. E naquela noite, enquanto viajávamos, escutamos na rádio que Martin Luther King havia sido assassinado. Por isso, foi uma noite muito estranha, estávamos todos muito irritados. Com tudo, com a Guerra no Vietnã, com a idéia de que a nossa opinião não contava... Incomodava-nos pensar que, depois de tudo o que uma pessoa fizera, nada mudaria. Assim, foi essa a mensagem que tínhamos em mente naquele momento (ROMERO apud SARACINO, 2009, p. 41). Selecionamos um trecho da citação de Romero no intuito de traçar uma análise comparativa: “Incomodava-nos pensar que, depois de tudo o que uma pessoa fizera, nada mudaria” (apud SARACINO, 2009, p. 41). Agora, nos deteremos sobre a óptica de Maddrey e Bowie sobre o período, respectivamente: “Nos Estados Unidos de George Romero, quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas” (MADDREY, 2004, p. 122); nos primeiros dois versos do trecho supracitado de Changes, lemos: “Assim, os dias passam diante dos meus olhos/ Mas os dias ainda parecem os mesmos [...]”. Traçando uma analogia entre esses três discursos, observamos certa carga de niilismo na representação dos anos finais da década de 1960 e de início dos anos de 1970. Reafirmamos, então, o argumento de Jamie Russel (2010, p. 119), segundo o qual “o niilismo de Romero parecia muito sintonizado com o seu tempo”. Esse “niilismo” pareceu transparecer nas manifestações contraculturais através das vozes de jovens engajados, desiludidos com os rumos que a sociedade americana tomava. 81 Devemos lembrar, também, que dessa mesma música deriva o termo “impermanência entusiasta”, aqui utilizado para definir o movimento perene de busca pelo verdadeiramente novo e o desejo de mudança fomentado pelo movimento contracultural. * Em suma, o cinema independente americano e a postura dos seus jovens cineastas revelam uma faceta do complexo fenômeno denominado contracultura, ao oferecer uma alternativa ao cinema mainstream e, até certo ponto, propor o rompimento com o establishment da indústria fílmica. Reafirmamos, então, que o filme de Romero surgiu no interior da conjuntura sociopolítica de finais dos anos 1960. Aliado à produção contracultural de seu tempo, desempenhou papel importante ao desafiar a política norte-americana, os valores tradicionais da nação e o próprio sistema econômico capitalista, através de uma reflexão sombria a respeito das relações de poder no interior da sociedade. Para Hervey (2008, p. 22), A Noite... “foi lançado em um ano infame para os Estados Unidos, quando as tensões que se edificaram ao longo dos anos irromperam em fogo e sangue”. No próximo capítulo, explicitaremos o caráter político e econômico do cinema independente americano no fim dos anos 1960, considerado aqui o fio condutor de seu desenvolvimento. Observaremos também a questão do poder, as imbricações entre a obra de Romero e os ideais revolucionários da contracultura, considerando, entre outros aspectos, o recurso à morte violenta, utilizado pelo cineasta, em A Noite..., enquanto alternativa para escapar do sistema capitalista. Dentro daquele contexto de violência e crise, em que os massacres no Vietnã eram exibidos para o consumo em massa, não podemos perder de vista 82 que Romero concedeu a morte violenta a cada um dos seus personagens, vivos e mortos- vivos. Todos, de certa forma, proscritos. Talvez esse tenha sido um recurso para desafiar o status quo e a hegemonia política, mesmo que de maneira inconsciente. Essa característica conectaria o filme ao movimento contracultural, caracterizado pela ideia de mudança. Partindo desses pressupostos, analisaremos a estética da obra, a função política da alegoria e a matriz contracultural do “modelo romeriano” de horror. Protesto contra a Guerra no Vietnã, São Francisco, EUA, 1967. 83 Capítulo III O MAL RESIDENTE Nós somos os mortos-vivos. Rick Grimes, Os Mortos-Vivos, 2009. 1. A Função Política da Alegoria Para Jamie Russel (2010, p. 18), “os monstros que dominam qualquer cultura ou período particular oferecem um vislumbre pouco usual dos medos e tensões que caracterizam o momento histórico”. A figura do monstro, em A Noite dos Mortos-Vivos, é definida por Joseph Maddrey (2004) enquanto emblema do caos secular, recurso comparável ao “Dia do Julgamento Final”, utilizado por Alfred Hitchcock em Os Pássaros (The Birds, 1963) para exteriorizar o fracasso das relações humanas. Em História da Feiúra, Umberto Eco evoca uma declaração poética de Romero, na qual o diretor de A Noite... explica a natureza dos seus monstros. Para o cineasta, a despeito da pele rugosa e putrefaciente, dos dentes e unhas negras, os seus mortos-vivos são indivíduos com paixões e exigências como as dos humanos (apud ECO, 2007, p. 422). Em contraste, caso consideremos os mortos-vivos vítimas de uma enfermidade, devemos lembrar que para Nietzsche os doentes e os fracos seriam mais compassivos e mais “humanos”, pois “têm mais espírito, são mais mutáveis, mais múltiplos, mais divertidos, — mais malignos; [...]”. Além disso, “os doentes e os fracos têm a seu favor a fascinação, são mais interessantes que os bem saudáveis; [...]” ([s.d.], p. 291). Em seus filmes, Romero acrescenta que 84 os mortos que voltam à vida representam uma espécie de revolução, uma reviravolta radical num mundo que muitos dos personagens humanos não conseguem entender, preferindo marcar os mortos vivos como o Inimigo, quando na realidade eles são nós. Utilizo o sangue em toda a sua horrenda magnificência para que o público entenda que meus filmes são antes uma crônica sociopolítica dos tempos do que [...] aventuras com molho de terror (ROMERO apud ECO, 2007, p. 422). Como nos lembra Ben Hervey, A Noite... foi considerado pelo crítico Ado Kyrou “un film politique” disfarçado de um (efetivo) filme de horror (2008, p. 21). Hoberman e Rosenbaum o definem enquanto uma eficiente projeção de 1968, e conferem à sua estética o papel de estabelecer uma conexão com o contexto social contemporâneo e com as questões que estavam na ordem do dia, quando de seu lançamento (1983, p. 125). Sem perder de vista o contexto de fins da década de 1960, esmiuçado no capítulo anterior, as questões às quais os autores se referem seriam o racismo, o colapso da família nuclear americana e a ressurreição do conservadorismo na política. Por conseguinte, no que se refere à recepção do filme, leituras políticas foram praticamente inevitáveis. [A Noite...] foi lançado em um ano infame para os Estados Unidos, quando as tensões que se construíram durante vários anos irromperam em fogo e sangue: 1968 se desenrolou como um longo filme de horror, desprovido de lógica, explicação ou final feliz (HERVEY, 2008, p. 22). Os críticos europeus Serge Daney 27 e Elliot Stein 28 (apud HERVEY, 2008, p. 21) fizeram uma leitura de A Noite... enquanto uma alegoria. Adotamos, aqui, a definição de Nicolau Sevcenko (1996, p. 118-9) de alegoria como modo de representação simbólica, uma vez que “o princípio da representação alegórica [...] é a função política que ela comporta”. Para Craig Bernardini, a mais importante contribuição de Romero para o subgênero foi a criação da figura do zombie como alegoria da sociedade norte-americana (2010, p. 180). Em contraste, Hervey não reserva a esse filme o mero papel de alegoria coerente, por considerar 27 DANEY, Serge. Night of the Living Dead. Cahiers du cinéma, n.219, p.65, abril 1970. Acesso em: 15 jan. 2012. Fonte: . 28 STEIN, Elliot. Sight and Sound, vol.39, n.2, p.105, 1970. Acesso em: 15 jan. 2012. Fonte: 85 que o mesmo não teria sido estruturado enquanto tal. Para o autor, houve “fatores acidentais” durante a sua produção, mas o filme e seu roteiro teriam se formado justamente a partir desses fatores (2008, p. 25). Romero declarou não ter iniciado a sua carreira como um alegorista consciente, aponta Bernardini, e chegou a surpreender-se quando a crítica pôs-se a identificar mensagens em A Noite..., atribuindo ao filme uma gama de significados que se relacionavam com o momento histórico de sua produção (2010, p. 178). Deveras, o próprio Romero parece sempre ter demonstrado certa ambivalência para com a questão da alegoria. A despeito dos “fatores acidentais”, sugeridos por Hervey (2008, p. 26), o cineasta revelou ter concebido a história originalmente como uma alegoria, algo que interpretava durante a filmagem. “Eu escrevi A Noite... como uma história curta, que estranhamente era uma coisa alegórica, mas, quando realizamos o filme, a alegoria ficou de fora. Mas não inteiramente” (apud HERVEY, 2008, p. 17). Tentando elucidar essa questão, Maddrey também evoca as palavras do cineasta: Era 1968, cara. Todos tinham uma “mensagem”. Eu estava apenas rodando um filme de horror, e acho que a raiva e a atitude e tudo o que está lá, apenas está lá porque era 1968... Eu não vou abandonar a alegoria nos filmes de zumbis. Eu sinceramente penso nisso e tento fazer funcionar, mas o maior trabalho é dominar todos esses pensamentos, porque essas coisas podem facilmente interferir com aquilo que você está fazendo, e o que você está fazendo é uma história em quadrinhos, na superfície (ROMERO apud MADDREY, 2004, p. 124). Em certa ocasião, Romero declarou a Dan Yakir que a fantasia sempre foi utilizada como uma parábola, como uma crítica sociopolítica. Entretanto, como vimos, a reação da crítica parece ter ao mesmo tempo surpreendido e conscientizado Romero a respeito da “mensagem” em seu filme — e do poder simbólico do morto-vivo, o que determinaria a construção das alegorias sociais em suas produções seguintes (BERNARDINI, 2010, p. 178). Após o lançamento de Zombie – O Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, 1978), o segundo filme da sua série sobre os mortos-vivos, o cineasta declarou que o interesse pelos zombies advém da identificação dos mesmos com a classe operária. Nesse sentido, os mortos- 86 vivos seriam “aqueles que ‘saem para coletar a cana de açúcar’ enquanto ‘Lugosi vive em um castelo’” (apud BERNARDINI, 2010, p. 178). Dessa maneira, parece inevitável traçar paralelos entre a representação romeriana do monstro e a escravidão ou o proletariado inglês, considerando, no que se refere a este último, a “destruição imposta a seus corpos orgânicos”, a “decomposição de suas identidades pessoais” por parte do capital, na óptica de François Lyotard (apud Châtelet, 2000, p. 381-2). Lembremos as similitudes e as divergências entre o zumbi escravo, associado àqueles que desempenharam um papel na Revolução Haitiana, 29 e o zombie capitalista, a importação americana do monstro. Enfim, para Hervey (2008, p. 13) o primeiro filme de Romero foi “um abalo para a indústria cinematográfica, um golpe na supremacia hollywoodiana e uma duradoura inspiração para os cineastas regionais independentes”. Nesse sentido, consideramos que a usabilidade de A Noite... enquanto manifestação da contracultura parte do princípio da “utilização do zombie como uma lente através da qual podemos examinar o momento histórico” (BERNARDINI, 2010, p. 179). Agora, faz-se necessário observar a figura do zombie enquanto representação do não- humano, esta que se consolida após a morte e a reanimação do corpo, sendo a própria morte uma forma de reação ao Estado e suas instituições tradicionais. Ou seja, abordaremos a morte enquanto reação ao poder, nos termos de uma alegoria da sublevação das camadas sociais rejeitadas e dos movimentos sociais que se opõem à exploração capitalista a partir das margens. Veremos, então, como a utilização do zombie proposta por Bernardini aparece ao longo da história e até que ponto se mantém atual. 29 O Haiti, antiga colônia francesa de Saint-Domingue, foi, em 1804, o primeiro estado negro, na história moderna, a obter sua independência, e o único exemplo de “descolonização” revolucionária puramente indígena no século XIX. Nos primórdios do século XX, esse pequeno Estado soberano tornou-se objeto de uma “relação desigual” com potências mundiais. MANIGAT, Leslie. Haiti: da hegemonia francesa ao imperialismo americano. In: FERRO, Marc (org.). O livro negro do colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 243. 87 2. Morte versus Poder De acordo com Ken Goffman, há princípios fundamentais, ou “metavalores”, que distinguem da sociedade hegemônica as contraculturas, bem como de subculturas, minorias étnicas e religiosas e grupos dissidentes não-contraculturais. Dessa maneira, as características fundamentais da contracultura seriam três: 1) As contraculturas afirmam a precedência da individualidade acima de convenções sociais e restrições governamentais; 2) As contraculturas desafiam o autoritarismo de forma óbvia, mas também sutilmente. Esse seria um fruto direto de seu individualismo. Algumas contraculturas podem desafiar o explícito controle dos indivíduos pelo Estado ou pelos poderes religiosos. Mas todos desafiam o autoritarismo mais sutil exercido por sistemas de crença rígidos, convenções amplamente aceitas, paradigmas estéticos inflexíveis e tabus explicitados ou não; 3) As contraculturas defendem mudanças individuais e sociais (GOFFMAN, 2007, p. 50). Ao analisar a ideia de mudança social defendida pelas contraculturas, devemos recordar a definição de Gilles Deleuze acerca da noção de “reforma” enquanto conceito elaborado por pessoas que têm como ocupação falar pelos outros e em nome dos outros, ou seja, que se pretendem representativas. Seria esta uma reorganização do poder, uma distribuição de poder que se acompanha de uma repressão crescente. Ou referir-se-ia a uma reforma reivindicada, exigida por aqueles que a ela dizem respeito, e então deixaria de ser uma reforma e passaria a ser uma ação revolucionária que, por seu caráter parcial, estaria decidida a colocar em questão a totalidade do poder e sua hierarquia (apud FOUCAULT, 2011, p. 72). François Châtelet evoca Freud (2000, p. 372), ao apontar que a civilização impõe ao homem que renuncie a seus desejos, que os reprima. Em contrapartida, Goffman (2007, p. 50-1) sugere que defender o primado da individualidade, um aspecto fundamental 88 para a contracultura, implicaria em estimular, encorajar e defender a expressão social, não apenas no sentido de “liberdade e opinião”, mas também no que se refere a crenças, aparência pessoal, sexualidade e todos os outros aspectos da vida. A revolta, então, virá das margens, das camadas sociais rejeitadas e, por isso, capazes de negação e de oposição radical. Marginalizadas por seu estatuto, excluídas das compensações do rendimento, tais camadas recusam o jogo da sociedade industrial e conservam a dinâmica do princípio do prazer. Somente elas podem lutar por uma revolução fundamental, que acabe com a exploração e promova uma erotização geral da existência (CHÂTELET, 2000, p. 373). Michel Foucault parece concordar, e sugere que se a luta é contra o poder, então todos aqueles sobre quem o poder se exerce como abuso, todos aqueles que o reconhecem como intolerável, podem começar a luta onde se encontram e a partir de sua atividade (ou passividade) própria. Assim, iniciando a luta, de que podem determinar o método e conhecem perfeitamente o alvo, entram no processo revolucionário (2011, p. 77). Evidentemente como aliados do proletariado pois, se o poder se exerce como ele se exerce, é para manter a exploração capitalista. Eles servem realmente à causa da revolução proletária lutando precisamente onde a opressão se exerce sobre eles. As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes nos hospitais, os homossexuais iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de controle que se exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do processo revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem compromisso nem reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança de titular. E, na medida em que devem combater todos os controles e coerções que reproduzem o mesmo poder em todos os lugares, esses movimentos estão ligados ao movimento revolucionário do proletariado (FOUCAULT, 2011, p. 77-8). De acordo com Hegel, a motivação do homo economicus é o interesse. Nesse sentido, a sociedade civil seria o sistema instável onde funciona livremente a satisfação das necessidades egoístas; o lugar onde a liberdade real se perde e se dissolve nos atalhos estéreis do interesse. Nesse sentido, “cada indivíduo ‘atomizado’ e submetido ao único princípio do interesse não pode deixar de constituir-se como adversário de todos os outros” (CHÂTELET, 1995, p. 131). Foucault aponta que o significado de poder parece não estar ainda bem 89 definido. “Marx e Freud talvez não sejam suficientes para nos ajudar a conhecer esta coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda a parte, que se chama poder”. O filósofo continua a argumentação. No que se refere à questão do poder, da desigualdade de poderes e de suas lutas, considera que as mesmas se desenvolvem em torno de um foco particular de poder, ou seja, de um dos inúmeros focos de poder que não se encontram através de uma relação direta com o Estado (considerado o aparelho central e exclusivo de poder), mas por uma articulação com poderes locais, específicos, circunscritos a uma pequena área de ação, como um pequeno chefe, um diretor de prisão, um juiz, um responsável sindical (2011, p. 75). No interior de cada ofício instala-se o conflito; entre as profissões, desenvolve-se a concorrência; no âmago da sociedade, classes opõem-se, aquelas às quais a contingência histórica deu a posse dos meios de subsistência e aquelas que, na privação, são apenas o que fabricam (CHÂTELET, 1995, p. 131). Nos anos 1960, o historiador Iain Gunn aponta que “para a massa de trabalhadores a greve não era apenas sobre pagamento e condições — era sobre poder” (apud GOFFMAN, 2007, p. 314). Porém, o clima de tumulto nas ruas e os conflitos não se limitavam aos EUA e à França. “Em 1968-1969 houve grandes revoltas de jovens [...] em praticamente todos os países da Europa Ocidental, bem como no México, no Japão e na Tchecoslováquia comunista” (GOFFMAN, 2007, p. 319). De acordo com Jean François Lyotard, “o que a nova geração realiza é o ceticismo do kapital, seu niilismo: não há coisas, pessoas, fronteiras [...], saberes, crenças; não há razões para viver/morrer” (apud CHÂTELET, 2000, p. 381). Mas para Lyotard esse niilismo seria, ao mesmo tempo, a mais forte afirmação, pois contém a liberdade potencial das pulsões em face da lei do valor. Para milhões de jovens [...], o desejo não mais se inscreve no desenvolvimento kapitalista [...]; eles não se vêem mais e não mais se comportam como força de trabalho a ser valorizada em função de troca, ou seja, de consumo [...]; têm repugnância pelo que o kapital continua a chamar de trabalho, de vida moderna, de 90 consumo, por todos os valores da nação, família, Estado, propriedade, profissão, educação, valores que percebem como paródias do único valor, o valor da troca (LYOTARD apud CHÂTELET, 2000, p. 381). Segundo Goffman, a influência ideológica dos novos-esquerdistas vinha do filósofo neomarxista contemporâneo Herbert Marcuse (2007, p. 304). John Abromeit e W. Mark Cobb nos lembram que Marcuse chegou a ser denominado como o “pai” ou o “guru” da Nova Esquerda, uma vez que os seus livros, em particular Eros and Civilization (1955) e One- Dimensional Man (1964), repercutiram profundamente entre os estudantes na década de 1960, perturbados pela natureza destrutiva da sociedade industrial avançada e ansiosos por uma sociedade e uma existência mais livres e libidinais (2004, p. 2). Marcuse fez parte de uma tradição historicista de crítica teórica que rejeitava o essencialismo e via o desenvolvimento de subjetividade na história, numa interação com condições sócio-políticas específicas. Seguindo Adorno e Horkheimer e a antiga tradição da Escola de Frankfurt, Marcuse também via como opressoras e repressoras as formas dominantes de subjetividade, enquanto nos desafiava a reconstruir a subjetividade e a desenvolver uma nova sensibilidade, qualitativamente distinta da subjetividade normalizada das contemporâneas sociedades industriais avançadas. Em particular, Marcuse estava engajado numa busca vitalícia por uma subjetividade revolucionária, por uma sensibilidade que pudesse revoltar-se contra a sociedade existente e tentasse criar uma nova (KELLNER, 2004, p. 82). Devemos, uma vez mais, repensar a questão da mudança. Marcuse, por sua vez, parece ter deixado pouca esperança para a mesma em sua análise. Para o filósofo, a romântica classe operária de esquerda tinha sido totalmente comprada pela riqueza material, submetida à lavagem cerebral pelos meios de comunicação, e já não era capaz de desafiar o sistema. O capitalismo tinha desenvolvido suas habilidades de cooptação e podia absorver todas as formas de rebelião e mesmo aparente revolução (GOFFMAN, 2007, p. 304). Em The Making of a Counter Culture, Theodore Roszak explica o ponto de vista de Marcuse: É impossível o pensamento escapar à comunicação por suposições subjacentes à estrutura e ao comportamento das instituições existentes. A linguagem e a filosofia se tornam instrumentos por intermédio dos quais o homem é impedido de se tornar consciente da existência da possibilidade de sua própria libertação. [...] Sexo, 91 ‘tolerância’ como um princípio geral, liberdades civis – tudo isso tem [...] aspectos manipuladores; ‘a dessublimação repressiva’ evita a verdadeira libertação instintiva, embora ‘sob o comando de um todo repressivo a liberdade possa ser convertida em um poderoso instrumento de dominação’ (ROSZAK apud GOFFMAN, 2007, p. 304). Eric Hobsbawm também relativizou a questão da revolução. Se entre esquerdistas e mesmo entre alguns hippies a nova palavra era “revolução”, as massas de rapazes e moças e seus professores constituíam um novo fator na cultura e na política. Entretanto, ressalva o historiador, o motivo pelo qual 1968 não foi a revolução “e jamais pareceu que seria ou poderia ser, era que apenas os estudantes, por mais numerosos e mobilizáveis que fossem, não podiam fazê-la sozinhos” (2001, p. 293). Nesse sentido, devemos relembrar as palavras de Maddrey, sobre o universo romeriano: “quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas” (2004, p. 122); e David Bowie, sobre aquele momento histórico: “Assim, os dias passam diante dos meus olhos/ Mas os dias ainda parecem os mesmos [...].”30 Além disso, é importante destacar a postura aparentemente contraditória da juventude dos anos 1960 em relação à tecnocracia. Os jovens queriam desfrutar dos excessos da produção em massa, mas desconfiavam da civilização tecnológica. Essa é uma lógica curiosa. François Châtelet (2000, p. 381) aponta que as pulsões contra o valor, a libido contra o dinheiro, a fruição contra a necessidade — aquilo que Freud definiu como o prazer contra a civilização —, para Lyotard não se tratavam de impor um princípio contra o outro, a ordem afetiva contra a ordem racional, mas a desordem libidinal, a deriva do desejo, a absoluta liberdade de fruição, sem o menor referente central, sem excluir o amor pelo próprio capital. Mas as relações são ainda mais obscuras, de acordo com Lyotard. Se por um lado o capital daria lugar à dominação, à exploração e mesmo ao extermínio, por outro os proletários explorados pareciam fruir com a sua exploração: 30 Livre tradução de: “So the days float through my eyes / But still the days seem the same (…)”. David Bowie, Changes, 1971. 92 Vejam os proletários ingleses, o que o capital – ou seja, o trabalho deles – fez de seus corpos. Mas vocês irão me dizer: bem, é isso ou morrer... Será que vocês acreditam que essa é uma alternativa, isso ou morrer? [...] A morte não é uma alternativa a isso: é uma parte disso, atesta que há gozo nisso. Os desempregados ingleses não se tornaram operários para sobreviver: eles... gozaram com o esgotamento histérico, masoquista, sei lá o quê, de permanecer nas minas, nas fundições, nas fábricas, no inferno, gozaram em e com a louca destruição imposta a seus corpos orgânicos, gozaram com a decomposição de suas identidades pessoais (LYOTARD apud CHÂTELET, 2000, p. 381-2). Dessa maneira a única resposta possível, trazendo com ela apenas uma esperança vaga, seria a “‘grande recusa’ a ser parte do sistema” (GOFFMAN, 2007, p. 304). Aparentemente essa “recusa” poderia ser alcançada através da morte. Mais especificamente, da morte violenta, como sugere Jean Baudrillard. “A única réplica eficaz ao poder consiste em devolver-lhe o que ele dá; e isso só é possível simbolicamente por meio da morte” (apud CHÂTELET, 2000, p. 383). A morte, portanto, é a única arma absoluta, e sua simples ameaça coletiva pode fazer com que o poder entre em colapso. Diante dessa única ‘chantagem’ simbólica (barricadas de 1968, prisão de reféns), o poder se desune: já que ele vive de minha morte lenta, eu lhe oponho minha morte violenta. E é porque vivemos da morte lenta que sonhamos com a morte violenta. Esse simples sonho é insuportável para o poder (BAUDRILLARD apud CHÂTELET, 2000, p. 383). Em oposição à morte violenta, Châtelet considera o trabalho uma morte lenta, adiada e ineficaz. Portanto, uma vida dada pelo capital. “Ou, então, essa morte lenta é uma tentativa desesperada de devolver o dom para desafiar o poder do capital” — e o poder seria esse dom, o dom unilateral, o dom de tudo, até mesmo da vida (2000, p. 383). De acordo com Deleuze (apud FOUCAULT, 2011, p. 72), “na verdade, esse sistema em que vivemos nada pode suportar: daí sua fragilidade radical em cada ponto [...]”. Châtelet concorda com Baudrillard ao sugerir que “ao poder que dá tudo, podemos contrapor apenas a desobediência, as resistências, o desejo libidinal de que todos nós fazemos parte; ao poder que dá tudo, pode-se opor apenas a morte” (2000, p. 383). 93 Então, a morte seria “a única arma absoluta, e sua simples ameaça coletiva pode fazer com que o poder entre em colapso” (apud CHÂTELET, 2000, p. 383). Tendo na morte a única forma de ruptura, através dela poderíamos desfazer as forças repressivas de servidão capitalista (LAURO; EMBRY, 2008, p. 96). Esse argumento se conecta às idéias de Châtelet, Baudrillard e Goffman. A morte enquanto “‘grande recusa’ a ser parte do sistema” (GOFFMAN, 2007, p. 304) nos parece um recurso fundamental dentro do “modelo romeriano”, em sua crítica ao establishment da sociedade americana, ao longo do tempo. Entretanto, “a promessa distópica do zumbi só pode assegurar a destruição do sistema corrupto sem imaginar um substituto — uma vez que o zombie não pode oferecer resolução alguma” (LAURO; EMBRY, 2008, p. 96). Assim, acabamos por relativizar a própria ideia de revolução que inflamava os movimentos sociais da década de 1960. Essas questões serão retomadas no último capítulo deste trabalho, no qual abordaremos o caráter epidêmico da contracultura e sua permanência hoje. Relacionaremos, também, a representação contagiosa e plural do zombie nas produções do início do século XXI e a onda de protestos iniciada em 2011, em países como Tunísia, Egito, Iêmen e Líbia. A chamada “Primavera Árabe” acendeu a centelha de uma série de movimentos que se propagaram de forma viral pela Europa, em mobilizações no centro de Madri, Paris e Londres, culminando no “Occupy Wall Street”, nos EUA. Autoimolação do monge Thích Quang Ðức em protesto contra o governo instalado pelos EUA no Vietnã. 94 3. A Noite que Não Terminou 3.1. A Ameaça do Corpo Vimos que o primeiro filme de Romero foi imbuído na “consciência” de que “podemos morrer a qualquer momento”, característica da era atômica acusada pela SDS. Podemos identificar a permanência desse discurso no legado romeriano. Mais especificamente em Os Mortos-Vivos (Robert Kirkman, 2003-), série em quadrinhos contemporânea. A asserção “nós somos os mortos-vivos”,31 destinada aos demais sobreviventes do apocalipse zombie pelo personagem Rick Grimes, adverte-os de que “as pessoas vivas são perigosas umas para as outras. Não apenas por serem mortos-vivos em potencial, pois podem morrer, mas porque são humanos, e possuem todas as ordinárias fraquezas humanas” (DILLARD, 1987, p. 21-2). Então, passamos a ver nos zombies o “nosso único futuro possível” (CANAVAN, 2010, p. 441). A conclusão de Grimes mostrou-se surpreendente para os demais personagens da narrativa. Todavia, a mesma pode ser experimentada à flor da pele em tempos de crise, quando ameaças como guerras, bombas atômicas, catástrofes ambientais, epidemias e ataques terroristas ameaçam a vida e o equilíbrio do planeta. Aparentemente, foi George Romero quem inaugurou a pedra basilar desse discurso, e seus ecos se fazem ouvir ainda hoje. Sabemos, por exemplo, que a própria série em quadrinhos de Kirkman foi inspirada na obra do cineasta. [...] Kirkman descreve seu objetivo em Os Mortos-Vivos como uma extensão do trabalho de George Romero – sempre o mais cerebral e mesmo, à sua maneira, o mais subjugado criador do cinema de zumbis clássico do século XX, concedendo aos seus personagens longos períodos de silêncio e segurança entre os catastróficos 31 KIRKMAN, Robert. Os Mortos-Vivos: desejos carnais. São Paulo: HQ Maniacs, 2009, p. 132-3. 95 ataques dos zumbis que tipicamente encerram os seus filmes. Kirkman escreveu que espera empregar a continuidade temporal hiperbólica própria à forma dos quadrinhos para criar a sensação de um filme romeriano que nunca termina (CANAVAN, 2010, p. 435). Luciano Saracino (2009, p. 42) destaca o ponto de vista que o cineasta adotou em A Noite..., e que parece ter inspirado o trabalho de Kirkman: “[Romero] inverte a equação e, ao furtar os zumbis do confronto principal e girar a câmera em direção ao que acontece dentro da casa, oferece outra hipótese [...]: estamos nos convertendo em monstros”. Kim Paffenroth considera profunda a similaridade mental e psicológica entre zombies e humanos. Para o autor, “o que torna os zombies [grifo nosso] mais aterradores do que os outros monstros é o fato da confusa semelhança entre eles e os humanos nunca desaparecer” (2006, p. 9). Para mim, os melhores filmes de zombies não são aqueles festivais de sangue e violência com personagens estúpidos e piadas idiotas. Os bons filmes de zombies nos mostram o quanto somos terríveis, nos fazem questionar nossa posição na sociedade... e a posição da nossa sociedade no mundo. Eles também nos mostram sangue, violência e todas essas coisas legais... Mas, nas entrelinhas, sempre há algum comentário social e preocupação maior. [...] Para mim, filmes de zombies são ficções dramáticas que nos fazem refletir [...]. Gosto de filmes que nos fazem questionar a estrutura da sociedade. E os BONS filmes de zombies... fazem isso muito bem (KIRKMAN, 2006, p. 2). KIRKMAN, Robert. Os Mortos-Vivos: desejos carnais. São Paulo: HQ Maniacs, 2009, pp. 132-3. 96 Segundo Belinda Barnet (2003), a obliteração do mundo físico seria uma expressão do medo humano acerca do tempo, da efemeridade e do envelhecimento, o medo da morte. Para Juliet Lauro e Karen Embry, a vulnerabilidade da matéria e o medo instintivo de sua decadência, bem como a dissolução da consciência — tudo o que ocorre quando nos aproximamos da morte — são sugeridos na monstruosa hipérbole do zombie enquanto morto- vivo. Prosseguindo com a argumentação, as autoras explicam que o cadáver representa o inerente e indissociável personagem-objeto da existência humana, o estado inanimado ao qual devemos retornar. O cadáver por si próprio possui a habilidade de aterrorizar por implicação, mas o cadáver animado, uma contradição ambulante, pode assustar mais profundamente por representar não apenas o nosso futuro, mas o nosso presente. Nossos corpos são algo que podemos temer e rejeitar, mas do qual não podemos nos separar. O zombie enquanto um espectro corpóreo refuta a resistência à corporeidade de que muitos modelos pós-humanistas são acusados. Como a maioria dos monstros, o zombie lança luz sobre o nosso desconforto com vários tipos de corpos, mas, acima de tudo, ilustra a ameaça real e sempre presente do corpo humano. Ao imaginar que os seres humanos estão sobrecarregados com a própria morte, continuam as autoras, percebemos uma das muitas formas de horror que o zombie proporciona: não uma visão apocalíptica apenas, mas uma representação da condição humana de vida. “Somos todos, em algum sentido, cadáveres ambulantes, porque é inevitável o estado ao qual devemos retornar” (LAURO; EMBRY, 2008, p. 102). Consideramos Extermínio (28 Days Later, dir. Danny Boyle, 2002) uma peça importante do legado de Romero. No filme de Boyle, também está presente o comentário social, porém é necessária uma ressalva. Como nos lembram Lauro e Embry, essa produção costuma ser identificada com os filmes de zombie tipicamente romerianos (2008, p. 107). Mas os “monstros”, aqui, não se tratam dos mortos ressuscitados, e sim de pessoas infectadas que perderam os sentidos racionais. Levando em consideração o argumento de que “estamos nos 97 convertendo em monstros” (SARACINO, 2009, p. 42), temos no fim do filme uma cena crucial. As autoras apresentam um breve resumo. Os protagonistas encontram um grupo de soldados que se mostram mais monstruosos do que os infectados. Os soldados prendem-nos como reféns, contra a sua vontade, e estão prestes a estuprar as duas mulheres do grupo; além disso, mantêm um homem negro infectado acorrentado no pátio, para observação. Quando Jim, o protagonista, liberta os infectados para atacarem os soldados, vemos uma repetição da rebelião escrava no Haiti, momento em que os soldados europeus foram antagonizados pelos nativos rebeldes (LAURO; EMBRY, 2008, p. 107). 3.2. A Esfera Privada Segundo Baudrillard, o que importa para a dramatização espetacular, intermediada pelos mass media, é o surgimento da tranquilidade da esfera privada como valor disputado e constantemente ameaçado, rodeado por um destino de catástrofe: É preciso a violência e a inumanidade do mundo exterior para que a segurança não só se experimente como tal com maior profundidade [...] mas também para que se sinta justificada em escolher-se a si mesma, em cada momento [...]. Em redor da zona preservada, é necessário que floresçam os signos do destino, da paixão da fatalidade, para que semelhante cotidianidade recupere a grandeza e o sublime de que ela constitui justamente o invés (BAUDRILLARD, 2007, p. 26). Em A Noite..., o embate entre dois personagens trata-se de uma disputa pela liderança do grupo de sobreviventes, presos no interior da casa de fazenda de Evans City. Aos 41 minutos de filme, aproximadamente, “estoura uma discussão entre Ben (Duane Jones) e Harry Cooper (Karl Hardman) quanto a quem manda ali, e se o grupo deve ou não se esconder no 98 porão (plano de Cooper) ou reforçar as portas (plano de Ben)” (Russel, 2010, p. 110). Esse embate refere-se, portanto, à questão do poder. Para Nietzsche, em A Vontade de Potência, os fisiologistas deveriam refletir antes de apresentar a “vontade de conservação” como o instinto principal de todo o ser orgânico. O ser vivo pretende, acima de tudo, despender a sua força, e a “conservação” não passaria de uma conseqüência entre outras. A “transposição de todos os valores” implica “não mais a vontade de conservação, mas a vontade de potência” ([s.d.], p. 285); “este mundo é o mundo da vontade de potência e nada mais!” ([s.d.], p. 290). A regra da “luta pela existência” seria antes de tudo a luta pelo poder, a ambição de ter “mais” e “melhor”, “mais depressa” e “muito mais vezes” (BAUDRILLARD, 2007, p. 40). Para que possamos abordar essa questão, retomemos os argumentos de Foucault. O filósofo fala em focos particulares de poder, circunscritos a uma pequena área de ação, como um pequeno chefe, em torno dos quais se desenvolvem as lutas advindas da desigualdade de poderes (2011, p. 75). A casa de fazenda de Evans City, enquanto foco particular de poder e microcosmo da sociedade norte-americana de finais dos anos 1960, surge como objeto de disputa. Ben e Harry estariam, portanto, disputando o poder. A partir do lançamento de A Noite..., Saracino observa que a audiência passou a aceitar que certas coisas poderiam ser ditas através do horror. Por exemplo, que “o capitalismo é tão voraz e selvagem como o pior dos monstros, ou que é perigoso crer nos meios de comunicação, ou que é errado ver o ‘Outro’ como uma entidade daninha, porque ‘nós’ podemos ser piores...” (2009, p. 41). O conflito no interior da casa se sobrepõe à ameaça de um agente externo: o zombie. Quanto à significância dos zombies em seu filme, lembremos das palavras de Romero: eles representariam “uma espécie de revolução, uma reviravolta radical num mundo que muitos dos personagens humanos não conseguem entender, preferindo marcar os mortos-vivos como o Inimigo, quando na realidade eles são nós” (apud Eco, 2007, p. 422). Uma vez que os 99 monstros são demarcados como antagonistas pelos personagens humanos, podemos conectar os zombies ao conceito do banditismo social. Este é considerado por Eric Hobsbawm um fenômeno de notável uniformidade, em todas as épocas e continentes. Para a Lei, explica Hobsbawm, é um bandido quem quer que pertença a um grupo de homens que atacam e roubam com violência, e o ponto básico a respeito dos bandidos sociais é que são proscritos. Do ponto de vista social, é importante observar que “o banditismo parece ocorrer em todos os tipos de sociedade que se situam entre a fase evolucionária da organização tribal e de clã, e a moderna sociedade capitalista e industrial” (HOBSBAWM, 1976, p. 12). O banditismo constituiria, então, um fenômeno universal, que floresce quase invariavelmente em áreas remotas e inacessíveis, e ocorre nas sociedades que se baseiam na agricultura. Estabeleceremos pontos de contato: A Noite... foi ambientado em Evans City, na zona rural da Pensilvânia, onde os mortos-vivos são trabalhadores rurais redivivos. Ao considerarmos que o banditismo, para Hobsbawm, tendia a tornar-se epidêmico em épocas de crise econômica, tentamos situar esse conceito no interior do contexto sócio-político do final da década de 1960, evitando anacronismos. As epidemias de banditismo, portanto, [...] podem refletir a desagregação de toda uma sociedade, a ascensão de novas classes e o surgimento de novas estruturas sociais, a resistência de uma comunidade inteira ou de povos à destruição de suas maneiras de viver. Ou podem refletir [...] a decomposição social que não se deve a forças adventícias, mas que marca o fim iminente de um ciclo histórico relativamente longo [...]. Em tais épocas, o banditismo pode ser o prelúdio de movimentos sociais de vulto ou acompanhá-los [...] (HOBSBAWM, 1976, p. 17). Nesse sentido, os “abstratos” mencionados pela Declaração do SDS poderiam ser tanto os zombies quanto os cidadãos comuns norte-americanos, que estariam à mercê da epidemia dos mortos-vivos, responsável pela morte lenta através da infecção; e dos ataques das criaturas, que podem resultar na morte violenta através da mutilação e da “devoração” do 100 corpo. Enfim, em A Noite... cada um dos personagens pode morrer a qualquer momento. Inevitavelmente, essa regra vale para todos os organismos vivos. 4. Transgressão e Mudança De acordo com Scott Aaron Stine, os cineastas têm empregado imagens macabras e terríveis para retratar o lado sombrio do homem desde o advento dos filmes (2001, p. 11). Continuando a argumentação, Stine sugere que, embora grande parte dos pioneiros tenha experimentado determinados métodos, considerados os métodos mais questionáveis da expressão humana, dentro das restrições mais aceitáveis do gênero do horror, sempre houve aqueles que escolheram ignorar os padrões morais de sua época — em geral, aqueles vitimados pelo ostracismo. Durante décadas, as mãos do cinema e dos seus progenitores permaneceram atadas pelas cordas do avental do conservadorismo; acaso tabus não silenciados fossem transgredidos [...], um golpe contrário bastaria para silenciá-los. Sexo e violência em sua forma mais pura eram inconcebíveis. [...] Aquele era um mundo de fantasia... mas a necessidade de representar os resultados da vil natureza humana tornar-se-ia, eventualmente, uma questão premente, e o mundo de fantasia transformar-se-ia em um lugar verdadeiramente desagradável. Os espectadores estavam cansados de olhar para essa representação irreal e insípida do mundo que terminava fora das telas, e exigiam ver algo mais, sem que fossem sacrificados os elementos escapistas, pilares dos filmes modernos. Como era de se esperar, esse cancro explodiu, iniciando todo um gênero cujo único propósito era expor os tabus supracitados, mantidos a sete chaves durante todos esses anos [...] (STINE, 2001, p. 12). Reafirmamos o argumento de Goffman, segundo o qual as contraculturas seriam movimentos de vanguarda transgressivos pelo apego à mudança e à experimentação, visando à ampliação dos limites estéticos e das visões aceitas (2007, p. 54). Enquanto produção de horror, tida como obra política e de arte, Ben Hervey sugere que A Noite... tenha combinado a 101 tradição dos primeiros filmes da meia-noite. Por exemplo, a obra de Romero era sangrenta, igualmente a El Topo (The Mole, 1970), o tétrico western simbolista de Jodorowsky; e, a despeito dos elementos fantásticos, ambos os filmes pareciam chocantemente “reais” e “totalmente convincentes” (2008, p. 9). No caso de A Noite..., o crítico Stuart M. Kaminsky observa que a crueza do filme, marcada pelo uso de câmera “pseudo-cinema-vérité”, sugere ao espectador não apenas uma fantasia, mas um pesadelo firmemente fixado em realidade (apud HOBERMAN; ROSENBAUM, 1983, p. 123-4). O repetido emprego do rádio e da TV, como janelas entre a casa e o mundo exterior, o recurso aos “telejornais” que informam os personagens sobre a “praga” zombie e a suposta explicação científica do fenômeno (radiação de um satélite da NASA enviado a Vênus) corroboram subliminarmente para essa “impressão de realidade”. A quebra de tabus constitui outra semelhança entre A Noite... e El Topo. Apesar de os monstros serem lugar-comum na história do cinema (dentre os quais figuram os vilões deformados, os alienígenas e as criaturas radioativas), Peter Dendle explica que nas primeiras produções de Hollywood havia uma espécie de “tabu não pronunciado” quanto à exibição de “cadáveres humanos em decomposição” (2001, p. 5). Talvez porque a “decomposição” sinaliza o fracasso do homem, traço bastante familiar nas sociedades industriais da atualidade (ARIÈS, 2003, p. 57). Veremos a seguir que dois filmes dos anos 1960 representaram um ponto de ruptura, notadamente para o gênero do horror. A Hammer Studios, companhia britânica independente que produzia filmes de drama e mistério antes de dedicar-se ao gênero do horror (STINE, 2001, p. 12), seria a primeira a romper o duradouro tabu dos cadáveres em decomposição: A Epidemia dos Zumbis (Plague of the Zombies, dir. John Gilling, 1966) exibe mortos-vivos putrefatos e de temperamento torpe. Dois anos depois, em A Noite..., George Romero manteria a figura dos cadáveres 102 decompostos, libertando-os do controle místico de um mestre — papel desempenhado pelo sacerdote vodu nas produções anteriores. Enquanto A Epidemia dos Zumbis foi ambientado em um povoado inglês no ano de 1860, o que Saracino considera um costume da Hammer (2009, p. 36), Romero trouxe a temática para o palco contemporâneo. Nesse sentido, a reconstrução da caracterização do zombie teve como pano de fundo o contexto sociopolítico do fim dos anos 1960, explicado ao longo do primeiro capítulo deste trabalho. De acordo com Dendle, o “morto-vivo moderno” surgiria de fato em 1968, tornando-se um símbolo da “trivialização” do indivíduo, responsável pelo “declínio da insistência de que a vida é sagrada”. Em última análise, os zombies representariam “um escárnio desavergonhado do ideal humano mais estimado e universal: a vida após a morte” (2001, p. 10). Nesse sentido, pretendemos traçar uma analogia entre a reformulação do zumbi pelas mãos de George Romero, em 1968, e o espírito contracultural desse processo, espírito antiautoritário definido por Goffman nos termos de “uma ameaça potencial a qualquer ordem estabelecida” (2007, p. 56). Segundo o autor, esse “espírito” também é caracterizado por atitudes como a quebra de tabus, a violação de normas e o desafio às idéias sacrossantas. Segundo Ben Hervey, o que transformou A Noite... num sucesso foram justamente características como a crueza, a brutalidade, o naturalismo, o ataque aos tabus e aos valores estimados da sociedade americana, bem como o humor negro e a atualidade (2008, p. 10). A escolha de Romero em utilizar o zombie como elemento instrumental na crítica política à sociedade americana serviu de inspiração para diversos outros cineastas a partir de então. Joe Dante é um exemplo contemporâneo. O seu Candidato Maldito (Homecoming, 2005), episódio da série Masters of Horror, produção de média-metragem para a televisão, retrata soldados mortos nos conflitos do Oriente Médio que retornam como zombies em tempo de eleição, para impedir a recondução de George W. Bush ao cargo. Candidato 103 Maldito é uma sátira extremamente crítica do conservadorismo político, da direita americana e seus tentáculos midiáticos, dos falcões da guerra e das personalidades de ocasião, que dançam conforme a música do poder. Peça exemplar do legado de Romero, Candidato Maldito surge também em um momento de crise, em tempos de supremacia da direita política e da controversa Guerra no Iraque, conflito internacional encabeçado pelos EUA. 5. Matriz Contracultural 5. 1. Nova Linguagem & Novas Técnicas De acordo com Tzioumakis, sabe-se que o estilo dos filmes do cinema mainstream obedecia às regras do que se convencionou chamar de “cinema clássico” ou “classicismo cinematográfico”, e, por essa razão, o mesmo manteve-se comedido, subordinado às necessidades de uma narrativa casualmente dirigida. Dessa maneira, o aparecimento de novas técnicas e estilos cinemáticos, bem como a sua infusão com os elementos existentes do estilo Hollywoodiano, mudou dramaticamente a “aparência” dos filmes americanos. “Uma vez que o cinema consagrado possui os seus próprios códigos e convenções, gramática e sintaxe, os jovens cineastas do novo cinema independente tiveram que criar a sua própria linguagem” (2006, p. 179). Tzioumakis explica que, durante um breve espaço de tempo, diversas técnicas cinematográficas foram importadas pelo cinema americano. Associadas ao método de filmagem das casas de arte da Europa e do Japão, essas técnicas incluíam: atuação improvisada, repetição de ações, zooms de câmera, saltos ritmados, imagens frisadas, tomadas 104 de longa distância com teleobjetiva, quadro dividido, o uso mais frequente da câmera-na-mão e do plano detalhe, planos muito gerais e contraponto entre imagem e som. Quanto à técnica e aos efeitos empregados em A Noite dos Mortos-Vivos, Hervey considera a monocromia algo fundamental. Essa característica teria feito do filme uma das últimas produções de horror a serem lançadas no já antiquado preto-e-branco, pois há uma década a Hammer e a AIP Gothics faziam uso do widescreen e do Technicolor (2008, p. 19). Hervey aponta outras características de A Noite...: a câmera oscilante, o quadro no formato televisivo, os recursos de baixo orçamento, os efeitos especiais sem auxílio profissional (uso de globos oculares feitos de bolas de pingue-pongue e sangue de calda de chocolate Bosco) e trilha sonora composta por músicas de domínio público. Hoberman e Rosenbaum acrescentam: montagens rápidas, o uso de plano detalhe, saltos ritmados, a câmera-na-mão e o negativo preto-e-branco de alto contraste. Tzioumakis considera um dos aspectos fundamentais dos filmes de baixo-orçamento o desenvolvimento de novas técnicas e práticas que enriqueceram imensamente os atributos formais do cinema americano (2006, p. 184). 5. 2. Cabos de Conexão É necessário identificar um maior número de pontos de contato entre o filme e o contexto de fins dos anos 1960, considerando os efeitos do fenômeno da contracultura, a influência dos cineastas independentes, seu novo modo de fazer cinema, e o imaginário acerca dos mortos-vivos e a mitologia fundada por Romero em seu filme. Ken Goffman e Dan Joy consideram os fenômenos culturais entidades altamente multifacetadas (2007, p. 49). Nesse sentido, definem três diferentes “cabos de conexão” que se referem à organização do mosaico 105 heterogêneo de contraculturas em uma tradição contínua: contato direto, contato indireto e ressonância (2007, p. 13-4). Consideraremos, aqui, o primeiro e o segundo 32 . No contato direto, os participantes de uma contracultura interagem diretamente com os participantes de outra, abrindo canais de comunicação que encorajam a individualidade e amplificam o impulso contracultural. No contato indireto, influência e inspiração são transmitidas de uma contracultura a outra por contato indireto ou mediado. Nesse caso, uma cultura fecunda outra através do tempo por intermédio de obras de arte, registros e lendas. Seguindo esses parâmetros, consideraremos o filme de Romero não apenas um produto do período contracultural, 33 mas também uma manifestação daquela “era de mudança e inquietação social” (SELLERS, 1990, p. 410). a) Contato Direto: no que se refere ao contato direto, devemos considerar a interação Cassavetes-Romero, possibilitada pelo próprio contexto contracultural do cinema independente americano. Segundo Tzioumakis, o cineasta John Cassavetes introduziu uma abordagem narrativa particularmente distinta na realização de seus filmes. Dessa forma iniciou uma tendência, pavimentando o caminho para outros indivíduos de talento que utilizariam o meio do cinema para fins de expressão pessoal. Cassavetes representou, para as futuras gerações de cineastas, o autor em sua forma mais pura e inalterada, o cineasta que escreve seus roteiros, providencia o próprio financiamento, organiza todo o projeto, edita o seu próprio material, viabiliza a distribuição após completar o filme, e trabalha com um pequeno círculo de amigos dispostos a se dedicar em troca de um pequeno (ou mesmo nenhum) salário (2006, p. 179). 32 O terceiro cabo de conexão seria a ressonância, por sua vez definida como uma semelhança de ideias, produtos artísticos, meios de desenvolvimento e formas de vida que se apresenta em contraculturas entre as quais não há nenhum indício de contato, direto ou indireto. 33 Adotamos, aqui, a definição de Goffman e Joy para a essência da contracultura enquanto um fenômeno histórico perene, “caracterizado pela afirmação do poder individual de criar sua própria vida, mais do que aceitar os ditames das autoridades sociais e convenções circundantes, sejam elas dominantes ou subculturais”. GOFFMAN, Ken, JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: do mito de Prometeu à cultura digital. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. 106 Comparativamente, de acordo com Ben Hervey, além de grande parte do primeiro filme de Romero ter sido rodada em sequência e do enredo ter se formado continuamente durante a filmagem, todos os envolvidos com a produção ajudaram com a maquiagem, iluminação e cenografia, a ponto de ser difícil distinguir quem fez o quê. No entanto, Hervey considera A Noite... um filme de Romero, mais do que de qualquer outro dos envolvidos com a sua realização, pois o cineasta teria feito mais do que a maioria dos “autores” (2008, p. 12). À semelhança de Cassavetes, além de conceber o enredo, roteirizá-lo e dirigi-lo, Romero lidou com o trabalho de câmera e edição, atuou (ainda que brevemente), 34 planejou as maquiagens e os efeitos de iluminação e teve a palavra final com relação à sonoplastia. Ainda falando em contato direto, devemos mencionar outras obras que podem ter inspirado Romero. Como nos lembram Hoberman e Rosenbaum (1983, p. 120), falamos aqui dos filmes de Herschell Gordon Lewis — os sangrentos Banquete de Sádicos 35 (Blood Feast, 1963), Maníacos (Two thousand Maniacs!, 1964), Color Me Blood Red (1964). b) Contato Indireto: consideremos que uma cultura fecunda outra através do tempo por meio de seus produtos culturais (GOFFMAN, 2007, p. 13-4). Não podemos esquecer que o zumbi primordial, representado no cinema nas décadas de 1930 e 1940, tem as suas raízes firmadas no solo haitiano e que as origens do zombie estariam indissociavelmente ligadas à religião afro-caribenha. A partir dos anos de 1950, o termo “zumbi” passou a definir um sem número de criaturas, até a sua reformulação no final dos anos 1960. Essa genealogia do monstro será analisada cuidadosamente no próximo capítulo, no intuito de compreendermos a transição do zumbi para o zombie e estabelecer os parâmetros do “modelo romeriano”. 34 Aos cinqüenta e oito minutos de filme, aproximadamente, o “jornalista Don Quinn” (Romero) lidera uma falange de repórteres que persegue três autoridades, um militar rodeado por dois cientistas, em busca de informações sobre os estranhos acontecimentos. 35 Segundo Scott Aaron Stine, Banquete de Sádicos é um filme tão repulsivo e inacreditavelmente repugnante que tem sido considerado pelos historiadores o primeiro “splatter film”. STINE, Scott Aaron. The gorehound’s guide to splatter films of the 1960s and 1970s. Jefferson, NC: McFarland, 2001, p. 13. 107 Considerando que uma cultura fecunda outra por intermédio de obras de arte, não podemos deixar de mencionar a novela Eu sou a Lenda (I am a Legend, 1954), de Richard Matheson, que originou o filme Mortos que Matam 36 (The Last Man on Earth, 1964), co- produção ítalo-americana dirigida por Ubaldo Ragona e Sidney Salkow. Eu Sou a Lenda (1954) é uma peça exemplar entre as obras de ficção científica da década de 1950 que criticavam o conservadorismo político e a classe média americana. O que parecia ser mais importante para Matheson era a exploração das reações de um indivíduo em particular no interior de um contexto totalmente transformado, em que os movimentos dos personagens são contrastados a um cenário humano pós-apocalíptico. Ambientado em um futuro próximo, Eu Sou a Lenda oferece um tratamento científico do tema do vampiro e evoca o leitmotif do fim do mundo por uma praga e o “último homem sobre a Terra”. A narrativa segue os passos do herói Robert Neville, que vive em princípios de 1976, após a guerra atômica ter causado a mutação de uma bactéria que produz criaturas híbridas de vampiros e zumbis, ou seja, que guardam características de ambos os personagens, destruindo a civilização como a conhecemos. Neville perdeu a esposa e a filha para a praga, e habita solitário uma casa de subúrbio, protegida por alho e mantida por um gerador. Vive uma vida auto-suficiente, mas é perturbado todas as noites pelas criaturas lideradas por seu vizinho Ben Cortman, as quais o assediam exigindo que saia. Durante o dia, Neville vaga pela cidade à procura dos vampiros em seus esconderijos, e os destrói com estacas de madeira. A investida final desse grupo se dá no momento em que Neville se reconcilia com a sua condição, abandonando o alcoolismo e chegando a se afeiçoar a Cortman. Ao longo da narrativa, perpassam os valores da classe-média, em cheque pelo absurdo da situação circundante — refletindo, talvez, a situação solitária de um indivíduo dotado de certa sensibilidade, cercado e pressionado constantemente por seus vizinhos a assumir outro comportamento. 36 A novela de Matheson deu origem ainda a outras adaptações, como A Última Esperança da Terra (The Omega Man, 1971), de Boris Sagal, e Eu Sou a Lenda (I am a Legend, 2007), de Francis Lawrence. 108 O romance é de 1954, mas é possível sentir a revolucionária década de 1960 “logo na esquina” — ou apenas a paranóia social típica do período do pós-guerra e da Guerra Fria. Ele nos faz lembrar que a ficção popular já havia reivindicado os subúrbios como geografia literária, antes do pós-modernismo americano. O final, pouco respeitado nas adaptações cinematográficas, mostra o herói sendo capturado e executado não pelos vampiros que o assediavam, mas por uma “terceira espécie”, vampiros com sua “doença” controlada por meio de uma nova droga. Nas mãos desses “novos homens”, Neville enfrenta sua morte com resignação. O próprio Neville conclui ter representado, para a nova humanidade, “um terrível flagelo que nunca tinham visto, um flagelo ainda pior que a doença com que tinham que conviver”. Numa racionalização que associa um fenômeno natural (a doença) a um entendimento sobrenatural coletivo, Neville entende que para os outros ele “era um espectro invisível que tinha deixado por evidência de sua existência os corpos sem sangue dos seus entes queridos”, e conclui: “Eu sou a lenda”.37 Conclusão que leva a perguntas particularmente interessantes: aquilo que determina o Mal é uma questão relativa, e o herói de um grupo é o monstro de outro? Quando a condição humana se torna minoritária, o próprio ser humano penetrará no território das lendas? Que papel o herói humano assumirá, então — o de mito, ponto em torno do qual uma nova comunidade criará a sua identidade coletiva? As imagens e situações são também cativantes, daí não apenas o retorno constante dessa obra de Matheson aos cinemas, mas a sua influência sobre autores posteriores dentro do horror e da ficção científica. Celular (Cell, 2006), de Stephen King, é praticamente uma homenagem. Com respeito ao diálogo com a ficção científica habitual, fica claro que o romance não é só mais introspectivo do que a maioria, como não oferece o tipo de resolução em que o herói teria encontrado a solução para o problema científico que é colocado. Se assim fosse, Neville teria descoberto um meio de reverter a sociedade ao que era antes. No último 37 Richard Matheson. Eu sou a lenda. Osasco: Novo Século Editora, 2007, p. 160. 109 capítulo, ao abordar o retorno de uma estética gótica no fim de milênio, analisaremos o “gótico suburbano”, gênero fortemente inspirado em Eu Sou a Lenda, e que pode até mesmo ter sido criado por essa novela. Aparentemente, existiriam conexões ainda mais profundas entre Romero e este escritor. A obra de Matheson parece ter sido uma fonte fundamental de inspiração para o “modelo romeriano” de horror, podendo ser relativizada a originalidade de Romero. Mas essa questão necessita de maiores estudos. Por fim, consideramos o romance de Matheson, junto de sua primeira adaptação para o cinema, um ponto de contato indireto com a obra de Romero. Por um lado, ambos parecem ter lhe servido de inspiração, alimentando o seu processo criativo; por outro, essa interação nunca foi admitida pelo cineasta. * No capítulo final abordaremos a transmutação do “modelo romeriano” de horror, ocorrida em fins do século XX e no início do XXI, no intuito de atualizar a nossa genealogia do zumbi e do zombie. Será importante analisar a reconfiguração do morto-vivo na sociedade contemporânea e nas novas mídias, a partir da idéia de apocalipse e da fascinação com o lado sombrio do imaginário humano, características provenientes do sentimento de destruição e renovação afloradas nos ares de fim de milênio. Nesse sentido, observaremos a transmutação do zombie no momento em que o gênero gótico retorna à cultura popular. Consideramos a tendência atual de associar a epidemia dos zombies ora a algum tipo de vírus ou doença, ora a alguma arma biológica que foge ao controle, um aspecto fundamental na nova configuração do “modelo romeriano” de horror. Inflamada na sociedade pós-11/9, a ansiedade quanto à possível ameaça de bioterrorismo pode ser relacionada a esse 110 aspecto. Dessa maneira, observaremos até que ponto o legado romeriano atingiu os últimos anos do século XX, com seus tentáculos percorrendo, até os dias de hoje e de maneira inabalável, diversos tipos de mídia. 111 Capítulo IV TRANSMUTAÇÕES De alguma forma... Continuo viva... Jill Valentine, Resident Evil 3: Nemesis, 1999. Rookie: [Eles estão] tentando ser como nós. Riley: Eles costumavam ser como nós. Rookie: Há uma grande diferença entre nós e eles. Eles estão mortos. É como se estivessem tentando estar vivos. Riley: Não é isso que estamos tentando fazer — estar vivos? Terra dos Mortos, dir. George Romero, 2005. 1. 1968 e Início do Século XXI: Equivalências “Uma vez banidos para as margens do vídeo de horror, praticamente mortos, os zombies estão de volta” (CANAVAN, 2010, 431). Segundo Gerry Canavan, a figura do zombie está à espreita no centro da cultura de massa global desde o início da era Bush — mesmo antes do 11/9, enquanto Extermínio (28 Days Later, dir. Danny Boyle, 2002) era filmado em Londres, no verão de 2001 — e ainda hoje mantêm a sua posição inabalável. Além dessa franquia, não podemos esquecer a miríade de sequências, refilmagens e pastichos da obra de George Romero, que constituem uma parcela de seu legado. Podemos mencionar filmes como House of the Dead – O Filme (dir. Uwe Boll, 2003), Eu Sou a Lenda (I Am Legend, dir. Francis Lawrence, 2007), Planeta Terror (Planet Terror, dir. Robert Rodriguez, 2007), Quarentena (Quarantine, dir. John Erick Dowdle, 2008); as 112 comédias Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead, dir. Edgar Wright, 2004) e Zumbilândia (Zombieland, dir. Ruben Fleischer, 2009); franquias de videogames como Resident Evil, Silent Hill, Left 4 Dead e Dead Rising; best-sellers como World War Z (2006), Orgulho, Preconceito e Zumbis (2009) e Apocalipse Z (2010); quadrinhos independentes, com destaque para Os Mortos-Vivos, 38 da Image Comics; e a famosa interseção entre a narrativa dos zombies e arcos específicos de séries em quadrinhos de super-heróis, como Marvel Zombies e Blackest Night, esta última da D.C., em que a epidemia dos mortos-vivos se estende por todo o multiverso. * Retomando nossos apontamentos sobre a “genealogia do zumbi”, iniciados no capítulo III, percebemos que esse “subgênero originou-se dentro do horror, em suas primeiras formulações no cinema, mas abraçou a ficção científica nas posteriores” (CANAVAN, 2010, p. 434). Uma vez que o papel do “horror” permanece importante dentro desse subgênero extremamente prolífico, sustenta Canavan, hoje o seu modo mais popular de narrativa tem sido o “apocalipse zombie”, especialmente durante a renovação do gênero na era Bush. Falamos aqui de uma pandemia em larga escala que resulta no rápido colapso da modernidade tecnológica e do capitalismo transnacional em escala global. 38 De acordo com Gerry Canavan, “Grimes e seu bando de sobreviventes, largamente dispensável – nenhum dos quais está a salvo – exploram as ruínas de nossa América pós-imperial” (Canavan, 2010, p. 436). O sucesso da série em quadrinhos deu origem a um seriado televisivo homônimo  , produzido pelo canal norte- americano AMC. Em 2010 ocorreu a transposição da série em quadrinhos para as telas de TV. No dia 31 de outubro, o tradicional Dia das Bruxas nos Estados Unidos, o primeiro episódio da primeira temporada de The Walking Dead estreou no país. De acordo com Wendell Guiducci ([s.d.], p. 33), “em sua primeira noite de exibição, o seriado foi assistido por 5,3 milhões de pessoas no país, um recorde para qualquer série exibida na TV fechada norte-americana até então”. 113 A mais recente trilogia dos mortos-vivos de Romero, composta pelos filmes Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005), Diário dos Mortos (Diary of the Dead, 2007) e A Ilha dos Mortos (Survival of the Dead, 2009), parece bastante representativa da sociedade contemporânea. Nessa trilogia, Kin Newman destaca o retorno do cineasta à ideia dos seus primeiros filmes, porém dentro do contexto atual, considerando infecções virais como a AIDS e a gripe suína, acontecimentos como o 11/9 e a política de Guerra ao Terror, o furacão Katrina, os conflitos no Iraque e no Afeganistão, as crises bancária e de crédito. Atualmente, os eventos na Baía de Guantánamo e em Abu Ghraib seriam equivalentes, para Newman, à violência e à insensibilidade dos tempos do Vietnã e do massacre na Universidade de Kent State (NEWMAN, 2011, p. 578). Se por um lado essa nova trilogia parece menos moderna do que a visão de “Fim dos Tempos” presente em Extermínio, Madrugada dos Mortos39 (Dawn of the Dead, dir. Zack Snyder, 2004) ou Todo Mundo Quase Morto — produções inconcebíveis sem o “modelo romeriano” —, Newman considera que os filmes de Romero permaneçam enquanto um contraponto vital da visão de apocalipse, semovente ao longo da história moderna dos EUA. Adiante, observaremos o imaginário do “apocalipse interminável”, segundo Matthew Barret Gross, na perspectiva do tempo presente. Trabalharemos, aqui, com a hipótese de que a renovação do zombie tenha ocorrido nos últimos anos do século XX, antes mesmo do início da era Bush. Para tanto, destacaremos a importância do videogame Resident Evil como agente de transmutação do horror romeriano, conectando-o à realidade contemporânea, dentro do contexto do renascimento do gótico na arte, na literatura e na cultura popular, de maneira geral. A seguir, analisaremos essa tendência, própria do Zeitgeist de fins do século. 39 Refilmagem de Zombie – O Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, dir. George Romero, 1978). 114 2. Retorno do Gótico: Prelúdio de uma Nova Era Em Century’s End: A Cultural History of the Fin de Siècle from the 990s through the 1990s, Hilleil Schwartz (apud GRUNENBERG, 1997, p. 50) aponta que o fim de todos os séculos se coloca como “o último suspiro, o momento crítico, o prelúdio de uma nova era”, provido de pressentimentos de destruição e renovação que em essência não se realizam. Como conseqüência, haveria próximo aos sucessivos fins de século, historicamente, um acúmulo de medos, esperanças e profecias não cumpridas. Com o fim do milênio na soleira da porta, considerando que a sociedade Ocidental esteve se preparando para o fim do século XX com maior antecedência do que em qualquer outro século, Schwartz previu que as tensões maniqueístas comuns à experiência de fin de siècle seriam exageradas ao longo dos anos de 1990. Um dos sinais seria o ressurgimento do gótico na literatura, na arte, na moda, na música e no cinema. “A popularização contemporânea do gótico pode ser encontrada em romances ficcionais, filmes de horror ou bandas de heavy metal” (GRUNENBERG, 1997, p. 49). Conforme se aproxima o fim do milênio, a fascinação com o lado sombrio do imaginário humano torna-se, uma vez mais, desenfreada, indicando um ressurgimento de uma sensibilidade “gótica” na arte e na cultura contemporâneas. Em uma crítica sobre a temporada de filmes de 1996, Janet Maslin, no New York Times, discerniu que “uma visão corrosiva, juntamente com um frio desprendimento e um humor mui negro, constituía a força mais penetrante daquele ano”. Dificilmente uma semana se passava sem que fosse lançado um livro ou um filme que explorasse eventos sobrenaturais, ou personagens com poderes físicos e espirituais misteriosos. Uma obsessão com o paranormal e com o fantástico, atos e intelectos maus ou distorcidos, primeiramente explorados pelos romances góticos há mais de duzentos anos, uma vez mais ocupam um lugar central na imaginação popular: “um espírito gótico muito semelhante ao de Poe agora inspira grande parte de nossos filmes e da ficção popular – bem como outras zonas culturais menos previsíveis”, como verificou o escritor Mark Edmundson (GRUNENBERG, 1997, p. 211). No artigo American Gothic, Mark Edmundson sustenta que o imaginário gótico, cético em relação a qualquer progresso, sob qualquer forma, é antitético a todos os sorridentes 115 credos americanos. “Uma nação de ideais, os Estados Unidos também tem sido, não surpreendentemente, uma nação de dura desilusão, com um imaginário gótico fortemente reativado” (apud GRUNENBERG, 1997, p. 204). Como vimos nos capítulos anteriores, a partir da óptica de Bernice M. Murphy, a percepção da existência de uma faceta sombria e aterrorizante na experiência do gótico suburbano, dentro do país, tem sido uma constante desde os primeiros dias de desenvolvimento dos subúrbios, na era pós-Segunda Guerra, e ainda persiste nos dias de hoje, embora de forma ligeiramente reconfigurada, a despeito do fato de que a maioria dos norte-americanos escolhe viver nos subúrbios, e assim tem sido por muitas décadas. “Talvez devido à sua pura ubiqüidade, no entanto, considerações a respeito do gótico suburbano, enquanto subseções de uma tradição gótica americana mais ampla raramente têm sido tentadas” (MURPHY, 2009, p. 11). Para Grunenberg (1997, p. 204), as campanhas em favor da implementação de normas de propriedade e decência no entretenimento revelaram, acima de tudo, uma sociedade moralmente desorientada e profundamente dividida, cujas soluções eram compromissos igualmente hipócritas ou intrusões impositivas no interior do espaço privado. Sean Purdy traça um panorama social dos EUA no tempo presente, A variedade de seus personagens inclui de falcões ultraconservadores a ativistas de esquerda, de libertários a reacionários. Terra de contrastes absolutos, os EUA são o país com a maior população carcerária do planeta e também local de intensos debates sobre direitos humanos e igualdade. Em nenhum outro país se fazem tantas atividades físicas e se cultua tanto o corpo e, dialeticamente, os norte-americanos apresentam taxas de obesidade em proporção epidêmica. É a terra dos puritanos, do cinturão da Bíblia, do politicamente correto e da ação afirmativa para grupos como os negros. Exibe, da mesma forma, níveis alarmantes de violência sexual, de jogo, de vícios e de drogas. Nenhum outro povo está tão presente em tantos locais do planeta e poucas sociedades ignoram de forma tão clara a existência de outras culturas. Qualquer enfoque sobre os Estados Unidos da América parece destinado à parcialidade (KARNAL, 2007, p. 279). No interior dessa sociedade, com sua “utopia fracassada e realizada de ‘povo eleito’” que “constitui um universo em torno do qual todos gravitamos [...]” (KARNAL, 2007, p. 116 279), os fantasmas do estilo gótico parecem ter retornado para assombrar a alma norte- americana com suas imagens e idéias. Nesse âmbito, faz-se necessário observar o gênero gótico para melhor compreendê-lo. Segundo Grunenberg, no trabalho gótico arquetípico a atração se estabelece no sentido de inspirar o medo. Para William Patrick Day, no seu In the Circles of Fear and Desire: a Study of Gothic Fantasy, esse processo consiste em aventurar- se em um mundo “criado pela esfera de... medos e desejos [dos protagonistas], num estado de encantamento, tanto emocionante como destrutivo [...]” (apud GRUNENBERG, 1997, p. 49). De acordo com Grunenberg, a experiência gótica, ambientada ora num castelo mal- assombrado, ora numa imaginação obcecada — sendo, com freqüência, indistinta a linha divisória entre essas duas esferas —, fala sobre tatear na escuridão, sobre aquilo que é proibido, reprimido. Essa atração, já bem analisada, não seria o sentimento superficial despertado por um parque de diversões, e sim o desejo profundo de dar forma e face aos grandes medos individuais e, deste modo, obter certo controle sobre os mesmos (1997, p. 49). Day sustenta que a função fundamental da fantasia gótica era dar expressão aos medos e ansiedades dos leitores do século XIX quanto à sua fragilidade e vulnerabilidade. A raiz desse sentimento residiria “no fracasso dos sistemas religiosos, científicos e filosóficos para criar um sentido de totalidade e unidade em si e no mundo, o que teria permitido aos indivíduos definir a sua própria existência. A imersão no gótico, de acordo com Day (apud GRUNENBERG, 1997, p. 49), “transforma a ansiedade e o medo dentro daquele hiato cultural em prazer, articulando e difundindo a ansiedade e o medo que o chamam para a existência”. Agora, há precisamente duzentos anos do momento em que os romances góticos atingiram o auge de sua popularidade, Grunenberg identifica evidências de um fascínio renovado pela representação de vampiros, mortos-vivos, possuídos e doentes, através de encarnações do Mal e da loucura. Estes seriam pontos de um renascimento da sensibilidade gótica que, ainda que possa ser mais complexa em sua composição do que os seus 117 antecedentes históricos, com frequência aspira a um fim similar quanto à reivindicação de certo controle sobre aquilo que mais nos amedronta. Estamos vivendo em tempos particularmente difíceis – um período gótico de medo, horror, degeneração moral e indulgência em prazeres perversos. “O ‘gótico’ tornou- se o quid pro quo de sombrios e perturbadores estados de espírito, situações, eventos e subprodutos culturais da América moderna [...]. Uma predileção pelo gótico afetou profundamente todas as áreas da vida contemporânea – da ‘alta’ literatura às noveletas [...] de ficção científica, mistério e romance; penetrou a arte, a arquitetura, o design, a moda e o design gráfico; pode ser encontrada em anúncios e capas de discos; também presente na música popular atual e no restabelecimento dos cantos gregorianos e na televisão, na qual uma obsessão por sexo, crime e na tendência [...] dos serial killers progrediu numa das categorias mais populares do entretenimento mainstream (GRUNENBERG, 1997, p. 210). Segundo Grunenberg (1997, p. 202), a disposição do gótico, desde que este se tornou um fenômeno de entretenimento, explorado comercialmente, é sintomática de um vazio espiritual contínuo no fim do século. Nesse ensejo, a obsessão da mídia com as representações grotescas da morte, da decadência e da doença, e o ávido consumo das mesmas pelo público, revela um vácuo metafórico e a necessidade de um substituto convincente para categorias morais e religiosas obsoletas. Devemos recordar o problema levantado por Umberto Eco (2007, p. 431), quanto à possibilidade do “recurso ao feio”, exteriorizado através da figura do morto-vivo, por exemplo, constituir um meio de denunciar a presença do Mal. Entretanto, Grunenberg aponta que o Mal tem se mostrado uma categoria ilusória, ao passo que explicações religiosas, psicanalíticas, biológicas e filosóficas não conseguem entender ou explicar sua natureza nem suas origens. No passado, sabe-se que os produtos fantásticos e obscuros da mente eram percebidos como manifestações das inexplicáveis obras do demônio. Outrora, a psicanálise tentou racionalizar o enigma do horror como resultado de traumas da infância, paranóia, desejos inconscientes e uma pletora de neuroses, fobias e desordens mentais (1997, p. 202). Hoje, contudo, “a nossa cultura está em crise”, explica Andrew Delbanco (apud GRUNENBERG, 1997, p. 202-1), “porque o Mal permanece uma experiência inevitável para todos nós, uma vez que já não possuímos uma linguagem 118 simbólica para descrevê-lo...”. Reafirmamos, então, que “estamos vivendo em tempos particularmente difíceis” (GRUNENBERG, 1997, p. 210). Segundo Grunenberg, o desespero anterior à virada do milênio invadiu o cotidiano, estendendo-se para além das esferas da especulação filosófica e científica, como atestam os relatos sobre os incalculáveis perigos da vida urbana, os crimes aleatórios, os acidentes estranhos e os riscos à saúde. Nos anos 1990, os EUA parecem ter entrado numa segunda era vitoriana, com todas as suas aberrações de códigos sociais restritivos, terrorismo moral, ideais hipócritas e normas dúbias. Para o autor, o país teria sido “inundado por uma enchente titânica de desinfetante moral extra-forte, que lava a sujeira e a imoralidade das mentes de crianças corruptas, adolescentes pervertidos e adultos de consciência ruim” (1997, p. 205). A noite eterna parece ter caído sobre o mundo e as trevas são a cor mais elegante no outono do século. Apesar de poucos esperarem que o mundo acabe com a virada do milênio, um verdadeiro espírito de fin de siècle, de pessimismo cultural e mal-estar espiritual permeia a sociedade nos dias de hoje. Para muitos, o milênio é apenas uma boa oportunidade para uma celebração de Ano Novo especialmente extravagante. Entretanto, “a despeito dos planos do nosso jubiloso lóbulo frontal para a ocasião,” há evidências de que o fim está próximo: Chernobyl, aquecimento global, prognóstico de meteoritos gigantes que destruirão a Terra, o “frenesi do interesse pelo budismo”, a mania de anjos, a “misteriosa explosão no interior da Austrália”, e assim por diante (GRUNENBERG, 1997, p. 208). De acordo com Mary Douglas (1991, p. 54), “a cultura exerce uma certa autoridade [...]. Mas por serem públicas, as categorias culturais são ainda mais rígidas”. Ao mesmo tempo, Grunenberg aponta algo que a história demonstrou diversas vezes, ou seja, quanto mais restritivas forem definidas as normas de permissividade e mais rigidamente forem aplicadas, maior torna-se a fascinação pelo desconhecido, o desejo de provar o fruto proibido — e mais ingênuos tornam-se os truques e métodos daqueles que tentam contornar as regras e as restrições (1997, p. 204). Nas palavras de Edgar Allan Poe: Quem não se achou centenas de vezes a cometer um ato vil ou estúpido, sem outra razão senão a de saber que não devia cometê-lo? Não temos nós uma perpétua 119 inclinação, apesar de nosso melhor bom-senso, para violar o que é a Lei, pelo simples fato de compreendermos que ela é a Lei? (POE, 2001, p. 296). Nesse espírito surgiu o movimento denominado New Gothic, que se proliferou na literatura de ficção inglesa e norte-americana, bastante popular nas décadas de 1950, 1960 e 1970. De acordo com Bradford Morrow e Patrick McGrath (apud GRUNENBERG, 1997, p. 210), “embora não mais acorrentados aos suportes convencionais do gênero, os temas que alimentam essas obras — horror, loucura, monstruosidade, morte, doença, terror, maldade e sexualidade estranha — manifestam fortemente uma sensibilidade gótica”. Grunenberg salienta que diversos artistas visuais contemporâneos passaram a compartilhar uma estética comum, uma preferência pelas formas imperfeitas, fragmentárias e deformadas, empregadas para produzir efeitos de horror e admiração. A subcultura do rock gótico, que precedeu em duas décadas o atual renascimento dessa estética, também nutria interesse pela morte, pelo macabro e pelo transcendental, com inconfundíveis códigos de vestimenta e estilo de vida. Além disso, continua o autor, há muito o gótico é popular no cinema e na televisão, não apenas em relação ao seu conteúdo, mas também em termos formais (1997, p. 209). Nos anos de 1980, surgiu em São Petersburgo e arredores, na Rússia, o movimento artístico autodenominado “necrorrealista”, que pretendeu redefinir o gótico enquanto uma idiossincrática mistura de morbidez, humor negro e sátira “absurdista”. Grunenberg vê na figura do engenheiro e artista Yevgeni Yufit o fundador do “necrorrealismo”, movimento coletivo composto de pintores, fotógrafos, escultores e cineastas. Em filmes como Daddy, Father Frost is Dead (1991) e The Wooden Room (1995), Yufit retratou “os detritos de uma ordem social decadente, um mundo em que nada funciona por muito tempo, como antes, um mundo no qual existem pessoas ainda fortemente presas a tarefas cujo valor e significado há muito se perderam, para as quais uma sobrevivência brutal ou o suicídio se apresentam como as únicas alternativas” (GRUNENBERG, 1997, p. 45). 120 Grunenberg sustenta que a divisão entre os vivos e os mortos é efetivamente indistinguível no necrorrealismo. Ou seja, virtualmente todos possuem a fisionomia de um zombie romeriano. Ambas as produções de Yufit, filmadas na sepulcral melancolia do preto- e-branco, o que as situa entre A Noite dos Mortos-Vivos e O Vampiro (Vampyr, dir. Carl Theodor Dreyer, 1932), constituem-se essencialmente sem palavras, possuídas mais pela lógica dos sonhos que do design narrativo, fermentadas apenas por uma espécie de comicidade beckettiana (1997, p. 45). No cinema, “David Cronenberg e Peter Greenaway foram pioneiros na introdução de dramas metafísicos com uma estética distintamente grotesca e corrosiva, enquanto David Lynch enfatizou o estranho e o bizarro ao situá-los dentro do contexto de aparente normalidade” (Grunenberg, 1997, p. 209). A paisagem urbana degenerada de Seven – Os Sete Crimes Capitais (Seven, dir. David Fincher, 1995) parece ter moldado a aparência de diversos filmes hollywoodianos e séries televisivas, como Arquivo X (The X-Files, 1993-2002) e Millennium (1996-1999). Ao explorar toda a gama de incidentes sobrenaturais que vão desde milagres religiosos, alienígenas, discos voadores e assassinos em série — com referências casuais a acontecimentos reais, como destaca Grunenberg —, essas séries de TV combinavam “horrores pavorosos... e um espírito de voyeurismo exuberante e calmo, tão puro e intenso que faz fronteira com um estado de transe” (1997, p. 209). No próximo tópico veremos que a ubiquidade do fenômeno cultural do gótico parece ter resvalado para uma mídia específica, o videogame. Seria esta uma das “zonas culturais menos previsíveis”, mencionadas pelo escritor Mark Edmundson? (GRUNENBERG, 1997, p. 211). 121 3. Fator Resident Evil 3.1. Estética Visceral José Manuel Serrano Cueto (2009) destaca a importância da figura do zombie nos videogames. Entre os anos de 1980 e 1990, surgiu no mercado uma grande variedade de títulos inspirados no “modelo romeriano”, destinados a plataformas como Amiga, Arcade, Atari ST, Commodore 64, Mega Drive, Sega CD e Super NES. Por exemplo, a criação do jogo Zombi (1986), para o computador Amstrad, baseou-se no filme homônimo de George Romero. Em seguida, apareceram no mercado The Evil Dead (1984); Ghosts ’n Goblins (1986) e sua sequência Ghouls ‘n Ghosts (1988); Splatterhouse (1988), clássico da desenvolvedora japonesa Namco; Horror Zombies from the Crypt (1990); Alone in the Dark (1992); Zombies ate my neighbours (1993); a saga Doom, iniciada no Windows em 1993; Corpse Killer (1994); The House of the Dead (1996); Flesh Feast (1998); o violento Blood (1997); a série House of the Dead (1998), entre muitos outros. 40 Esses jogos são claras referências ao universo zombie e integram outra parcela do legado romeriano. Dessa maneira, percebemos que a presença dos mortos-vivos nos videogames tem sido uma constante desde os anos de 1980, com forte inspiração no cinema de Romero. Dentro dessa trajetória, contudo, Cueto observa o impacto de Resident Evil (Biohazard, 1996) sobre o subgênero do zombie. Estenderemos a sua importância, ainda, para além da mídia dos games, considerando a transmutação que empreendeu sobre o “modelo romeriano” de horror. De acordo com Tania Krzywinska (2008), o arco narrativo de Resident Evil consiste na mistura dos gêneros da ficção científica e do “survival horror”, ambos encontrados em A 40 Dados de acordo com: http://www.zombies.com.br/forum/lofiversion/index.php/t990.html. 122 Noite dos Mortos-Vivos, acrescida de um estilo extra, a dimensão conspiratória de Arquivo X — série televisiva considerada por Grunenberg (1997, p. 211) uma manifestação da “sensibilidade gótica” que ressurgia na arte e na cultura contemporâneas. Desenvolvido pelo designer gráfico Shinji Mikami para a companhia japonesa Capcom, com destino à plataforma Sony Playstation, essa combinação de horror e aventura, com desenhos de Eiji Aonuma, tornar-se-ia um dos videogames mais vendidos da década de 1990. Seu enredo trata da epidemia 41 desencadeada acidentalmente pela poderosa corporação farmacêutica Umbrella, quando um vírus de laboratório foge ao controle. Quatro dos membros da equipe Alpha da S.T.A.R.S. [Serviço de Táticas Especiais e de Resgate, em português], que estavam em Raccoon City em busca de seus companheiros perdidos, da equipe Bravo, são atacados por uma matilha de cães sanguinários e se refugiam em um casarão aparentemente abandonado, momento em que o jogo tem início. Jill Valentine, Chris Redfield, Barry Burton e Albert Wesker são os quatro agentes da Alpha que ficam presos em uma mansão que, à medida que é explorada, fornece informações sobre a pandemia que foi liberada na cidade, cuja origem indica a corporação farmacêutica Umbrella e o seu vírus-T (CUETO, 2009, p. 45). O “fator Resident Evil” parece ter levado o “modelo romeriano” a nova etapa de desenvolvimento. Definiremos esse processo como transmutação do modelo romeriano de horror. Em certa medida, o jogo constitui uma transmutação bastante representativa, ao acrescer à figura do zombie diversos elementos que salientam a idéia do contágio. De acordo com Neil Ferguson, 42 epidemiologista do Imperial College, na Inglaterra, essa associação reflete os medos do nosso tempo acerca dos perigos da manipulação genética e da propagação de novas doenças pelos laboratórios. Citemos dois exemplos recentes: Contágio (Contagion, dir. Steven Soderbergh, 2011), produção que trata da ameaça de uma doença mortal e da equipe de médicos contratada pelo CDC para combatê-la; e Planeta dos Macacos: a Origem 41 A liberação da epidemia, no enredo do jogo, parece obedecer ao terceiro mecanismo de surgimento de infecções. Segundo a definição de Stephen S. Morse, esse mecanismo refere-se à disseminação de determinado vírus a partir de uma pequena população humana ou animal, na qual esse vírus surgiu ou foi originalmente introduzido (SCHATZMAYR, 2001, p. 210). 42 The infectious nature of the Zombies. Entrevista com Neil Ferguson. Acesso em: 2 jul. 2010. Disponível em: http://news.bbc.co.uk/today/hi/today/newsid_8206000/8206612.stm. 123 (Rise of the Planet of the Apes, dir. Rupert Wyatt, 2011), no qual é sugerido que uma pandemia, disseminada ao redor do globo através da conexão aérea entre os países, causa a extinção dos seres humanos, deixando a Terra de herança para os símios, inteligentes e organizados. Entretanto, apesar desse acréscimo à representação do zombie, os monstros de Mikami ainda são fisicamente idênticos àqueles que Romero trouxe à vida em seus filmes. Podemos observar claramente a semelhança em um trecho da adaptação literária do jogo: Um homem de ombros largos estava parado a menos de vinte metros de distância, semi-escondido nas sombras, com as costas voltadas para Chris. Ele virou-se lentamente, arrastando-se com o cuidado de alguém bêbado ou ferido, e o odor que Chris notara anteriormente se desprendia do homem em ondas densas e tóxicas. Suas roupas estavam esfarrapadas e manchadas [...] Sua face era lívida, exceto pela mancha de sangue ao redor dos lábios apodrecidos. Retalhos de pele seca pendiam de suas faces encovadas, e as cavidades escuras das órbitas da criatura brilhavam com fome conforme estendia as mãos esqueléticas – (PERRY, 1998, p. 61-2). Na esteira do primeiro Resident Evil, outros jogos de zombies foram lançados. Krzywinska (2008) sugere que o subsequente ciclo de Silent Hill (1999-) seja o de atmosfera mais assustadora e enigmática entre todos os games que abordam a temática. Nos jogos da série, o terreno possui duas dimensões, uma de relativa normalidade e outra de pesadelo sangrento. Os edifícios naturalisticamente concebidos e os espaços nos quais a ação se desenvolve tornam-se viscerais e lívidos, com sangue e entranhas em profusão, um abrigo de adversários zumbis mais perigosos, numerosos e fantásticos. Silent Hill e Resident Evil são jogos em primeira pessoa desenvolvidos para consoles, ao passo que Painkiller (2004) e Doom3 (2004) surgiram para computadores de última geração. No ambiente em terceira pessoa de Resident Evil e Silent Hill, percebe-se que os zombies estão bem adaptados à mídia dos videogames: proporcionam o inimigo ideal, por serem fortes, implacáveis, horríveis e já estarem mortos. Para a autora, a violência virtual está no cerne da maioria dos jogos de zombies, produções raramente fundamentadas nos 124 relacionamentos interpessoais. Nesse sentido, esses games parecem reproduzir um aspecto fundamental de A Noite...: a tensão implacável. Além disso, identificamos através da observação dos títulos iniciais da série Resident Evil ecos do expressionismo que aproximam os jogos e o primeiro filme de Romero. A Noite... parece ter sido inspirado, em alguma medida, pela estilização expressionista de O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, dir. Robert Wiene, 1920) não apenas em termos de fotografia (enquadramentos, o chiaroscuro, etc.), mas também no que diz respeito à caracterização do zombie — a despeito da dimensão naturalista ainda observável no filme de Romero. Com efeito, por vezes o zombie relembra personagens identificados com o expressionismo teatral, literário, cinematográfico e mesmo pictórico. O morto-vivo romeriano, por exemplo, remete indiretamente ao sonâmbulo Cesare (vítima de Caligari que atua como um instrumento nos planos criminosos do hipnotizador) em relação a sua performance em cena e em termos de maquiagem. As olheiras negras exageradas de Cesare estão também no rosto do morto-vivo, o qual perambula de forma instável ao redor da casa de fazenda abandonada, em Evans City. Tanto Cesare quanto o zombie estão em transe, têm o olhar vidrado, são personagens vagantes e obsedados. Aparentemente, a obra pré-expressionista O grito (1895), do pintor norueguês Edvard Munch, também pode ter inspirado — ainda que remotamente — a moderna representação dos zombies. A litografia de Munch pretende expressar como uma súbita excitação transforma todas as nossas impressões sensoriais. “O rosto da pessoa que grita está distorcido, de fato, como o de uma caricatura. Os olhos arregalados e as faces encovadas lembram a cabeça de um morto” (GOMBRICH, 1999, p. 564). 125 O Grito. Edvard Munch, 1895. Cesare (Conrad Veidt) – O Gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene, 1920). Zombie (S. William Hinzman) – A Noite dos Mortos-Vivos (George Romero, 1968). 126 Não podemos perder de vista que o filme expressionista alemão era altamente estilizado. Susan Hayward (2006, p. 195) aponta que as “marcas de seu estilo são os ângulos oblíquos de câmera, as formas e corpos distorcidos, os cenários bizarros e incongruentes que são quase góticos em sua aparência e enquadramento”. Traçando uma análise comparativa, Hervey (2008) identifica em algumas cenas de A Noite... um estilo expressionista semelhante ao encontrado em O Gabinete do Dr. Caligari. Aos 13 minutos do filme, Barbra corre para as escadas. A iluminação de inspiração expressionista, criadora de sombras dramáticas, faz com que o balaústre e suas sombras enjaulem-na por todos os lados (2008, p. 41). Identificamos esse estilo também nos primeiros jogos de Resident Evil, pois esses jogos adotariam a iluminação e os enquadramentos oblíquos que aparecem no primeiro filme de Romero. Iluminação expressionista I A Noite dos Mortos-Vivos (George Romero, 1968). Iluminação expressionista II Resident Evil (Capcom, 1996). Aos 85 minutos de A Noite..., lembra-nos Hervey, na cena em que Karen mata a sua mãe, não há música, apenas gritos deliberadamente fora de sincronia. “Eles tiveram sua altura alterada, foram atenuados e mergulhados num ruído quase celestial: um clamor de horror, agonia e êxtase” (2008, p. 102). Igualmente, o sangue nas paredes e a ausência de som em momentos determinados, para aumentar o suspense, são características importantes de 127 Resident Evil. A ação limitada da câmera, quase estática, também representa um elemento importante nos filmes expressionistas e está presente nos três primeiros jogos da série. Câmera estática I. Resident Evil (Capcom, 1996). Câmera estática II. Resident Evil (remake – Capcom, 2002). Dessa maneira, percebemos que determinadas características do estilo cinematográfico, empregadas na estética dos videogames, agem de modo a imprimir ameaça e realçam a idéia de que o jogo, algumas vezes, segue na contramão da sensação de controle. 128 Enquanto em inúmeros jogos em primeira e terceira pessoa o ponto de vista do jogador está ancorado na perspectiva do jogador-personagem ao longo da jogabilidade, em Resident Evil [...] o ponto de vista frequentemente se desloca radicalmente para além da perspectiva do jogador para exibir eventos que acontecem em outras localizações. Esse aspecto do design do jogo deriva do cinema. Cria diversidade visual e proporciona suspense nos moldes de Hitchcock ao revelar [...] eventos que ocorrem fora do alcance do jogador-personagem. Essa técnica transversal opera de modo a abalar a sensação de controle visual do ambiente por parte do jogador. Um intenso sentimento de antecipação é criado; o jogador sabe que aquilo que lhe foi mostrado logo terá impacto em suas atividades. O uso de ângulos inclinados durante o jogo também se une ao sentimento de que o mundo está torto (KRZYWINSKA, 2008, p. 157). De acordo com Krzywinska (2008), a popularidade dos mortos-vivos nos videogames pode ser explicada em parte pelo modo com que o zombie articula, num contexto de fantasia mediada, os medos contemporâneos sobre a perda de autonomia e a capacidade da ciência de criar devastações apocalípticas. A ansiedade relacionada ao “Fim dos Tempos”, muito evidente nos dias de hoje, nos faz retornar ao contexto histórico de A Noite dos Mortos-Vivos. “Confinado à arena religiosa por quase dois mil anos”, explicam Matthew Barrett Gross e Mel Gilles (2012), “a ideia do apocalipse se ampliou (compreensivelmente) na mente secular com o advento da bomba atômica e os crescentes temores da Guerra Fria quanto à aniquilação nuclear”. Devemos lembrar que “a Guerra Fria, simbolizada pela presença da Bomba, trouxe a consciência de que nós e nossos amigos e milhões de outros ‘abstratos’ podemos morrer a qualquer momento”, segundo declaração do Students for a Democratic Society (SDS), de 1962 (apud GOFFMAN, 2007, p. 279). No fim dos anos 1990, continuam Gross e Gilles, o “Bug do Milênio” surgiu para demonstrar que o apocalipse enraizara-se profundamente na mentalidade 43 coletiva. A linguagem do apocalipse também seria adotada por George W. Bush explicar os atentados de 11/9, instalando esse discurso no centro do debate público. Esse mesmo temor parece ter sido utilizado como argumento da série Resident Evil. 43 Segundo Jean-Claude Schmitt, as “mentalidades” consistem não apenas nos estratos antigos e persistentes do pensamento e dos comportamentos, mas nas crenças e nas imagens, nas palavras e nos gestos que encontram plenamente seu sentido na atualidade presente e bem viva das relações sociais e da ideologia de uma época. 129 3.2. Recurso ao Gótico Nos primeiros romances góticos, como nos lembra Grunenberg (1997, p. 176), o fascínio pelos castelos e outras edificações medievais, eclesiásticas e seculares, conferiu ao gênero a sua denominação. O autor aponta que a figura da casa abandonada e solitária, plena de história e memórias, desintegrando-se numa paisagem desoladora, com o seu interior obscuro, assombrado, preenchido com uma abundância de decoração e mobílias pesadas, surgiu posteriormente, durante o processo de desenvolvimento do gênero, e constitui o topos gótico mais popular dos séculos XIX e XX. A definição magistral de Edgar Allan Poe sobre a cena, no parágrafo que abre A Queda da Casa de Usher, permanece como o auge da apresentação de uma atmosfera inquietante: Durante todo um pesado, sombrio e silente dia outonal, em que as nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, estive eu passeando, sozinho, a cavalo, através de uma região do interior, singularmente tristonha, e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto do melancólico solar de Usher (POE, 2001, p. 244). Desde a publicação de O Castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, a ambientação arquitetônica e geográfica representa um dos elementos-chave para o estabelecimento do estado de suspense, antecipação e horror. Segundo Grunenberg, “o gótico é delimitado pelo lugar do mal, o locus horribilis no qual residem os monstros, suas vítimas são torturadas e devoradas, e crimes inesquecíveis ocorrem”. Na introdução do The Oxford Book of Gothic Tales, Chris Baldick aponta que uma verdadeira obra gótica “deve combinar uma assustadora sensação temporal de herança e uma claustrofóbica sensação espacial de clausura, ambas as dimensões reforçando uma à outra para produzir uma impressão de descida nauseante à desintegração” (BALDICK apud GRUNENBERG, 1997, p. 195). 130 Na perspectiva do retorno do gótico, Resident Evil parece retomar a tradição da “casa abandonada [...] numa paisagem desoladora”. A adaptação literária do jogo descreve o momento em que os protagonistas, os quatro membros da equipe de resgate, adentram na floresta de Raccoon e deslocam-se rapidamente pela área, com “o aroma quente da terra e dos pinhos ofuscado pelo cheiro de queimado, o odor acre que aumentava a cada passo” (PERRY, 1998, p. 46). De repente, são atacados por cães assassinos, bestas com “cheiro fétido de carne apodrecida” (PERRY, 1998, p. 53), e refugiam-se numa mansão aparentemente abandonada. Interessa-nos, aqui, a descrição da misteriosa residência onde transcorre o enredo do jogo: Do lado de fora parecia abandonada, a gigantesca mansão, escura e em ruínas, com a madeira e as pedras desgastadas. A dimensão total da estrutura era encoberta pelas sebes cheias e sombrias que a cercavam, isolando-a da floresta. À frente, um enorme alpendre mostrava portas duplas, a única opção de fuga (PERRY, 1998, p. 53). Era um palácio, pura e simplesmente, o que seu pai teria chamado de perfeição. O salão para o qual haviam fugido era o epítome do luxo. Era enorme, facilmente maior do que a casa inteira de Jill, revestido com mármore salpicado de cinza e dominado por uma ampla escadaria acarpetada, que conduzia à sacada do segundo andar. Colunas marmóreas arqueadas se alinhavam no salão ornamentado, sustentando a pesada balaustrada de madeira escura do andar superior. Arandelas [...] lançavam funis de luz através das paredes de um tom creme, estas aparadas em carvalho, compensadas pela profunda e queimada cor ocre do carpete. Em resumo, era magnífico. “O que é isso?”, murmurou Barry. Ninguém respondeu. [...] (PERRY, 1998, p. 55-56). No plano da cognição dos personagens, é digna de nota a sensibilidade despertada pela ambientação gótica. “Jill respirou fundo e decidiu, de imediato, que aquilo não a agradava. Havia na vasta sala uma sensação de... iniqüidade, uma atmosfera de vaga opressão. Sentia-se de alguma forma assombrada, embora não pudesse dizer pelo quê ou por quem” (PERRY, 1998, p. 55-6). Grunenberg destaca a “angústia insuportável”, incômoda sensação induzida no personagem do conto de Poe ao contemplar a Casa de Usher. Havia um enregelamento, uma tontura, uma enfermidade de coração, uma irreparável tristeza no pensamento, que nenhum incitamento da imaginação podia forçar a transformar-se em qualquer coisa sublime. Que era – parei para pensar – 131 que era o que tanto me perturbava à contemplação do Solar de Usher? Era um mistério inteiramente insolúvel [...] (POE, 2001, p. 244). Em analogia, observamos como o sentimento que aflora em Jill Valentine, a respeito da “casa abandonada”, é semelhante ao do personagem de Poe. O ambiente da mansão não agradava Jill, talvez pela “atmosfera de vaga opressão” e pela sensação de “iniqüidade” no salão principal. No conto de Poe, o escritor fala em “um enregelamento”, uma “angústia insuportável” ao vislumbrar o Solar. Da mesma forma, ambos são incapazes de identificar a origem de sua estupefação. Jill sentiu-se “de alguma forma assombrada, embora não pudesse dizer pelo quê ou por quem”. O personagem do conto considera a causa de sua perturbação “um mistério inteiramente insolúvel”. Segundo Grunenberg (1997, p. 176), “a casa funciona como a matriz da memória, e a exploração de seus aposentos, quartos secretos, portas trancadas e armários (tema padrão na ficção gótica e no film noir) chama à consciência experiências e sonhos deslocados e indigestos”. Devemos acrescentar que a exploração desses lugares secretos, muitos deles trancados à chave, se faz presente em Resident Evil, com o objetivo de ampliar a dificuldade do jogo e sua carga de mistério. “Na Europa, o gótico foi inventado para lidar com o passado e com a história a partir de um ponto de vista tipicamente protestante e esclarecido”, explica Leslie Fiedler em Love and Death in the American Novel (1960). Na tentativa de compreender o desenvolvimento do gênero gótico nos EUA, o autor parte do seguinte questionamento: “Mas o que poderia ser feito com a forma num país que […] nunca teve passado ou história próprios?” (FIEDLER apud MURPHY, 2009, p. 9). Nesse sentido, percebemos que Fiedler se refere a um passado medieval, ainda assim numa perspectiva notadamente eurocêntrica e etnocêntrica. Ao delimitar as principais diferenças entre a ficção gótica européia e a norte-americana, Fiedler sugere que: na Europa, a apropriação imaginativa do passado feudal forneceu ao gênero muitos de seus cenários, características e sustentáculos; nos EUA este teria sido adaptado, considerando a ausência dessa tradição. Grunenberg complementa (1997, p. 176): ao invés de 132 transcorrer exclusivamente em castelos medievais, casas neo-góticas ou vilarejos isolados da Inglaterra, o gótico contemporâneo dar-se-ia em bizarros panoramas americanos, paisagens urbanas noturnas, estacionamentos abandonados, fábricas, armazéns e outros remanescentes da cultura pós-industrial, bem como nos subúrbios de aparente paz e normalidade. É nesses cenários americanos que transcorre a narrativa dos primeiros jogos da série Resident Evil. Entretanto, devemos observar que não pretendemos aqui classificar imediatamente o zombie como uma figura ou personagem gótico. Embora tratemos da presença do estilo gótico nesses games, não estamos afiliando o zombie automaticamente à estética gótica. Identificamos o gótico mais no plano dos cenários, ambientação e atmosfera, bem como no plano da cognição dos personagens e até mesmo em algo da estratégia narrativa. Interior da Casa de Usher. A Queda da Casa de Usher (1928). Salão principal da Mansão. Resident Evil ( Capcom, 1996). 133 A Mansão (exterior e interior): cenário do primeiro Resident Evil (1996, remake 2002). 134 3.3. Metáfora Viral Para Cueto (2009, p. 45), a qualidade de Resident Evil, com personagens em 3D de movimentos ágeis e um roteiro realmente assustador, fez com que o jogo fosse muito bem recebido em todo o mundo, propiciando inevitáveis sequências. 44 No âmbito do nosso estudo, as duas continuações seguintes são as mais representativas, pois fecham o que denominamos “trilogia de Raccoon City”.45 Em Resident Evil 2 (1998), Claire Redfield e o policial Leon S. Kennedy tentam sobreviver na cidade devastada pelos zombies; em Resident Evil 3: Nêmesis (1999), a protagonista Jill Valentine deve enfrentar uma monstruosa criatura da Umbrella, denominada “Nêmesis”, num período temporal que ocorre simultaneamente ao do jogo que o antecede, na mesma cidade infestada de zombies e outras anomalias genéticas. Destacamos, também, o recente Resident Evil 5 (2009), cuja ação transcorre no povoado africano de Kikuji, enquanto Chris Redfield segue os passos do bioterrorista Ricardo Irving. Reafirmamos que os jogos da série trazem elementos que ressaltam a ideia de contágio e a ansiedade relacionada às pandemias, ao bioterrorismo, às guerras químicas e bacteriológicas. Em suma, refletiriam aquilo que Ferguson 46 definiu como “os medos do nosso tempo acerca dos perigos da manipulação genética e da propagação de novas doenças pelos laboratórios”. 44 Inclusive, foi produzido um remake homônimo e otimizado do primeiro jogo da série, desenvolvido pela Capcom Production Studio 4 e lançado em 2002. De maneira geral, o enredo do game permaneceu inalterado, porém com diversos novos detalhes, ambientes e elementos de jogabilidade. Em 2006, o portal Game Trailers o classificou como o terceiro videogame mais assustador de todos os tempos. 45 Definimos como “trilogia de Raccoon City” os três primeiros jogos da série Resident Evil, por serem ambientados na fictícia Cidade de Raccoon, no oeste americano. O enredo do primeiro jogo se desenrola na área rural, como um prelúdio à infestação de mortos-vivos que tomará a área da cidade nos dois títulos seguintes. A narrativa do segundo e do terceiro se dá no mesmo espaço temporal, e termina com a destruição da cidade por um míssil nuclear, lançado pelas forças armadas dos Estados Unidos para conter a epidemia. 46 The infectious nature of the Zombies. Entrevista com Neil Ferguson. Acesso em: 2 jul. 2010. Disponível em: http://news.bbc.co.uk/today/hi/today/newsid_8206000/8206612.stm. 135 Os modelos descritivos produzidos e empregados no passado [com relação aos vírus] persistem hoje e são utilizados na cultura popular, na qual o contágio pode tomar a forma da estratégia terrorista definitiva, e na ficção científica, na qual a propagação é frequentemente causada por agentes patogênicos que escapam de laboratórios secretos do governo [...], ou em narrativas médicas ou científicas, nas quais são penetrantes as metáforas do “corpo em guerra” (MARTIN apud BUIANI, 2005). Para Jussi Parikka (2005), é importante compreender a dupla articulação do vírus enquanto ameaça e parte integral da sociedade contemporânea. Nesse sentido, consideramos Resident Evil um divisor de águas dentro da genealogia zombie, dada a sua atualidade e a transmutação que permite ao “modelo romeriano”. Faz-se necessário, agora, observar como o vírus e os agentes patogênicos podem ser aplicados como metáfora. Em Cinematic Prophylaxis: Globalization and contagion in the discourse of world health (2005), Kirsten Ostherr analisa historicamente o emprego do cinema como instrumento de divulgação ostensiva ou implícita de campanhas de saúde pública e do conceito de “world health”, que surge com mais força após a Segunda Guerra Mundial. Segundo o conceito de “Cinematic Prophylaxis”, o cinema difunde popularmente discursos sobre saúde pública, higiene e também sobre sexismo, racismo e eugenia. A “dialética do visível e do invisível”, segundo definição da autora, consiste na abordagem cinematográfica de temas que envolvem agentes invisíveis — os micróbios. Nesse trajeto, Ostherr analisa “filmes de saúde pública”, filmes governamentais ou de propaganda do período silencioso, e também filmes hollywoodianos de ficção, especialmente ficção científica. A autora dedica um capítulo à análise dos discursos relativos à saúde pública e ao contágio embutidos nos filmes de invasão alienígena dos anos 1950, como Vampiros de Almas (The Invasion of the Body Snatchers, dir. Don Siegel, 1956), e produções posteriores, entre elas The Andromeda Strain (dir. Robert Wise, 1970) e Epidemia (Outbreak, dir. Wolfgang Petersen, 1995), analisando a evolução dos discursos sobre contágio, profilaxia e saúde pública em filmes mais recentes ou contemporâneos. O interessante é que em momento algum a autora menciona a obra de George Romero, pois 136 admite se concentrar no cinema mais “oficial”, hollywoodiano. Entretanto, esse recorte deixa de examinar toda uma gama de discursos alternativos ou de contra-argumentação. Consideramos que a sua análise possa ser estendida a demais filmes ou gêneros cinematográficos no escopo de uma “profilaxia cinemática”, no exame desses filmes independentes ou mais alternativos. Segundo Roberta Buiani (2005), o vírus constitui não apenas uma das mais antigas formas discursivas, mas também um dos conceitos culturais de maior disseminação. Apesar de suas especificações, definição e classificação serem mutáveis de acordo com a disciplina que o examina, a utilização do termo “vírus” está sempre associada a uma série de percepções compartilháveis, e carrega um número de atributos e características que podem ser encontradas quase inalteradas em diversos contextos. Apesar da contínua reformulação, em termos de sentido e significância, o vírus mantém um número de regularidades discursivas que não apenas constituem os seus atributos dominantes, mas também o caracterizam de maneira totalizante ao estabelecer a sua negatividade enquanto um elemento absoluto e imanente. Dentro dessa perspectiva, explica a autora, os vírus são comumente definidos enquanto espécimes de micróbios capazes de produzir, exclusivamente, danos ou incômodos ao sistema imunológico do ser humano (e agora também ao computador). Em suma, costumam ser vistos como entidades estranhas que produzem reações negativas e causam o mau-funcionamento do organismo afetado. Buiani prossegue com a argumentação (2005). O vírus parece afetar simultaneamente, ainda que de forma separada, a natureza e os seres humanos, tornando parcialmente indefinidas as fronteiras entre as formas de vida baseadas no carbono e aquelas projetadas digitalmente, bem como entre a vida e a morte, entre vida natural e vida artificial. Em analogia, Kim Paffenroth explica que os zombies estão situados no limiar entre o humano e o 137 não-humano, pois a vida artificial que os reergue transpõe, claramente, a linha entre a vida e a morte. Isso implicaria na violação tanto do mundo físico como da sociedade humana. Sempre em cima do muro ocidental de antagonismos preto/branco, civilizado/selvagem, vida/morte, o zumbi é um arauto da perdição. Sua mera existência evidencia a possibilidade de um mundo que não se esgota nos limites da compreensão humana, um mundo onde esses opostos binários não são mais fixos. Passando por cima de nossas mais queridas e fundamentadas certezas, o zumbi é, acima de tudo, um símbolo de nosso universo ordenado virado de cabeça para baixo, quando a morte torna-se vida e a vida torna-se morte (RUSSEL, 2010, p. 19). Para Lauro e Embry, o corpo inconciliável do zombie (tanto vivo quanto morto) provoca a insuficiência do modelo dialético sujeito/objeto e sugere, através de sua dialética negativa, que tornar-se anti-sujeito é a única maneira de alcançar verdadeiramente a pós- humanidade (2008, p. 87). Em analogia, explica Buiani (2005), o vírus é permeado por uma retórica discursiva recorrente, que o caracteriza em termos de sua negatividade. Isso se dá no interior de qualquer período histórico ou perspectiva disciplinar – da biologia ou da ciência da computação, das artes ou da cultura popular. Essa negatividade consolidaria sua “aura negativa”. O legado romeriano pós-Resident Evil parece reforçar tal argumento: Paffenroth (2006, p. 12) sustenta que, nos filmes de zombie derivados do “modelo romeriano”, a sociedade humana encontra-se em ruínas não apenas por ver-se diante de uma grande ameaça, mas porque existe o perigo de se tornar algo que não é vivo nem morto. Assim, os zumbis provocam o completo colapso do mundo natural, de cadeias alimentares, ordem social, respeito pela vida e respeito pela morte, porque todas essas categorias são inexpressivas e impossíveis de se manter em um mundo no qual o limen mais fundamental, [...] entre os vivos e os mortos, torna-se um limiar que ninguém atravessa verdadeiramente, mas no qual todos vivem em suspensão, a todo tempo. O horror real dos zumbis é essa eterna [...] suspensão entre dois estados igualmente terríveis, e não os poucos segundos de violência necessários para que o humano atravesse para o status de zumbi (PAFFENROTH, 2006, p. 13-4). No mundo da informação, Parikka (2005) sustenta que os vírus aparecem primeiramente como agentes de ruptura que precisam ser excluídos do circuito para que, 138 dessa maneira, possa ser alcançado o perfeito equilíbrio da informação. Suspensos entre a vida e a morte (portanto, “mortos-vivos”), mito e realidade, abstrato e concreto, os vírus seriam os candidatos favoritos entre os “campeões da marginalidade”. Enquanto as sociedades industriais da modernidade dependiam das máquinas termodinâmicas, cujo perigo passive era a entropia e o perigo ativo advinha da sabotagem, as sociedades contemporâneas de controle se expressam em termos de máquinas cibernéticas que manipulam o fluxo de informação. A interferência na informação, a pirataria e os vírus de computador são os perigos dessa maquinaria, interrompendo o fluxo informacional (PARIKKA, 2005). Parikka considera o vírus um disruptor dos fluxos de informação e dos fluxos do próprio capitalismo, ideia que parece se encaixar muito bem nas articulações do que se denomina “nova economia digital”. Portanto, consideraremos o papel do vírus enquanto “disruptor dos fluxos do capitalismo” no intuito de traçar uma analogia entre suas características gerais e as contraculturas, teorizando, no próximo tópico, a respeito da (possível) estrutura viral desses movimentos sociais. O desconforto diante do “meio-termo”, essa “indefinição” que caracteriza o zombie, pode ser entendido nos termos da reação provocada por outras imagens-categorias, como o transexual, o mestiço, o ciborgue, entre outras, síntese do desconforto da “impureza”, da natureza dúbia ou múltipla. Essas seriam representações da marginalidade. Nesse sentido, podemos falar dos “abstratos”, os cidadãos ordinários aos quais faz menção o documento da SDS, ou mesmo dos “proscritos”, segundo a definição aplicada por Hobsbawm aos bandidos sociais (1976, p. 10-11). Mais adiante, tentaremos desenvolver uma analogia entre os “abstratos” da geração contracultural dos anos 1960, que marchavam em favor dos direitos civis e contra a Guerra no Vietnã; e os milhares de “proscritos” da atualidade, manifestantes que, desde 2010, têm se organizado contra o establishment em diversas partes do mundo. 139 4. Transmutações do Modelo Romeriano Curiosamente, a relação entre esses jogos e os filmes de mortos-vivos se provou estranhamente recíproca. De acordo com Russel (2010, p. 205), “assim como Resident Evil pegou o fracassado gênero zombie e lhe deu vida nova ao transferir os enredos apocalípticos e arquetípicos de Romero do cinema para a sala de estar, o próprio filme de zombie descobriu uma nova perspectiva de vida”. Em outras palavras, o sucesso da Capcom teria gerado um recrudescimento do interesse pelas narrativas cinematográficas sobre os mortos-vivos, aliado ao contexto sócio-histórico do tempo presente. Em 1998, Romero chegou a ser contratado pela desenvolvedora de games para dirigir, em Tóquio, no Japão, um comercial promocional para o segundo título da série. No comercial, de apenas trinta segundos, Leon S. Kennedy e Claire Redfield, os protagonistas de Resident Evil 2, veem-se cercados por uma horda de zombies na delegacia de polícia de Raccoon City. 140 Para Paffenroth (2006, p. 1), a inspiração parece ocorrer em movimento circular: se por um lado o “modelo romeriano” de horror povoou os violentos jogos da franquia Resident Evil, esta, por sua vez, tornar-se-ia uma série 47 de filmes (2002-2010) e serviria de estímulo para a realização de outras produções, como Madrugada dos Mortos, considerada pela crítica algo próxima da linguagem dos jogos mais recentes do gênero devido à representação dos zombies enquanto monstros ágeis e de alto desempenho. De acordo com Harold Varmus (2003), a catástrofe imaginada por Danny Boyle em Extermínio constitui um exemplo importante. O filme abre com uma cena breve e agitada, na qual ativistas dos direitos dos animais, mascarados como terroristas, invadem um laboratório e libertam chimpanzés infectados por uma espécie de “vírus da raiva”. Em um salto, nos deparamos com um cenário desolador, vinte e oito dias depois. Londres está estranhamente calma e deserta, Manchester está em chamas e poucos permanecem vivos em qualquer parte da Inglaterra. O comportamento do vírus é chocante e sem precedentes: transmitido através de pequenas quantidades de fluido corporal, produz efeitos dramáticos no espaço de tempo de vinte segundos. Infalivelmente, transforma suas vítimas em assassinos enfurecidos e desvairados, com habilidades atléticas super-humanas, a capacidade de sobreviver durante vários dias e uma compulsão por morder os não-infectados. Para Varmus, os doentes são tão assustadores quanto os zombies de A Noite..., estes supostamente redivivos pela radiação de uma sonda espacial, um emblema das ansiedades dos anos 1960. Trazendo a problemática para o tempo presente, Extermínio oficializaria o papel das pragas microbianas no imaginário sobre o apocalipse em substituição ao inverno nuclear. Embora o filme tenha sido escrito e 47 A série de jogos Resident Evil deu origem a uma série cinematográfica homônima. Os filmes baseados no jogo são: Resident Evil – O Hóspede Maldito (Resident Evil, dir. Paul W. S. Anderson, 2002), Resident Evil 2 – Apocalipse (Resident Evil: Apocalypse, dir. Alexander Witt, 2004), Resident Evil 3 – A Extinção (Resident Evil: Extinction, dir. Russel Mulcahy, 2007), Resident Evil 4 – Recomeço (Resident Evil: Afterlife, dir. Paul W. S. Anderson, 2010) e Resident Evil 5 – Retribuição (Resindent Evil: Retribution, dir. Paul W. S. Anderson, 2012). A série também originou o filme de animação Resident Evil: Degeneração (dir. Makoto Kamiya, 2008). 141 produzido antes dos atentados com esporos de antraz no Senado, dos debates sobre a vacinação contra a varíola, da busca pelas armas de destruição em massa no Iraque e da ansiedade global acerca do SARS, 48 o seu lançamento nos EUA, naquele momento, alimentou- se do medo rotineiro de uma imprevisível catástrofe microbiológica (VARMUS, 2003). Esse processo trata-se de uma nova transmutação do “modelo romeriano” de horror. Se o zombie já havia sido reformulado pela série Resident Evil, através da inserção de elementos que salientam a idéia do contágio, falamos aqui de um zombie ainda mais contemporâneo, semelhante ao Extermínio e Madrugada dos Mortos. Por exemplo, [...] os zumbis de Painkiller e Doom3 são capazes de movimentar-se de maneira rápida e decisiva. Sempre alerta, espertos e fortemente armados, já não são os emblemas da abjeção ou a alegoria da alienação. Esse desenvolvimento deve-se, em grande parte, à disponibilidade de recursos gráficos e de animação. Se os zumbis de Romero são a segunda geração dos zumbis trabalhadores das produções de horror dos anos de 1930 [Zumbi Branco, por exemplo], então essa é a terceira geração de zumbis, filha da era digital (KRZYWINSKA, 2008, p. 159). Os “zombies” de Madrugada dos Mortos (2004). 48 A síndrome respiratória aguda grave ou severe acute respiratory syndrome (SARS), em inglês, é uma doença respiratória viral causada por um coronavirus. A SARS apareceu primeiramente na Ásia, em fevereiro de 2003. Nos meses seguintes, a doença se espalhou por mais de duas dezenas de países, na América do Norte, na América do Sul, na Europa e na Ásia antes que a eclosão global de 2003 fosse contida. Dados de acordo com: http://www.cdc.gov/ncidod/sars/. Acesso em 5 out. 2011. 142 Seriam os zombies, em todas as suas gerações, produto do desenvolvimento do próprio capitalismo? Considerando essa hipótese, o “modelo romeriano”, metáfora da alienação do trabalho enquanto ameaça lenta, gradativa e sufocante, daria lugar a um assassino especializado, com alto índice de eficiência, em sua forma contemporânea, cooptada pelo capitalismo pós-industrial. O zombie do campo, das minas ou da linha de montagem das primeiras fases da industrialização, teria sido substituído pelo zombie da Toyota, da Madison Avenue, da Wall Street ou do Vale do Silício, no interior da tecnocracia capitalista contemporânea. Em Juan de los Muertos (dir. Alejandro Brugués, 2011), aponta Thomaz Wood Jr., a invasão dos mortos-vivos toma as ruas de Havana, um dos últimos bastiões socialistas. Os personagens Juan (Alexis Díaz de Villegas) e Sara (Branca Rosa Blanco) deixam seu apartamento e se deparam com multidões de zombies vagantes. Sara vira-se para Juan e afirma, resignada, que não notou nenhuma diferença. Percebemos que, aparentemente, Nossos trópicos estão sendo tomados por mortos-vivos. Jovens zumbis posam de estudantes, sentados nas salas de aulas, enquanto os dedos percorrem os teclados de smart phones e a mente flana sem direção por espaços virtuais e mídias sociais. Zumbis operários simulam trabalho nas estatais, nas linhas de montagem e nas centrais de atendimento. Zumbis emergentes vagam pelos shopping centers, os olhos vidrados nas vitrines. [...] Nos bancos escolares, os estudantes têm seus cérebros retirados. Perdem o senso crítico, desenvolvem obsessão pelo status e voracidade pelo dinheiro. [...] Nessas estranhas organizações, a vida segue roteiro de filme trash. O pior é que [...] estamos nos tornando cada vez menos capazes de perceber a diferença (WOOD JR., 2012, p. 47). Destacamos também a última obra literária do escritor norte-americano Colson Whitehead. Zone One é um livro sobre zombies fluente e sombrio, dotado de um ritmo que parece lembrar tanto Marcel Proust quanto George Romero. O personagem principal do romance é Mark Spitz, um jovem medíocre que recebe a incumbência de realizar uma minuciosa limpeza em Lower Manhattan, e ele percorre edifício após edifício garantindo que todos os cômodos estejam livres de mortos-vivos. Em entrevista a Alexis Madrigal, Whitehead aborda a natureza de seus monstros: 143 Não existe nenhum zombie. Os escritores manipulam as criaturas para os seus próprios fins. As hordas que se arrastam em World War Z não servem ao mesmo escopo das de Zumbilândia, as criaturas do Despertar dos Mortos original não são do mesmo gênero do remake. Eles são veículos de compaixão, terror, comentário social, humor, ou uma ardilosa metáfora, dependendo de quem dirige. Nossos monstros são polivalentes e estão sempre se modificando. Como nós. [...] Cada época cria seus próprios monstros. Nós temos os nossos, a próxima geração terá os seus (WHITEHEAD apud MADRIGAL, 2011). Nunca antes os mortos-vivos pareceram estar tão vivos. Tendo observado a importância de Resident Evil nas atuais transmutações do “modelo romeriano”, devemos considerar o argumento de Russel. Para o autor, a resposta óbvia para a atual e inesperada explosão de filmes de zombies é associar essa tendência ao sucesso dos jogos da série, que apresentaram os mortos-vivos a uma geração que podia não estar familiarizada com o trabalho de Romero. Em relação a isso, Romero manifestou a sua opinião: Sou cínico o suficiente para não achar que haja qualquer razão em particular ou um Zeigeist social que convide as pessoas a esse tipo de produção. Um filme faz sucesso e aí todo mundo diz “vamos fazer um filme de zumbi”. Eu realmente acho que os games Resident Evil despertaram as pessoas para a ideia dos mortos-vivos, que estava dormente havia um tempo. Então Extermínio e Todo Mundo Quase Morto jogaram lenha na fogueira. Esses, assim como a refilmagem de Zombie – O Despertar dos Mortos, certamente ajudaram nas negociações para Terra (ROMERO apud RUSSEL, 2010, p. 228). Como qualquer fenômeno cultural, sustenta Paffenroth (2006, p. 133), os filmes de zombie terão que mudar e se adaptar constantemente para permanecerem uma força poderosa e popular no futuro. Filmes recentes, como Madrugada dos Mortos, Terra dos Mortos, Extermínio e Todo Mundo Quase Morto, mostram a adaptação dos contornos básicos do subgênero zombie às mudanças na sociedade. 144 5. Racionalização do Subgênero “Assim como Romero atualizou os primeiros zumbis [...] que tocaram nos medos das gerações anteriores, o gênero se adaptou a novas racionalizações [...] que se ajustam às situações de mudança de suas audiências” (PAFFENROTH, 2006, p. 134). Sabemos que em A Noite... a causa do despertar dos mortos não é explicada, é apenas sugerida sob forma da “radiação misteriosa” de uma sonda espacial que retornou de Vênus, o que é perfeitamente compreensível no contexto da Guerra Fria. Em Zombie – O Despertar dos Mortos e sua refilmagem, Madrugada dos Mortos, a hipótese para o problema refere-se a um julgamento divino. Hoje, no entanto, o retorno dos mortos tem sido comumente explicado nos termos de algum tipo de vírus ou doença, argumento explícito na série Resident Evil e na franquia Extermínio; ou alguma arma biológica que foge ao controle, como é o caso de Apocalise Z, best-seller do escritor espanhol Manel Loureiro. Esta última racionalização de uma arma biológica pode ser o sintoma de um mundo pós-11 de Setembro, ansioso com as possibilidades do bioterrorismo, da mesma maneira que a geração anterior viveu constantemente nas sombras de uma guerra nuclear, e os zombies eram então retratados como resultado da radiação. Tanto o zombie nuclear como o zombie do bioterrorismo são símbolos de nossas insanas ânsias em destruir a nós mesmos, e o assustador portento de que talvez tenhamos sucesso (PAFFENROTH, 2006, p. 2-3). Sean Purdy (2007, p. 271) sustenta que as novas tecnologias e as tendências conservadoras na política e na sociedade influenciaram fortemente a produção cultural do fim do século XX. “A mídia, seja nas formas convencionais rádio e televisão, seja na internet, se consolidou em enormes conglomerados, frequentemente em combinação com corporações de outros setores”. Contudo, o autor salienta que houve exceções às tendências conservadoras dos meios de comunicação de massa. 145 A mídia alternativa sobreviveu e até se expandiu com a internet. Empresas independentes lançaram produtos cada vez mais sofisticados e frequentemente alternativos. Mesmo as gravadoras gigantescas produziram opções alternativas e inovadoras, como os trabalhos de Bruce Springsteen, Rage Against the Machine, Green Day, Annie DiFranco, Pearl Jam e Nirvana, que chamaram a atenção de muitos americanos com seus temas de rebeldia, desespero e crítica social. Música rap e cultura hip hop desenvolveram discursos sobre pobreza, racismo e brutalidade da polícia muito contrários ao status quo. Diretores inovadores como David Lynch e John Sayles também tiveram espaço para romper com as fórmulas vulgares de Hollywood. Numa série de documentários de sucesso de público, Michael Moore criticou, a seu modo peculiar, a concentração de riqueza, a hipocrisia política e o militarismo da sociedade americana [...] (PURDY, 2007, p. 272-3). No interior desse contexto de produção alternativa, também consideramos a nova trilogia de Romero uma forte crítica à sociedade, com destaque para o quarto filme de zombie do cineasta. Em Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005), bem como em outros filmes recentes já mencionados, as ameaças de terrorismo, antraz e da AIDS têm sido incorporadas à representação da ameaça zombie. Paffenroth (2006, p. 134) reafirma que a explicação preferencial para os mortos-vivos, nos dias de hoje, tem sido a doença infecciosa, ou a arma biológica que escapa ao controle, seguida da impiedosa execução dos “infectados” em nome da autodefesa. Jamie Russel concorda (2010, p. 228), e sugere que a recepção favorável dos espectadores com relação aos zombies, nos últimos anos, deve-se justamente ao espectro das inquietações milenares que paira sobre esses filmes, da SARS ao terrorismo. Russel sugere que o foco de Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005) esteja na política de Guerra ao Terror. Esse filme seria um indicador das questões que abasteceram a reemergência do gênero nos primeiros anos do século XXI, trazendo o tropo denominado zombie já amadurecido o bastante para voltar a funcionar como alegoria social. Para o crítico Degiglio-Bellemare (apud PAFFENROTH, 2006, p. 124) “é incompreensível que esse filme tenha sido lançado como uma grande estréia de verão, pois talvez seja um dos mais contestatórios filmes de estúdio [...] realizados em muitos anos”. Trata-se de um filme “sobre quebrar as barricadas, cercas e muros que oferecem falsa segurança aos poderosos”. 146 Terra retoma a denúncia contundente acerca do materialismo e do consumismo na América moderna, aspecto presente em Zombie – O Despertar dos Mortos, e inclui o tema da estratificação das classes enquanto um mal intimamente relacionado. Segundo Paffenroth, Romero corporifica o mais sombrio de todos os vilões na figura de Kaufman (Dennis Hopper), “um personagem que parece ser a combinação do barão capitalista com o imperador romano louco e o rei do crime organizado”. Seu nome, explica o autor, significa “comerciante”, e esta seria a sua essência. Dessa maneira, tendo na figura do comerciante o novo líder da sociedade humana remanescente, o cineasta sugere que a forma mais elevada de poder da velha estrutura social seja o comércio. Nessa óptica cínica e desconfortavelmente realista, o exercício real do poder não advém dos militares, do governo ou da igreja, e sim dos ricos, que fazem uso de suas instituições como fronts de suas maquinações egoístas “De acordo com Romero, a Casa Branca, o Pentágono e o Vaticano não governam o mundo — a Wall Street o faz” (2006, p. 125). Neste momento, os zombies mostram-se também capazes da não-violência e mesmo de algo semelhante à virtude e à bondade. Tendo conquistado o mundo, não mais saem em busca de presas até serem provocados pelos tolos e gananciosos humanos. [...] vivem na significativamente denominada Uniontown, um nome quase tão rico simbolicamente quanto Romero poderia pretender. [O cineasta] determinou a cidade zombie em irônica oposição à sociedade criada por Kaufman, que criminosamente procura manter seus inimigos desorganizados e fraturados entre si mesmos, tornando o Fiddler’s Green o derradeiro símbolo da desunião e da desarmonia. Há também o sentido de “união” como um labor organizado, e como nome do Norte na Guerra Civil Americana, moldando Kaufman enquanto uma continuação da [...] América corporativa e do escravismo do Sul, o estado de guerra entre classes, e a contenda racial (PAFFENROTH, 2006, p. 130-1). No panorama da sociedade capitalista pós-industrial, o zombie encontra um ambiente fértil para reviver. De acordo com Russel (2010, p. 228), “é evidente que o renascimento do gênero coincidiu com um momento histórico em que o zumbi parecia mais apropriado do que vampiros, lobisomens, assassinos seriais ou qualquer dos outros monstros habituais do terror”. O autor continua a argumentação, explicando que o medo de desastres naturais e ataques 147 terroristas, as preocupações com relação a armas de destruição em massa — principalmente depois das ameaças com antraz 49 — e o medo de que uma “bomba suja” seja lançada em um grande centro metropolitano, parecem ter encontrado nos filmes de zombies uma válvula de escape pertinente, dentro da cultura pop. Como para provar esse argumento, dois meses depois do lançamento de Terra dos Mortos nos Estados Unidos, os canais de notícias mundiais foram subitamente dominados pelas terríveis imagens de Nova Orleans no despertar do furacão Katrina. Na CNN, vimos cenas da cidade devastada que podiam ter sido cenas de fundo de um filme de Romero: residentes confusos e assustados vagando pelas ruas alagadas; saques e ilegalidades; a incompetência dos órgãos governamentais. Os mortos não estavam caminhando, mas tudo soou muito familiar (RUSSEL, 2010, p. 229). Russel prossegue. “Vivemos em tempos preocupantes e incertos nos quais — por qualquer razão — nossa fé na coesão da ordem social foi profundamente abalada” (2010, p. 229). Nesse sentido, o mito do zombie, que evoluiu ao longo do tempo para se tornar menos sobre raça ou magia e mais sobre o próprio apocalipse, parece ter se tornado a perfeita expressão desses medos. Simon Pegg, de Todo Mundo Quase Morto, relaciona todos esses medos à súbita erupção de filmes de zumbis dos últimos anos: É o medo uns dos outros. É sobre o medo de outros seres humanos, e o medo de nós mesmos. Estranhamente, num paralelo [com Todo Mundo Quase Morto], tudo se resume a não perceber a ameaça a sua volta. E agora aqui estamos nós em situação em que aparentemente podemos ser explodidos a qualquer momento por causa do terrorismo, e é uma ameaça que nós não percebemos surgir ao nosso redor. É muito atual, essa coisa toda: paranóia viral, medo dos estrangeiros, xenofobia, esses terroristas bichos-papões que estão por aí (PEGG apud RUSSEL, 2010, p. 228-9). Pegg fala em “paranóia viral”, o que nos remete ao argumento central da série Resident Evil: a “aura negativa” do vírus e o medo de que os laboratórios possam disseminar 49 O carbúnculo ou antraz (anthrax, em inglês), é uma doença infecciosa aguda provocada pelo Bacillus anthracis, uma bactéria que forma esporos. Uma bactéria é um organismo muito pequeno constituído de uma única célula. Muitas bactérias podem causar doenças. Um esporo é uma célula em estado inativo (dormente), que pode reviver em condições certas. O antraz também pode ser usado como arma. Isso aconteceu nos Estados Unidos em 2001, quando a bactéria foi disseminada deliberadamente pelo sistema postal, através de cartas que continham pó contaminado. O ataque resultou em 22 casos de infecção por inalação, e cerca da metade das vítimas faleceu. Dados de acordo com: http://emergency.cdc.gov/agent/anthrax/needtoknow.asp. Acesso em 5 out. 2011. 148 uma pandemia. Ao longo dos tópicos anteriores, percebemos que o argumento da série trata de um vírus que causa a morte e a reanimação do corpo, que se coloca agressivamente no encalço de carne humana. Esse corpo reanimado é o zombie, que para Lauro e Embry (2008, p. 93) também parece uma figura pessimista e, ainda assim, apropriada para o momento em que vivemos, especialmente para os EUA no interior de uma economia global, alienada de sua própria humanidade, que se alimenta dos produtos do resto do planeta e segue em frente aos tropeços, tateando em busca da imortalidade enquanto nos decompomos. Para Marx, a eficiência da industrialização em grande escala baseia-se na divisão do trabalho. “A Indústria Moderna possui um organismo produtivo que é puramente objetivo, no qual os trabalhadores tornam-se meros apêndices de uma condição de produção material pré- existente” (1909, p. 421). “Na fábrica, temos um mecanismo sem vida independente do operário, que se torna seu mero apêndice vivo” (1909, p. 461-2). Dessa maneira, explicam Lauro e Embry, reificado como parte do processo de produção, o sujeito já foi drenado para dentro do objeto: já habitamos a zona intermediária do zombie — portanto, essa profecia do pós-humano é mais provável de se concretizar. As autoras estendem o papel do zombie no sentido de uma analogia da humanidade como a qual existe hoje, e, simultaneamente, de presságio de um “futuro monstruoso” (2008, p. 95). 6. Epidemia Contracultural No artigo intitulado The Protester, publicado em dezembro de 2011 na revista Time, Kurt Andersen recorda-se do tempo em que os manifestantes eram produtores privilegiados da história, quando multidões de cidadãos saíam às ruas para se declarar “opositoras”, sem 149 pegar em armas. Nos EUA dos anos 1960, os manifestantes marchavam pelos direitos civis e contra a Guerra no Vietnã; nos anos 1970, sublevaram-se no Irã e em Portugal; nos anos 1980, mobilizaram-se contra as armas nucleares, nos EUA e na Europa; contra a ocupação israelense, na Cisjordânia e em Gaza; e contra a tirania do comunismo, na Praça da Paz Celestial e no Leste Europeu. Segundo o autor, o protesto parece ter sido a continuação natural da política através de outros meios. Então, as duas décadas iniciadas em 1991 testemunharem o maior aumento nos padrões de vida que o mundo já viu. O crédito era fácil, complacência e apatia eram freqüentes, e protestos nas ruas pareciam espetáculos emocionais inúteis – obsoletos, excêntricos, o equivalente à cavalaria numa guerra de meados do século XX. As raras demonstrações de grande porte nos países ricos pareciam ineficazes e irrelevantes (ANDERSEN, 2011). A partir de início dos anos de 1990, os “protestos massivos e eficazes nas ruas” tornaram-se um oximoro global, explica Andersen. Até, súbita e surpreendentemente, transformarem-se num tropo característico de nosso tempo. E uma vez mais, desde 2011, o manifestante passaria a ser um produtor de história. Sua figura chegou a ser eleita a “Pessoa do Ano” na edição da revista Time de dezembro daquele ano. Muitas vezes, a escolha da figura que teria influenciado os eventos do ano parece seguir um dos pontos do paradigma tradicional da história. Este, segundo Peter Burke, oferece uma visão de cima, no sentido de que tem sempre se concentrado nos grandes feitos dos grandes homens, destinando um papel secundário ao resto da humanidade. Contudo, ao elevar ao status de celebridade os movimentos populares, a edição de 2011 da Time pode ter se reconciliado com a “‘história vista de baixo’; em outras palavras, com as opiniões das pessoas comuns e com sua experiência de mudança social” (BURKE, 1992, p. 12-3). Vimos, no capítulo II, que, a civilização impõe ao homem que renuncie a seus desejos, que os reprima (CHÂTELET, 2000, p. 372). Segundo Mary Douglas, à estrutura social são atribuídos os poderes repressivos que lhe asseguram a continuidade. Porém, “qualquer cultura 150 deve, mais tarde ou mais cedo, deparar com acontecimentos que parecem desinquietar as suas idéias pré-concebidas” (1991, p. 54). Então, surgem os movimentos contraculturais para defender o primado da individualidade, o que implicaria estimular, encorajar e defender a expressão social, não apenas no sentido de “liberdade e opinião”, mas também no que diz respeito a crenças, aparência pessoal, sexualidade e todos os outros aspectos da vida (GOFFMAN, 2007, p. 50-1). Nesse contexto surge a figura do manifestante. Rick Stengel nos lembra, na introdução da edição anual da Time, que, ao longo de 2011, populações se queixaram em toda parte sobre a ineficiência das instituições e o fracasso da liderança tradicional. Essa teria sido uma das razões para a Time não ter agraciado um único indivíduo com o título. Segundo Stengel, “a liderança veio da base da pirâmide, e não do ápice”, com o intuito de capturar e destacar uma consciência global de promessa inquieta, derrubar governos e a sabedoria convencional, combinar as mais antigas técnicas e as mais novas tecnologias a fim de acender uma luz sobre a dignidade humana, e, finalmente, orientar o planeta por um caminho mais democrático, embora às vezes mais perigoso, através do século XXI. Porém, em cada lugar os anseios sociais eram diferentes. Em Sidi Bouzid e Tunis, em Alexandria ou no Cairo; nas cidades árabes e nos vilarejos ao longo dos 9.600 quilômetros do Golfo Pérsico ao Oceano Atlântico; em Madri e Atenas e Londres e Tel Aviv; no México, na índia e no Chile, onde cidadãos se mobilizaram contra o crime e a corrupção; em Nova York e Moscou, e dúzias de outras cidades dos Estados Unidos e da Rússia, onde a aversão e a raiva contra o governo e seus comparsas tornaram-se incontroláveis, alimentando-se de si mesmas (ANDERSEN, 2011). Para Andersen, o ano de 2011 foi diferente de qualquer outro desde 1968 — porém, ainda mais extraordinário devido ao maior número de manifestantes envolvidos. Seus protestos podem não ter feito parte de um espetáculo contracultural, como em 1968, mas rapidamente se transformaram em rebeliões plenas que derrubaram regimes e, imediatamente, alteraram o curso da história. Talvez estas sejam comparáveis aos movimentos dos anos de 151 1960 — as “rebeliões contra os poderes” (CHÂTELET, 2000, p. 371), que o filósofo Herbert Marcuse se empenhou em teorizar. Andersen observa o estopim dos movimentos de 2011: Muitas vezes a História emerge apenas em retrospecto. Eventos tornam-se significativos apenas quando se olha para trás. Ninguém poderia saber que aquele vendedor de frutas tunisiano, que ateou fogo em si próprio numa praça pública, numa cidade que praticamente não está no mapa, provocaria protestos que acabariam por derrubar ditadores na Tunísia, no Egito e na Líbia, e sacudiria os regimes na Síria, no Iêmen e em Bahrein. Ou que o espírito de dissidência estimularia os mexicanos a se levantarem contra o terror dos cartéis de droga, os gregos a marcharem contra líderes irresponsáveis, os americanos a ocuparem espaços públicos em protesto contra a desigualdade de renda, e os russos a mobilizarem-se contra a autocracia corrupta. Os protestos já ocorreram em países cujas populações somam pelo menos três bilhões de pessoas, e a palavra “protesto” apareceu online e em jornais, durante o ano de 2011, exponencialmente mais do que em qualquer outra época da história (ANDERSEN, 2011). Tudo começou na Tunísia, explica Andersen, onde o poder do ditador cruzou a linha da falta de vergonha e o lugar-comum da insensibilidade do governo contra um cidadão comum — o vendedor ambulante Mohamed Bouazizi, de 26 anos — tornou-se a gota d’água. O autor continua o seu relato: Bouazizi vivia na cidade tunisiana de Sidi Bouzid, a 200 quilômetros de Túnis. Numa sexta-feira, saiu para trabalhar, vendendo produtos em um carrinho. A polícia o assediava há anos, de acordo com a sua família, “multando-o, fazendo-o saltar através dos aros da burocracia”. Em 17 de dezembro de 2010, um policial tornou a incomodá-lo, confiscou sua balança e supostamente lhe deu um tapa. Ele foi direto para a sede do governo local, mas o governador se recusou a recebê-lo. Então, encharcou-se de gasolina e acendeu um fósforo (ANDERSEN, 2011). Em retrospecto, não podemos esquecer que, “em 1963, os norte-americanos ficaram perplexos quando o monge budista Thích Quang Ðức ateou fogo em si próprio, em Saigon, para protestar contra o governo Diêm, instalado pelos EUA” (HERVEY, 2008, p. 116). Romero parodiou esse ato em O Exército do Extermínio (The Crazies, 1973), quando um padre ateia fogo em si para protestar contra a lei marcial. Durante o ano de 2011, aponta Andersen, milhões protestaram, exércitos recuaram, ditadores caíram e fantasias impossíveis tornaram-se realidade. O meme dos “dias de fúria” e 152 o sonho democrático atingiram um momentum de tirar o fôlego, propagando-se não apenas entre as ditaduras monárquicas mais brandas, da Jordânia, de Bahrein e do Marrocos, mas também no Iêmen, na Algéria e nos Estados policiais da Síria e da Líbia. Na primavera, os movimentos se espalharam pela Europa. Em 15 de maio, dezenas de milhares de pessoas marcharam até a praça Puerta del Sol, em Madri,enquanto dezenas de milhares de pessoas, em dezenas de outras cidades, também se mobilizavam. Na Espanha, os manifestantes autodenominaram-se “Los Indignados”, indignados pelo desemprego, pela falta de oportunidades e pela política que não conduzia a lugar algum. A marcha de um dia, naquele país, tornou-se um acampamento autônomo com meses de duração — esta foi uma das características que definiram a marca de resistência comunitária do ano de 2011. Cerca de 6 milhões de pessoas, numa população de 46 milhões, participaram do protesto dos “Indignados”. Dez dias após os protestos terem se iniciado em Madri, o contágio infestou a Grécia por mais de um mês, praticamente até o momento em que 150 jovens manifestantes israelenses começaram a pichar tendas no Rothschild Boulevard, em Tel Aviv. O pacote de reclamações era familiar: a escassez de bons empregos, o alto custo de vida, os políticos corruptos, e apenas os ricos bem relacionados ficando mais ricos. No início de agosto, depois que a polícia londrina disparou e matou um jovem negro que seria preso, tumultos estouraram por toda a Inglaterra. Os revoltosos eram também manifestantes, motivados pela raiva em relação ao desemprego, à pobreza e à desigualdade, e ao policiamento excessivamente agressivo. De volta a Madri, os manifestantes reconheceram que essa fase de protesto tinha um retorno cada vez menor e começaram a levantar acampamento. Em julho, ouviram rumores de que o movimento “Occupy Wall Street” iria acontecer. Online, os Indignados explicaram aos americanos como agir (ANDERSEN, 2011). Segundo Ken Goffman, a sociedade encontra corpos estranhos em seu meio no momento em que nasce uma contracultura. Nesse sentido, as contraculturas seriam uma 153 espécie de vírus que afeta o funcionamento da sociedade, principalmente no que diz respeito aos ditames das autoridades sociais e convenções circundantes. Uma vez que o espírito antiautoritário inerente à contracultura pode ser visto como “uma ameaça potencial a qualquer ordem estabelecida” (GOFFMAN, 2007, p. 56), vemos no “modelo romeriano” de horror uma manifestação viral. Inclusive, reafirmamos que o zombie representa um corpo “ao mesmo tempo vivo e morto” (LAURO; EMBRY, 2008, p. 91), lembrando que a morte surge em reação ao poder, nos termos de uma alegoria da sublevação das camadas sociais rejeitadas e dos movimentos sociais que se opõem à exploração capitalista a partir das margens. Em Terra dos Mortos, vemos zombies mais inteligentes e organizados, caminhando numa grande marcha em direção ao Fiddler’s Green, o símbolo máximo do capitalismo. Hoje, podemos entendê-los como uma alegoria dos movimentos populares que agitam o mundo. De acordo com Goffman, as contraculturas defendem mudanças individuais e sociais e podem desafiar o controle explícito dos indivíduos pelo Estado ou pelos poderes religiosos, desafiando o autoritarismo exercido por sistemas de crença rígidos, convenções amplamente aceitas, paradigmas estéticos inflexíveis e tabus explicitados ou não (2007, p. 50). Logo, esses movimentos seriam a “entidade estranha” que causa o mau-funcionamento do organismo social dominante, ou seja, o establishment. Seria também, assim como o vírus, uma anomalia, “um elemento que não se insere numa dada série ou num dado conjunto” (DOUGLAS, 1991, p. 52). Entretanto, de acordo com Parikka (2005) os vírus não seriam apenas anomalias ou “inimigos” do capitalismo digital, e sim parte integrante do mesmo. “O capitalismo é viral por si próprio, o que significa que a sua essência reside exatamente em sua capacidade de infectar o exterior no intuito de se replicar”. Nesse sentido, consideramos os movimentos contraculturais parte integrante do sistema capitalista. De acordo com Stengel, os protestos de 2011 marcaram o surgimento de uma nova geração. No Egito, 60% da população têm menos de vinte e cinco anos. A tecnologia foi 154 importante, segundo o autor, mas essa não se tratou de uma revolução tecnológica. As redes sociais não causaram esses movimentos, mas os mantiveram vivos e conectados. A tecnologia nos permitiu assisti-los, e espalhou o vírus do protesto, mas esta não foi uma revolução “wired”; foi uma revolução humana, de corações e mentes, a tecnologia mais antiga de todas. Segundo Andersen, no Oriente Médio e no norte da África, na Espanha, na Grécia e em Nova York, as mídias sociais e os smart phones não substituíram a confrontação e os laços sociais face-a-face, mas ajudaram a ativá-las e turbiná-las, permitindo que os manifestantes se mobilizassem com mais agilidade, comunicando-se uns com os outros, em escala global, de forma mais efetiva do que nunca. Observando como se dá a multiplicação de comunidades contraculturais em determinando momento histórico, a nossa hipótese é de que as contraculturas possuam um caráter viral. Fundamentamos nosso argumento em Timothy Leary, para o qual os participantes desses movimentos estão reunindo-se constantemente em novas moléculas, reagrupando-se em configurações adequadas aos interesses do momento, como partículas se esbarrando em um acelerador de grande potência, trocando cargas dinâmicas. Nessas configurações eles colhem vantagem de trocar idéias e criações por intermédio de resposta rápida em pequenos grupos, conseguindo uma sinergia que permite que seus pensamentos e suas visões cresçam e se modifiquem quase no mesmo instante em que são formulados (LEARY apud GOFFMAN, 2007, p. 9-10). Percebemos que a tendência atual de associar o zombie à metáfora do contágio onipresente parece dialogar com os medos ocidentais relacionados ao “espírito contagioso da rebelião” (LAURO; EMBRY, 2008, p. 97). É interessante retomar o argumento de Leary sobre a interação entre os participantes de uma contracultura. Estes, para o autor, “estão constantemente se reunindo em novas moléculas, se fissionando e reagrupando em configurações adequadas aos interesses do momento, como partículas se esbarrando em um acelerador de grande potência, trocando cargas dinâmicas”. A marca da contracultura seria “a 155 fluidez de formas e estruturas, a perturbadora velocidade e flexibilidade com que surge, sofre mutação, se transforma em outra e desaparece” (LEARY apud GOFFMAN, 2007, p. 9-10). O atributo da mutabilidade também associa a contracultura ao vírus. 7. Movimentos Populares: Reavaliação Analisando o final dos anos 1960, Eric Hobsbawm sustenta que 1968 seria o momento, nos anos posteriores a 1945, que correspondeu ao levante mundial e simultâneo tão sonhado pelos revolucionários após 1917. No fim dos anos 1960, explica o autor, os estudantes se rebelaram em diversos pontos do mundo, em grande parte estimulados pela extraordinária irrupção do maio de 1968, em Paris, epicentro de um levante estudantil continental (Hobsbawm, 2001, p. 292). Na França, de acordo com Ken Goffman, os jovens não tinham adotado um estilo contracultural psicodélico no mesmo grau que nos EUA e na Inglaterra, mas uma importante subcultura de estudantes franceses estava se encaminhando para um conjunto muito particular de memes 50 anarquistas de esquerda. Os “memes” radicais se espalharam tão rapidamente quanto a greve. Estudantes e trabalhadores não queriam apenas os seus direitos, ou um novo conjunto de benefícios e privilégios, mas começavam a falar de um novo tipo de sociedade (GOFFMAN, 2007, p. 313). Aparentemente, tais “memes” multiplicavam-se de forma semelhante aos vírus. De acordo com Andersen, quase todos os protestos de 2011 partiram de assuntos independentes, sem muito endosso dos partidos políticos existentes ou dos figurões da oposição. O autor considera notável o quanto têm em comum as vanguardas de protesto. Em 50 Termo criado em 1976 por Richard Dawkins em O gene egoísta, considerado uma unidade autônoma de informação que se multiplica de cérebro em cérebro (Goffman, 2007, p. 313). 156 todos os lugares, seus participantes são desproporcionalmente jovens, educados e de classe média. Goffman reforça o argumento: os privilégios econômicos que permitiram à juventude ocidental dos anos 1960 a possibilidade de sonhar relacionavam-se com os problemas ambientais, a realidade de pobreza de uma economia global cada vez mais integrada e as políticas econômicas esmagadoras de consolidação empresarial e capitalismo desenfreado. Aqueles que queimaram dinheiro como uma representação dos interesses desumanos e um símbolo de relacionamentos antinaturais sabiam que a economia abundante iria sempre produzir mais dinheiro ou que o sistema monetário seria substituído por algo mais idealista. Por mais bizarro que possa parecer hoje, naquela época era fácil acreditar nessas duas coisas ao mesmo tempo (GOFFMAN, 2007, p. 337). Ao redor do globo, os manifestantes de 2011 compartilhavam a crença de que e economia e os sistemas políticos de seus países cresceram de forma corrupta e disfuncional – democracias manipuladas para favorecer os ricos e poderosos, impedindo mudanças significativas. […] Durante os anos de bolha, talvez houvesse dinheiro o bastante fluindo para mantê-los felizes, mas agora a crise financeira e a estagnação econômica fizeram com que eles se sentissem otários. Neste ano [2011], ao invés de ligarem os fones de ouvido, adentrando num estado de fuga induzido pela internet, cedendo silenciosamente à desesperança, usaram a Internet para encontrar uns aos outros e tomar as ruas, insistindo na justiça e na liberdade (do mundo árabe) (ANDERSEN, 2011). Desde a invenção da democracia republicana moderna, protestos e revoltas surpreendentes aumentaram substancialmente, difundindo-se uma vez a cada meio século ou mais. Por exemplo, as revoluções nos EUA, na França e no Haiti; as revoluções de 1848; as revoluções de 1910, na Rússia, na Alemanha, na Irlanda, na Turquia, no Egito e no México; a onda do pós-guerra de revoltas mundiais, os movimentos de descolonização, os protestos em Cuba e na Hungria, a luta pelos direitos civis nos EUA, a militância contracultural na América e na Europa. “Produziam-se quase no ritmo de um relógio”. Mas qual a duração desses movimentos? “Em 1848, o movimento revolucionário foi explosivo, mas durou apenas um ano, extinto pelas contrarrevoluções ditatoriais e democráticas. Por sua vez, o sonho revolucionário que eclodiu por volta de 1960 era ainda poderosamente contagioso uma década mais tarde” (ANDERSEN, 2011). Na verdade, Goffman (2007, p. 337) sustenta que “tanto os 157 estilos quanto os conteúdos do período radical da contracultura permanecem conosco hoje”. Podemos dizer o mesmo dos filmes de zombie, que mantêm sua relevância há mais de quarenta anos, sobrevivendo à Guerra Fria, ao comunismo da União Soviética, ao “amor livre”, aos governos reacionários de Reagan e Tatcher, ao fim do milênio, ao 11/9... 158 Os zombies em marcha no pôster de Terra dos Mortos (2005). Movimento de protesto Occupy Wall Street (2011). 159 EPITÁFIO Ao longo deste estudo, abordamos a contracultura, os movimentos sociais e as relações entre cinema e história, considerando o modo com que as mesmas se articulam na produção e na recepção dos filmes. Falamos também sobre o desejo de mudança, num período em que a juventude explorava a sua própria cultura e os jovens cineastas buscavam uma abordagem singular para o complexo momento social que vivenciavam. De fato, o cinema independente americano, aqui representado pela obra de George Romero, desempenhou seu papel no esforço em prol de novas formas de pensar a sociedade. A Noite dos Mortos-Vivos aborda o fracasso das instituições sociais tradicionais. Fala sobre a necessidade de uma revolução, sobre as novas gerações ocupando o lugar das mais velhas. Nos anos 1960, os jovens propunham formas culturais alternativas, desenvolvidas com base nas diferenças de atitudes, costumes e estilos. Um novo mundo parecia estar à soleira da porta. À medida que os manifestantes avançavam no campo dos direitos políticos e civis, o cinema independente se estabelecia enquanto antítese da corrente mainstream. Dentro dele, o subgênero dos zombies surge fundamentado na crítica social, ilustrando nas telas os movimentos sociais que não morreriam. Naquele ano que representou o ápice de toda uma era de inquietação social, a estranha noite imaginada por George Romero obscurece os valores tradicionais da nação e o próprio sistema capitalista. Enquanto sete pessoas lutam contra seus próprios egos, tentando sobreviver à fúria dos mortos andantes dentro de uma casa de fazenda abandonada, somos confrontados com o medo do tempo, do envelhecimento, do mundo ordinário e das limitações humanas. Em suma, lidamos com o medo da própria morte, e esta surge como uma válvula de 160 escape em relação aos ditames sociais, uma reação violenta ao controle do Estado e suas instituições sobre o indivíduo. Percebemos, então, que nós mesmos, “pacatos cidadãos” fora de qualquer suspeita, nos transformamos nos verdadeiros monstros em face desses temores emergentes, os quais nos “forçam” a sacrificar a dignidade e os valores humanos. O maior dos temores refere-se não apenas à morte, mas à morte certa, que chega a qualquer momento. Assim, lembramos que somos todos, em algum sentido, mortos-vivos: seres à espera da morte inevitável. Essa ansiedade parece ficar mais intensa em tempos de crise. Foi assim com a bomba atômica, com a ameaça terrorista, com o risco das pandemias, com o aquecimento global... O caráter atemporal do primeiro filme de Romero fez dele um cult. A Noite... deu vida à moderna representação do zombie, que passou a ser utilizada como lente de exame do momento histórico. Por um lado A Noite... oferece múltiplas leituras a respeito do contexto de fins dos anos 60, da contracultura e da tensa geopolítica vigente no momento de sua produção; por outro, o legado de Romero perdura há mais de quarenta anos, adaptando-se às novas configurações políticas, econômicas e sociais, sofrendo transmutações que o renovam em relação aos novos contextos, permanecendo como uma poderosa inspiração de contraponto ao establishment. Apontamos o retorno do estilo gótico na arte contemporânea como uma das hipóteses para a retomada do gênero do zombie, nos últimos anos do século XX. Nesse sentido, observamos o lugar de destaque que a série de videogames Resident Evil ocupou ao introduzir o “modelo romeriano de horror” às novas gerações, acrescentando conceitos relacionados ao contágio e à disseminação de doenças pelos laboratórios. A inserção do “modelo romeriano” nas novas mídias nos parece fundamental, uma vez que A Noite... fundou um subgênero que extrapola as fronteiras do cinema, contaminando a televisão, os videogames, os role-playing games, a música, a literatura e as histórias em quadrinhos. 161 O caráter perene da figura do zombie reforça a sua relevância e a sua “usabilidade” enquanto personagem que dialoga com alguns dos elementos mais intrincados do momento sócio-histórico atual. Vivemos numa sociedade marcada pelos atentados de 11/9, pelo medo de guerras biológicas e catástrofes climáticas, e testemunhamos ondas de protestos por todo o globo. Esse motivo justifica retornar ao primeiro filme de Romero, cujos ideais norteadores não perdem a atualidade. Hoje os mortos-vivos estão por toda a parte, e constituem uma incômoda metáfora da perda de autonomia, da alienação, dos movimentos populares e do espírito contagioso da resistência. Uma amostra de que tudo isso continua “redivivo” está nos eventos sociais de 2011-2012, da Espanha e da Primavera Árabe ao Occupy Wall Street. Enfim, o capitalismo esconde esqueletos no armário e enterra seus mortos na vala comum dos excluídos. Mas não é tão simples assim se livrar de tantos corpos. Eles retornam, daí a atualidade do zumbi, metáfora inspirada (e inspiradora) sobre a condição humana atual. 162 REFERÊNCIAS Fontes documentais 40.000 LEPROSOS VIVEM ISOLADOS DO MUNDO: uma cidade modelo de mortos-vivos, no Brasil. 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Umberto Lenzi, 1980. Color Me Blood Red. Herschell Gordon Lewis, 1964. Contágio (Contagion). Steven Soderbergh, 2011. Daddy, Father Frost is Dead (Papa, umer ded moroz). Yevgeny Yufit, 1991. Dia dos Mortos (Day of the Dead). George Romero, 1985. Diário dos Mortos (Diary of the Dead). George Romero, 2007. Epidemia (Outbreak). Wolfgang Petersen, 1995. Epidemia dos Zumbis, A (Plague of the Zombies). John Gilling, 1966. Esse Mundo É dos Loucos (King of Hearts). Philippe de Broca, 1966. Eu Sou a Lenda (I am a Legend). Francis Lawrence, 2007. Exército do Extermínio, O (The Crazies). George Romero, 1973. 172 Exorcista, O (The Exorcist). William Friedkin, 1973. Extermínio (28 Days Later). Danny Boyle, 2002. Fonte da Vida (The Fountain). Darren Aronofsky, 2006. Fúria, A (The Fury). Brian De Palma, 1978. Horizonte Perdido (Lost Horizon). Frank Capra, 1937. Horror of Party Beach, The. Del Tenney, 1964. House of the Dead – O Filme (House of the Dead). Uwe Boll, 2003. Ilha dos Mortos (Survival of the Dead). George Romero, 2009. Invasores Invisíveis (Invisible Invaders). Edward L. Cahn, 1959. I Walked with a Zombie. Jacques Tourneur, 1943. Juan de los Muertos. Alejandro Brugués, 2011. Lacombe Lucien. Louis Malle, 1974. Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead). Zack Snyder, 2004. Maníacos (Two thousand Maniacs!). Herschell Gordon Lewis, 1964. Millennium. 1996-1999. [série] Monstros. Freaks, Tod Browning, 1932. Mortos que Matam (The Last Man on Earth). Ubaldo Ragona e Sidney Salkow, 1964. Noite dos Mortos-Vivos, A (Night of the Living Dead). George Romero, 1968. Nós a Liberdade, A (À nous la liberte). Réne Clair, 1931. Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens). F.W. Murnau, 1922. Ouanga. George Terwilliger, 1936. Pássaros, Os (The Birds). Alfred Hitchcock 1963. Pavor na Cidade dos Zumbis (Paura nella città dei morti viventi). Lucio Fulci, 1980. 173 Pink Flamingos. John Waters, 1972. Planeta dos Macacos: a Origem (Rise of the Planet of the Apes). Rupert Wyatt, 2011. Planeta Terror (Planet Terror). Robert Rodriguez, 2007. Plano 9 do Espaço Sideral (Plan 9 from Outer Space). Ed Wood, 1959. Poltergeist – O Fenômeno (Poltergeist). Tobe Hooper, 1982. Quarentena (Quarantine). John Erick Dowdle, 2008. Queda da Casa de Usher (La chute de la Maison Usher). Jean Epstein, 1928. Resident Evil – O Hóspede Maldito (Resident Evil). Paul W. S. Anderson, 2002. Resident Evil 2 – Apocalipse (Resident Evil: Apocalypse). Alexander Witt, 2004. Resident Evil 3 – A Extinção (Resident Evil: Extinction). Russel Mulcahy, 2007. Resident Evil 4 – Recomeço (Resident Evil: Afterlife). Paul W. S. Anderson, 2010. Resident Evil 5 – Retribuição (Resident Evil: Retribution). Paul W. S. Anderson, 2012. Resident Evil: Degeneração (Resident Evil: Degeneration). Makoto Kamiya, 2008. Ressuscitado, O (The Ghoul). T. Hayes Hunter, 1933. Revolt of the Zombies. Victor Halperin, 1936. Selvagem, O (The Wild One). Laslo Benedek, 1953. Seven – Os Sete Crimes Capitais (Seven). David Fincher, 1995. Stavisky. Alains Resnais, 1974. Teenage Zombies. Jerry Warren, 1959. Terra dos Mortos (Land of the Dead). George Romero, 2005. Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead). Edgar Wright, 2004. Topo, El (The Mole). Alejandro Jodorowsky, 1970. Última Esperança da Terra, A (The Omega Man). Boris Sagal, 1971. 174 Vampiro, O (Vampyr). Carl Theodor Dreyer, 1932. Vampiros de Almas (The Invasion of the Body Snatchers). Don Siegel, 1956. Virus (Night of the Zombies). Bruno Mattei, 1981. Walking Dead, The. 2010-. [série] Wet Destruction of the Atlantic Empire, The. George Kuchar e Mike Kuchar, 1961. Wooden Room, The (Derevyannaya komnata). Yevgeni Yufit, 1995. Zéro de Conduite: Jeunes diables ao collège. Jean Vigo, 1933. Zombie – O Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead). George Romero, 1978. Zombies of the Stratosphere. Fred C. Brannon, 1952. Zombies of Mora-Tau. Edward L. Cahn, 1957. Zumbi 2 – A Volta dos Mortos (Zombi 2). Lucio Fulci, 1979 Zumbi Branco (White Zombie). Victor Halperin, 1932. Zumbilândia (Zombieland). Ruben Fleischer, 2009. 175 ANEXOS 176 ANEXO A – Reportagem sobre a comunidade de Curupaiti em O Século Ilustrado. 177 ANEXO B – Reportagem sobre a comunidade de Curupaiti em O Século Ilustrado. 178 ANEXO C – “Ainda sobre o problema da lepra”. 179 ANEXO D – Cartões promocionais de A Noite dos Mortos-Vivos. 180 ANEXO E – Cartões promocionais de A Noite dos Mortos-Vivos.