UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO Letícia Ferreira Lamha Henry David Thoreau e as Linguagens da Natureza Juiz de Fora 2023 Letícia Ferreira Lamha Henry David Thoreau e as Linguagens da Natureza Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito parcial à obtenção do título de Mestra em Ciência da Religião. Área de concentração: Tradições Religiosas e Perspectivas de Diálogo. Orientador: Prof. Dr. Clodomir Barros de Andrade. Juiz de Fora 2023 Aos espíritos amigos que me acompanham. AGRADECIMENTOS À minha família: meus pais, meus irmãos e minha avó — dádivas do Poder Supremo em minha vida. Ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR/UFJF). Ao meu orientador, Prof. Dr. Clodomir Barros de Andrade, quem me apresentou o pensamento de Henry David Thoreau e me encaminhou ao longo da jornada de estudo das conexões entre Natureza e espiritualidade. Aos avaliadores desta dissertação, Prof. Dr. Eduardo Vicentini de Medeiros e Prof. Dr. Arnaldo Érico Huff Júnior, por terem aceitado o convite para compor a banca de defesa como membros titulares e por suas contribuições. Ao Prof. Dr. Humberto Araújo Quaglio de Souza e ao Prof. Dr. Flávio Augusto Senra Ribeiro, por terem aceitado o convite para compor a banca de defesa como membros suplentes. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo financiamento desta pesquisa. “Dai graças ao Criador! Cultivai a terra e dai graças a ela por ser tão generosa conosco, que dependemos dela. Dai graças ao Sol e à Lua, às chuvas e ao frio. Dai graças à Natureza, pois conosco ela sempre foi generosa. E a Natureza é o Criador nos proporcionando meios para nos alimentar. Lembrai-vos de que nós, os humanos, somos como a Lua: não temos luz própria, mas, enquanto estivermos posicionados de frente para o nosso Criador, sua Divina Luz nos alcançará e em seres luminosos nos mostraremos aos olhos d’Ele”. (Exu Tranca-Ruas)1. Ó divino éter! Ó sopro alado dos ventos! Regatos e rios, ondas inumeráveis, que agitais a superfície dos mares! Ó Terra, mãe de todos os viventes, e tu, ó Sol, cujos olhares aquecem a natureza! Eu vos invoco!... (Ésquilo, Prometeu Acorrentado)2. O Grande Espírito torna indiferentes todos os tempos e lugares. O lugar onde ele é visto é sempre o mesmo, e indescritivelmente encantador a todos os nossos sentidos. (Henry David Thoreau, Journals)3. “As leis divinas estão inscritas no livro da Natureza; o homem pôde conhecê- las sempre que desejou buscá-las”. (O Livro dos Espíritos)4. [...] pois, embora a profunda quietude reinasse naquela floresta vasta e quase sem limites, a natureza falava com suas mil línguas, na eloquente linguagem da natureza da floresta erma. (Fenimore Cooper, The Pathfinder)5. 1 SARACENI, Rubens. [Médium]. O Guardião dos Caminhos: A História do Senhor Guardião Tranca- Ruas. São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 162. 2 SÓFOCLES; ÉSQUILO. Rei Édipo. Antígone. Prometeu Acorrentado. Prefácio, tradução e notas de J. B. Mello e Souza. 17. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992, p. 116. 3 THOREAU, Henry David. Journal I: 1837 — 1846. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 7, p. 363. 7 de julho de 1845. Doravante citado como Writings, VII. No original: “The Great Spirit makes indifferent all times and places. The place where he is seen is always the same, and indescribably pleasant to all our senses”. Adotamos aqui a abreviação das obras de Thoreau conforme a apresentação do estudo de Ethel Seybold: Writings, (número do volume da coleção editada por B. Torrey). 4 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Prefácio de Hermínio Miranda. Tradução de Sandra Keppler. 6. ed. São Paulo: Mundo Maior Editora – Federação Espírita André Luiz, 2012, p. 304. 5 SCHAFER, Murray R. A afinação do mundo: Uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Tradução de Marisa Trench Fonterrada. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 45-46. RESUMO A presente dissertação tem por objetivo apresentar uma leitura hermenêutica de alguns dos símbolos religiosos trazidos à baila pela literatura do poeta e naturalista Henry David Thoreau (1817–1862). O pano de fundo de nossa argumentação é o mote romântico da correspondência simbólica entre Natureza e espírito, herdado pelo autor a partir de seu contato com o movimento que se tornou conhecido como “Transcendentalismo”, círculo religioso, literário, filosófico e político gestado nos Estados Unidos do século XIX. A partir desse panorama, traçamos uma apreciação poética da interpretação de Thoreau acerca da correlação linguística entre Natureza e espírito que aponta para a unidade entre a imanência dos reinos naturais (a terra) e a transcendência das esferas espirituais (o céu). Ressaltando o caráter sagrado dos símbolos aventados pelos textos thoreauvianos, tais emblemas são aqui denominados “hieróglifos mitopoéticos” e “hieróglifos musicais”. Para além das tonalidades do romantismo, o trabalho aqui proposto, evocando distintos sendeiros religiosos, busca realçar as múltiplas possibilidades reflexivas que o pensador norte-americano oferece aos estudos comparativos das religiões, haja vista a marca da dialogicidade entre diversas tradições sapienciais em sua obra. Destacando o ver e o ouvir (i.e., a leitura e a audição do “livro” e da “orquestra” da Natureza), nossa exposição tem por intuito deslindar a íntima relação entre espiritualidade e sensibilidade corpórea na abordagem do intelectual daquelas que intitulamos “Linguagens da Natureza”. Palavras-chave: Henry David Thoreau. Natureza. Linguagem simbólica. Transcendentalismo. ABSTRACT This dissertation aims to present a hermeneutic reading of some of the religious symbols brought to light by the literature of the poet and naturalist Henry David Thoreau (1817–1862). The background of our argument is the romantic motto of the symbolic correspondence between Nature and spirit, inherited by the author from his contact with the movement that became known as “Transcendentalism,” a religious, literary, philosophical, and political circle gestated in the Nineteenth-century United States. From this panorama, we draw a poetic appreciation of the thinker’s interpretation of the linguistic correlation between Nature and spirit that points to the unity between the immanence of natural kingdoms (the earth) and the transcendence of the spiritual spheres (the sky). Emphasizing the sacred character of the symbols hinted by Thoreau’s texts, those emblems we call “mythopoetic hieroglyphs” and “musical hieroglyphs.” Beyond the tonalities of romanticism, the work proposed here, evoking distinct religious paths, seeks to highlight the multiple reflective possibilities that the North American thinker offers to comparative studies of religions, given the mark of dialogicity between different wisdom traditions in his composition. Highlighting seeing and hearing (i.e., reading and listening to the “book” and the “orchestra” of Nature), our exposition aims to unravel the intimate relationship between spirituality and bodily sensibility in the intellectual’s approach to those we call “Languages of Nature.” Keywords: Henry David Thoreau. Nature. Symbolic language. Transcendentalism. SUMÁRIO INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………….9 1. DIVINDADE, NATUREZA, HUMANIDADE………………………………………….19 1.1. “DEVOTAR A VIDA À DESCOBERTA DA DIVINDADE NA NATUREZA”..............23 1.2. O TRANSCENDENTALISMO E A CORRESPONDÊNCIA SIMBÓLICA ENTRE NATUREZA E ESPÍRITO…………………………………………………………………....35 1.3. ENTRE O TRANSCENDENTALISMO E O NATURALISMO………………………...76 2. HIERÓGLIFOS MITOPOÉTICOS: O LIVRO DA NATUREZA…………………….98 2.1. O POETA-PROFETA…………………………………………………………………..101 2.2. ESCRITURAS DA NATUREZA……………………………………………………….129 2.3. WALDEN: EXERCÍCIOS RELIGIOSOS E SIMBOLISMOS………………………….157 3. HIERÓGLIFOS MUSICAIS: A ORQUESTRA DA NATUREZA…………………...201 3.1. MOUSIKÉ: AS ESCALAS DIVINAS DA “MELODIA ORIGINAL”............................206 3.2. PAISAGENS SONORAS……………………………………………………………….239 3.3. “PRELÚDIO DE UMA NOTA”.......................................................................................299 4. CONCLUSÃO…………………………………………………………………………...313 REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………315 9 Introdução Acho que eu poderia escrever um poema chamado ‘Concord’. Como argumento eu terei o Rio, as Matas, os Lagos, os Montes, os Campos, os Pântanos e Prados, as Ruas e Edifícios e os Aldeões. E depois a Manhã, o Meio-dia e a Tarde, a Primavera e o Verão, o Outono e o Inverno, a Noite, o Verão Indígena e as Montanhas no Horizonte. (Henry David Thoreau, Journals)1. Tenho ânsia por transmitir a glória do universo, que eu possa ser digno de fazê-lo […]. (Henry David Thoreau, Journals)2. Henry David Thoreau (1817–1862), natural de Concord, Massachusetts, debruçou-se sobre temáticas poliédricas, legando-nos ponderações acerca de múltiplas áreas do saber. O pensador tornou-se popularmente conhecido por ter construído uma casinha nas proximidades do Lago Walden e ter lá vivido por dois anos, experiência existencial e literária narrada em sua obra-prima Walden (1854), bem como por ter passado uma noite na cadeia municipal em decorrência de sua recusa em pagar a taxa3 exigida pelo governo norte-americano em prol do financiamento da Guerra Mexicano-Americana (1846–1848). Antes de qualquer outra coisa, todavia, Thoreau era um devoto da Natureza, a quem ele se referia como “Dama Natureza”4, “bárbara e uivante mãe de todos nós”5, artista e poetisa maior — palco onde a miríade de seres 1 Writings, VII, p. 282. 4 de setembro de 1841. No original: “I think I could write a poem to be called ‘Concord’. For argument I should have the River, the Woods, the Ponds, the Hills, the Fields, the Swamps and Meadows, the Streets and Buildings, and the Villagers. Then Morning, Noon, and Evening, Spring, Summer, Autumn, and Winter, Night, Indian Summer, and the Mountains in the Horizon”. 2 THOREAU, Henry David. Journal III: September 16, 1851 — April 30, 1852. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 9, p. 351. 15 de março de 1852. Doravante citado como Writings, IX. No original: “I am eager to report the glory of the universe, may I be worthy to do it […]”. 3 Thoreau passou apenas uma noite na prisão, pois pagaram por ele a taxa requerida para sua soltura. Segundo Harding, foi sua tia paterna Maria que pagou a taxa (HARDING, Walter. The Days of Henry Thoreau. New York: Alfred A. Knopf, 1965, p. 207). De acordo com a versão de Emerson, foi um amigo o responsável por fazê-lo. Cf. EMERSON, Ralph Waldo. Thoreau. In: THOREAU, Henry David. Walden. Tradução de Denise Bottmann. Apresentação de Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2019, p. 315-335, à página 319. Doravante citado como EMERSON, Thoreau. Foi essa circunstância, a propósito, que incitou o nascimento do ensaio Resistance to Civil Government (1849). 4 THOREAU, Henry David. A Week on the Concord and Merrimack Rivers. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 1, p. 130. Doravante citado como Writings, I. No original: “Dame Nature”. 5 THOREAU, Henry David. Caminhar. In: ______. A Desobediência Civil. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012a, p. 81-123, à página 113: “Eis aqui esta vasta, bárbara e uivante mãe de todos nós, a Natureza, espalhando-se à nossa volta, com tanta beleza, tanto afeto por seus filhos como a mãe leopardo; e no entanto somos tão cedo desmamados do seu seio e lançados à sociedade, àquela cultura que é exclusivamente uma interação de homens com homens — uma espécie de criação endogâmica, que produz quando muito uma nobreza meramente inglesa, uma civilização destinada a ter um limite estreito”. 10 da terra tem sua morada. Na existência humana junto a este vasto sistema orgânico que interconecta tudo aquilo que existe na interioridade e na exterioridade ele contemplava o fato mais glorioso: “Penso que a existência do homem na natureza é o mais divino e surpreendente de todos os fatos. Fato este do qual poucos se deram conta”6. Desta que era sua Musa, sua mãe e solo ancestral da plêiade de forças e formas vitais da terra (reflexos dos poderes do céu), o intelectual aqui destacado sorvia alimento para o corpo e para a alma. Esse, afinal, era seu trabalho e missão no mundo. “Faço questão de extrair da Natureza qualquer nutriente que ela possa me fornecer [...]. Eu me alimento do céu e da terra”7, diz o viandante em seu diário. “É certamente importante”, afirma ele em outra ocasião, “que haja alguns sacerdotes, alguns devotos da Natureza”8. E ele próprio, como poderemos perceber ao longo de nossas meditações, foi um exímio sacerdote a desempenhar, no templo de sua amada, ofícios sagrados que lhe exigiam habilidades das mais diversas. Uma pessoa apaixonada por sua Musa é capaz de ir a qualquer parte para se aproximar do nascedouro de sua inspiração. Caminhando pelos sendeiros do manto primordial, Thoreau foi iniciado em variados campos do saber: para o andarilho norte-americano, saber o que fosse era saber um pouco mais sobre sua Musa. Por conseguinte, devemos ter em mente, desde o princípio, que, em meio à diversidade, o elo umbilical que dá vida às reflexões multidisciplinares e multilinguísticas do autor é seu amor piedoso pela Natureza, relação na qual ele encontrava sua fonte de adoração e de aprimoramento espiritual. Como declarou seu mentor e amigo Ralph Waldo Emerson (1803–1882), Thoreau pensava que “sem algum tipo de religião ou devoção, nunca se realizaria nada de grandioso [...]”9. “A prática religiosa de Thoreau”, afirmou também Edward Mooney, “é a reverência e devoção às coisas do espírito. Sua reverência é pelas coisas que estão impregnadas de espírito, encontradas aqui, em todo 6 THOREAU, Henry David. Journal II: 1850 — September 15, 1851. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 8, p. 208. 21 de maio de 1851. Doravante citado como Writings, VIII. No original: “I think that the existence of man in nature is the divinest and most startling of all facts. It is a fact which few have realized”. 7 THOREAU, Henry David. Journal V: March 5 — November 30, 1853. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 11, p. 478. 3 de novembro de 1853. Doravante citado como Writings, XI. No original: “I make it my business to extract from Nature whatever nutriment she can furnish me [...]. I milk the sky and the earth”. 8 THOREAU, Henry David. Journal VIII: November 1, 1855 — August 15, 1856. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 14, p. 264. 9 de abril de 1856. Doravante citado como Writings, XIV. No original: “It is certainly important that there be some priests, some worshippers of Nature”. 9 EMERSON, Thoreau, p. 331. 11 canto ao nosso redor”10. Que o nativo de Massachusetts buscava a dimensão infinita da existência é algo que ele mesmo expressou em diversas ocasiões. Em uma carta endereçada a H. G. O. Blake (1818–1876)11, ele assim indaga: “Não temos a nossa vida eterna para buscarmos? E não é essa a única desculpa, afinal, para comer, beber, dormir ou mesmo carregar um guarda-chuva quando chove?”12. Para o autor, a vida imanente se fundamenta num princípio transcendente. Caminhar pelas matas em busca dos tesouros telúricos era para ele um ritual religioso e sanador que muito lhe ensinava sobre a eternidade; escrever a respeito dos fenômenos da Natureza lhe soava como uma prática espiritual correlata ao exercício de um escriba: Não há nada tão sanativo, tão poético, como uma caminhada pelas matas e campos [...]. Mais uma vez, sinto-me grandiosamente ligado [à Natureza], e aquele frio e solidão se mostram como sendo meus amigos. Suponho que esse valor, no meu caso, seja equivalente ao que os outros obtêm indo à igreja e orando. Venho para minha caminhada solitária na floresta assim como os saudosos de casa vão para seu lar. Assim dispenso o supérfluo e vejo as coisas como elas são, grandiosas e belas. [...]. Esse caráter de quietude, solidão e selvageria da natureza é uma espécie de eupatório ou purgante para o meu intelecto. É isso que eu saio para buscar. É como se eu sempre encontrasse nesses lugares algum companheiro grandioso, sereno, imortal e infinitamente encorajador, embora invisível, e com ele caminhasse. Lá meus nervos são finalmente harmonizados, e meus sentidos e minha mente fazem seu trabalho13. Em meio à atmosfera de efervescência intelectual de sua época, o estudioso vislumbrava uma aproximação dos saberes que fosse capaz de integrar, simultaneamente, as investigações 10 MOONEY, Edward F. A sensibilidade religiosa de Thoreau. Tradução de Eduardo Vicentini. Cadernos Teologia Pública, UNISINOS, São Leopoldo, ano XIV, v. 14, n. 123, p. 1-18, 2017, à página 3. 11 Harrison Gray Otis Blake, que ingressou em Harvard na turma de 1835, foi, nos termos de Harding, “one of Thoreau’s most devoted disciples” (HARDING, 1965, p. 39). 12 THOREAU, Henry David. The Correspondence of Henry David Thoreau. Editado por Walter Harding e Carl Bode. New York: New York University Press, 1958, p. 298. No original: “Haven’t we our everlasting life to get? And isn’t that the only excuse at last for eating drinking sleeping or even carrying an umbrella when it rains?”. 13 THOREAU, Henry David. Journal IX: August 16, 1856 — August 7, 1857. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 15, p. 208-209. 7 de janeiro de 1857. Doravante citado como Writings, XV. No original: “There is nothing so sanative, so poetic, as a walk in the woods and fields [...]. I once more feel myself grandly related, and that cold and solitude are friends of mine. I suppose that this value, in my case, is equivalent to what others get by churchgoing and prayer. I come to my solitary woodland walk as the homesick go home. I thus dispose of the superfluous and see things as they are, grand and beautiful. [...]. This stillness, solitude, wildness of nature is a kind of thoroughwort, or boneset, to my intellect. This is what I go out to seek. It is as if I always met in those places some grand, serene, immortal, infinitely encouraging, though invisible, companion, and walked with him. There at last my nerves are steadied, my senses and my mind do their office”. 12 modernas das ciências naturais e os estudos da literatura clássica e das escrituras sagradas das tradições espirituais ancestrais. Inserida no contexto da Renascença Americana14, a obra thoreauviana, para além do campo literário, é estruturada a partir de inclinações múltiplas: (i) o interesse pela história natural, (ii) a aproximação das discussões abolicionistas e políticas que antecederam a Guerra Civil Americana e (iii) o cultivo intelectual e existencial de diversos olhares espirituais: as mitologias e filosofias greco-romanas (especialmente as vertentes do estoicismo e do neoplatonismo); as tradições espirituais orientais (particularmente princípios da religiosidade hindu, do confucionismo, do budismo e dos poetas persas); a mitologia escandinava; fundamentos da teologia Unitarista e as cosmovisões dos indígenas norte- americanos. Imerso no cenário do movimento Transcendentalista, sobre o qual comentaremos adiante, H. D. Thoreau, frente à secularização da sociedade e da Natureza, assim como outros transcendentalistas, buscava proferir sua palavra a favor do retorno à visão da divina presença no mundo. O horizonte geral vislumbrado na obra thoreauviana já se fez apresentar, de forma preliminar, em sua parte do discurso de formatura pronunciado no Harvard College em 1837, The Commercial Spirit of Modern Times, Considered in Its Influence on the Political, Moral, and Literary Character of a Nation [O espírito comercial dos tempos modernos, considerado em sua influência no caráter político, moral e literário de uma nação]: Este mundo curioso que habitamos é mais maravilhoso do que conveniente; mais belo do que útil; é mais para ser admirado e apreciado do que usado. A ordem das coisas deveria ser um tanto invertida; o sétimo deveria ser o dia de labuta do homem, [...] e os outros seis seu Sabbath das afeições e da alma — dias para cultivar este amplo jardim e beber das suaves influências e revelações sublimes da Natureza15. Alçando pontos de convergência e ressonância entre o mundo doméstico da civilização e o universo selvagem das dinâmicas naturais, o erudito de Massachusetts não separava 14 F. O Matthiessen, em American Renaissance: Art and Expression in the Age of Emerson and Whitman (1941), traçando uma abordagem do período denominado “Renascença Americana”, destaca o aparecimento das obras The Scarlet Letter (1850), de Nathaniel Hawthorne, Representative Men (1850), de Ralph Waldo Emerson, Moby-Dick (1851), de Herman Melville, Walden (1854), de Thoreau, e Leaves of Grass (1855), de Walt Whitman. 15 HARDING, 1965, p. 50. No original: “This curious world which we inhabit is more wonderful than it is convenient; more beautiful than it is useful; it is more to be admired and enjoyed than used. The order of things should be somewhat reversed; the seventh should be man’s day of toil, [...] and the other six his Sabbath of the affections and the soul, — in which to range this widespread garden, and drink in the soft influences and sublime revelations of Nature”. Nos termos de Harding, neste discurso Thoreau “expounded a philosophy that he was to follow the rest of his life” (p. 49). 13 “natureza” e “cultura” — muito embora estivesse, de fato, no escopo de sua literatura a crítica ao distanciamento do ser humano “civilizado” de sua ancestralidade silvícola. Na verdade, a correspondência encontrada entre os dizeres da terra e as expressões humanas acerca do divino são para ele indícios da unidade entre o mundo material e o universo espiritual, panorama por meio do qual ele borda, poeticamente, sua mensagem existencial. Quando vemos e ouvimos a Natureza sob a ótica da proximidade que com ela originalmente possuímos, preconiza Thoreau, conhecemos mais profundamente a nós mesmos e ao mundo de modo geral: A Natureza deve ser vista humanamente para ser de todo vista; ou seja, suas cenas devem estar associadas a afetos humanos, como aqueles associados ao lugar de origem de uma pessoa, por exemplo. Ela é mais significativa para um amante. Um amante da Natureza é preeminentemente um amante do ser humano16. Apesar de perceber o estabelecimento da proximidade entre o humano e os demais seres, o leitor dos textos thoreauvianos é exortado a perceber a pluralidade semântica do universo em que habitamos: há muitos pontos de vista na imensidão das línguas naturais, e não apenas a gramática humana. Posicionando-se como um literato que se atenta não somente à chamada “cultura” humana, mas às diversas manifestações da terra, ele nos apresenta um pensamento decolonial avant la lettre: Não valorizo nenhuma visão do universo na qual o homem e suas instituições entrem amplamente e absorvam a maior parte da atenção. O humano é apenas o lugar onde estou, e a perspectiva, portanto, é infinita. O universo não é uma câmara de espelhos que me reflete. Quando reflito, descubro que há um outro além de mim. O universo é mais do que o suficiente para a morada do homem17. Assim como se apresentava com formas familiares e cadentes (feições que nos convidam à aproximação), a Natureza aparecia a ele, igualmente, em sua profunda alteridade 16 THOREAU, Henry David. Journal IV: May 1, 1852 — February 27, 1853. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 10, p. 163. 30 de junho de 1852. Doravante citado como Writings, X. No original: “Nature must be viewed humanly to be viewed at all; that is, her scenes must be associated with humane affections, such as are associated with one’s native place, for instance. She is most significant to a lover. A lover of Nature is preeminently a lover of man”. 17 Writings, IX, p. 382. 2 de abril de 1852. No original: “I do not value any view of the universe into which man and the institutions of man enter very largely and absorb much of the attention. Man is but the place where I stand, and the prospect hence is infinite. It is not a chamber of mirrors which reflect me. When I reflect, I find that there is other than me. The universe is larger than enough for man’s abode”. 14 (seu gênio implacável). “A vida é coerente com a condição agreste. O que há de mais vivo é o que há de mais selvagem. Ainda não subjugada pelo homem, sua presença o renova”18, lemos em Walking [Caminhando] (1862). “Minha disposição infalivelmente se eleva quanto mais agreste é o meu entorno. Deem-me o oceano, o deserto, ou a natureza bravia!”, diz ele mais adiante nesse mesmo ensaio. Para além da característica atroz das mecânicas naturais, a face bárbara da Natureza se mostra em sua peculiaridade simbólica. “O caráter indomado do selvagem”, afinal, “não é senão um vago símbolo da tremenda ferocidade com que se relacionam os bons homens e os amantes”19. Valendo-se, por meio do termo “selvagem”, dessa caracterização da vida e do pensamento sublimes, queria nos dizer o autor que nossa compleição material é tão frágil que podemos, a qualquer momento, ter nossa “existência tão serenamente esmagada como polpa”20, servindo como nutridora não apenas de ideias e valores, mas de fungos e de larvas. Ao mesmo tempo, com esse vocábulo ele nos sugeria que somos constituídos por um tecimento biológico poderoso, cujas articulações permitem o movimentar não apenas de nossa fisicalidade, mas de ideias grandiosas, que permanecem vigorando para além do espaço-tempo ocupado por seu progenitor. Em síntese, a Natureza era para o sábio concordiano o campo de irradiação simbólica do celeste no terreno. Isso significa dizer que, na prática da reflexão (do latim refletĕre: retornar, recurvar, levar de volta, reverter, dar um passo atrás)21 em torno dos fenômenos naturais, pensava ele, (re)volvemos ao ponto de convergência entre o céu e a terra, o universo espiritual e o mundo natural. Nesse sentido, devemos estabelecer, logo de antemão, que a linguagem simbólica da Natureza, sobre a qual nos curvaremos no decorrer de nossa jornada, é a insígnia do retorno para aquela que o pensador acreditava ser a constituição originária do ser humano; é o emblema dos fundamentos divinos da terra — revelados, em forma de hieróglifos, no aqui e agora do momento presente. “Todos os fenômenos da natureza”, pondera Thoreau, “precisam ser vistos do ponto de vista do maravilhamento e do assombro [...]”22 — e é esse encantamento da terra, precisamente, que buscaremos ecoar aqui. A literatura thoreauviana, como tornar-se-á nítido ao longo de nossa jornada, teve nascedouro em seu anseio singular por um 18 THOREAU, 2012a, p. 102-103. 19 ibid., p. 104 e 110. 20 THOREAU, Henry David. Walden. Tradução de Denise Bottmann. Apresentação de Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2019, p. 300. 21 NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1955, p. 437. 22 Writings, X, p. 158. 27 de junho de 1852. No original: “All the phenomena of nature need [to] be seen from the point of view of wonder and awe [...]”. 15 desbravamento simbólico da realidade cósmica: ver e ouvir, no livro e na orquestra da Natureza, a íntima correspondência entre as linguagens da terra e os dizeres celestes da alma. Afinado neste tom, Henry David Thoreau acreditava que o trabalho do escritor consistia em ocupar o posto sagrado de transmissor das linguagens da Natureza. “Um escritor, um homem escrevendo”, pondera ele em 1851, “é o escriba de TODA a natureza; ele é o milho, a grama e a atmosfera escrevendo”23. “Aqui estou há quarenta anos aprendendo a linguagem desses campos para que eu possa me expressar melhor”24, declarou semelhantemente o andarilho norte-americano em seus últimos anos de vida. Poderíamos dizer que nisso consiste, propriamente, o objetivo de todos os seus empreendimentos intelectuais, sejam eles ambientados no campo das ciências, da estética ou da ética. O termo “linguagem”, como aqui expresso, portanto, não se limita ao indivíduo humano, e tampouco ao coletivo das civilizações, mas antes aponta para o fluxo vital que permeia a existência e a organização do éthos de todos os seres. A Natureza, assim contemplada, mostra-se na condição de útero primordial onde são gestadas todas as formas de vir a ser e se expressar no mundo, o firmamento no qual se estruturam as vozes da realidade em sua totalidade. Tal vislumbre, como nos indica o erudito das matas, é angariado a partir de um vínculo de intimidade com as performances cósmicas: Para garantir a saúde, a relação de um homem com a Natureza deve ser próxima de uma relação pessoal; ele deve estar consciente de uma amizade por parte dela [...]. Não consigo conceber nenhuma vida que mereça esse nome a menos que haja uma certa relação terna com a Natureza. É isso que torna o inverno quente e que abastece a sociedade no deserto e na selva. A menos que a Natureza simpatize e fale conosco, por assim dizer, as regiões mais férteis e florescentes são estéreis e sombrias25. Em seus escritos, encontramos uma cosmovisão fundada no encontro simbólico de uma grande família, encabeçada por Deus/pelos deuses e pela Natureza, que eram para ele pai e mãe de tudo aquilo que compõe nosso mundo: “Se a Natureza é a nossa mãe, então Deus é nosso 23 Writings, VIII, p. 441, grifo do autor. 2 de setembro de 1851. No original: “A writer, a man writing, is the scribe of ALL nature; he is the corn, the grass and the atmosphere writing”. 24 THOREAU, Henry David. Journal X: August 8, 1857 — June 29, 1858. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 16, p. 191. 20 de novembro de 1857. Doravante citado como Writings, XVI. No original: “Here I have been these forty years learning the language of these fields that I may the better express myself”. 25 Writings, XVI, p. 252. 23 de janeiro de 1858. No original: “To insure heath, a man’s relation to Nature must come very near to a personal one; he must be conscious of a friendliness in her [...]. I cannot conceive of any life which deserves the name, unless there is a certain tender relation to Nature. This it is which makes winter warm, and supplies society in the desert and wilderness. Unless Nature sympathizes with and speaks to us, as it were, the most fertile and blooming regions are barren and dreary”. 16 pai”, lemos em A Week on the Concord and Merrimack Rivers [Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack] (1849). “Às vezes”, escreve ele também em seu primeiro livro, “um mortal sente em si mesmo a Natureza, não seu Pai, mas sua Mãe que se agita em seu interior, e ele se torna imortal com a imortalidade materna. De tempos em tempos ela reivindica parentesco conosco, e alguns glóbulos de suas veias se infiltram em nossas próprias veias”26. Já em Walden, essa perspectiva é expressa a partir da representação de “um antigo colono e dono original” (o pai) e de “uma senhora de idade” (a mãe), poderes responsáveis por conferir beleza e verdade à vida — ancestralidade que, embora aja de forma sutil e seja difícil de desvelar, conversa conosco por meio de mitos, fábulas e “histórias dos velhos tempos e da nova eternidade”: Nas longas noites de inverno, quando a neve cai intensa e o vento uiva na mata, recebo as visitas ocasionais de um antigo colono e dono original, que, ao que consta, escavou o Lago Walden, pôs-lhe pedras, franjou-o de pinheirais; ele me conta histórias dos velhos tempos e da nova eternidade, e juntos passamos uma noite animada, em alegre convívio alegre e uma visão agradável das coisas, mesmo sem maçãs nem cidra — um amigo extremamente sábio e bem-humorado, a quem amo muito, que se mantém mais escondido do que Goffe ou Whalley27; e embora o julguem morto, ninguém sabe mostrar onde está sua sepultura. Há uma senhora de idade que também mora nas vizinhanças, invisível à maioria das pessoas, em cujo jardim de ervas aromáticas muito me apraz caminhar ocasionalmente, colhendo símplices e ouvindo suas fábulas; pois seu espírito é de uma fecundidade sem igual, sua memória recua no passado mais do que a mitologia, e ela sabe me contar o original de cada fábula, os fatos em que cada uma delas se baseia, pois os episódios aconteceram durante sua mocidade. Uma senhora corada e robusta, que gosta de todos os climas e estações, e ainda é capaz de sobreviver a todos os seus filhos28. Ao longo de nossa caminhada junto a Thoreau, veremos que seus escritos se caracterizam pela conexão intrínseca entre sensibilidade corpórea e espiritualidade. Nos mistérios das matas, tais quais estampados nos espaços desprovidos de cercas, o erudito de Concord entrevia a materialização dos enigmas celestes do divino. “O que podemos fazer com um homem que tem medo da floresta, da solidão e da escuridão que lá estão? Que salvação há para ele?”, indaga-se ele. Ao que continua: “Deus é silencioso e misterioso. [...]. Eu amo a 26 Writings, I, p. 398-399 e 404. No original: “If Nature is our mother, then God is our father”; “Sometimes a mortal feels in himself Nature, not his Father, but his Mother stirs within him, and he becomes immortal with her immortality. From time to time she claims kindredship with us, and some globule from her veins steals up into our own”. 27 Referência a Edward Whalley e William Goffe, generais puritanos que, envolvidos nas guerras civis da Inglaterra (séc. XVII) e na morte do rei Charles I, mediante à restauração do regime monárquico, viram-se obrigados a fugir para a Nova Inglaterra e a viverem como fugitivos nos Estados Unidos. 28 THOREAU, 2019, p. 136-137, grifos acrescentados. 17 natureza, eu amo a paisagem, porque ela é sincera. [...]. É plena de alegria, musical em sinceridade”29. Delimitadas essas questões introdutórias, centraremos nossa discussão, doravante, naqueles que aqui denominamos “hieróglifos mitopoéticos” e “hieróglifos musicais” da literatura thoreauviana, símbolos divinos oferecidos ao olho e ao ouvido por meio das formas e sons da Natureza. Tendo isso em vista, a linguagem simbólica, nos termos aqui englobados, diz respeito à ponte que viabiliza o trilhar que conecta a terra e o céu, a divindade, a Natureza e a humanidade. O termo “símbolo”, vale lembrar, cuja raiz etimológica remete ao verbo grego symbállein, transparece, justamente, o ato de união entre duas partes. O σύμβολον, nesse sentido, determina o ato de trazer à baila dois elementos que em determinado momento se viram separados entre si, e que, por intermédio de uma marcação figurativa, foram reunidos em uma mesma unidade30. Na linguagem simbólica da Natureza, conforme aqui compreendida, une-se aquilo que em algum momento se viu enquanto parte separada de seu todo: o céu/o espírito e a terra/a Natureza. É isso que denota o autor em A Week, em passagens, respectivamente, dos capítulos “Monday” [“Segunda-feira”] e “Friday” [“Sexta-feira”]: Enquanto navegávamos sob esse dossel de folhas, víamos o céu através de suas fendas e, por assim dizer, o sentido e a ideia da árvore estampados em mil hieróglifos nos céus. O universo se ajusta tão bem à nossa constituição que o olho vagueia e repousa ao mesmo tempo. [...]. As folhas são de formas mais variadas do que os alfabetos de todas as línguas reunidos [...]31. Duas garças-azuis-grandes (Ardea herodias), com seus membros longos e esguios estendidos junto ao céu, foram vistas voando muito acima de nossas cabeças — seu voo sublime e silencioso [...] [é] um símbolo para a investigação ao longo das eras, seja ele impresso no céu ou esculpido entre os hieróglifos do Egito32. 29 Writings, VIII, p. 100. 16 de novembro de 1850. No original: “What shall we do with a man who is afraid of the woods, their solitude and darkness? What salvation is there for him? God is silent and mysterious. [...]. I love nature, I love the landscape, because it is so sincere. [...]. It is cheerfully, musically earnest”. 30 Seguindo a herança grega, o termo “symbŏlus”, na língua latina, é empregado para fazer referência ao firmamento de um contrato. Em uma de suas definições, assim lemos: “Either of two matching objects [...] which one was held by one party and the other presented by an agent of the other party as a proof of identity”. Cf. GLARE, P. G. W. (ed.). Oxford Latin Dictionary. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 2090. 31 Writings, I, p. 166-167, grifo acrescentado. No original: “As we sailed under this canopy of leaves, we saw the sky through its chinks, and, as it were, the meaning and idea of the tree stamped in a thousand hieroglyphics on the heavens. The universe is so aptly fitted to our organization that the eye wanders and reposes at the same time. [...]. Leaves are of more various forms than the alphabets of all languages put together [...]”. 32 ibid., p. 416, grifo acrescentado. No original: “Two herons (Ardea herodias), with their long and slender limbs relieved against the sky, were seen traveling high over our heads, — their lofty and silent 18 Principiemos, pois, nossa peregrinação junto deste que foi um sacerdote singular da Natureza. flight [...] a symbol for the ages to study, whether impressed upon the sky or sculptured amid the hieroglyphics of Egypt”. 19 1. Divindade, Natureza, humanidade1 O maior deleite que os campos e bosques comunicam é a sugestão de uma oculta relação entre o homem e o vegetal. Não estou só e irreconhecido. Eles acenam para mim, e eu para eles. O balanço dos galhos em meio à tormenta é para mim algo novo e antigo. Toma-me de surpresa e, apesar disso, não me é desconhecido. (Ralph Waldo Emerson, Nature)2. A manifestação da intrínseca e “oculta relação” que entrelaça, de forma triádica, os fenômenos naturais, o universo espiritual e a esfera da existência humana, permeia, de modo precípuo, os círculos intelectuais e artísticos que a tradição intelectual ocidental convencionou denominar “romantismo”. De acordo com Samantha Harvey, podemos identificar a interconexão umbilical que religa divindade, Natureza e humanidade tanto na obra do precursor do romantismo inglês Samuel Taylor Coleridge (1772–1834) quanto nas reflexões de Ralph Waldo Emerson, cujo pensamento representou o epicentro do movimento religioso, filosófico e literário Transcendentalista, influenciando sobremaneira o desenvolvimento intelectual de Henry David Thoreau. Essa “tríade romântica postula uma inter-relação dinâmica entre as categorias do humano, do divino e do natural — em vez de uma hierarquia estática”, sustenta a pesquisadora, “iluminando o que Kevin Hutchings considera ser a ‘compreensão do romantismo acerca da complexa interpenetração dos mundos do sujeito e do objeto’”3. Ao final de seu poema mais conhecido, The Rime of the Ancient Mariner (1798), o marinheiro de S. T. Coleridge, interligando a esfera divina, o universo natural e o mundo humano, ao despedir de seu convidado, recordando-se dos “seres de qualquer dimensão”, assim exclama: Adeus, meu caro Convidado; 1 Título inspirado pelo estudo de Samantha Harvey em torno da “tríade romântica”, expressão mencionada ao longo de nosso texto. 2 EMERSON, Ralph Waldo. Nature. In: ______. Nature addresses and lectures. The Complete Works of Ralph Waldo Emerson, with a biographical introduction and notes by Edward Waldo Emerson, 12v. Boston/New York: Houghton, and Mifflin Company, 1903-1904, v. 1, p. 1-77, à página 10. Doravante citado como EMERSON, Nature. No original: “The greatest delight which the fields and woods minister, is the suggestion of an occult relation between man and the vegetable. I am not alone and unacknowledged. They nod to me, and I to them. The waving of the boughs in the storm, is new to me and old. It takes me by surprise, and yet is not unknown”. 3 HARVEY, Samantha C. Transatlantic Transcendentalism: Coleridge, Emerson, and Nature. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2013, p. 18, grifo da autora. No original: “The Romantic triad posits a dynamic interrelation between the categories of the human, divine, and natural — rather than a static hierarchy — illuminating what Kevin Hutchings calls ‘Romanticism’s understanding of the complex interpenetration of subject and object worlds’”. 20 Contudo, não esqueças jamais! Boa prece faz quem é afeiçoado A homens, aves e animais. Faz melhor reza quem tem amor Por seres de qualquer dimensão; Pois a todos ama o Senhor, Que é o pai de toda a criação4. No centro desse entrecruzamento triádico movimenta-se o “poeta-profeta”, arquétipo que representa a pessoa capaz de deslindar, simbolicamente, a intimidade fundante da conexão entre o ser humano, a totalidade cósmica da Natureza e a sacralidade da divindade, conceito romântico elaborado a partir dos estudos histórico-literários do início da modernidade acerca da composição poética-profética da literatura homérica e das Escrituras. “Apenas ‘a pessoa de Gênio’ — o poeta-profeta”, comenta Harvey, “poderia perceber a relação entre o uno e o múltiplo e o espiritual e o natural”5, uma vez tendo se tornado testemunha dos simbolismos do mútuo enredamento entre a vastidão do universo natural, a mente humana e seus desenlaces culturais. Mediante os acenos das linguagens naturais, exprime Emerson em Nature (1836), o poeta pincela sua resposta, desvelando simbolicamente a “oculta relação” que existe “entre o homem e o vegetal”. E quais são, afinal, os panoramas presentificados pelas linguagens da Natureza que os transcendentalistas e românticos vocalizam? William Wordsworth (1770–1850), consagrado pela tradição como o patriarca do romantismo inglês ao lado de Coleridge, no poema Lines Composed a Few Miles above Tintern Abbey, on Revisiting the Banks of the River Wye during a Tour, July 13, 1798, expressa que o poeta, “amante dos pastos e dos bosques”, embebido pela “linguagem dos sentidos” que é nutrida pelos fenômenos naturais, reconhece Uma moção e um espírito que impele Toda coisa pensante, todo objeto de todo pensamento E por tudo circula. Por isso permaneço Um amante dos pastos e dos bosques E dos montes e tudo que vislumbramos Nesta terra verde, de nosso possante universo Do olho e ouvido — Tanto o que imaginam, Quanto o que percebem. Grato em reconhecer Na natureza e na linguagem dos sentidos, A âncora de meu mais puro pensar; a ama, O guia, o guardião do coração e da alma 4 COLERIDGE, Samuel Taylor. A Balada do Velho Marinheiro. Tradução e textos introdutórios de Weimar de Carvalho. São Paulo: Disal, 2006, p. 104. 5 HARVEY, op. cit., p. 14. No original: “Only ‘the man of Genius’ — the poet-prophet — could perceive the relationship between the one and the many and the spiritual and the natural”. 21 De todo o meu ser moral6. As linguagens naturais, ou, como escreve Wordsworth, a “linguagem dos sentidos”, desabrocha nos imos das paisagens naturais, fazendo morada no olho e no ouvido da pessoa que se percebe “amante dos pastos e dos bosques”. Aos sentidos encarnados poética e profeticamente, a locução da Natureza transparece o “espírito” que “por tudo circula”, permitindo à mente humana discernir, nos convites da sensibilidade poética-profética, a “âncora” de seus pensamentos e percepções mais sublimes e de todo o seu “ser moral”. Thoreau, por sua vez, na esteira do romantismo, preconiza, através da multiplicidade de linguagens naturais evocadas em seus escritos, que a “linguagem dos sentidos” está umbilicalmente relacionada à infinidade de vozes cósmicas, cujo prelúdio emerge de uma mesma nascente: a Natureza. Em seu contato com o despertar da primavera no Lago Walden, o autor contempla o cruzamento entre o múltiplo e o uno, entre a manifestação divina e o anseio humano por decifrar os símbolos sagrados entoados nas linguagens sazonais, vislumbrando um horizonte de redenção, de retorno à fonte primordial da Natureza e suas raízes sagradas — em seus termos, de um renascimento na condição de “uma nova folha”. Sua impressão era de que uma “única encosta ilustrava o princípio de todas as operações da Natureza”, paisagem reveladora da unidade na multiplicidade: “O Criador desta terra patenteou apenas uma folha”. “Que Champollion7 nos decifrará este hieróglifo”, questiona-se ele, “para podermos finalmente virar uma nova folha?”8. A partir deste horizonte, teremos por objetivo demonstrar que, na constituição de seus escritos, o ver e o ouvir interpenetram e interpretam, em seu conjunto bailar, os hieróglifos (do grego hierós + griphus = “enigmas sagrados”9) que se apresentam nos fenômenos imanentes da Natureza — manifestos tanto nos termos dos naturalistas quanto em imagens mítico-poéticas e tons musicais, expressões das linguagens da Natureza destacadas no decorrer de nossas reflexões. Antes de nos aprofundarmos na exposição dos símbolos sagrados trazidos à baila na literatura thoreauviana, traçaremos uma breve biografia de Thoreau, a fim de termos em vista, ainda que de forma mosaica, algumas das heranças de sua formação familiar e intelectual no 6 WORDSWORTH, William. O Olho Imóvel pela Força da Harmonia. Tradução e apresentação de Alberto Marsicano e John Milton. Cotia: Ateliê Editorial, 2007, p. 97. 7 O intelectual francês Jean-François Champollion (1790–1832) é considerado o fundador da egiptologia, tendo sido seus trabalhos linguísticos essenciais para a decifração dos hieróglifos do antigo Egito. 8 THOREAU, 2019, p. 292. 9 NASCENTES, op. cit., p. 262 e 853. 22 decorrer da construção de seu pensamento. ⚜ 23 1.1. “Devotar a vida à descoberta da divindade na natureza” Se pela paciência, se pela vigilância, posso assegurar um novo raio de luz, posso me sentir elevado por um instante sobre Pisgah, se o mundo que era prosa morta para mim torna-se vivo e divino, não devo nunca vigiar? não devo tornar-me um vigia doravante? Se, observando um ano inteiro junto aos muros da cidade, posso receber uma comunicação do céu, não farei bem em fechar minha loja e me tornar um vigia? Estamos cercados por um mistério rico e fértil. Não podemos sondar, bisbilhotar, nos empenharmos um pouco nisso? Devotar a vida à descoberta da divindade na natureza ou a comer ostras não teriam resultados muito diferentes? (Henry David Thoreau, Journals)1. Em sua busca por “devotar a vida à descoberta da divindade na natureza”, Henry David Thoreau demonstrou ser devoto em muitos templos. Caminhando por diversas rotas do conhecimento, o pensador de Concord buscou hospedagem em muitas paragens, encontrando espaços de adoração nas mais recônditas trilhas naturais. Pelas vias das metáforas poéticas e dos termos mensurativos da investigação empírica, ele vislumbrava, em uma visão unificadora, a descoberta dos rudimentos divinos da Natureza. Nesta atmosfera, o pesquisador vocalizou linguagens diversificadas em sua expressão da polifonia das óperas do universo natural. “Minha profissão”, diz ele na continuação do excerto de seu diário supracitado, “é estar sempre alerta para encontrar Deus na natureza, conhecer seus esconderijos, comparecer a todos os seus oratórios, suas óperas, na natureza”. E, seu objetivo, “[o]bservar e descrever todas as facetas divinas que detecto na Natureza”2. É nítida em seus escritos sua grande familiaridade com as materializações imagéticas e, em especial, com os ritmos e sons da Natureza. “Fosse eu acordado de um sono profundo”, alegou ele certa feita, “eu saberia de qual lado do meridiano o sol pode estar pelo chilrear dos grilos”3. 1 Writings, VIII, p. 471-472, grifos acrescentados. 7 de setembro de 1851. No original: “If by patience, if by watching, I can secure one new ray of light, can feel myself elevated for an instant upon Pisgah, the world which was dead prose to me become living and divine, shall I not watch ever? shall I not be a watchman henceforth? If by watching a whole year on the city’s walls I may obtain a communication from heaven, shall I not do well to shut up my shop and turn a watchman? We are surrounded by a rich and fertile mystery. May we not probe it, pry into it, employ ourselves about it, a little? To devote your life to the discovery of the divinity in nature or to the eating of oysters, would they not be attended with very different results?”. 2 ibid., p. 472. No original: “My profession is to be always on the alert to find God in nature, to know his lurking-places, to attend all the oratorios, the operas, in nature”; “To watch for, describe, all the divine features which I detect in Nature”. 3 Writings, VII, p. 273. 18 de agosto de 1841. No original: “If I were awaked from a deep sleep, I should know which side the meridian the sun might be by the chirping of the crickets”. 24 Na multiplicidade de seus afazeres, Thoreau foi professor, agrimensor, naturalista, poeta e “faz-tudo” na casa de R. W. Emerson4, tendo também se empreendido na pequena fábrica de lápis de seu pai (sendo o único no país, naquela circunstância temporal, a ter atingido o mesmo nível de qualidade da indústria alemã5). Aliás, a diversidade era também um mote de suas ocupações intelectuais e espirituais. “O fato é que eu sou um místico, um transcendentalista, e também um filósofo natural”6, declarou ele à Associação Americana para o Avanço da Ciência na ocasião de sua afiliação à instituição na década de 1850. De fato, Thoreau foi um homem religioso ao seu próprio modo, bem como um pensador associado ao Transcendentalismo e aos estudos dos naturalistas da época, conforme veremos adiante. Seu trabalho primordial, todavia, como ele próprio afirmou diversas vezes em suas anotações pessoais, era a escrita — cujos frutos, em sua percepção, constituíam seu mais elevado sacrifício aos deuses7: Alegria e tristeza, sucesso e fracasso, grandiosidade e mesquinhez e, de fato, a maioria das palavras na língua inglesa, não significam para mim aquilo que significam para meus vizinhos. Vejo que eles me olham com compaixão, que pensam que é um destino mesquinho e infeliz que tanto me faz caminhar nestes campos e matas e velejar sozinho neste rio. Mas enquanto eu encontrar aqui o único verdadeiro elísio, não posso hesitar em minha escolha. Meu trabalho é a escrita, e não hesito, embora saiba que nenhum assunto é trivial demais para mim, comparado aos padrões comuns; pois sim, seus tolos, o tema não é nada — a vida é tudo. Tudo o que interessa ao leitor é a profundidade e a intensidade de vida que é excitada. Tocamos nosso objeto apenas em um ponto que não tem amplitude, mas a pirâmide de nossa experiência, ou nosso interesse por ela, repousa sobre nós em uma base mais ampla ou mais estreita. Ou seja, o homem é tudo em tudo o que há, a Natureza nada, mas apenas na medida em que ela o atrai e o reflete8. 4 Thoreau inicialmente morou e trabalhou na casa dos Emerson no período entre 1841 e 1843. Ele tornou a viver com a esposa de Emerson e seus filhos entre 1847 e 1848, enquanto Ralph viajava pela Europa divulgando suas ideias em palestras. 5 Na época em que buscava emprego como professor, Thoreau, sem sucesso em sua procura, começou a trabalhar na fábrica de lápis de seu pai. Os produtores de lápis americanos de então não haviam conseguido atingir a qualidade do produto alemão fornecido pela Faber, ainda que o grafite norte- americano fosse de melhor qualidade. Thoreau chegou à conclusão de que a causa do problema estava nas substâncias empregadas junto ao grafite. Estudando a fabricação de lápis dos alemães e as substâncias mescladas com o grafite, ele se tornou o primeiro norte-americano a produzir um lápis com a mesma excelência da Faber, colocando a fábrica de seu pai em evidência e trazendo a ela prosperidade com sua descoberta (HARDING, 1965, p. 56). 6 Writings, XI, p. 4. 5 de março de 1853. No original: “The fact is I am a mystic, a transcendentalist, and a natural philosopher to boot”. 7 “Brave speaking is the most entire and richest sacrifice to the gods” (Writings, VII, p. 195. 4 de fevereiro de 1841). 8 Writings, XV, p. 121. 18 de outubro de 1856. No original: “Joy and sorrow, success and failure, grandeur and meanness, and indeed most words in the English language do not mean for me what they do for my neighbors. I see that my neighbors look with compassion on me, that they think it is a mean and unfortunate destiny which makes me to walk in these fields and woods so much and sail on this river alone. But so long as I find here the only real elysium, I cannot hesitate in my choice. My work is 25 Como nos conta Walter Harding em sua eminente biografia, The Days of Henry Thoreau, nosso autor nasceu em 12 de julho de 1817, na casa de sua avó materna em Virginia Road, em Concord, Massachusetts, a 20 milhas de distância de Boston. Batizado em uma cerimônia conduzida pelo Reverendo Ezra Ripley (1751–1841) na First Parish Church em 12 de outubro de 18179, ele recebeu o nome David Henry Thoreau10. A população daquela pequena cidade, que tinha cerca de dois mil habitantes e era ambientada por uma economia agrícola, constituía-se, em boa medida, por protestantes descendentes de imigrantes escoceses e ingleses que se instalaram na Nova Inglaterra gerações antes da Revolução Americana (1775–1783). Esse também era o caso, naturalmente, da família de Thoreau, que tinha como primeiro ancestral naturalizado nos Estados Unidos Jean Thoreau11 (americanizado como “John”), avô paterno de Henry, um corsário francês de matriz religiosa protestante que, no ano de 1773, alcançou as terras americanas em decorrência de um naufrágio. Nas novas terras John Thoreau casou-se com Jane Burns, uma mulher descendente de escoceses e de uma família Quaker original de Boston. O avô paterno de Henry D. Thoreau, por sua vez, o Reverendo Asa Dunbar, natural de Massachusetts, uma vez tendo sido educado no Harvard College, foi professor por algum tempo, e depois exerceu o posto de pastor em Salém. Já casado com Mary Jones (a única avó que nosso autor conheceu pessoalmente), Asa Dunbar constituiu sua moradia em Keene, New Hampshire, onde foi eleito para compor o concílio municipal. Após o falecimento de seu marido, Mary Jones abriu uma taverna em sua casa para garantir seus proventos, e, posteriormente, casou-se com o Capitão Jonas Minott, que possuía uma fazenda em Concord, local de nascimento de Thoreau12. A mãe de Henry, Cynthia Dunbar Thoreau (1787–1872), angariava seus recursos financeiros de uma pensão que ela estruturou em sua própria casa, o que fez de sua moradia um local constantemente movimentado. Uma mulher para além de seu tempo, ela esteve atrelada à writing, and I do not hesitate, though I know that no subject is too trivial for me, tried by ordinary standards; for, ye fools, the theme is nothing, the life is everything. All that interests the reader is the depth and intensity of the life excited. We touch our subject but by a point which has no breadth, but the pyramid of our experience, or our interest in it, rests on us by a broader or narrower base. That is, man is all in all, Nature nothing, but as she draws him out and reflects him”. 9 HARDING, 1965, p. 11. “Proud of his early stoicism”, diz Harding, “Henry often boasted in later years that he did not cry at the ceremony” (ibidem). 10 Quando jovem, Thoreau, que já era costumeiramente chamado de Henry por sua família, trocou a ordem de seus nomes de batismo por pensar que Henry David soava melhor do que David Henry, atitude criticada por seus conhecidos próximos, que pensavam que não cabe ao humano mudar o nome concedido por Deus (ibid., p. 65). 11 Esse sobrenome, como constata Harding, aparece em diversos registros medievais da região de Tours, na França (ibid., p. 4). 12 ibid., p. 3-7. 26 Concord Female Charitable Society e à Bible Society, tendo também sido uma das fundadoras da Concord Female Anti-Slavery Society, bem como uma participante da Underground Railroad, movimento secreto que atuava em auxílio de pessoas escravizadas foragidas, revolução na qual nosso autor também tomou parte. Já seu pai, John Thoreau (1787–1859), um grande amante da literatura clássica e da música, foi, em seus tempos de juventude, um dos membros da igreja da cidade, e frequentemente animava os cultos com o toque de sua flauta13. Na maturidade, ele se aventurou no ramo da fabricação de lápis, espaço no qual seu filho mais novo também deixou sua marca, conforme mencionamos acima. Tanto Cynthia quanto John cultivavam um grande interesse pelos fenômenos naturais, gosto passado a todos os seus filhos: Helen (1812–1849), John (1815–1842), Henry e Sophia (1819–1876)14. Reza a tradição que, quando se reuniu em matrimônio, o casal nutria o hábito de caminhar em regiões de rios, lagos e montanhas, e que um de seus filhos quase nasceu nas matas do Condado de Berkshire, na zona oeste de Massachusetts. Cynthia, em especial, sempre proporcionou aos seus filhos o contato com a Natureza, procurando chamar a atenção das crianças para a beleza do canto dos pássaros15. Os Thoreau não eram materialmente abastados, e muitas vezes eles não tiveram condições de comprar artigos mais caros, como chá, café e açúcar. Talvez essa experiência de infância esteja relacionada à perspectiva madura do pensamento thoreauviano de viver uma existência fundamentada na simplicidade, na qual “[u]ma bela casa, roupas finas, as maneiras e as conversas das pessoas altamente cultivadas”, conforme alegou Emerson, nada significavam. “Thoreau”, afinal, “decidiu ser rico diminuindo suas necessidades e atendendo pessoalmente a elas”16. Se, por um lado, os familiares do escritor de Walden não eram endinheirados, por outro lado, culturalmente falando eles eram muito ricos. Sua mãe e sua tia Maria, irmã de seu pai, estiveram ligadas a diversos movimentos sociais, e se envolveram nas transformações religiosas contemporâneas relativas à polêmica entre trinitaristas e unitaristas17. 13 ibid., p. 8-9 e 22. 14 A árvore genealógica da família de Henry Thoreau está disponível no site da “Thoreau Society”. Cf. https://thoreausociety.org/life-legacy/family-tree/. 15 HARDING, 1965, p. 10 e 19. 16 EMERSON, Thoreau, p. 317-318. 17 Em 1826, após a mudança da First Parish Church do trinitarismo para o unitarismo, várias pessoas se desligaram da igreja, dentre as quais três tias de Thoreau: Elizabeth, Jane e Maria. Pouco tempo depois foi formada a Trinitarian Congregational Church, estabelecida em contraposição ao ambiente religioso reformado pelo Rev. Ezra Ripley. A mãe de Thoreau também pediu transferência para a nova igreja trinitarista, mas, por algum motivo, não foi aceita, e, em virtude disso, ela permaneceu ligada à instituição unitarista até o fim de sua vida (HARDING, 1965, p. 24-25). Thoreau, por sua vez, não compactuava com as instituições cristãs. 27 Mesmo perante as dificuldades financeiras, o estudo formal foi uma questão central para a família. Quando criança, nosso autor foi matriculado na escola privada de Miss Phoebe Wheeler, localizada na Walden Street. Cumprida essa etapa preliminar de aprendizagem, no ano de 1826, o jovem Henry, com então onze anos, junto de seu irmão mais velho, foi matriculado na Concord Academy, espaço onde ele próprio lecionou posteriormente. Seus companheiros de classe, como reza a tradição, achavam que ele era “antipático”, pois não lhe atraíam os jogos habituais das crianças (as quais, devido à personalidade fortemente crítica de seu colega, costumavam chamá-lo de “Juiz”)18. Já nesse tempo, observa Harding, Thoreau “parecia mais interessado em atividades ao ar livre do que na escola, e passava todo o seu tempo livre nos bosques e prados de Concord e em seus rios e lagoas”. Por isso mesmo, “[e]le era conhecido entre os meninos de sua idade como aquele ‘que não temia lama ou água, e que nem parava para levantar seus companheiros da vala’”19. Ainda menino ele já era um grande fã de armas, com as quais praticava seu esporte favorito: a caça. Anos mais tarde, porém, ele próprio teceu sua crítica a essa prática em Walden. Também os barcos fascinaram Thoreau desde a mais tenra idade. Em 1833, ele construiu sua primeira pequena embarcação, que recebeu o nome “The Rover”, sua via de locomoção nas expedições aventuradas em sua juventude pelos lagos e rios de Concord20. Cynthia Thoreau tinha o desejo de que ao menos um de seus filhos se formasse no Harvard College, em Cambridge. Henry não estava muito entusiasmado com a ideia, e seus pais cogitaram torná-lo aprendiz de carpinteiro, tendo em vista sua grande habilidade manual, talento que continuou se mostrando de forma extensiva ao longo de sua vida. Ainda que John fosse visto pelas pessoas em geral como o jovem mais promissor da família, os parentes mais íntimos dos jovens rapazes pensavam que o caçula era o mais propenso aos estudos intelectuais, tendo sido ele, enfim, o escolhido para tentar o ingresso em Harvard. Ele prestou o exame de seleção em 1833, e Helen e John, que já trabalhavam como professores, ajudaram a angariar recursos para o financiamento dos estudos de seu irmão mais novo. Tornaram-se famosas as 18 ibid., p. 17-26. O caráter moralista de seus posicionamentos era algo em virtude do qual o próprio Thoreau se censurou até o fim de sua vida, peculiaridade que ele chegou a atrelar ao ímpeto dos pregadores. Após pronunciar, em fevereiro de 1860, sua última preleção, denominada “Wild Apples”, Thoreau elaborou a seguinte autocrítica em seu diário: “Always you have to contend with the stupidity of men… Halve your lecture, and put a psalm at the beginning and a prayer at the end of it and read it from a pulpit, and they will pronounce it good without thinking” (ibid., p. 436). 19 ibid., p. 30-31. No original: “was seemingly more interested in the outdoors than in school and spent all his spare time in Concord’s woods and meadows and on her rivers and pond. He was known among the boys of his age as the one ‘who did not fear mud or water, nor paused to lift his followers over the ditch’”. 20 ibid., p. 31. 28 palavras que Josiah Quincy (1772–1864), então presidente de Harvard, dirigiu ao neófito após o resultado de seus exames de admissão: “Por pouco você não consegue entrar”. A lógica pedagógica que, à época, regia a instituição, favorecia o comportamento passivo dos alunos, sendo pautada em exercícios mnemônicos e de recitação, atividades inseridas em um sistema educacional baseado em uma lógica de recompensa e punição por comportamento. A opressividade envolvida nesse tipo de organização fez com que alguns alunos (dentre os quais Thoreau se incluía) formulassem, em 1834, uma petição que solicitava a revogação dessas práticas. Quando de sua estadia em Harvard, já lapidando sua aptidão discursiva, Thoreau adquiriu o hábito de manter cadernos onde copiava passagens e tecia comentários de suas leituras, dos quais restaram cerca de vinte volumes com aproximadamente cinco mil páginas, fonte primária para a elaboração de vários trechos que aparecem em seus ensaios dos anos 184021. Foi nessa conjuntura, conforme pontua Robert Richardson, que nosso autor começou a se conectar com as visões do esplendor de uma vida primitiva e heroica22. Apesar de naquele ambiente ter feito amizades que duraram por toda a sua vida, a maior parte de seus colegas de classe tinham dele a impressão de alguém frio e antipático, uma feição que aparentemente o seguiu por toda a sua caminhada existencial. John Weiss, por exemplo (discente que, em 1834, havia incitado uma rebelião contra as aulas de recitação, insurreição da qual Thoreau não tomou parte), escreveu o seguinte: O toque de sua mão era úmido e indiferente [...]. Ele não se importava com as pessoas; seus colegas de classe pareciam muito distantes [...]; e nos lembramos dele como se parecendo muito com algumas esculturas faciais egípcias, de grandes feições, mas taciturno, imóvel, fixo em um egoísmo místico. No entanto, seus olhos estavam por vezes à procura, como se ele tivesse deixado cair algo no chão ou esperasse encontrar algo. Era o olhar do próprio filho da Natureza aprendendo a detectar seus segredos à beira do caminho [...]. Pois ele viu mais sobre o solo do que qualquer um suspeitava lá estar...23. Em julho de 1834, Thoreau foi um dos cinco membros de sua turma eleitos para integrar o Institute of 1770, organização privada dedicada à ampliação do conhecimento. O instituto 21 ibid., p. 32 e 38. No original: “You have barely got in”. 22 RICHARDSON Jr., Robert D. Henry Thoreau: A Life of the Mind. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 1986, p. 7. 23 HARDING, 1965, p. 40. No original: “The touch of his hand was moist and indifferent [...]. He did not care for people; his classmates seemed very remote [...]; and we remember him as looking very much like some Egyptian sculptures of faces, large-featured, but brooding, immobile, fixed in a mystic egotism. Yet his eyes were sometimes searching, as if he had dropped or expected to find, something. It was the look of Nature’s own child learning to detect her wayside secrets [...]. For he saw more upon the ground than anybody suspected to be there…”. 29 detinha uma farta biblioteca, que foi frequentemente usufruída por nosso autor, proporcionando a ele, decerto, um grande enriquecimento cultural. No ano seguinte, em decorrência da nova regulamentação de Harvard, que permitia que os alunos menos abastados se ausentassem das aulas por algumas semanas a fim de lecionarem e reunirem verbas para o financiamento de sua educação, Thoreau logo se inscreveu para uma entrevista na cidade de Canton. Foi lá que ele conheceu o Reverendo Orestes Augustus Brownson (1803–1876), proeminente intelectual contemporâneo, e, de certo modo, um porta-voz da orientação que atualmente denominamos “ecumenismo”. O encontro entre os dois foi marcante, e, ao fim, Thoreau foi selecionado para ocupar a posição de professor temporário, na qual ele permaneceu por pouco mais de um mês. Junto de Brownson (que, à época, estava escrevendo New Views of Christian Society and the Church24), Thoreau provavelmente traçou discussões preliminares sobre as ideias transcendentalistas que então ambientavam a Nova Inglaterra. Já em maio de 1836, o jovem Henry teve que deixar seus estudos de lado por conta de uma debilidade em sua saúde, quando, provavelmente, ele foi pela primeira vez acometido pelas consequências da tuberculose que o levou ao falecimento anos mais tarde. Como comenta Harding, a vida ao ar livre esposada por Thoreau foi um elemento central para a manutenção de sua saúde até que o estágio culminante da doença o alcançasse. No ano de 1837, ele finalmente se diplomou como Bacharel em Artes. Relevante recordarmos que, naquele tempo, o programa de Harvard previa que os alunos formados como bacharéis, caso apresentassem boas condições físicas e aceitassem pagar uma taxa de cinco dólares, poderiam também obter o diploma de Mestre em Artes após passados três anos de sua formatura. Thoreau, porém, recusou-se a participar desse sistema25. Devemos realçar, como bem o faz Harding, que embora nosso autor tenha dito certa vez que Harvard ensinava todos os “ramos” do conhecimento, mas nenhuma das “raízes”, sua formação inicial naquele ambiente foi fundamental para a posterior estruturação de seu pensamento26. Apesar disso, para além dessa impressão geral quanto àquele espaço acadêmico, o professor de retórica Edward Tyrrell Channing (1790–1856) foi lembrado 24 Conforme esclarece Eduardo Vicentini de Medeiros, uma das principais influências dessa obra no pensamento thoreauviano consiste na distinção traçada por Brownson entre “sentimento religioso e religião institucional”, que ecoa as elaborações do pensador francês Benjamin Constant (1767–1830) acerca da religião. Em seus termos, tal diferenciação foi crucial para a proposta de estudo comparativo das religiões empreendida pelos transcendentalistas e pelo próprio Thoreau em A Week (MEDEIROS, Eduardo Vicentini de. Thoreau: Moralidade em primeira pessoa. Pelotas: NEPFIL Online, 2018, p. 88). 25 HARDING, 1965, p. 41, 46, 44 e 50. 26 “When Emerson once boasted that most of the branches of learning were taught at Harvard, Thoreau retorted, ‘Yes, indeed, all the branches and none of the roots’” (ibid., p. 51). 30 pelo escritor de Concord como uma importante influência na construção de sua própria jornada literária27. Pouco tempo depois de concluir sua graduação, Thoreau foi convidado a lecionar no colégio público local, o Center School of Concord. Passadas duas semanas de trabalho, o Diácono Nehemiah Ball, que era um dos membros do comitê pedagógico da escola, percebendo que o novo professor não estava utilizando a punição corporal com os discentes, o impeliu a fazê-lo como parte de seu ofício. Sentindo-se obrigado a tomar aquela postura, ele escolheu alguns alunos e neles bateu com a vara, atitude que chegou a causar espanto nos estudantes, que nunca o tinham visto fazer aquilo. Naquele mesmo dia, profundamente decepcionado consigo mesmo e com o ocorrido, ele pediu demissão. Seus conterrâneos, naturalmente, censuraram a atitude do jovem tutor, que, em meio à depressão econômica, havia deixado um emprego que oferecia uma excelente remuneração por uma razão que eles consideravam banal, tendo em vista que a punição com varas era algo habitual nos ambientes de ensino contemporâneos28. Thoreau, contudo, não se simpatizava com a obediência cega aos costumes. Essa sua conduta, entretanto, teve suas consequências: ainda que, depois do sucedido, nosso autor tenha buscado por outros cargos como professor, ele não conseguiu assumir tal posição em uma escola já estabelecida. Ainda assim, a situação não o impediu de idealizar um espaço educacional constituído por ele próprio. Em junho de 1838, Henry Thoreau abriu uma escola privada na casa de sua família, localizada na Main Street, que, meses depois, foi transferida para o edifício da Concord Academy, em virtude da resignação do tutor que lá trabalhava. John deixou o colégio em que ele trabalhava em Roxbury, Boston, e se juntou ao irmão. Enquanto o primeiro lecionava aulas de língua inglesa e matemática, o último ministrava as disciplinas relativas ao ensino de latim, grego, francês, física, filosofia e história natural. Um dos alunos, vale a pena destacar, declarou certa vez que ele e seus colegas “amavam” John e “respeitavam” Henry (que a eles soava como uma pessoa mais rígida em seu modo individualista de ser). A escola dos irmãos Thoreau conheceu tempos de prosperidade: conta a tradição que houve um momento em que foi necessário providenciar uma lista de espera, graças à grande quantidade de famílias interessadas em matricular seus filhos. Ademais, é fato conhecido que Henry e John também acolheram crianças que não podiam pagar pelas aulas. Tal empreitada viu seu fim em abril de 1841, por 27 RICHARDSON, 1986, p. 13. 28 HARDING, 1965, p. 52-54. 31 conta dos problemas de saúde de John decorrentes da tuberculose que o levou à morte pouco tempo depois29. Os professores não se tornaram adeptos da habitual punição corporal, mas exigiam disciplina de seus colegiais, fazendo-os prometerem o cumprimento de um bom comportamento. Seu sistema educacional previa que os discentes se mantivessem ocupados com tarefas durante todo o tempo de estadia na instituição, o que fez com que alguns tenham tido a lembrança de uma vivência em um espaço quase que militarizado30, característica que não soa estranha ao leitor de Thoreau, haja vista que o autor amiúde expressou sua admiração pelo condicionamento dos soldados. Seu método pedagógico, frente aos demais naquele contexto, era certamente progressista. A escola dos Thoreau “foi uma das primeiras”, comenta Harding, “a operar com o princípio de ‘aprender fazendo’ e a dedicar uma parte considerável de seu programa a viagens de campo”. Assim, todos os aprendizes eram convocados a se aventurarem em caminhadas pelos campos nativos e em passeios de barco pelos lagos e rios locais ao menos uma vez a cada semana, excursões programadas com o objetivo de colocar em prática os conhecimentos teóricos da história natural31. Podemos assim supor que Henry Thoreau ensinava aos demais aquilo que ele mesmo buscava realizar. A propósito, há um relato notório dessa época que importa mencionarmos aqui. Certa feita, conta-nos Harding a partir dos relatos de Edward Waldo Emerson (1844–1930), filho de R. W. Emerson, o andarilho concordiano, expressando sua admiração espiritual pelas movimentações enigmáticas da Natureza, após anunciar em classe que “tudo era um milagre”, um de seus alunos céticos perguntou, repleto de sarcasmo, se o fato dele ter matado e dissecado alguns peixes e depois ter jogado suas cabeças ao lixo também poderia ser considerado um milagre. E o mestre se limitou a responder com um seco “sim”, recusando-se a tecer maiores comentários àquela jocosidade32 (mais uma prova de sua seriedade nos tratos interpessoais). 29 ibid., p. 75-76 e 87. O primeiro livro de Thoreau, composto em homenagem à memória de seu irmão, foi inspirado por uma viagem de barco pelos rios Concord e Merrimack que ambos realizaram na primavera de 1839. A fim de marcarem a excursão, eles construíram um barco que foi denominado “Musketaquid” (nome indígena da cidade de Concord na época anterior à colonização), e pintaram seu fundo de verde e suas bordas de azul, denotando a ligação entre a terra e sua coloração verdosa e o céu e sua tonalidade anil (ibid., p. 88). Nos termos de Harding, com a passagem do tempo, essa expedição se tornou “a tangible symbol of Thoreau’s love and admiration for his lost brother” (ibid., p. 93). 30 Aliás, conforme a recordação do político George Frisbie Hoar (1826–1904), que teve Henry Thoreau como professor, os alunos viam nele a encarnação do arquétipo do soldado (ibid., p. 87). 31 ibid., p. 80 e 82. No original: “was one of the first [...] to operate on the principle of ‘learning by doing’ and to devote a considerable part of its program to field trips”. 32 ibid., p. 81. 32 Passada essa vivência como docente, nosso autor não se envolveu mais com o meio escolar, não obstante ele tenha sempre nutrido uma afeição particular pelas crianças e sua simplicidade, que frequentemente o acompanhavam em suas caminhadas e em suas excursões pelos rios33. Nos anos seguintes, valendo-se do ensino doméstico, ele chegou a trabalhar como preceptor de crianças, mas não prosseguiu nesse ramo. Fato conhecido é a íntima relação de Thoreau com Ralph Waldo Emerson e sua família, para quem ele também trabalhou, auxiliando nos serviços de consertos gerais da casa e de jardinagem. Há três histórias distintas sobre o estabelecimento do contato entre o peregrino norte-americano e o principal representante do Transcendentalismo na Nova Inglaterra. De acordo com o relato de George Hoar, Thoreau certa vez viajou a pé até Boston para ouvir uma palestra de Emerson, que, sabendo disso, convidou o jovem para ouvir uma preleção em sua residência. Segundo uma outra versão, o próprio Emerson teria alegado que sua aproximação com o autor de Walden se deu após sua cunhada, Mrs. Brown, que alugava um quarto na pensão de Cynthia Thoreau, expor a ele sua impressão positiva sobre os poemas de Henry Thoreau. Uma outra variante sobre o começo da relação entre os dois conta que, na verdade, foram as irmãs de Henry, Sophia e Helen, que comentaram com Mrs. Brown que algumas das ideias de seu irmão soavam similares às teses emersonianas. Embora não se saiba ao certo quando os dois pensadores se conheceram, é seguro dizer que sua amizade começou a florescer no outono de 183734. A partir daí, Thoreau se associou ao recém- constituído movimento Transcendentalista, um dos indicativos do estreitamento de laços entre nosso autor e aquele que se mostrou como um importante incentivador da inserção do escritor concordiano no cenário intelectual de seu contexto espaço-temporal. Outrossim, a participação de Thoreau no Concord Lyceum foi decisiva para a construção de sua carreira. O Concord Lyceum, movimento intelectual estabelecido em 1829, foi consolidado enquanto uma importante investida educacional que proporcionava à população discussões acerca das temáticas eruditas da época, abrangendo desde conteúdos sobre história e ciência até debates no campo da moralidade. Nesse ambiente, que reunia os pensadores proeminentes da cidade e das redondezas, o jovem Thoreau, então recém-graduado, descobriu um meio para a publicização de suas próprias ideias. Ainda que não se saiba ao certo em que momento ele se familiarizou com as palestras do Lyceum, é possível que ele as tenha frequentado desde sua juventude, considerando-se que também crianças e jovens circulavam por esse espaço de aprendizado. Certamente, as preleções ali realizadas sobre os tópicos 33 ibid., p. 322-323. 34 ibid., p. 60-61. 33 desenvolvidos nas áreas da geologia, da botânica e dos estudos da ornitologia se mostraram cruciais no despertar do Thoreau naturalista. À repercussão positiva de seus discursos, conquanto bastante críticos aos modos de vida de seus contemporâneos, sucedeu sua eleição, em outubro de 1838, como secretário e curador do Lyceum. Esta última posição o colocou à frente da organização, considerando-se que era a responsabilidade do curador determinar e convidar os palestrantes escolhidos para divulgarem suas pesquisas e conhecimentos. Embora não fosse costume de o Concord Lyceum dar espaço para conferências em prol da revogação da escravidão, assunto controverso entre os habitantes do município, Thoreau, um dos porta- vozes contemporâneos do abolicionismo, valendo-se de sua posição de liderança, solicitou, em determinada ocasião, a presença do advogado Wendell Phillips (1811–1884), abolicionista de Boston cujas colocações causaram espanto em autoridades locais que participaram do evento35. A atividade de nosso autor como palestrante se tornou inseparável de seu crescimento como escritor, já que muitos de seus discursos pronunciados publicamente formaram a base de suas composições literárias. Em março de 1845, por exemplo, ele apresentou no Concord Lyceum a preleção “Concord River”, posteriormente transformada na seção introdutória de seu primeiro livro, A Week on the Concord and Merrimack Rivers. Suas aparições públicas não se limitaram ao contexto de sua cidade natal. Já em novembro de 1848, a convite de Nathaniel Hawthorne (1804–1864), ele pronunciou, no Salem Lyceum, o discurso “Student Life in New England, Its Economy”, que veio a se tornar o primeiro capítulo de Walden36. Para além de seus dois livros, produções mais conhecidas do público em geral, H. D. Thoreau publicou diversos ensaios ao longo de sua jornada sapiencial, dentre os quais: Natural History of Massachusetts (1842), A Walk to Wachusett (1843), A Winter Walk (1843), Ktaadn and the Maine Woods (1848), Resistance to Civil Government (1849), A Yankee in Canada (1853), Slavery in Massachusetts (1854), A Plea for Captain John Brown (1859) e The Succession of Forest Trees (1860). O escritor, que pouco se moveu para longe de Concord, faleceu em sua casa materna em 6 de maio de 1862, e foi enterrado em sua terra natal, no Sleepy Hollow Cemetery, onde também se encontram as lápides de Amos Bronson Alcott (1799–1888), Nathaniel Hawthorne e R. W. Emerson, todos eles pensadores notáveis da cultura norte-americana oitocentista. Pouco antes de sua morte, alguns de seus conhecidos adeptos do cristianismo exprimiram sua curiosidade quanto aos sentimentos religiosos de Henry diante de sua partida deste mundo. Um 35 ibid., p. 29, 72 e 175. 36 ibid., p. 176 e 236. 34 de seus amigos, quando lhe perguntou qual era sua impressão pessoal sobre Cristo, obteve como resposta a declaração de que uma nevasca lhe soava pessoalmente mais significativa. Já sua tia Louisa Dunbar (1785–1866), irmã de sua mãe, questionou seu sobrinho se ele havia se reconciliado com Deus, e Thoreau assim retrucou: “Eu não sabia que a gente já tinha brigado, tia”. “Você parece tão perto da beira do rio sombrio”, disse-lhe, por sua vez, o ministro e abolicionista Parker Pillsbury (1809–1898), “que chego a me perguntar como a margem oposta aparece para você”. Ao que ele replicou: “Um mundo de cada vez”37. As últimas palavras pronunciadas por Henry David Thoreau, expressões de seu amor pela Natureza e pelo modo de vida dos povos originários (cujas relíquias, como pontas de flechas, por exemplo, reiteradamente se apresentavam a ele no decurso de suas andanças), foram “alce” e “índio”38. 37 ibid., p. 464-465. No original: “I did not know we had ever quarrelled, Aunt”; “You seem so near the brink of the dark river that I almost wonder how the opposite shore may appear to you”; “One world at a time”. 38 ibid., p. 466. No original: “Moose”; “Indian”. 35 1.2. O Transcendentalismo e a correspondência simbólica entre Natureza e espírito Estamos acostumados a dizer que o bom senso desta era pertenceu a um profeta do passado — como se o tempo lhe desse alguma vantagem. Mas não é assim: não vejo senão que o Gênio deve ter sempre o mesmo começo [...]. Todo o passado está aqui, presente para ser experimentado; deixe-o aprovar a si mesmo, se for capaz. (Henry David Thoreau, Journals)1. Em 8 de setembro de 1836, um dia antes da publicação do ensaio Nature, de Ralph Waldo Emerson, alguns ministros unitaristas, insatisfeitos com os rumos empiristas da filosofia de Locke seguidos pela teologia Unitarista em sua explicação dos milagres bíblicos, após terem se retirado da cerimônia de comemoração do bicentenário daquela que veio a se tornar uma importante universidade americana, reuniram-se em um hotel próximo ao Harvard College para discutir suas próprias ideias. Entre eles, encontravam-se Frederic Henry Hedge (1805–1890), ministro em Bangor, no Maine, e idealizador das primeiras reuniões, George Ripley (1802– 1880), sobrinho de Ralph Waldo Emerson e ministro em Boston, George Putnam (1807–1878), ministro em Roxbury, e o próprio Emerson2, que, embora também tivesse uma profunda ligação com o ministério, havia renunciado à sua posição eclesiástica alguns anos antes3. Inicialmente denominado “Hedge’s Club”, em referência a Henry Hedge, aquele que passou a ser conhecido como “Transcendental Club” agrupava intelectuais com interesses múltiplos, que estiveram envolvidos em debates teológicos, filosóficos, literários, bem como em discussões voltadas à reforma social (que abarcavam desde inventivas voltadas para a educação infantil e superior até ações voltadas para o abolicionismo e para o estabelecimento dos direitos civis e sociais das mulheres). Ao longo de seu processo de consolidação, as reuniões do Clube Transcendentalista contavam, dentre outros, com o ministro e reformador Theodore Parker (1810–1860), a escritora feminista Margaret Fuller (1810–1850), o professor e pedagogo Amos Bronson Alcott, e a educadora Elizabeth Palmer Peabody (1804–1894). Percebe-se, portanto, que o multifacetado movimento Transcendentalista se expandiu por territórios variados da vida cultural contemporânea. 1 Writings, VII, p. 93. 5 de novembro de 1839. No original: “We are accustomed to say that the common sense of this age belonged to the seer of the last, — as if time gave him any vantage ground. But not so: I see not but Genius must ever take an equal start [...]. All the past is here present to be tried; let it approve itself if it can”. 2 FRANK, Albert J. von. Religion. In: PETRULIONIS, Sandra Harbert; WALLS, Laura Dassow; MYERSON, Joel. The Oxford Handbook of Transcendentalism. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 117-135, à página 122. 3 RICHARDSON Jr., Robert D. Emerson: The Mind on Fire. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 1995, p. 4. 36 As questões sociais eram extremamente relevantes para todos esses pensadores, e alguns deles chegaram a estruturar comunidades utópicas — “Brook Farm”, em Boston, fundada por George Ripley e sua esposa, a feminista Sophia Ripley (1803–1861), e “Fruitlands”, em Harvard, encabeçada pelo abolicionista Charles Lane (1800–1870), Amos Alcott e sua família —, tentativas práticas de aplicação dos princípios transcendentalistas de viver em proximidade com a Natureza que, todavia, foram diluídas em pouquíssimo tempo. Thoreau, por sua vez, autor de Civil Disobedience [Desobediência Civil] (1849), ensaio famoso por inspirar os movimentos políticos de Mahatma Gandhi (1869–1948), na Índia4, e de Martin Luther King Jr. (1929–1968), nos Estados Unidos, acreditava que a mudança social principiava na reforma individual, e não se interessou em se juntar a essas coletividades. Imerso em seu próprio experimento comunitário junto aos habitantes não-humanos das redondezas de Concord, Thoreau, fato pelo qual ele é popularmente mais conhecido, assentou sua morada nas proximidades do Lago Walden, em terreno cujo proprietário era Emerson, e, durante dois anos, fez-se posseiro daquelas terras, consolidando sua própria busca por “uma vida humana completa”5. Como sinaliza Samantha Harvey, o “Transcendentalismo de Boston”, centrado na figura de Ralph Waldo Emerson, possuía importantes paralelos com o “Transcendentalismo de Vermont”. Os intelectuais envolvidos no círculo de Vermont compartilharam com seus antecessores a herança do pensamento de Coleridge, e suas construções se espraiaram nos âmbitos da educação superior moderna e do desenvolvimento da imprensa nacional, bem como na dimensão filosófica do Pragmatismo6. A filosofia pragmatista, como sabemos, contava com William James (1842–1910), cujo pai era um grande amigo de Emerson, como um de seus representantes centrais, e sua obra The Varieties of Religious Experience (1902) tornou-se uma importante referência na área dos estudos científicos da religião, particularmente no ramo que denominamos Psicologia da Religião. 4 Assim declarou Gandhi a respeito da influência dos escritos de Thoreau em suas movimentações políticas em prol da independência da Índia: “I read Walden first in Johannesburg in South Africa in 1906 and his ideas influenced me greatly. I adopted some of them and recommended the study of Thoreau to all my friends who were helping me in the cause of Indian independence. Why, I actually took the name of my movement from Thoreau’s essay, ‘On the Duty of Civil Disobedience,’ written about eighty years ago” (HENDRICK, George. The Influence of Thoreau’s “Civil Disobedience” on Gandhi’s Satyagraha. The New England Quarterly, v. 29, n. 4, p. 462-471, dez. 1956, à página 463). 5 Cf. THOREAU, 2019, p. 312: “Que jovens filósofos e experimentalistas somos nós! Não existe entre meus leitores um único que já tenha vivido uma vida humana completa”. 6 HARVEY, op. cit., p. 2. A autora elucida as influências de Coleridge no Transcendentalismo de Vermont — que teve como um de seus herdeiros o pragmatista John Dewey (1859–1952) — no último capítulo de sua obra, “Coleridge and Vermont Transcendentalism” (p. 141-163). 37 Em meio aos matizes multicoloridos que compunham sua aproximação dos campos variados do conhecimento, seminal para os transcendentalistas era a perspectiva de comunhão com a sacralidade da Natureza, ideia sustentada tanto em termos teológicos/poéticos quanto a partir das mediações das filosofias da natureza europeias. Neste cenário, as reflexões dos pensadores europeus que convencionou-se chamar “românticos” constituíram um eixo capital do Transcendentalismo, particularmente no que diz respeito à ênfase na interioridade, à reverência religiosa pela Natureza e à contraposição frente às instituições existentes7. Essa insurreição intelectual e religiosa tornou-se o veículo primário de divulgação, em terras americanas, da teologia e filosofia europeia pós-kantiana e da literatura do romantismo (como, por exemplo, as obras dos poetas-filósofos Goethe, Friedrich Schlegel, Samuel Taylor Coleridge e William Wordsworth), bem como da poesia persa, da mitologia escandinava e dos textos religiosos budistas e hindus8. Os transcendentalistas9, com seus diferentes propósitos, manifestando o desejo por ruptura com a tradição predominante com vistas à instauração de um novo ideal intelectual, retornavam tanto aos textos e mitologias clássicas quanto às produções literárias modernas a fim de traçar uma rota pedagógica para o florescimento desse modelo inovador de pessoa humana. No panorama do pensamento romântico, a filosofia de Jean Jacques Rousseau (1712– 1778) mostrou-se fundamental. A partir de sua percepção de que a civilização distancia o ser humano de sua condição originária de “bom selvagem”, Rousseau, em sua obra Emílio, ou Da educação (1762), afirmou que, embora o ser humano seja naturalmente bom, “a sociedade deprava e perverte os homens”10. Sob esse ângulo, os povos originários, em sua vida mais harmônica com o universo natural, possuíam uma intuição e uma imaginação mais lapidadas, além de compartilharem princípios básicos como a igualdade e a liberdade. De modo geral, os românticos estavam de acordo com as proposições rousseaunianas, e se apropriaram da compreensão segundo a qual as paisagens mais próximas da Natureza despertam as capacidades 7 PACKER, Barbara L. Romanticism. In: PETRULIONIS, Sandra Harbert; WALLS, Laura Dassow; MYERSON, Joel. The Oxford Handbook of Transcendentalism. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 84-101, à página 84. 8 PETRULIONIS, Sandra Harbert; WALLS, Laura Dassow; MYERSON, Joel. Introduction. In: ______. The Oxford Handbook of Transcendentalism. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. xxiii-xxxiii, à página xxiii. 9 Essa nomenclatura, a propósito, foi inicialmente atribuída a esses pensadores em tom de ridicularização: “The name ‘transcendentalism’ was initially bestowed by the movement’s critics to ridicule that diverse group of philosophical idealists who held that certain beliefs and values transcended mere sensory experience” (ibid., p. xxiv). 10 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio. Volume II. Tradução de Pilar Delvaulx. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1990, p. 38. 38 perceptivas do ser humano de forma mais proeminente, especialmente a imaginação. Embora não saibamos se Thoreau leu Rousseau, é nítida a semelhança entre ambos. Quando, em Walden, nosso autor declara que seu objetivo, ao ir para as matas, era descobrir, antes que a morte batesse à sua porta, qual é o fim último da vida, soa semelhante a Rousseau em suas perambulações solitárias pelas matas, conforme sua declaração em Os Devaneios do Caminhante Solitário (1782): “O que fiz eu cá embaixo? Fui feito para viver e estou morrendo sem ter vivido”. “Consagro meus últimos dias a estudar a mim mesmo [...]”11. Após Rousseau, Immanuel Kant (1724–1804) buscou conciliar a dicotomia entre racionalismo e empirismo que predominava no contexto intelectual da época. Enquanto filósofos ingleses como John Locke (1632–1704) e David Hume (1711–1776) defendiam que o conhecimento nos é proporcionado somente pela experiência sensível, Kant argumentava que a mente humana é dotada de estruturas inatas, “categorias transcendentais” que tornam inteligíveis as percepções oriundas da experiência sensível e que são apreendidas pelo entendimento. O filósofo alemão, como é sabido, apresentou-nos a “revolução copernicana” da filosofia: se na tradição clássica e moderna o conhecimento começa com os objetos do mundo, na filosofia kantiana o conhecimento tem início no indivíduo. Em sua obra A Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), buscando fundamentar o princípio da moralidade, ele estabelece que nossas ações morais devem ser guiadas pelos ditames supremos do “imperativo categórico”. Esta lei da razão pura prevê que aquilo que determina nossas realizações morais deve ser necessariamente de caráter universal. Isso significa que devemos obedecer ao imperativo categórico independentemente das máximas subjetivas, que condicionam nosso agir moral ao conteúdo da ação (como a pressuposição de ganhos que possamos vir a ter com o exercício da moralidade). Assim, em obediência à forma da lei moral, devemos agir de modo que o princípio que norteia nossa ação seja formalmente válido para todos os demais seres dotados de razão: “Jamais devo agir senão de tal maneira que eu possa igualmente determinar que a minha máxima se torne uma lei universal” (4:402)12. Portanto, é a razão pura, cuja dinâmica prescinde da experiência e de convicções (frutos de circunstancialidades espaço- temporais), que determina o critério aplicável a todos os demais humanos. Fazendo concordar 11 ROUSSEAU, Jean-Jacques. The Reveries of the Solitary Walker, Botanical Writings, and Letter to Franquières. Editado por Christopher Kelly. Tradução e comentários de Charles E. Butterworth, Alexandra Cook e Terence E. Marshall. Hanover/London: Dartmouth College, University Press of New England, 2000, p. 10-11 e 6. Na tradução consultada: “What have I done here-below? I was made to live, and I am dying without having lived”; “I consecrate my last days to studying myself [...]”. 12 JOHNSON, Robert; CURETON, Adam. “Kant’s Moral Philosophy”. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2022. Edward N. Zalta e Uri Nodelman (eds.). Na tradução consultada: “I ought never to act except in such a way that I could also will that my maxim should become a universal law”. 39 a vontade ao imperativo categórico, realiza-se a ação moralmente correta. É isso que garante que todos os seres humanos, que por sua própria constituição inata têm acesso ao imperativo categórico da razão que determina a lei universal moralmente correta, sejam capazes de tornarem-se livres e responsáveis por suas ações. Para Kant, é a ideia de Deus, em última instância, que fundamenta a moralidade. Embora em seu panorama da crítica à razão pura ele postule a impossibilidade de constituir-se um conhecimento metafísico acerca da imortalidade da alma e da existência de Deus, são essas mesmas ideias que respaldam os princípios de sua ética deontológica. Na Crítica da Razão Prática (1788), é o postulado da existência de Deus e da alma (que se pressupõe estar, por sua própria natureza, imersa em um processo infindo de caminhada rumo ao sumo bem) a condição de possibilidade da lei moral e da liberdade do ser humano, que concilia ou não sua vontade aos ditames do imperativo categórico. Com isso Kant quer dizer que é a ideia racional de Deus a condição propriamente dita da existência de uma lei moral universal que nos garante e exige de nós o exercício da liberdade e da responsabilidade. A lei moral, no panorama kantiano, cujo firmamento é a Providência Divina, encaminha o ser humano para o sumo bem, para a virtude: o posicionamento ético conduzido pelo imperativo categórico, essencialmente universal13. Para além do contexto da filosofia transcendental kantiana, que não fazia parte do currículo de Harvard no período em que Emerson e Thoreau se formaram14, a tese segundo a qual o conhecimento não é obtido apenas pela sensibilidade foi adquirida pelos transcendentalistas por intermédio de outras fontes. A partir do estudo de Daniel Walker Howe sobre o legado unitarista nas abordagens da filosofia moral ensinada em Harvard, Eduardo Vicentini observa, oportunamente, que embora o Transcendentalismo seja muitas vezes remetido à filosofia kantiana, podemos ler a ênfase desses pensadores na consciência individual em paralelo com (i) o Platonismo de Cambridge — conforme expresso por Ralph Cudworth (1617–1688), Henry More (1614–1687) e Benjamin Whichcote (1609–1683) —, influências compartilhadas entre os unitaristas e os transcendentalistas, e com (ii) a filosofia escocesa do senso comum — representada, sobretudo, por Thomas Reid (1710–1796), Dugald Stewart (1753–1828) e, posteriormente, pelo britânico Thomas Brown (1778–1820)15. Os filósofos escoceses do senso comum, indo na contracorrente das teorias empiristas de Locke e de Hume, defendiam a existência de certos princípios mentais compartilhados por 13 ibidem. 14 TODD, Edgeley Woodman. Philosophical Ideas at Harvard College, 1817-1837. The New England Quarterly, v. 16, n. 1, p. 63-90, mar. 1943, à página 66. 15 MEDEIROS, op. cit., p. 41. 40 todos os seres humanos. Conforme pontua Vicentini, o representante primordial dessa linha de pensamento, Dugald Stewart, autor de Elements of the Philosophy of the Human Mind (1792, 1814, 1827), foi central para Thoreau no que diz respeito à sua formulação da presença inata no ser humano de um senso moral a partir do qual ele se posiciona e se expressa no mundo16. Acerca dessa temática, diz-nos Edgeley Todd que a disposição curricular de Harvard à época de Emerson e de Thoreau no campo da filosofia da mente contemplava duas correntes filosóficas contrastantes: (i) o empirismo de John Locke, cuja obra An Essay Concerning Human Understanding (1689) esteve presente nos catálogos bibliográficos entre 1818 e 1837, período que abrange a formatura de Emerson e de Thoreau, e (ii) o realismo natural da filosofia escocesa do senso comum, representado pelas obras Elements of Philosophy of the Human Mind, de Dugald Stewart, e Lectures on the Philosophy of Human Mind (1820), de Thomas Brown17. Thomas Reid, considerado o fundador dessa corrente filosófica, pressupunha uma epistemologia do “senso comum”, termo que se refere a um arcabouço inato de julgamentos intuitivos que todos os seres humanos possuem, independentemente de seu contexto espaço- temporal. Em Essays on the Intellectual Powers of Man (1785), ele emprega o termo “senso comum” para designar aquelas que ele identifica como “noções comuns, [ou] verdades autoevidentes” (6.4, 452). De acordo com Reid, esse senso comum universalmente compartilhado é “necessário a todos os homens para sua existência e preservação e, portanto, é incondicionalmente dado a todos os homens pelo Autor da Natureza” (4.6, 412)18. No que diz respeito à moralidade, Reid afirma que o ser humano detém liberdade moral em decorrência de três princípios. O primeiro indica que podemos realizar nossas ações no mundo porque somos naturalmente dotados de “poder”. Deliberamos, buscando julgar determinada situação, porque acreditamos possuir poder para tal. Caso isso não fosse pressuposto enquanto princípio, não haveria razão em deliberar. O segundo argumento afirma que nossas ações morais possuem sentido pois supomos que não apenas nós próprios, mas todas as pessoas são dotadas de um poder inato sobre sua própria conduta. Por fim, o último princípio prevê que só executamos ações previamente deliberadas se pressupomos a dotação de poder sobre nossas realizações. Reid traça aqui um paralelo com o “argumento do design”: sendo o mundo natural tão complexo 16 ibid., p. 64. 17 TODD, op. cit., p. 64-67. 18 NICHOLS, Ryan; YAFFE, Gideon. “Thomas Reid”. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2021. Edward N. Zalta (ed.). No original: “common notions, [or] self-evident truths”; “necessary to all men for their being and preservation, and therefore it is unconditionally given to all men by the Author of Nature”. 41 em suas dinâmicas, deve existir um ser supremo que o planejou e o criou conforme sua deliberação. Assim, também as ações humanas, em virtude da complexidade de sua organização, são remetidas a um criador que as concebeu e executou. Sua conclusão, enfim, é que todo ser humano, por sua própria natureza, é dotado de poder sobre sua ação moral19. Não sendo aqui nosso objetivo o aprofundamento nessa temática, mencionamos sumariamente essas influências filosóficas no sentido de apontar que, quando Thoreau preconiza a capacidade individual de acessar as leis morais que conduzem a pessoa ao aprimoramento de si própria para além dos ditames da tradição, ele está apresentando sua formulação singular de correntes filosóficas divulgadas no ambiente acadêmico de Harvard, e repercutidas pelos transcendentalistas de modo geral. No entanto, ainda que tenha como pano de fundo o mote transcendentalista, cuja contextualização idealista é inegável, veremos que o grande diferencial do pensador norte-americano era a defesa poético-literária da ideia de que também a sensibilidade nos revela a ideia de Deus. Para Thoreau, os sentidos, adequadamente compreendidos e lapidados a partir da adoção de uma ótica de maior proximidade com a Natureza, tornam-se uma fecunda via de acesso à lei moral e à virtude, indissociáveis do pressuposto da existência de Deus (ou, para Thoreau, dos deuses). Como veremos ao longo deste trabalho, o autor de Concord buscou traçar sua própria proposta (uma proposta poética) de conciliação entre as predisposições inatas da mente e as percepções da sensibilidade, e devemos ter em vista, logo de antemão, que estas últimas ocupam um papel privilegiado no pensamento thoreauviano. Embora tenha sido um herdeiro da filosofia do senso comum, seu interesse primordial era a busca daquele que em A Week ele denomina “senso incomum”. Para nosso autor, o emprego “incomum” da sensibilidade (i.e., o uso dos sentidos para além do emprego ordinário) é o viático para a sabedoria, para a descoberta da realidade das coisas para além de suas aparências fenomênicas: Percebo no curso comum de meus pensamentos uma sequência natural e ininterrupta, cada uma implicando a próxima, ou, se a interrupção ocorre, é ocasionada por um novo objeto sendo apresentado aos meus sentidos. Mas uma transição íngreme, repentina e por esses meios inexplicáveis é aquela de uma visão comparativamente estreita e parcial, o que é chamado de senso comum, para uma visão infinitamente expandida e libertadora, de ver as coisas como os homens as descrevem, para vê-las como os homens não podem descrevê-las. Isso implica um senso que não é comum, mas raro na experiência do homem mais sábio, que é sensível ou senciente para além do comum. [...]. A mente conhece uma distância e um espaço dos quais todas essas somas combinadas não formam uma unidade de medida — o intervalo entre aquilo que aparece e aquilo que é. Eu sei que existem muitas estrelas, eu sei que elas 19 ibidem. 42 estão longe o suficiente, brilhantes o suficiente, firmes o suficiente em suas órbitas — mas o que valem todas elas? São mais terrenos baldios no Oeste — território estelar —, para se tornarem Estados escravistas, talvez, se os colonizarmos. [...]. O que é chamado de senso comum é excelente em seu departamento, e tão inestimável quanto a virtude da conformidade no exército e na marinha — pois deve haver subordinação —, mas o senso incomum, aquele sentido que é comum apenas aos mais sábios, é tão mais excelente quanto mais raro20. Antes de adentrarmos em uma discussão mais aprofundada acerca das particularidades de Thoreau e suas concepções espirituais, detenhamos por ora nossa atenção a alguns traços gerais do movimento transcendentalista. Em seu ensaio The Transcendentalist, publicado em 1842, fruto da tentativa de expor os pressupostos daquela que foi então denominada pelos conterrâneos de “Nova Escola”, Emerson definiu o movimento transcendentalista a partir do cenário dos filósofos idealistas, bem como da filosofia transcendental kantiana. “Aquilo que é popularmente denominado entre nós Transcendentalismo é Idealismo”, declara ele; “Idealismo como aparece em 1841”. Em seus termos, o idealista se funda na consciência, pois “percebe que os sentidos não são o decisivo”, e a partir dessa ótica afirma sua crença “no poder do Pensamento e da Vontade, na inspiração, no milagre e na cultura individual”. Em oposição ao materialista, que tem por objetivo último os dados empíricos fornecidos unicamente pelos sentidos, “[o] transcendentalista adota toda a conexão da doutrina espiritual. Ele acredita no milagre, na perpétua abertura da mente humana para um novo influxo de luz e poder; ele acredita na inspiração e no êxtase”21. A partir dessa atmosfera, os intelectuais românticos dos Estados 20 Writings, I, p. 412-413, grifos do autor. No original: “I perceive in the common train of my thoughts a natural and uninterrupted sequence, each implying the next, or, if interruption occurs, it is occasioned by a new object being presented to my senses. But a steep, and sudden, and by these means unaccountable transition is that from a comparatively narrow and partial, what is called common-sense view of things, to an infinitely expanded and liberating one, from seeing things as men describe them, to seeing them as men cannot describe them. This implies a sense which is not common, but rare in the wisest man’s experience; which is sensible or sentient of more than common. [...]. The mind knows a distance and a space of which all those sums combined do not make a unit of measure, — the interval between that which appears and that which is. I know that there are many stars, I know that they are far enough off, bright enough, steady enough in their orbits, — but what are they all worth? They are more waste land in the West, — star territory, — to be made slave States, perchance, if we colonize them. [...]. What is called common sense is excellent in its department, and as invaluable as the virtue of conformity in the army and navy, — for there must be subordination, — but uncommon sense, that sense which is common only to the wisest, is as much more excellent as it is more rare”. 21 EMERSON, Ralph Waldo. The Transcendentalist. In: ______. Nature addresses and lectures. The complete works of Ralph Waldo Emerson, with a biographical introduction and notes by Edward Waldo Emerson, 12v. Boston/New York: Houghton, and Mifflin Company, 1903-1904, v. 1, p. 327-359, às páginas 329, 330 e 335. Doravante citado como EMERSON, The Transcendentalist. No original: “What is popularly called Transcendentalism among us, is Idealism; Idealism as it appears in 1841”; “perceive that the senses are not final”; “on the power of Thought and of Will, on inspiration, on miracle, on 43 Unidos do século XIX comungavam, em linhas gerais, com a convicção acerca da transcendentalidade dos princípios da razão e da consciência humana, e, o que daí decorre, na predisposição inata do ser humano para a busca das leis que regem seu pensamento e seu ser no mundo. Movido pelo espírito das doutrinas inatistas da moralidade, Emerson, remetendo-se também a sistemas filosóficos gregos que pressupunham a inserção de cada ser humano particular na lei suprema que rege o universo, em seu célebre ensaio Self-Reliance (1841), principia com a afirmação do poeta estoico Aulo Pérsio Flaco (34–62): Ne te quaesiveris extra (“Não busque fora de si próprio”)22. Assim como foram marcados pelos quadros idealistas, os transcendentalistas foram igualmente moldados nos panoramas românticos. No contexto do Transcendentalismo norte- americano, encontramos os pressupostos basilares do romantismo inglês conforme tecidos por Wordsworth em seu Prefácio às Baladas Líricas (1800): (i) a poesia como viático do aprimoramento moral; (ii) o rompimento com as tradições institucionais; (iii) a Natureza (em oposição à civilização) como via de encontro com o espírito e suas faculdades superiores; (iv) a ênfase na imaginação, na experiência subjetiva, no sentimento individual e na beleza sublime do mundo natural; e (v) a conjugação entre a linguagem poética e a linguagem científica. Para o patrono do movimento romântico na Inglaterra, que faz corresponder a Natureza e o espírito humano, o verdadeiro poeta “considera o homem e a natureza essencialmente adaptados um ao outro, e a mente do homem, o espelho natural das propriedades mais belas e atraentes da natureza”, de modo tal que “sintoniza-se com o conjunto da natureza, com afetos afins àqueles que, mediante labor e decurso do tempo, o homem de ciência cultiva em si próprio”23. Emerson, também nesta linha, afirmou que, embora ela própria geralmente não reconheça, a ciência possui um grande débito com a imaginação. Goethe (1749–1832), exemplifica o filósofo de Boston, pensava que um bom naturalista não pode dispensar a faculdade imaginativa24. individual culture”; “The Transcendentalist adopts the whole connection of spiritual doctrine. He believes in miracle, in the perpetual openness of the human mind to new influx of light and power; he believes in inspiration, and in ecstasy”. 22 EMERSON, Ralph Waldo. Self-Reliance. In: ______. Essays: First Series. The Complete Works of Ralph Waldo Emerson, with a biographical introduction and notes by Edward Waldo Emerson, 12v. Boston/New York: Houghton, and Mifflin Company, 1903-1904, v. 2, p. 43-90, à página 43. Doravante citado como EMERSON, Self-Reliance. 23 WORDSWORTH, William. Prefácio [à segunda edição das Baladas Líricas]. In: WORDSWORTH; HAZLITT; SHELLEY; STUART MILL. Poéticas Românticas Inglesas. Organização, tradução, apresentação e notas de Roberto Acízelo de Souza. São Paulo: Filocalia, 2017, p. 29-63, às páginas 43- 44. 24 EMERSON, Ralph Waldo. Poetry and Imagination. In: ______. Letters and Social Aims. The Complete Works of Ralph Waldo Emerson, with a biographical introduction and notes by Edward Waldo Emerson, 12v. Boston/New York: Houghton, and Mifflin Company, 1903-1904, v. 8, p. 1-75, à página 10. Doravante citado como EMERSON, Poetry and Imagination. 44 A atenção às visões e aos sons propiciados pela Natureza, diz-nos Wordsworth em The Prelude: Or, Growth of a Poet’s Mind (1850)25, dá-nos o poder de contatar a “linguagem espectral da terra ancestral”, linguagem que se comunica conosco por meio dos fluxos naturais: [...] e eu ficaria, Sob alguma rocha, ouvindo os sons que compõem A linguagem espectral da terra ancestral, Ou que têm sua turva morada em ventos distantes. Assim eu bebi do poder visionário (II. 326-330)26. Outrossim, é especialmente nítida no romantismo norte-americano a reverberação do pensamento de Coleridge, que já havia escrito, em Aids to Reflection in the Formation of a Manly Character, On the Several Grounds of Prudence, Morality, and Religion (1825)27, importante obra para os transcendentalistas, que a “Natureza, tal qual um espírito individual ou alma companheira, parece pensar e manter uma comunhão conosco”28. Buscando reunir as verdades da história natural às verdades do espírito, um anseio que foi também incorporado por Thoreau, Coleridge, logo no início de Hints Towards the Formation of a More Comprehensive Theory of Life (1848), ao detalhar sua observação do museu de história natural de John Hunter29, assim declara: 25 Segundo McSweeney, que destaca a passagem aqui citada, o poeta inglês destaca o ver e o ouvir, os sentidos que mais se adequam à memória de eventos distantes, bem como à evocação da transcendência: “In the Prelude, the sights and sounds that strike most deeply are often those at the perceptual limit and thus able of themselves to evoke feelings of sublimity and transcendence” (MCSWEENEY, Kerry. The Language of the Senses: Sensory-Perceptual Dynamics in Wordsworth, Coleridge, Thoreau, Whitman, and Dickinson. Liverpool: Liverpool University Press, 1998, p. 54). 26 WORDSWORTH, William. The Prelude: Or, Growth of a Poet’s Mind (Text of 1805). Edição, tradução e notas de Ernest de Selincourt. Oxford: Oxford University Press, 1970, p. 29. No original: “[...] and I would stand, / Beneath some rock, listening to sounds that are / The ghostly language of the ancient earth, / Or make their dim abode in distant winds. / Thence did I drink the visionary power”. 27 Thoreau teve contato com Aids to Reflection e Hints Towards the Formation of a More Comprehensive Theory of Life a partir da biblioteca pessoal de Alcott. Já a obra The Statesman’s Manual Thoreau conheceu por intermédio de Emerson (SATTELMEYER, Robert. Thoreau’s Reading: A Study in Intellectual History with Bibliographical Catalogue. Princeton/New Jersey: Princeton University Press, 1988, p. 155-156). 28 HARVEY, Samantha C.; JOHNSON, Rochelle L. Coleridge, Thoreau, and the Transatlantic “Riddle of the World”. In: CASE, Kristen; VAN ANGLEN, Kevin P. (eds.). Thoreau at Two Hundred: Essays and Reassessments. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, p. 154-169, à página 154. No original: “Nature, like an individual spirit or fellow soul, seems to think and hold commune with us”. 29 O cirurgião inglês John Hunter (1728–1793) foi um dos pioneiros na defesa da investigação empírica e da experimentação científica no começo da modernidade, bem como uma figura relevante no estabelecimento da anatomia patológica em sua terra, tendo legado importantes contribuições aos estudos contemporâneos relativos à cirurgia médica. 45 através deste augusto templo [...], percebemos, a cada passo, a orientação, quase dissemos, a inspiração, daquelas ideias profundas concernentes à Vida, que se nos tornam aparentes, realmente, por meio de suas obras escritas, mas que ele tem aqui apresentado a nós em uma linguagem mais perfeita do que aquela das palavras — a linguagem do próprio Deus, tal como proferida pela Natureza30. Frente ao descontentamento dos transcendentalistas perante as conexões da teologia unitarista com o empirismo de Locke, as ideias de Coleridge, cujas obras haviam sido editadas na Nova Inglaterra por James Marsh (1794–1842), o principal representante do Transcendentalismo de Vermont, propiciaram, de acordo com Harvey, “novas interpretações de como a tríade romântica espírito, natureza e humanidade estava inter-relacionada”. Como indica a pesquisadora, o pensamento do romântico inglês, em suas convergências com o platonismo/neoplatonismo, o idealismo alemão e suas propostas de uma Naturphilosophie, bem como com a teologia cristã, que aparecia em discussão junto ao recente criticismo bíblico, ofereceu aos intelectuais norte-americanos férteis perspectivas para sua tentativa de correlação entre Natureza e espiritualidade31, imanência e transcendência. Neste cenário, o movimento romântico emerge enquanto uma força que se movimenta na contracorrente da dessacralização da Natureza e da desvalorização do mundo imanente, e que articula a ousada proposta de um resgate da sacralidade do mundo natural pela via da poesia e da estética. A Natureza profere uma linguagem divina, e cabe ao ser humano desvendar, na medida de suas capacidades, as conexões existentes entre ele próprio e a totalidade cósmica. Aproximando-nos de suas dinâmicas e nelas buscando mensagens não apenas relativas à finitude, mas também à infinitude e à vontade de eternidade, adentramos mais profundamente o sentido fundamental de todas as coisas. A proposta de reconciliação entre imanência e transcendência, exterioridade e interioridade, Natureza e espírito, como sabemos, já havia sido apresentada pelos poetas e filósofos inseridos no cenário do idealismo alemão. “Quem possui um sentimento da natureza verdadeiro e constante frui da Natureza estudando-a”, escreve Novalis (1772–1801) em Os Discípulos em Saїs (1802). “Quão feliz é esse filho, esse favorito da Natureza, a quem ela 30 COLERIDGE, Samuel Taylor. Hints Towards the Formation of a More Comprehensive Theory of Life. Editado por Seth B. Watson. Philadelphia: Lea and Blanchard, 1848, p. 2, grifos acrescentados. No original: “through this august temple [...], we perceive at every step the guidance, we had almost said, the inspiration, of those profound ideas concerning Life, which dawn upon us, indeed, through his written works, but which he has here presented to us in a more perfect language than that of words — the language of God himself, as uttered by Nature”. 31 HARVEY, op. cit., p. 25. No original: “new interpretations of how the Romantic triad of spirit, nature and humanity were interrelated”. 46 permite que a contemple, em sua dualidade, como potência de fecundação e geração, e em sua unidade, como um hímen infinito e eterno”32. Friedrich Schiller (1759–1805), por sua vez, em seu célebre poema Os Deuses da Grécia (1788), deplora a expulsão dos deuses da Natureza operada pela civilização cristã (o “vento do Norte”) e pela era industrial: Quando o véu mágico da poesia Flutuava ainda cheio de graça ao redor da verdade, Através da criação escorria a plenitude da vida E o que jamais provará do sentimento, provava então do sentimento. Para abraçá-la no seio do amor, Emprestava-se à Natureza uma elevada nobreza! Tudo indicava aos olhares iniciados, Tudo indicava a graça de um deus (II). [...]. Todas as flores foram arrebatadas Pelo terrível vento do Norte. Para enriquecer apenas um entre todos, Esse mundo dos deuses devia perecer (XIII). [...]. Sim, retornaram a suas moradas, e tudo que era belo, Tudo que era nobre, levaram consigo, Todas as cores, todos os tons vivos, E nos restou apenas a palavra destituída de alma (XVI)33. Essa associação apontada por Schiller entre industrialização, declínio do paganismo em favor de determinado modo de cristianismo e desencantamento da Natureza foi também esposada por Thoreau, como veremos ao longo de nossas reflexões. Neste panorama, devemos ter em conta que, para além das vias relativas à reforma educativa e à composição literária e filosófica, os transcendentalistas norte-americanos estiveram imbuídos por preocupações de caráter teológico e religioso, as quais constituíram fundações determinantes de suas expressões intelectuais. Sob esse prisma, Perry Miller observou, justamente, que “o movimento Transcendentalista é mais precisamente definido como uma demonstração religiosa”. Tanto para Emerson quanto para Thoreau, o que é válido para os transcendentalistas de modo geral, “a adoração permaneceu sendo o motivo dominante”34. Abraçando essa visão de Miller segundo 32 HADOT, Pierre. O Véu de Ísis: Ensaio sobre a história da ideia de natureza. Tradução de Mariana Sérvulo. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 296. 33 ibid., p. 104-107. 34 MILLER, Perry. The Transcendentalists: An Anthology. Cambridge: Harvard University Press, 1950, p. 8 e 9. No original: “the Transcendental movement is most accurately to be defined as a religious demonstration”; “worship remained the controlling motive”. 47 a qual os ares transcendentalistas, ainda que tenham alcançado campos mais amplos, partiram de uma atmosfera religiosa, Kevin Van Anglen afirma que o Transcendentalismo foi, sobretudo, “uma teologia, uma espiritualidade, e uma reforma religiosa”, cujas sendas remetem a diversos caminhos soteriológicos: o Unitarismo de Boston, as religiões asiáticas, o Swedenborgianismo, o neoplatonismo e a ambientação religiosa e sociocultural da América do séc. XIX35. Similarmente, David Robinson pondera que o transcendentalismo “estava fundamentado na experiência religiosa; compreendia o cosmos como uma unidade holística; ensinava a reverência pelo mundo natural; e afirmava a capacidade humana para a ação correta”36. Inaugurando, na aurora da modernidade nos Estados Unidos, o estudo comparado dos textos sagrados de diversas religiões, à época já consolidado na Europa, os pensadores transcendentalistas promoveram, com seus pronunciamentos de discursos e publicações, uma ampliação da compreensão das religiões das civilizações e das religiosidades individuais na Nova Inglaterra. Nos termos de Joel Myerson, “ao traduzirem conceitos teológicos e filosóficos complexos em linguagem e imagens que pudessem ser entendidas por leigos, os transcendentalistas tornaram a religião acessível a muitos”, de modo que, “ao democratizarem a religião, os transcendentalistas não apenas foram teologicamente radicais, mas também desafiaram a necessidade de uma classe ministerial formalmente credenciada”37. Para esses pensadores, basilar era a perspectiva de convergência espiritual entre as diversas tradições soteriológicas, para além dos dogmas institucionais das religiões. As ideias repercutidas por Edward Everett (1794–1865), professor de literatura grega em Harvard, foram primordiais nesse sentido. Foi Everett o introdutor, na Nova Inglaterra, do pensamento de Christian Gottlob Heyne (1729–1812) e sua observação de que toda religião principia com uma filosofia expressa mitologicamente. Everett também apresentou aos estudiosos americanos a obra de Johann Gottfried Eichhorn (1752–1827), orientalista alemão e fundador do estudo moderno da Bíblia (o movimento intelectual conhecido como “Higher Criticism”), pautado em investigações 35 ANGLEN, Kevin. Reading Transcendentalist Text Religiously: Emerson, Thoreau, and the Myth of Secularization. In: MAHONEY, John L. (ed.). Seeing Into the Life of Things: Essays on Literature and Religious Experience. New York: Fordham University Press, 1998, p. 152-170, à página 153. No original: “a theology, a spirituality, and a religious reform”. 36 ROBINSON, David M. Emerson: Religion after Transcendentalism. The Concord Saunterer, v. 11, p. 30-37, 2003, à página 33. No original: “was grounded in religious experience; it understood the cosmos as a holistic unity; it taught a reverence for the natural world; and it affirmed the human capacity for right action”. 37 MYERSON, Joel (ed.). Transcendentalism: A Reader. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. xxviii-xxix. No original: “in translating complex theological and philosophical concepts into language and imagery that could be understood by lay people, the Transcendentalists made religion accessible to many [...]. By thus democratizing religion, the Transcendentalists not only were theologically radical but also challenged the need for a formally credentialed ministerial class”. 48 históricas de acordo com as quais as Escrituras são constituídas por textos compostos em diferentes circunstâncias espaço-temporais. O professor de Harvard estava igualmente familiarizado com a teoria histórico-literária acerca dos escritos homéricos, que remontam à concepção, à época inovadora, de que a Ilíada e a Odisseia não foram fruto do trabalho de um poeta somente, mas de escritores variados ao longo de um espaço temporal considerável38. Igualmente central para o desenvolvimento dessas ideias foi o contato dos transcendentalistas com Ralph Cudworth39, considerado pela tradição como um dos maiores representantes do Platonismo de Cambridge. Sua filosofia fazia convergir o platonismo com o atomismo, comungando com a ideia iluminista de uma philosophia perennis (i.e., cuja verdade percorre todas as tradições filosóficas). As filosofias greco-romanas (especialmente as teorias de Platão, Plotino e dos estoicos) eram para o pensador inglês o solo primordial a partir do qual todas as demais correntes se originaram. Na esteira da metafísica platônica, Cudworth postula que a mente divina, da qual a mente humana é o reflexo, encontra-se na própria ordem da Natureza, sendo ela o protótipo criador de toda sorte de criações no mundo sensível. Nesse sentido, a mente precede, ontologicamente, o mundo físico. Na obra The True Intellectual System of the Universe (1678), ele pretexta que a Natureza e seus fenômenos consistem em “uma estampa ou assinatura viva da sabedoria divina”40. Como indica Richardson, Thoreau leu esse livro em 1840, nele encontrando vias fecundas de reflexão. Especialmente importante para nosso autor era a indicação de Cudworth, a partir dos fragmentos órficos transmitidos no comentário de Proclo (c. 412–485) ao diálogo Timeu, de Platão, de que no paganismo grego já estava presente um monoteísmo implícito, o que se faz observar no hino a Zeus atribuído pela tradição antiga a Orfeu: Zeus o primeiro, Zeus o último — aquele que faz trovejar; Zeus o princípio, Zeus o meio; e todas as coisas foram criadas de Zeus; Zeus foi um homem, Zeus foi uma mulher imortal; Zeus a base da terra e do céu estrelado41. 38 RICHARDSON, 1995, p. 12-13. 39 “His second Plato”, escreve Richardson (1995, p. 65) a respeito de Emerson, “was that of Ralph Cudworth, Henry More, and the Cambridge Platonists, who aimed to reconcile faith and reason. They also had a mystical streak and a strong belief in the inner light of immediate religious experience”. 40 HUTTON, Sarah. “Ralph Cudworth”. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2021. Edward N. Zalta (ed.). No original: “a living stamp or signature of divine wisdom”. 41 RICHARDSON, 1986, p. 78. Na tradução consultada: “Zeus was first, Zeus last — the thunderer; / Zeus the head, Zeus the middle; and all things were made from Zeus; / Zeus was a male, Zeus was an immortal maid; / Zeus the basis of the earth and of the starry heaven”. 49 Percebemos, assim, que o círculo intelectual e espiritual Transcendentalista estava envolvido em ares sincréticos e dialogais, de estudo comparado das mitologias, aspecto especialmente nítido na obra thoreauviana — a qual não seria descomedimento considerar como uma das precursoras do estudo comparativo das religiões na América, discussão que, como sabemos, foi a matriarca fundante da área de pesquisa que denominamos, no Brasil, Ciência(s) da(s) Religião(ões). Na linha deste pensamento dialogal, o periódico transcendentalista The Dial: A Magazine for Literature, Philosophy and Religion [O Marcador: Uma Revista de Literatura, Filosofia e Religião]42, que esteve em circulação entre 1840 e 1844, ao ter sua editoria assumida por Emerson, em 1842, passou a ser composto pela “Ethnical Scriptures” [“Escrituras Étnicas”], coluna onde foram publicadas traduções de seleções de textos sagrados e poéticos de outras culturas, dentre eles as pregações de Buda, os Oráculos Caldeus, o código de Manu, os “Quatro Livros” chineses, fábulas de Vishnu Sharma, o Gulistān, ou o Jardim das Rosas (1258), do poeta persa Saʿdī (c. 1213–1291), e excertos atribuídos a Hermes Trismegisto. Ainda que não se saiba ao certo a autoria de todas essas traduções, é certo que Thoreau desempenhou um papel significativo no processo de preparação dessas publicações43. Essa captação sincrética foi por ele expressa, em seu primeiro livro, A Week on the Concord and Merrimack Rivers, da seguinte maneira: Seria digno da época imprimir juntas as Escrituras ou Escritos Sagrados das várias nações, os chineses, os hindus, os persas, os hebreus, e outros, como a Escritura da humanidade. [...]. Tal justaposição e comparação podem ajudar a liberalizar a fé das pessoas. Esta é uma obra que o Tempo certamente editará, e será reservada para coroar os trabalhos da imprensa. Esta seria a Bíblia, ou o Livro dos Livros, permitindo que os missionários o carregassem aos confins da terra44. 42 Sobre o início do The Dial, Harding (1965, p. 113) comenta o seguinte: “The pages of the leading periodicals of the day — such as those of the North American Review — were closed to them, for their editors thought the writings of the Transcendentalists nonsensical if not heretical. And there was hardly a publisher in sight who would bring out any of their books unless they themselves underwrote them. Therefore at a meeting of the club at the home of Cyrus Bartol [ministro unitarista (1813–1900)] on September 18, 1839, it was proposed that a periodical be established and Margaret Fuller was asked to serve as editor. After months of planning, a prospectus was issued on May 4, 1840, announcing that the first number of a quarterly journal of 136 octavo pages would be published on July 1, 1840. Its name, The Dial, was chosen by Bronson Alcott”. 43 SATTELMEYER, op. cit., p. 35. Ver também MYERSON, Joel. An Annotated List of Contributions to the Boston “Dial”. Studies in Bibliography, Bibliographical Society of the University of Virginia, v. 26, p. 133-166, 1973, às páginas 151-165. 44 Writings, I, p. 150. No original: “It would be worthy of the age to print together the collected Scriptures or Sacred Writings of the several nations, the Chinese, the Hindoos, the Persians, the Hebrews, and others, as the Scripture of mankind. [...]. Such a juxtaposition and comparison might help to liberalize the faith of men. This is a work which Time will surely edit, reserved to crown the labors of the printing press. This would be the Bible, or Book of Books, which let the missionaries carry the uttermost parts 50 A perspectiva quanto à constituição de Escrituras que viabilizassem a confluência de diversos preceitos religiosos/espirituais alcançou pensadores afora da órbita Transcendentalista. Andrew Jackson Davis (1826–1910), por exemplo, representante do espiritualismo moderno nos Estados Unidos e conhecido como o “Allan Kardec americano”, foi um dos inspirados pelos pressupostos filosóficos emersonianos. Embebido pela ideia de diálogo entre diversas religiões e religiosidades, Davis publicou, em 1867, a obra Arabula; Or, the Divine Guest. Containing a New Collection of Gospels, que incluía textos retirados dos Vedas; princípios das leis de Manu; preceitos do Zoroastrismo conforme contidos nos textos sagrados do Avestá; prescrições da filosofia chinesa de Confúcio, e evangelhos segundo “St. Ralph” (Ralph Waldo Emerson) e “St. Theodore” (Theodore Parker)45. No que diz respeito ao âmbito teológico, os transcendentalistas foram influenciados sobremaneira por William Ellery Channing (1780–1842), ministro de Boston que marcou profundamente o contexto religioso do Unitarismo na Nova Inglaterra. Seu escrito de 1828, Likeness to God, por exemplo, mostrou-se categórico na solidificação de sua contraposição à concepção calvinista de Deus como um ser apartado da esfera humana. A crença de Dr. Channing de que o ser humano participa da esfera divina tornou-se especialmente marcante no cenário religioso que ambientou a germinação do movimento Transcendentalista. Channing sustentava que a “verdadeira religião consiste em propor como nosso mais elevado fim uma semelhança florescente com o Ser Supremo. Sua influência mais nobre consiste em nos tornar cada vez mais partícipes da Divindade”46. Os transcendentalistas, ao refletirem sobre as noções de aperfeiçoamento de si e da autossuficiência, estavam, precisamente, ampliando essa noção de proximidade com o divino, já presente na conjuntura unitarista de Channing47. Outra compreensão imperativa de sua teologia que repercutiu no contexto do Transcendentalismo de Boston está relacionada à ideia de que a experiência do divino se converte em “visão”, visão esta capaz de conferir à pessoa que crê a perspectiva de uma profunda relação de “amizade” e “intimidade” com a divindade. Nos termos de Dr. Channing, Deus se torna um ser real para nós na medida em que sua própria natureza se revela em nosso interior. Para um homem que está florescendo à semelhança de Deus, a fé começa a se converter em visão. Ele carrega em seu interior a prova de uma Divindade, que só pode ser entendida através da experiência. of the earth”. 45 FRANK, op. cit., p. 131. 46 MYERSON, 2000, p. 4. No original: “true religion consists in proposing as our great end, a growing likeness to the Supreme Being. Its noblest influence consists, in making us more and more partakers of the Divinity”. 47 ibid., p. 3. 51 Ele mais do que acredita, ele sente a presença divina; e gradualmente é elevado a um intercurso com seu Criador, ao qual não seria irreverente aplicar o nome de amizade e intimidade48. Thoreau, a partir de sua imersão nas discussões promovidas pelo círculo Transcendentalista, amplia as bases dessa compreensão, e translada a assimilação da crença como visão para a esfera da história natural, instando seus leitores para a sintonização com a “visão divina da natureza”: Os livros de história natural costumam ser planejamentos apressados, ou inventários das propriedades de Deus, feitos por algum escrivão. Eles não ensinam de forma alguma a visão divina da natureza, mas a visão popular, ou melhor, o método popular de estudar a natureza, e se apressam em conduzir o aluno perseverante apenas para aquele dilema onde os professores sempre habitam. “Para Atenas ele vai vestido, e dessa escola49 Retorna despido, um tolo mais instruído”50. Ao modo de Thoreau, os transcendentalistas, para além da esfera religiosa e teológica, inspirados por um ambiente de multidisciplinaridade, absorveram em suas reflexões, outrossim, discussões fomentadas por outros campos do conhecimento. Em seu contexto intelectual, a Renascença Americana, prevalecia a convergência entre diversas áreas do saber, desde a teologia, a filosofia e a literatura até a história/filosofia natural. Como comenta Harvey, é necessário ter em mente que, naquele tempo, o amplo leque pluridisciplinar era possível uma vez que “as fronteiras modernas entre a literatura, a filosofia, a teologia e a ciência simplesmente não existiam”51. Crucial para a compreensão do tema aqui proposto é a estruturação do Transcendentalismo em um terreno de diálogo entre os pressupostos teológicos e filosóficos ancestrais e contemporâneos e as investigações fomentadas no domínio do estudo 48 ibid., p. 4-5. No original: “God becomes a real being to us, in proportion as his own nature is unfolded within us. To a man who is growing in the likeness of God, faith begins even here to change into vision. He carries within himself a proof of a Deity, which can only be understood by experience. He more than believes, he feels the divine presence; and gradually rises to an intercourse with his Maker, to which it is not irreverent to apply the name of friendship and intimacy”. 49 Versos de Francis Quarles (1592–1644), presentes na “Meditatio tertiadecima” da obra Iob militant with meditations diuine and moral (1624). 50 Writings, I, p. 100, grifos acrescentados. No original: “Books of natural history aim commonly to be hasty schedules, or inventories of God’s property, by some clerk. They do not in the least teach the divine view of nature, but the popular view, or rather the popular method of studying nature, and make haste to conduct the persevering pupil only into that dilemma where the professors always dwell. ‘To Athens gowned he goes, and from that school / Returns unsped, a more instructed fool’”. 51 HARVEY, op. cit., p. 13. No original: “the modern boundaries between literature, philosophy, theology, and science simply did not exist”. 52 empírico da Natureza, território fundado nos alicerces da percepção de sacralidade no universo natural. Em seu distanciamento dos ideais calvinistas e puritanos então prevalecentes e de sua crença em uma profunda separação entre o humano, Deus, e a Natureza (representada pelos dogmas da depravação inata, da predestinação e da danação eternas), os intelectuais transcendentalistas esposaram, de um modo geral, uma concepção do divino enquanto “força ou espírito não antropomórfico”52. Sob essa perspectiva, procurava-se compreender o mundo divino não apenas pela via da reflexão teológica, mas também pelo estudo objetivo da Natureza, sendo esta entendida como entidade viva e portadora de emanação espiritual. O “ponto principal” desses intelectuais, nos termos de Joel Myerson, “era que todos participam da divindade, que existe divindade na humanidade e na natureza, e que toda a divindade é perceptível por cada pessoa que vive uma vida em harmonia com o espírito”53. Imersos na atmosfera contemporânea de estudo da filosofia e da história natural, os pensadores norte- americanos buscaram conjugar suas crenças religiosas à prática científica, dando à luz a um emaranhamento único entre as questões de fé e os pressupostos provenientes dos debates espraiados pelo Iluminismo. Como elucida Frederick Dahlstrand, a religião, decerto, “era o denominador comum do Transcendentalismo”, aspecto indicador da “profunda preocupação religiosa da cultura americana” que pairava sobre aquele período histórico. Ainda assim, os pensadores envolvidos nesse movimento eram, “sem exceção, filhos do iluminismo, com ênfase no poder modulador da razão humana”54. Tal articulação possibilitou o delineamento de uma conjugação inovadora entre as reflexões de teor espiritual e as práticas empíricas de contato com o meio natural, ou, em outros termos, entre os universos da fé e da razão55. Na sua primeira série de viagens à Europa, Emerson visitou o Jardin des Plantes, em Paris, evento que lhe revelou a intrínseca relação entre a humanidade e a totalidade da Natureza, impressão decisiva ao longo da evolução de sua obra. Em uma famosa passagem de seu diário de 1833, ele registrou a ocasião aludindo ao discernimento de uma “oculta relação” entre o 52 MYERSON, 2000, p. xxviii. No original: “a nonanthropomorphic force or spirit”. 53 ibidem. No original: “their main point was that all partake of divinity, that there is divinity within humankind and within nature, and that all divinity is perceivable by each person who lives a life in a way that is in harmony with spirit”. 54 DAHLSTRAND, Frederick C. Science, Religion, and the Transcendentalist Response to a Changing America. Studies in the American Renaissance, p. 1-25, 1988, à página 2. No original: “Religion was the common denominator of Transcendentalism, and that fact reflected the deep religious concern of the American culture out of which they came. At the same time they were, without exception, children of the enlightenment with its emphasis on the shaping power of human reason”. 55 ibidem. 53 humano e os demais seres, sugestionando o avistamento de “estranhas simpatias” a lhe movimentar e a lhe causar assombro: O universo, mais do que nunca, mostra-se como um quebra-cabeça assombroso, na medida em que se vislumbra [...] o princípio da agitação em toda parte incipiente, imprimindo-se a si mesmo na própria rocha, em formas organizadas. [...]. Uma relação oculta entre os próprios escorpiões e o homem. Eu sinto a centopeia em mim — o jacaré, a carpa, a águia e a raposa. Sou movido por estranhas simpatias. Afirmo continuamente: “Eu serei um naturalista”56. Transcendentalistas que estiverem de algum modo atrelados à teologia unitarista, como Emerson, Theodore Parker, James Clarke, William Henry Channing e George Ripley, “professavam um interesse precoce pela ciência, experimentando com telescópios, microscópios, laboratórios químicos rudimentares e dispositivos elétricos”, informa-nos Dahlstrand. “Todos teriam concordado com o jovem Emerson, que havia dito que uma religião que tem medo da ciência desonra a Deus”57. Thoreau, de modo especial, foi um ávido estudioso dos naturalistas em seu tempo, e tornou-se um leitor atento de Alexander von Humboldt e de Charles Darwin. Para o intelectual de Concord, inspirado também pelos filósofos antigos, “religião” e “ciência” andam lado a lado. Tendo em vista os emaranhamentos subjetivos que compõem o motor primeiro dos empreendimentos humanos voltados à compreensão do universo, ele aponta para as fundações biográficas das alçadas filosóficas, científicas e religiosas: O fato que mais nos interessa é a vida do naturalista. A mais pura ciência ainda é biográfica. Nada dignificará e elevará a ciência enquanto ela estiver completamente separada da vida moral de seu devoto, e ele professar outra religião do que aquela que ensina, e adorar em um santuário estrangeiro. Antigamente, a fé de um filósofo era idêntica ao seu sistema, ou, em outras palavras, sua visão do universo58. 56 EMERSON, Ralph Waldo. The Journals and Miscellaneous Notebooks of Ralph Waldo Emerson. Volume IV (1832–1834). Editado por Alfred R. Ferguson. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1964, p. 406. No original: “The universe is a more amazing puzzle than ever, as you glance […] the upheaving principle of life everywhere incipient, in the very rock aping organized forms. [...]. An occult relation between the very scorpions and man. I feel the centipede in me, — cayman, carp, eagle, and fox. I am moved by strange sympathies. I say continually, ‘I will be a naturalist’”. 57 DAHLSTRAND, op. cit., p. 3. No original: “professed an early interest in science, experimenting with telescopes, microscopes, crude chemical laboratories, and electrical devices. All would have agreed with the young Emerson who said that a religion that is afraid of science dishonors God”. 58 Writings, I, p. 387. No original: “The fact which interests us most is the life of the naturalist. The purest science is still biographical. Nothing will dignify and elevate science while it is sundered so wholly from the moral life of its devotee, and he professes another religion than it teaches, and worships 54 Esse aspecto integrador das várias áreas do saber já estava presente também em Coleridge. De acordo com John Beer, Coleridge vislumbrava “uma ampla visão que envolvesse todas as coisas no céu e na terra, reconciliando as verdades da ciência com as da religião”, de modo a abranger “três dimensões: o plano da relação entre o indivíduo e seus semelhantes, o plano de relação entre o ser humano e a natureza, e o plano de relação entre o ser humano e a ordem espiritual”59, exprimindo o tripé fundamental que tornou-se substancial para todo o movimento romântico: divindade, Natureza e humanidade. Thoreau, talvez perscrutando essa convergência dos saberes materiais com os saberes espirituais com ainda mais afinco, expressou sua própria articulação dessa relação triádica. Como argumentam Samantha Harvey e Rochelle Johnson, a mera divisão da carreira intelectual de Thoreau em um estágio primário voltado às ideias transcendentalistas e um processo ulterior de estudo empírico da Natureza não é suficiente para abarcar a complexidade do pensamento thoreauviano. Seguindo os rumos de Coleridge neste quesito, o pensador de Concord enreda, de forma categórica, o natural, o humano e o espiritual, de modo que seu “envolvimento com a filosofia dinâmica de Coleridge revela uma investigação mais unificada e sustentada do si-mesmo enquanto algo contínuo com os reinos da natureza e do espírito”. Isto é: em concordância com aquilo que sustentava o poeta inglês (e, poderíamos dizer, de forma ainda mais radical do que este), Thoreau “via o estudo da história natural como a busca da consciência humana”60. Coleridge foi fundamental para o Transcendentalismo norte-americano em vários aspectos, tendo legado a esse movimento importantes conceitos, como a distinção, elaborada a partir da filosofia transcendental kantiana, entre “razão” e “entendimento”, categorias centrais para sua proposta de reconciliação entre o estudo do espírito e a perquirição do mundo fenomênico. No apêndice ao sermão que compõe sua obra The Statesman’s Manual; Or The Bible The Best Guide To Political Skill and Foresight (1816), o autor britânico defende que a Razão é o conhecimento das leis do TODO considerado como UM: e como tal é distinguido do Entendimento, que se preocupa exclusivamente com as quantidades, qualidades e relações dos particulares no tempo e no espaço. at a foreign shrine. Anciently the faith of a philosopher was identical with his system, or, in other words, his view of the universe”. 59 HARVEY, op. cit., p. 18. No original: “an all-embracing vision which should encompass all things in heaven and earth, reconciling the truths of science with those of religion. He envisaged this interpretation in three dimensions: the plane of relationship between an individual and his fellow human beings, the plane of relationship between man and nature, and the plane of relationship between man and the spiritual order”. 60 HARVEY; JOHNSON, op. cit., p. 155. No original: “his engagement with Coleridge’s dynamic philosophy reveals a more unified, sustained inquiry into the self as continuous with the realms of nature and spirit”; “saw the study of natural history as the pursuit of human consciousness”. 55 O ENTENDIMENTO, portanto, é a ciência dos fenômenos [...]. A RAZÃO, por outro lado, é a ciência do universal, tendo as ideias de UNIDADE e TOTALIDADE como seus dois elementos ou fatores primários61. O todo, para Coleridge, é revelado à razão por intermédio de sua relação simbólica com o entendimento. É também nesta obra que encontramos uma de suas mais importantes tentativas de definir o conceito de “símbolo”62, que repercutiu profundamente entre os transcendentalistas da Nova Inglaterra. O símbolo, de acordo com Coleridge, consiste na apresentação translúcida do eterno no tempo, da totalidade na particularidade: “um Símbolo é caracterizado por uma translucidez do Particular no Individual ou do Geral no Particular ou do Universal no Geral. Sobretudo pela translucidez do Eterno através e no Temporal”. “O símbolo sempre participa da Realidade que torna inteligível”, continua ele nesta famosa passagem, “e enquanto enuncia o todo, permanece sendo parte viva dessa Unidade, da qual é o representante”63. A relação entre 61 COLERIDGE, S. T. Appendix, Containing Comments and Essays. In: ______. The Statement’s Manual; Or The Bible The Best Guide To Political Skill and Foresight: A Lay Sermon, Addressed To The Higher Classes Of Society, With An Appendix, Containing Comments And Essays Connected With The Study Of The Inspired Writings. London: Gale and Fenner, 1816, p. i-xlvii, às páginas v-vi, grifos do autor. No original: “that Reason is the knowledge of the laws of the WHOLE considered as ONE: and as such it is contradistinguished from the Understanding, which concerns itself exclusively with the quantities, qualities, and relations of particulars in time and space. The UNDERSTANDING, therefore, is the science of phenomena [...]. The REASON, on the other hand, is the science of the universal, having the ideas of ONENESS and ALLNESS as its two elements or primary factors”. 62 Importa recordarmos aqui que as reflexões kantianas acerca do símbolo foram fundamentais para os românticos. No § 59 da Crítica da Faculdade do Juízo (“Da beleza como símbolo da moralidade”), Kant afirma que “todo o nosso conhecimento de Deus é simplesmente simbólico”, e que “o belo é o símbolo do moralmente-bom”. E assim ele exemplifica essa relação entre o símbolo, a moralidade e a beleza natural: “nós frequentemente damos a objetos belos da natureza ou da arte nomes que parecem pôr como fundamento um ajuizamento moral. Chamamos edifícios ou árvores de majestosos ou suntuosos, ou campos de risonhos e alegres, mesmo cores são chamadas de inocentes, modestas, ternas, porque elas suscitam sensações que contêm algo analógico à consciência de um estado de ânimo produzido por juízos morais” (KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valerio Rohden e António Marques. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 197-199). 63 COLERIDGE, S. T. A Lay Sermon, &c. In: ______. The Statement’s Manual; Or The Bible The Best Guide To Political Skill and Foresight: A Lay Sermon, Addressed To The Higher Classes Of Society, With An Appendix, Containing Comments And Essays Connected With The Study Of The Inspired Writings. London: Gale and Fenner, 1816, p. 3-65, à página 37. No original: “a Symbol is characterized by a translucence of the Special in the Individual or of the General in the Especial or of the Universal in the General. Above all by the translucence of the Eternal through and in the Temporal. It always partakes of the Reality which it renders intelligible, and while it enunciates the whole, abides itself as a living part in that Unity, of which it is the representative”. Fundamental na teoria de Coleridge é a distinção entre alegoria (inferior, relacionada à fantasia) e símbolo (superior, relacionado à imaginação). Em seu panorama trinitário, o pensador remete a linguagem simbólica à Bíblia, e a linguagem alegórica aos autores politeístas antigos. Devemos ter em mente que, embora os transcendentalistas empreguem o termo “símbolo” no sentido unificador proposto pelo romântico britânico, ele não é, no contexto de Emerson ou de Thoreau, restrito ao cristianismo. Ao contrário, como veremos adiante, Thoreau, em especial, era um admirador de diversas tradições espirituais, cujos textos sacro-poéticos eram por ele vislumbrados em seu caráter simbólico. 56 a razão e o entendimento, portanto, deve ser simbólica, de modo que possa nos revelar a presença do todo na parte, da transcendência na imanência: Esse mistério oculto em toda, a mais ínfima, forma de existência, que, contemplado sob as relações do tempo, apresenta-se ao entendimento retrospectivamente, como uma infinita ascensão de Causas, e prospectivamente, como uma interminável progressão de Efeitos [...] [;] este mesmo mistério liberto dos fenômenos do Tempo e do Espaço, e visto nas profundezas da realidade do Ser, revela-se à Razão pura como a imanência real do TODO na PARTE. Impressionamo-nos com admiração ao contemplarmos a Abóbada do Céu espelhada em uma gota de orvalho?64 Nesse esquema, é a imaginação poética o poder mediador entre a razão e o entendimento, bem como a propiciadora da criação simbólica. Nas Escrituras, afirma o autor, a imaginação funciona como um “poder conciliador e mediador, que, incorporando a Razão em imagens sensíveis, [...] dá origem a um sistema de símbolos, harmoniosos em si mesmos, e consubstanciais às verdades de que são condutores”65. A imaginação, assim compreendida, provê à linguagem com a criação de símbolos que resultam da inter-relação entre o espírito e a matéria, entre a razão e o entendimento. E a linguagem simbólica, afinal, como escreve ele em sua Biographia Literaria; Or Biographical Sketches of my Literary Life and Opinions (1817), é fundamental para a construção de qualquer ideia que diga respeito às condições últimas do ser humano, pois “uma ideia, no sentido mais elevado da palavra, não pode ser transmitida senão por intermédio de um símbolo [...]”, ainda que este seja por sua própria natureza inerente à contradição, tendo em vista seu objetivo de representar o incondicionado na condicionalidade66. O símbolo, portanto, é lido por Coleridge enquanto uma estrutura 64 ibid., p. 62-63, grifos do autor. No original: “That hidden mystery in every, the minutest, form of existence, which contemplated under relations of time presents itself to the understanding retrospectively, as an infinite ascent of Causes, and prospectively as an interminable progression of Effects [...] [;] this same mystery freed from the phenomena of Time and Space, and seen in the depth of real Being, reveals itself to the pure Reason as the actual immanence of ALL in EACH. Are we struck with admiration at beholding the Cope of Heaven imaged in a Dew-drop?”. 65 ibid., p. 35, grifo do autor. No original: “reconciling and mediatory power, which incorporating the Reason in Images of the Sense, [...] gives birth to a system of symbols, harmonious in themselves, and consubstansial with the truths, of which they are conductors”. E assim ele exemplifica: “These are the Wheels which Ezekiel beheld, when the hand of the Lord was upon him, and he saw visions of God as he sate among the captives by the river of Chebar”. 66 COLERIDGE, S. T. Biographia Literaria: With an introductory essay upon his philosophical and theological opinions. Editado por W. G. T. Shedd. The Complete Works of Samuel Taylor Coleridge, 7 v. New York: Harper & Brothers, 1884, v. 3, p. 259, grifo do autor. No original: “an idea, in the highest sense of that word, cannot be conveyed but by a symbol [...]”. Em nota, Coleridge faz referência à expressão kantiana das “coisas em si mesmas”, entendendo-a como símbolo daquilo que transcende a experiência sensível: “‘Now this supersensuous ground of all that is sensuous, Kant symbolized by the expression things in themselves — which, like all other symbolic expressions, contains in itself a 57 linguística por meio da qual o ser humano pode identificar a unidade da linguagem divina tal qual se faz expressar nas múltiplas aparências fenomênicas da Natureza67. Se para Galileu Galilei (1564–1642), como lê-se em Il Saggiatore (1623), o “livro da Natureza” é escrito em caracteres matemáticos68, para os românticos, além de unidades numéricas, a ordenação dos fenômenos naturais é indicativa do caráter simbólico da vida e suas dinâmicas. Em Lectures on Politics and Religion (1795), como aponta James Mckusick, Coleridge também emprega o termo “símbolo” para entrelaçar Natureza e divindade: “para o homem piedoso, toda a Natureza é, portanto, bela, porque cada Característica sua é o Símbolo, e cada uma de suas Partes a Linguagem escrita da Bondade infinita e da Inteligência todo-poderosa”69. Já no poema Frost at Midnight (1798), o romântico inglês assim canta: [...] então verás e ouvirás As amáveis formas e os sons inteligíveis Daquela linguagem eterna, que teu Deus Pronuncia, que desde a eternidade ensina A si mesmo em tudo, e todas as coisas em si mesmo (58-62)70. Há uma passagem em seus cadernos pessoais que esclarece nitidamente a conexão fundamental entre a linguagem simbólica e a realidade ontológica do cosmo, trecho no qual, traçando a correlação entre a exterioridade da Natureza, a interioridade anímica do ser humano e a verdade suprema do Criador, o autor assim pontua: Ao contemplar os Objetos da Natureza quando estou refletindo, como para aquela lua de brilho opaco através da vidraça orvalhada da janela, pareço mais estar buscando, como se estivesse pedindo, por uma linguagem simbólica para contradiction, because it seeks to represent the unconditioned through a conditioned, to make the infinite finite’”. 67 Sobre a concepção de Coleridge acerca do símbolo, Lucy Newlyn pontua que essa formulação linguística “occupied a higher aesthetic and religious ground, connecting the human word with the divine spirit. The act of seeking interior meaning in words was for Coleridge a deeply religious affirmation, and he once complained that ‘It is among the miseries of the present age that it recognises no medium between the Literal and the Metaphorical’” (NEWLYN, Lucy. Introduction. In: NEWLYN, Lucy (ed.). The Cambridge Companion to Coleridge. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 1-14, à página 11). Eis aí um pensamento que permanece válido nos tempos atuais. 68 MACHAMER, Peter; MILLER, David Marshall. “Galileo Galilei”. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2021. Edward N. Zalta (ed.). 69 MCKUSICK, James C. Symbol. In: NEWLYN, Lucy (ed.). The Cambridge Companion to Coleridge. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 217-230, à página 217. No original: “[...] to the pious man all Nature is thus beautiful because its every Feature is the Symbol and all its Parts the written Language of infinite Goodness and all powerful Intelligence”. 70 ibid., p. 218. No original: “[...] so shalt thou see and hear / The lovely shapes and sounds intelligible / Of that eternal language, which thy God / Utters, who from eternity doth teach / Himself in all, and all things in himself”. 58 algo dentro de mim que já existe desde sempre, do que observando qualquer coisa nova. Mesmo quando este último é o caso, ainda assim eu tenho sempre um sentimento Obscuro, como se aquele novo fenômeno fosse o Despertar indistinto de uma Verdade esquecida ou escondida de minha Natureza interior [...] [,] uma Palavra, um Símbolo! É o λόγος, o Criador!71 A ideia de que a Natureza é permeada pela linguagem divina é medular para Coleridge, assim como para transcendentalistas como Emerson e Thoreau. Um dos veios medulares dessa consonância entre religiosidade e estudo da Natureza é a convicção quanto à correspondência simbólica entre o mundo natural e a esfera espiritual, reformulada também no pensamento thoreauviano, tema que nos acompanhará durante toda a reflexão que se seguirá. Nesse sentido, importa-nos também relembrar que essa ideia foi herdada, em grande medida, a partir das definições de Coleridge acerca da correspondência simbólica entre natura naturans (o aspecto interior das leis invisíveis que permeiam a natureza) e natura naturata (o aspecto exterior das formas visíveis do universo natural)72. Essa distinção havia sido anteriormente elaborada pela filosofia de Baruch Espinoza (1632–1677), e foi inserida por Coleridge e pelos românticos de modo geral no horizonte mais amplo de sua proposta de distinção e interconexão entre razão e entendimento, espírito e matéria. “Thoreau”, conforme Douglas Anderson, “adotou o espinozismo dinâmico de Emerson — nós humanos somos tanto natura naturata quanto natura naturans. Somos criados e criadores; podemos aprender sobre nós mesmos, e podemos criar o mundo novamente de diferentes formas”73. A formulação de uma correspondência simbólica entre Natureza e espírito foi também encontrada por Emerson e outros transcendentalistas nos dizeres de Emanuel Swedenborg 71 COLERIDGE, Samuel Taylor. Coleridge’s Notebooks: A Selection. Editado por Seamus Perry. New York: Oxford University Press, 2002, p. 87-88, grifos do autor. No original: “In looking at Objects of Nature while I am thinking, as at yonder moon dim-glimmering thro’ the dewy window-pane, I seem rather to be seeking, as it were asking, a symbolical language for something within me that already and forever exists, than observing any thing new. Even when that latter is the case, yet still I have always an Obscure feeling as if that new phænomenon were the dim Awaking of a forgotten or hidden Truth of my inner Nature […] a Word, a Symbol! It is λόγος, the Creator!” 72 RICHARDSON Jr., Robert D. Emerson and Nature. In: PORTE, Joel; MORRIS, Saundra (eds.). The Cambridge Companion to Ralph Waldo Emerson. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 97-105, à página 101. Produzi recentemente um artigo onde comento sobre a ressonância desses conceitos especificamente no pensamento de Emerson. Cf. LAMHA, Letícia Ferreira. Ralph Waldo Emerson, o Transcendentalismo norte-americano e o “poeta-profeta” da Natureza. In: ANDRADE, Clodomir Barros de. (org.). Natureza e sagrado: olhares. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2023, p. 84-110. 73 ANDERSON, Douglas R. An Emerson gone mad: Thoreau’s American Cynicism. In: FURTAK, Rick Anthony; ELLSWORTH, Jonathan; REID, James D. (eds.). Thoreau’s Importance for Philosophy. New York: Fordham University Press, 2012, p. 185-200, à página 187, grifos do autor. No original: “Thoreau adopted Emerson’s dynamic Spinozism — we humans are both natura naturata and natura naturans. We are created and creating; we can learn about ourselves, and we can create the world anew in some ways”. 59 (1688–1772), intelectual e espiritualista sueco que, na obra emersoniana Representative Men (1850), aparece como a encarnação por excelência da figura do “místico”. Em sua “doutrina das Representações e Correspondências”, Swedenborg postula que a comunhão simbólica entre os mundos material e espiritual ocorre “em toda a natureza, e que corresponde tão plenamente às coisas supremas e espirituais que alguém poderia jurar que o mundo físico era puramente simbólico do mundo espiritual [...]”74. Apesar disso, Emerson não adotou por completo o swedenborgianismo, afinal, como salienta Harvey, ele era “baseado em um rígido sistema de correspondência entre espírito e natureza, no qual as formas naturais representavam um exato correlato espiritual”75. É isso o que o próprio autor esclarece na obra supracitada: Sua percepção da natureza não é humana e universal, mas mística e hebraica. Ele liga cada objeto natural a uma noção teológica — um cavalo significa a compreensão carnal; uma árvore, a percepção; a lua, a fé; um gato significa isso; um avestruz significa aquilo; uma alcachofra significa aquilo outro [...]. Na natureza, cada símbolo individual desempenha papéis inumeráveis, pois cada partícula da matéria circula por todos os sistemas. A identidade central permite que qualquer símbolo expresse sucessivamente todas as qualidades e matizes do ser real. [...]. A natureza vinga-se rapidamente do duro pedantismo que acorrenta suas ondulações. Ela não é literalista. Cada coisa deve ser tomada com gênio, e devemos estar no topo de nossa condição para entender qualquer coisa corretamente76. Como nos lembra Edward Emerson, o autor transcendentalista, comentando sobre esta mesma temática em seus diários de 1845, assim escreveu: “O mundo é enigmático, tudo aquilo que foi dito e tudo aquilo que foi conhecido e feito, e não deve ser tomado literalmente, mas sim com genialidade”77. Thoreau nos sugere uma perspectiva similar, na medida em que 74 EMERSON, Ralph Waldo. Representative Men. The Complete Works of Ralph Waldo Emerson, with a biographical introduction and notes by Edward Waldo Emerson, 12v. Boston/New York: Houghton, and Mifflin Company, 1903-1904, v. 4, p. 115-116. Doravante citado como EMERSON, Representative Men. No original: “doctrine of Representations and Correspondences”; “throughout nature, and which correspond so entirely to supreme and spiritual things that one would swear that the physical world was purely symbolical of the spiritual world [...]”. 75 HARVEY, op. cit., p. 79. No original: “based on a rigid system of correspondence between spirit and nature, in which natural forms represented an exact spiritual correlate”. 76 EMERSON, Representative Men, p. 120-121. No original: “His perception of nature is not human and universal, but is mystical and Hebraic. He fastens each natural object to a theologic notion; — a horse signifies carnal understanding; a tree, perception; the moon, faith; a cat means this; an ostrich that; an artichoke this other [...]. In nature, each individual symbol plays innumerable parts, as each particle of matter circulates in turn through every system. The central identity enables any one symbol to express successively all the qualities and shades of real being. [...]. Nature avenges herself speedily on the hard pedantry that would chain her waves. She is no literalist. Every thing must be taken genially, and we must be at the top of our condition to understand any thing rightly”. 77 ibid., p. 329. No original: “The world is enigmatical, everything said and everything known and done, and must not be taken literally, but genially”. 60 enxerga nos diversos seres e acontecimentos da Natureza uma potencialidade simbólica aberta a múltiplas interpretações. Isso tornar-se-á claro na medida em que prossigamos em nossa exposição hermenêutica dos simbolismos de sua literatura e algumas das possíveis interpretações que a eles conferimos. Devemos aqui lembrar, ainda que sumariamente, que a compreensão quanto à correspondência entre Natureza e espírito (ou, o que é dizer o mesmo, entre a exterioridade e a interioridade), estava presente, outrossim, no romantismo alemão. “A sede da alma”, disse o poeta Novalis, “é ali onde o mundo interior e o mundo exterior se tocam” (Frag. 19)78. Friedrich Schelling (1775–1854), por sua vez, no horizonte de sua filosofia da Natureza, conforme elucida Rubens Rodrigues Torres Filho, pressupunha que o “absoluto”, finalidade última do saber filosófico, “seria a completa indiferença entre sujeito e objeto, natureza e espírito; seria identidade dos contrários que, no fundo, não oferecem, em sua presença real, outra oposição a não ser a de participarem diversamente do absoluto”79. A “pura identidade” do absoluto, escreve Schelling em Exposição da ideia universal da filosofia em geral e da filosofia-da-natureza como parte integrante da primeira (1803), indica que “o subjetivo e o objetivo não são unificados como opostos”, mas constituem uma coisa só, unidade que só pode ser plenamente compreendida no panorama desta identidade que subjaz às dualidades aparentes80. A partir desta dialética entre ideal/real, sujeito/objeto, espírito/natureza, interioridade/exterioridade, este que foi um dos principais expoentes do romantismo alemão afirmava que, para além da intuição intelectual dos filósofos, é, na verdade, por intermédio da arte que entramos em contato integral com o absoluto, campo onde as oposições são diluídas pelo poder do absoluto81. Era na arte, igualmente, que Coleridge enxergava a ponte intermediadora entre o ser humano, compreendido espiritualmente, e a Natureza. É o que ele sugere, como nos lembra Harvey, em seus textos sobre literatura datados do ano de 1818, onde lemos os postulados: “A Arte é a Mediadora, a reconciliadora do Homem e da Natureza”; “A Arte é a Imitadora da Natureza”; “A Arte seria ou deveria ser o Resumo da Natureza”. Pensava igualmente o intelectual inglês que é tão-somente por meio da arte que galgamos a capacidade de alcançar o ponto de convergência entre a interioridade e a exterioridade: “tornar o externo interno, o 78 NOVALIS, Friedrich von Hardenberg. Pólen: Fragmentos, diálogos, monólogo. Tradução, apresentação e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. 2. ed. São Paulo: Iluminuras, 2001, p. 44. 79 SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph von. Obras escolhidas. Seleção, tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. x. 80 ibid., p. 49. 81 ibid., p. xi. 61 interno externo, tornar a natureza pensamento, e o pensamento natureza — este é o mistério do gênio nas Belas Artes...”82. É também nessa estação que se sintonizam os transcendentalistas. O ensaio Nature, de Emerson, que se tornou capilar para o Transcendentalismo, é estruturado, essencialmente, a partir do pressuposto de correspondência simbólica entre o espírito humano e a Natureza. Nesse texto, o autor dedica um capítulo à discussão da ideia de Natureza como linguagem, a qual, segundo ele, revela-nos que “[a] Natureza é um símbolo do espírito”83. A própria linguagem humana, argumenta Emerson, suscita a partir do intercâmbio dos seres humanos com os fenômenos naturais circundantes, e se manifesta em termos simbólicos, indicadores da interdependência umbilical entre a esfera divina, o universo natural e o mundo humano. Em suas palavras, a “dependência imediata da linguagem em relação à natureza, essa conversão de um fenômeno externo em um protótipo de algo relativo à vida humana nunca perde seu poder de nos afetar”. “[A] linguagem pitoresca”, continua ele, “é ao mesmo tempo uma certificação superior de que quem a emprega é uma pessoa em aliança com a verdade e com Deus”84. Em seu ensaio The Poet, componente da coleção Essays: Second Series, de 1844, Emerson desenvolve mais profundamente sua concepção quanto à figura do poeta e sua criação simbólica a partir das formas da Natureza fazendo referência ao filósofo neoplatônico Jâmblico: A natureza oferece a ele [ao poeta] todas as suas criaturas em sua qualidade de linguagem pictórica. [...]. “Coisas mais admiráveis do que quaisquer imagens”, diz Jâmblico, “são expressas por meio de imagens”. As coisas permitem-se a si mesmas que sejam usadas como símbolos porque a natureza é um símbolo, em sua totalidade e em toda a parte85. 82 HARVEY, op. cit., p. 76. No original: “Art is the Mediatress, the reconciliator of Man and Nature”; “Art is the Imitatress of Nature”; “Art would or should be the Abridgment of Nature”; “to make the external internal, the internal external, to make nature thought, and thought nature, — this is the mystery of genius in the Fine Arts…”. 83 EMERSON, Nature, p. 25. No original: “Nature is a symbol of spirit”. 84 ibid., p. 29-30. No original: “This immediate dependence of language upon nature, this conversion of an outward phenomenon into a type of somewhat in human life never loses its power to affect us. [...] picturesque language is at once a commanding certificate that he who employs it is a man in alliance with truth and God”. 85 EMERSON, Ralph Waldo. The Poet. In: ______. Essays: Second Series. The Complete Works of Ralph Waldo Emerson, with a biographical introduction and notes by Edward Waldo Emerson, 12v. Boston/New York: Houghton, and Mifflin Company, 1903-1904, v. 3, p. 1-42, à página 13. Doravante citado como EMERSON, The Poet. No original: “Nature offers all her creatures to him as a picture- language. [...]. ‘Things more excellent than every image,’ says Jamblichus, ‘are expressed through images.’ Things admit of being used as symbols, because nature is a symbol, in the whole, and in every part”. 62 O poeta é o pensador que, ao perpassar pelas imagens que a Natureza oferece, extrai delas um sentido superior, um sentido simbólico, apresentando-se como aquele que “reconecta as coisas à natureza e ao todo”86. Além de ser a fonte material primária das formas simbólicas, a Natureza, quando vista poeticamente, possibilita ao ser humano a unificação semântica que deslinda a particularidade na unidade. Esta capacidade criativa inerente à Natureza é encontrada, correspondentemente, na alma humana: estando ela imersa nos tecimentos da Alma Suprema, participa do ato sempiterno de criação. Ou, como argumenta o autor mais adiante no mesmo texto, quando compreendemos o discurso poético como um caminho de redenção de nossas ideias e, portanto, da vida em sua concretude, nos poetas enxergamos “deuses libertadores”: O emprego de símbolos exerce um certo poder de emancipação e excitação sobre todos os homens. Parecemos ter sido tocados por uma varinha de condão que nos faz dançar e correr alegremente como crianças. Ficamos como as pessoas que saem de uma caverna ou de um porão rumo ao ar livre. Este é o efeito de tropos, fábulas, oráculos e de todas as formas poéticas sobre nós. Os poetas são, assim, deuses libertadores87. O poeta participa da linguagem simbólica da vida por intermédio da imaginação. Em Poetry and Imagination (1875), seguindo as definições de Coleridge, Emerson nos diz que “a imaginação existe por partilhar das correntes etéreas”, e que é por meio dessa faculdade que a linguagem simbólica apresenta ao poeta a visão da unidade na pluralidade. O poeta, o gênio, é capaz de “encontrar símbolos de significado universal”, e seu poder “é a percepção do caráter simbólico das coisas”. “O poeta contempla a identidade central, vê-a ondular e deslizar para lá e para cá, com fluxos divinos, através das coisas mais remotas; e, seguindo-a, pode detectar semelhanças essenciais em naturezas nunca antes comparadas”88, escreve ele nesse mesmo ensaio. É a conexão entre todas as coisas, a “identidade central” que por tudo circula o horizonte do fazer poético. “Objetos naturais, se descritos individualmente, e fora de conexão, ainda não são conhecidos, pois eles são, na verdade, partes de um universo simétrico, como palavras de 86 ibid., p. 18. No original: “re-attaches things to nature and the whole”. 87 ibid., p. 30. No original: “The using of symbols has a certain power of emancipation and exhilaration for all men. We seem to be touched by a wand, which makes us dance and run about happily, like children. We are like persons who come out of a cave or cellar into the open air. This is the effect on us of tropes, fables, oracles, and all poetic forms. Poets are thus liberating gods”. 88 EMERSON, Poetry and Imagination, p. 21, 18, 27 e 21. No original: “the imagination exists by sharing the ethereal currents”; “find symbols of universal significance”; “it is the perception of the symbolic character of things”; “The poet contemplates the central identity, sees it undulate and roll this way and that, with divine flowings, through remotest things; and, following it, can detect essential resemblances in natures never before compared”. 63 uma frase”, defende o autor; “e se sua verdadeira ordem for encontrada, o poeta pode ler seu significado divino de forma ordenada como em uma Bíblia”89. Percebendo as correspondências entre o mundo material e o universo espiritual, o poeta lê o livro da Natureza na condição de uma escritura sagrada, tecida e costurada com símbolos que apontam para uma realidade maior do que eles próprios. Simbolicamente constituídas, as dinâmicas da imaginação conversam com aquilo que há de superior em nossa visão de mundo. Na medida em que fazem convergir diversas impressões em uma única unidade semântica, transluzida no símbolo, as correspondências são endereçadas à imaginação, e não ao entendimento: “As impressões na imaginação constituem os dias grandiosos da vida: o livro, a paisagem ou a personalidade que não ficou na superfície do olho ou do ouvido, mas que penetrou no senso interior, agita-nos e não é esquecida”90. Sob esse prisma, a linguagem simbólica da poesia é a verdadeira “transubstanciação”, “a conversão do pão diário nos mais sagrados símbolos”. Se todos participam dessa linguagem (que é, afinal, a linguagem de todas as coisas), podemos concluir que “todo homem seria um poeta, se sua digestão intelectual fosse perfeita”. O poeta, uma vez imerso neste aprofundamento linguístico, descobre que “[t]odas as partes e formas da natureza são a expressão ou produção das faculdades divinas, e as mesmas estão em nós. E o fascínio do gênio para nós é essa impressionante proximidade com as criações da Natureza”. Na medida em que alimenta o autoconhecimento em relação com o mundo e nossas interconexões para com suas aparições fenomênicas, a poesia constitui a mais alta forma de saber. “A poesia”, declara o transcendentalista de Boston, “é a gaia ciência91”92. 89 ibid., p. 8. No original: “Natural objects, if individually described, and out of connection, are not yet known, since they are really parts of a symmetrical universe, like words of a sentence; and if their true order is found, the poet can read their divine significance orderly as in a Bible”. 90 ibid., p. 15-16. No original: “The impressions on the imagination make the great days of life: the book, the landscape, or the personality which did not stay on the surface of the eye or ear, but penetrated to the inward sense, agitates us, and is not forgotten”. 91 A expressão “gaia ciência” aqui mencionada é um dos indicativos da influência emersoniana sobre Nietzsche. A primeira edição da obra Die Frӧhliche Wissenschaft [A Gaia Ciência] (1822), aliás, trazia em sua epígrafe uma citação levemente modificada do ensaio History, de Emerson: “To the poet and sage all things are friendly and sacred, all events profitable, all days holy, all men divine”. Em relação ao transcendentalista norte-americano, o filósofo alemão declarou o seguinte: “I have never felt so much at home in a book, so much in my own house […]”; “[…] I feel in Emerson a brother soul […]” (HUMMEL, Hermann. Emerson and Nietzsche. The New England Quarterly, v. 19, n. 1, p. 63-84, mar. 1946, às páginas 63, 65 e 66). No que diz respeito à ligação entre Emerson e Nietzsche, agradeço ao Prof. Dr. Clodomir Barros de Andrade, quem inicialmente me apresentou a relação entre ambos os pensadores, e ao Prof. Dr. Eduardo Vicentini de Medeiros, que, na ocasião da defesa desta dissertação, me sugeriu pontuar essa conexão nesta passagem do texto. 92 EMERSON, Poetry and Imagination, p. 35, 43 e 37, grifos do autor. No original: “transubstantiation”; “the conversion of daily bread into the holiest symbols”; “every man would be a poet, if his intellectual digestion were perfect”; “All the parts and forms of nature are the expression or production of divine 64 Envolvido pelo espírito poético, o ser humano “levanta o véu” do cosmo, e mostra que a natureza é a única linguagem para expressar as leis, que são grandiosas e belas [...]. Sócrates; os mestres indianos de Maia; as Bíblias das nações; Shakespeare, Milton, Hāfez, Ossian, os bardos galeses, todos eles lidam com a natureza e a história como meios e símbolos, e não como fins. [...]. E essa percepção tem ao mesmo tempo sua sequência moral. Ben Jonson93 disse: “O principal objetivo da poesia é informar os homens sobre a justa razão do viver”94. Em suma, o poeta vê e ouve atentamente a Natureza e a emprega como um hieróglifo. Através de símbolos sagrados colhidos nas próprias movimentações da terra, a linguagem poética transmite uma mensagem espiritual com conteúdo moral, direcionada à interioridade de seu leitor, com a finalidade de lhe auxiliar em sua busca individual por conhecimento de si mesmo. O poeta que usar a natureza como seu hieróglifo deve ter uma mensagem adequada para transmitir. Portanto, quando falamos do Poeta em um sentido elevado, somos levados a exemplos como Zoroastro e Platão, São João e Manu, com suas cargas morais. A Musa será a contraparte da Natureza, e igualmente rica95. A ideia de correspondência entre a alma e a matéria implicada na apreensão da Natureza como linguagem poético-simbólica do espírito reverberou também nas reflexões de Henry David Thoreau, quem, nos termos de Emerson, era possuidor de uma sabedoria proeminente, “própria de uma classe rara de homens, que lhe mostrava o mundo material como meio e símbolo”96. Como expressou Gary Paul Nubham, para Thoreau, “a floresta era um livro à espera de ser lido: bastava que dedicasse tempo suficiente para compreender sua gramática, para aprender os ritmos de sua sintaxe”. “Sua fé na ordem natural o fez acreditar que havia uma faculties, and the same are in us. And the fascination of genius for us is this awful nearness to Nature’s creations”; “Poetry is the gai science”. 93 Ben Jonson (1572–1637) foi um poeta e dramaturgo renascentista. 94 ibid., p. 38. No original: “lifts the veil”; “shows that nature is the only language to express the laws, which are grand and beautiful [...]. Socrates; the Indian teachers of the Maia; the Bibles of the nations; Shakespeare, Milton, Hafiz, Ossian, the Welsh Bards, these all deal with nature and history as means and symbols, and not as ends. [...]. And this perception has at once its moral sequence. Ben Jonson said, ‘The principal end of poetry is to inform men in just reason of living’”. 95 ibid., p. 65. No original: “The poet who shall use nature as his hieroglyphic must have an adequate message to convey thereby. Therefore, when we speak of the Poet in any high sense, we are driven to such examples as Zoroaster and Plato, St. John and Menu, with their moral burdens. The Muse shall be the counterpart of Nature, and equally rich”. 96 EMERSON, Thoreau, p. 323. 65 estrutura profunda em todos os padrões vegetais, que poderia ser descoberta por qualquer estudante diligente”97. Tal compreensão, como podemos perceber, repercutiu no pensador de Concord a partir de seu contato com as formulações de Coleridge e Emerson acerca do poeta e do símbolo natural como contraparte do espírito. Thoreau leu Coleridge com entusiasmo, e na obra do romântico britânico ele encontrou importantes definições. Importante que digamos que, em sua leitura, o poeta concordiano, ao modo de Emerson, omitiu deliberadamente o contexto trinitário do autor inglês em favor de suas distinções conceituais. Em uma carta datada de 7 de abril de 1857, B. B. Willey98, em retorno à recomendação de Thoreau do estudo das obras de Coleridge, declarou não ter conseguido prosseguir na leitura por conta do forte tom teológico trinitário de Coleridge99, ao que Thoreau respondeu, em 26 de abril: “Penso que você deve ler Coleridge novamente & pular toda a sua teologia — i.e., se você valoriza definições precisas & um uso discriminador da linguagem”100. A teoria da correspondência, em especial, reverberou ao longo de toda a carreira intelectual de Thoreau, aparecendo como pano de fundo para diversas reflexões, cujos panoramas são repercutidos no próprio modo de pensar de nosso autor. Em uma das entradas em seu diário de 1839, denominada “The Poet”, datada do período em que ele havia recém se associado às ideias transcendentalistas, ele assim escreve: Ele deve ser algo mais do que natural — até mesmo sobrenatural. A Natureza não falará através dele, mas junto dele. A voz dele não sairá do seio da Natureza, mas, respirando por meio dela, ele fará da Natureza a expressão de seu pensamento. Ele poetiza, portanto, quando transforma um fato da natureza em um fato do espírito. O poeta fala sem referência a tempo ou lugar. [...]. Ele é outra Natureza — irmão da Natureza101. 97 NUBHAN, Gary Paul. Foreword: Learning the Language of Fields and Forests. In: THOREAU, Henry David. Faith in a Seed: The Dispersion of Seeds and Other Late Natural History Writings. Editado por Bradley P. Dean. Washington/Covelo: Island Press/Shearwater Books, 1993, p. xi-xviii, à página xvi. No original: “the forest was a book waiting to be read: one simply had to devote sufficient time to grasp its grammar, to learn the rhythms of its syntax. His faith in natural order made him believe that there was a deep structure to all vegetational patterns that could be ascertained by any diligent student”. 98 Benjamin Wiley, como nos informam Walter Harding e Carl Bode, era um corretor e banqueiro que ficou bastante impressionado com os escritos de Thoreau. Cf. THOREAU, 1958, p. 432. 99 “Among other works you recommended some of Coleridge. I took up his books, but was so repelled by the Trinitarian dogmas that I read almost none. I am very sensitive to that theological dust” (ibid., p. 475). 100 ibid., p. 478. No original: “I think you must read Coleridge again & further-skipping all his theology — i.e. if you value precise definitions & a discriminating use of language”. 101 Writings, VII, p. 74-75, grifos acrescentados. 3 de março de 1839. No original: “He must be something more than natural, — even supernatural. Nature will not speak through but along with him. His voice will not proceed from her midst, but, breathing on her, will make her the expression of his 66 Seis anos depois, também em seu diário, lemos uma aplicação semelhante das distinções de Coleridge: Toda a natureza é clássica e aparentada à arte. O sumagre, o pinheiro e a nogueira que cercam minha casa me fazem lembrar da mais graciosa escultura. Às vezes, suas copas, ou um único galho ou folha, parecem ter crescido em uma expressão singular, como se fosse um símbolo para eu interpretar. A poesia, a pintura e a escultura reivindicam ao mesmo tempo e associam a si mesmas aqueles espécimes perfeitos da arte da natureza — folhas, cipós, bolotas, pinhas etc. [...]. Todas as formas naturais — das folhas de palmeiras e das bolotas, do carvalho, do sumagre e da cuscuta — são aforismos intraduzíveis102. Relacionando as ideias do espírito e as operações da imaginação às manifestações da Natureza e referindo-se explicitamente ao pensamento de Coleridge, Thoreau assim argumenta: Coleridge diz das “ideias expostas em toda parte no Antigo e no Novo Testamento”, que elas “se assemelham às estrelas fixas, que parecem ser do mesmo tamanho para o olho nu assim como para o olho equipado; cuja magnitude o telescópio parece mais diminuir do que aumentar”. É mais apropriado que um fato espiritual tenha sugerido um natural análogo, do que o fato natural ter precedido o espiritual em nossas mentes103. O intelecto da maioria dos homens é estéril. Não fertilizam nem são fertilizados. É o casamento da alma com a Natureza que torna frutífero o intelecto, que faz nascer a imaginação104. Há uma passagem em especial, datada de 1851, que nos ajuda a compreender a centralidade da concepção de símbolo e do poder unificador da imaginação na totalidade do pensamento de Thoreau — para quem, concordemente a Coleridge, o entendimento e suas thought. He then poetizes when he takes a fact out of nature into spirit. He speaks without reference to time or place. [...]. He is another Nature, — Nature’s brother”. 102 ibid., p. 380. Agosto de 1845. No original: “All nature is classic and akin to art. The sumach and pine and hickory which surround my house remind me of the most graceful sculpture. Sometimes their tops, or a single limb or leaf, seems to have grown to a distinct expression as if it were a symbol for me to interpret. Poetry, painting, and sculpture claim at once and associate with themselves those perfect specimens of the art of nature, — leaves, vines, acorns, pine cones, etc. [...]. Every natural form — palm leaves and acorns, oak leaves and sumach and dodder — are [sic] untranslatable aphorisms”. 103 ibid., p. 175, grifo do autor. 24 de janeiro de 1841. No original: “Coleridge says of the ‘ideas spoken out everywhere in the Old and New Testament,’ that they ‘resemble the fixed stars, which appear of the same size to the naked as to the armed eye; the magnitude of which the telescope may rather seem to diminish than to increase.’ It is more proper for a spiritual fact to have suggested an analogous natural one, than for the natural fact to have preceded the spiritual in our minds”. 104 Writings, VIII, p. 413. 21 de agosto de 1851. No original: “The intellect of most men is barren. They neither fertilize nor are fertilized. It is the marriage of the soul with Nature that makes the intellect fruitful, that gives birth to imagination”. 67 verdades objetivas, quando prescindem da faculdade imaginativa, falham em comunicar-se com nossos anseios superiores. Testemunho uma beleza na forma ou na coloração das nuvens que se dirige à minha imaginação, para a qual vocês fornecem explicações científicas dirigidas ao meu entendimento, mas que não têm em conta a minha imaginação. É o que o fenômeno sugere e seu símbolo aquilo que me interessa, e, se por algum truque da ciência, você o rouba de seu caráter simbólico, você não me faz nenhum favor e não me explica nada. A vinte milhas de distância, vejo uma nuvem carmesim no horizonte. Você me diz que se trata de uma massa de vapor que absorve todos os outros raios e reflete o vermelho, mas isso de nada serve, pois essa visão vermelha me excita, agita meu sangue, faz meus pensamentos fluírem, e tenho novas e indescritíveis fantasias, mas você deixa o segredo dessa influência intocável. Se não houver algo místico em sua explicação, algo inexplicável ao entendimento, alguns elementos de mistério, ela é bastante insuficiente. Se não há nada nela que fale à minha imaginação, de que servirá? Que ciência é essa que enriquece o entendimento, mas rouba a imaginação? que não apenas rouba Pedro para dar à Paulo, mas que mais tira de Pedro do que dá à Paulo? Essa é simplesmente a maneira com que ela fala ao entendimento, e esse é o relato que dá o entendimento; mas não é assim que se fala à imaginação, e não é essa a explicação que a imaginação dá. [...]. Se conhecêssemos todas as coisas mecanicamente apenas, conheceríamos alguma coisa realmente?105 Em seu diário de 1853, igualmente, o vemos retomar a teoria da correspondência simbólica entre Natureza e espírito para expressar a origem da linguagem poética nos símbolos que o espírito humano encontra nas manifestações da Natureza: Não é na condição de linguagem que todos os objetos naturais afetam o poeta? O poeta vê uma flor ou outro objeto, e este é belo e comovente para ele porque é um símbolo de seu pensamento, e aquilo que ele indistintamente sente ou 105 Writings, IX, p. 155-156. 25 de dezembro de 1851. No original: “I witness a beauty in the form or coloring of the clouds which addresses itself to my imagination, for which you account scientifically to my understanding, but do not so account to my imagination. It is what it suggests and is the symbol of that I care for, and if, by any trick of science, you rob it of its symbolicalness, you do me no service and explain nothing. I, standing twenty miles off, see a crimson cloud in the horizon. You tell me it is a mass of vapor which absorbs all other rays and reflects the red, but that is nothing to the purpose, for this red vision excites me, stirs my blood, makes my thoughts flow, and I have new and indescribable fancies, and you leave not touched the secret of that influence. If there is not something mystical in your explanation, something unexplainable to the understanding, some elements of mystery, it is quite insufficient. If there is nothing in it which speaks to my imagination, what boots it? What sort of science is that which enriches the understanding, but robs the imagination? not merely robs Peter to pay Paul, but takes from Peter more than it ever gives to Paul? That is simply the way in which it speaks to the understanding, and that is the account which the understanding gives of it; but that is not the way it speaks to the imagination, and that is not the account which the imagination gives of it. [...]. If we knew all things thus mechanically merely, should we know anything really?”. 68 percebe é amadurecido em alguma outra disposição. Os objetos nos quais me demoro correspondem ao meu estado de espírito106. Já em 1859, o autor refere-se à imaginação como o poder capaz de conduzir os pensamentos para além das circunstâncias de seu próprio contexto espaço-temporal: “A imaginação exige um longo alcance. É a capacidade do poeta de ver as coisas presentes como se, nesse sentido, também passadas e futuras, como se distantes ou universalmente significativas”107. Em A Week, ele relaciona a imaginação àquilo que há de mais sublime: coragem e heroísmo. “É a imaginação dos poetas”, escreve ele, “que coloca esses discursos corajosos na boca de seus heróis”108. Na linha do romantismo de Coleridge, é a imaginação, para Thoreau, que confere grandiosidade ao olhar humano, permitindo-lhe enxergar o sublime para além da tangibilidade dos limites do real (i.e., para além daquilo que é possível ao entendimento captar). Também em seu primeiro livro, lemos o seguinte: O mais estupendo cenário deixa de ser sublime quando se torna distinto, ou, em outras palavras, limitado, e a imaginação não é mais estimulada a exagerá- lo. A altura e a largura reais de uma montanha ou cachoeira são sempre ridiculamente pequenas; apenas aquilo que é imaginado que nos contenta. A Natureza não é feita da maneira que gostaríamos que ela fosse. Exageramos piedosamente as suas maravilhas, assim como o cenário em torno da nossa terra natal109. A compreensão romântica da Natureza como símbolo espiritual teve um vasto alcance ao longo do desenvolvimento do pensamento thoreauviano, e reverberou, como elucidaremos nos desdobramentos desta dissertação, na construção, a partir de sua percepção singular dos fenômenos naturais, de simbolismos mitopoéticos e musicais. Buscando aplicar a teoria da 106 Writings, XI, p. 359. 7 de agosto de 1853. No original: “Is it not as language that all natural objects affect the poet? He sees a flower or other object, and it is beautiful or affecting to him because it is a symbol of his thought, and what he indistinctly feels or perceives is matured in some other organization. The objects I behold correspond to my mood”. 107 THOREAU, Henry David. Journal XIII: December 1, 1859 — July 31, 1860. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 19, p. 17. 8 de dezembro de 1859. Doravante citado como Writings, XIX. No original: “The imagination requires a long range. It is the faculty of the poet to see present things as if, in this sense, also past and future, as if distant or universally significant”. 108 Writings, I, p. 405. No original: “It is the imagination of poets which puts those brave speeches into the mouths of their heroes”. 109 ibid., p. 202. No original: “The most stupendous scenery ceases to be sublime when it becomes distinct, or in other words limited, and the imagination is no longer encouraged to exaggerate it. The actual height and breadth of a mountain or a waterfall are always ridiculously small; they are the imagined only that content us. Nature is not made after such a fashion as we would have her. We piously exaggerate her wonders, as the scenery around our home”. 69 correspondência entre Natureza e espírito na concretude da vida e distanciando-se da pretensão de erudição dos literatos de gabinete, Thoreau defende que o conhecimento prático das coisas e seres da Natureza (ou seja: o conhecimento propiciado pela percepção sensível) é imprescindível no percurso de aprofundamento sapiencial acerca das criações linguísticas: Falam sobre aprender nossa literatura e ser letrado! Ora, as raízes das letras são coisas. Objetos e fenômenos naturais são os símbolos ou protótipos originais que expressam nossos pensamentos e sentimentos, e, no entanto, os estudiosos americanos, tendo pouca ou nenhuma raiz no solo, geralmente se empenham com todas as suas forças para se limitarem apenas aos símbolos importados. Todo crescimento e experiência verdadeiros, o discurso vivo, eles rejeitariam de bom grado como “americanismos”110. Em sua releitura da teoria da correspondência, o autor afirma a necessidade de nos referirmos à Natureza de forma personificada, preocupação especialmente nítida em sua literatura, na qual ouvimos ressoar a organicidade dos seres que lhe comunicam o caráter simbólico da Natureza e sua ligação intrínseca com a interioridade do espírito. Em 1860, ele escreve: Assim como na expressão das verdades morais admiramos qualquer proximidade com o fato físico que em toda linguagem é o símbolo do espírito, então, finalmente, quando os objetos naturais são descritos, é uma vantagem se as palavras são derivadas originalmente da natureza, é verdade, mas que foram desviadas (tropos) de sua significação primária para ser usado seu sentido moral, i.e., se o objeto é personificado. Aquele que ama e compreende melhor alguma coisa se inclinará a usar os pronomes pessoais ao falar dela111. 110 THOREAU, Henry David. Journal XII: March 2, 1859 — November 30, 1859. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 18, p. 389-390, grifos do autor. 16 de outubro de 1859. Doravante citado como Writings, XVIII. No original: “Talk about learning our letters and being literate! Why, the roots of letters are things. Natural objects and phenomena are the original symbols or types which express our thoughts and feelings, and yet American scholars, having little or no root in the soil, commonly strive with all their might to confine themselves to the imported symbols alone. All the true growth and experience, the living speech, they would fain reject as ‘Americanisms’”. 111 Writings, XIX, p. 145, grifos do autor. 15 de fevereiro de 1860. No original: “As in the expression of moral truths we admire any closeness to the physical fact which in all language is the symbol of the spiritual, so, finally, when natural objects are described, it is an advantage if words derived originally from nature, it is true, but which have been turned (tropes) from their primary signification to a moral sense, are used, i.e., if the object is personified. The one who loves and understands a thing the best will incline to use the personal pronouns in speaking of it”. 70 No bojo desse tecimento que reúne o domínio material e o mundo espiritual, articulação que percorre todo o pensamento thoreauviano, aparece o “poeta-profeta”112, figura representativa daquele que, no instante presente, torna-se capaz de contemplar a mesma verdade espiritual propagada pelos poetas, profetas e filósofos de todas as nações e eras da humanidade. Nos termos de Robert Sattelmeyer, encontrar “o universal no momento presente era o objetivo dos transcendentalistas”113. Nessa atmosfera, Ralph Emerson, na abertura de seu ensaio inaugural, insta seus leitores a refletirem sobre a contínua irrupção teofânica ao longo dos períodos históricos. Imerso nos ares românticos, o filósofo de Boston, em seu afastamento da postura acrítica frente às verdades das instituições religiosas e intelectuais, sustenta que a revelação divina e poética é sempiterna, fazendo-se presente, em todo o seu esplendor, para qualquer pessoa que possuir olhos para ver e ouvidos para ouvir. Nossa era é retrospectiva. Constrói sepulcros dos antepassados. Escreve biografias, histórias e criticismo. As gerações anteriores contemplavam Deus e a Natureza face a face; nós os contemplamos através de seus olhos. Por que não desfrutaríamos também de uma relação original com o universo? Por que não haveríamos de possuir uma poesia e uma filosofia da interioridade ao invés daquelas da tradição, e uma religião a nós revelada, ao invés da história da revelação passada? [...]. O sol brilha também hoje114. “As experiências dos homens e mulheres inspirados se repetiam”, escreve Octavius Frothingham em seu estudo pioneiro sobre o Transcendentalismo na Nova Inglaterra. “O profeta, o vidente e o santo não eram mais pessoas favorecidas cujas palavras e ações foram registradas na Bíblia, mas pessoas vivas, tornando manifesta a riqueza da alma em todos os seres humanos”115. É nítida a reverberação dessa visão na construção intelectual de Thoreau. Na obra Walden, por exemplo, ele exclama: “Há, de fato, algo de verdadeiro e sublime na eternidade. Mas todos esses tempos, lugares e ocasiões existem aqui e agora. Deus culmina no 112 Retomaremos esse conceito no segundo capítulo desta dissertação, “Hieróglifos mitopoéticos: o livro da Natureza”. 113 SATTELMEYER, op. cit., p. 42. No original: “To discover the universal in the present moment was the Transcendentalists’ aim”. 114 EMERSON, Nature, p. 3, grifos acrescentados. No original: “Our age is retrospective. It builds the sepulchers of the fathers. It writes biographies, histories, and criticism. The foregoing generations beheld God and nature face to face; we, through their eyes. Why should not we also enjoy an original relation to the universe? Why should not we have a poetry and philosophy of insight and not of tradition, and a religion by revelation to us, and not the history of theirs? [...]. The sun shines today also”. 115 FROTHINGHAM, Octavius Brooks. Transcendentalism in New England: A History. New York: G. P. Putnam’s Sons, 1880, p. 190-191. No original: “The experiences of inspired men and women were repeated. The prophet, the seer, the saint, was no longer a favored person whose sayings and doings were recorded in the Bible, but a living person, making manifest the wealth of soul in all human beings”. 71 momento presente, e não será mais divino no decorrer de todos os tempos”. “E só somos capazes de apreender o que é sublime e nobre”, continua ele, “com a perpétua instilação e absorção da realidade que nos cerca”116. “Assim é a beleza sempre — nem aqui e nem lá, nem agora e nem depois — nem em Roma e nem em Atenas, mas onde quer que haja uma alma para admirar”, escreve ele no início de seu percurso sapiencial. “Se eu a procurar em outro lugar porque não a encontro em casa, minha busca se mostrará infrutífera”117. Igualmente, em uma anotação de seu diário intitulada “Truth”, assim lemos: “Qualquer que seja a sabedoria passada ou presente que tenha sido publicada ao mundo, trata-se de uma falsidade palpável até que apareça e seja proferida de dentro”118. “Tales [de Mileto] foi o primeiro dos gregos a ensinar que as almas são imortais”, argumenta ele pouco tempo depois, “e é preciso igual sabedoria para discernir esse antigo fato nos dias de hoje. O que o primeiro filósofo ensinou, o último terá que repetir. O mundo não faz nenhum progresso”119. Capital é compreendermos que, tanto para Emerson quanto para Thoreau, a Natureza é o amplo seio alimentador da linguagem divina, fonte na qual se sacia a linguagem poética. Os frutos da possibilidade de olharmos “Deus e a Natureza face a face”, de percebermos que “Deus culmina no momento presente”, são germinados na relação do poeta com a totalidade dos fenômenos naturais. Sob essa ótica, a revelação dessa linguagem simultaneamente divina e natural permite ao ser humano caminhar rumo ao horizonte de redenção, de retorno ao tempo mítico, onde a tríade romântica divindade-natureza-humanidade forma uma só unidade. Nos termos de Albert Frank, para Emerson, a “Natureza era uma linguagem que [...] facilitava a comunhão entre o contingente e o absoluto, o fenomênico e o numênico, o humano e o divino”. “Esse trânsito”, continua o pesquisador, “era o território do poético; uma linguagem de maravilhamento era sua exposição. Seu efeito era redentor, ou comunicante de vida, pois restaurava a unidade. Conceitual e experiencialmente, ela revertia a Queda do Homem”120. 116 THOREAU, 2019, p. 101. 117 Writings, VII, p. 26. 21 de janeiro de 1838. No original: “Such is beauty ever, — neither here nor there, now nor then, — neither in Rome nor in Athens, but wherever there is a soul to admire. If I seek her elsewhere because I do not find her at home, my search will prove a fruitless one”. 118 ibid., p. 52. 4 de agosto de 1838. No original: “Whatever of past or present wisdom has published itself to the world, is palpable falsehood till it come and utter itself by inside”. 119 ibid., p. 134, grifo do autor. 22 de abril de 1840. No original: “Thales was the first of the Greeks who taught that souls are immortal, and it takes equal wisdom to discern this old fact to-day. What the first philosopher taught, the last will have to repeat. The world makes no progress”. 120 FRANK, 2010, p. 121. No original: “Nature was a language that [...] facilitated communion between the contingent and the absolute, the phenomenal and the noumenal, the human and the divine. That traffic was the territory of the poetic; a language of wonder was its currency. Its effect was redemptive, or life communicating, because it restored unity. Conceptually and experientially it reversed the Fall of Man”. 72 A tríade divindade-natureza-humanidade traz consigo a perspectiva de desvelamento da linguagem divina conforme se expressa no meio natural, e é transcrita na expectativa de ler o “livro da Natureza”, cuja escrita se tece e se revela no tempo presente. Coleridge escreveu, nesse sentido, que a “outra grande Bíblia de Deus, o livro da natureza, [se tornará] transparente para nós quando considerarmos as formas materiais como palavras . . . um fragmento estendido, embora glorioso, da sabedoria do Ser supremo”121. Emerson, herdeiro desse pensamento, exprimiu de forma semelhante sua concepção de Natureza como livro sagrado a ser lido e interpretado sob diversas óticas: “Se a vida fosse longa o suficiente, entre minhas mil e uma atividades, haveria um livro da natureza [...]. Uniria a astronomia, a botânica, a fisiologia, a meteorologia, o pitoresco e a poesia. Nenhum pássaro, nenhum broto, nenhum besouro seriam esquecidos […]”122. O “livro da Natureza”, sob a ótica thoreauviana, também expressa suas linguagens poeticamente, e deve ser lido e interpretado de acordo com os tons que evocam o caráter de vivacidade poética da terra: não como um livro morto e acabado, mas como “poesia viva”, símbolo da contínua cosmogênese do universo. Nesses termos, ele vocaliza em Walden que “[a] terra não é um mero fragmento de história morta, estrato sobre estrato como as folhas de um livro, a ser estudado principalmente por geólogos e antiquaristas”, “e sim poesia viva”, prossegue o autor, “como as folhas de uma árvore, que precedem as flores e os frutos — não uma terra fóssil, mas uma terra viva [...]”123. Refletindo, em seus diários, acerca dos grilos próximos ao gelo de Fair Haven, ele exterioriza seu anseio por conhecer a “gramática” e o “dicionário” da Natureza: “As rachaduras no gelo mostram uma clivagem branca. Qual é sua lei? Um tanto quanto uma folhagem, mas muito retangular, como os caracteres de alguma língua oriental. Sinto como se eu pudesse adquirir gramática e dicionário e penetrá-las”124. Similarmente, em outra ocasião, ele menciona os símbolos misteriosos comunicados pelos movimentos de uma raposa: 121 HARVEY, op. cit., p. 99. No original: “The other great Bible of God, the book of nature [will] become transparent to us when we regard the forms of matter as words . . . an unrolled but yet a glorious fragment, of the wisdom of the supreme Being”. 122 EMERSON, Ralph Waldo. Journals of Ralph Waldo Emerson. Editado por Edward Waldo Emerson e Waldo Emerson Forbes, 10v. Boston/New York: Riverside Press, 1909–1914, v. 3, p. 459-460. No original: “If life were long enough, among my thousand and one works, should be a book of nature [...]. It should tie their astronomy, botany, physiology, meteorology, picturesque, and poetry together. No bird, no bug, no bud, should be forgotten […]”. 123 THOREAU, 2019, p. 292. 124 Writings, IX, p. 175. 4 de janeiro de 1852. No original: “The cracks in the ice showing a white cleavage. What is their law? Somewhat like foliage, but too rectangular, like the characters of some Oriental language. I feel as if I could get grammar and dictionary and go into it”. 73 Ontem eu deslizei sobre o gelo atrás de uma raposa. Ocasionalmente ela se sentava sobre as patas traseiras e ladrava para mim como um jovem lobo. [...]. Todos os animais selvagens parecem ter um gênio para o mistério, uma aptidão oriental para os símbolos e para a linguagem dos sinais; e esta é a origem de Pilpay125 e de Esopo. [...]. Nossas cortes, embora ofereçam uma recompensa por seu couro, e nossos púlpitos, embora extraiam muita moral de sua astúcia, são em poucos sentidos contemporâneos de sua vida livre na floresta126. A partir desse panorama, compreende-se que é a pessoa de “Gênio”, o “poeta-profeta”, quem lê o livro da Natureza e interpreta e traduz seus hieróglifos, buscando, através de sua jornada de retorno à essência que lhe é própria, conferir sentido ao enigma da Esfinge — como escreveram, cada um a seu modo, Emerson e Thoreau: Lá está a Esfinge à beira do caminho e, de era em era, conforme cada profeta se aproxima, ele tenta sua fortuna lendo o enigma. Sem dúvida, será o efeito de tempos mais sábios e melhores — se a terra algum dia presenciá-lo — fender o sentido primitivo das coisas permanentes da natureza, para que, assim, tudo o que o olho vê possa ser um livro legível, no qual todas as formas, isoladamente, ou em composição, deverão ser significativas127. Mesmo que você aprenda a falar todas as línguas e a seguir os costumes de todas as nações, que viaje mais longe do que todos os viajantes, adapte-se a todos os climas e faça a Esfinge dar com a cabeça contra uma pedra, obedeça sempre ao preceito do antigo filósofo, e Explora a ti mesmo. Aqui se exigem olhos e nervos128. A Natureza, em sua organicidade mítico-poética, emite, em seus bailares e cantares, sentenças épicas e mitológicas — hieróglifos, imagens simbólicas que interconectam a Natureza, o humano e o divino. O escritor Walt Whitman (1819–1892) esposou esse entendimento de forma similar. Em Song of Myself, poema componente de sua obra-prima 125 Referência ao indiano Vishnu Sharma (geralmente considerado uma figura lendária) e à mais antiga coleção de fábulas de que se tem conhecimento, a ele atribuídas (o Panchatantra, obra traduzida para o inglês como The Fables of Pilpay/Bidpai). 126 Writings, VII, p. 470. 1837-47. No original: “Yesterday I skated after a fox over the ice. Occasionally he sat on his haunches and barked at me like a young wolf. [...]. All brutes seem to have a genius for mystery, an Oriental aptitude for symbols and the language of signs; and this is the origin of Pilpay and Aesop. [...]. Our courts, though they offer a bounty for his hide, and our pulpits, though they draw many a moral from his cunning, are in few senses contemporary with his free forest life”. 127 HARVEY, op. cit., p. 15. No original: “There sits the Sphinx at the roadside and from age to age as each prophet comes by, he tries his fortune at reading her riddle. It will no doubt be the effect of wiser and better times, if such the earth shall ever see, to open the primitive sense of the permanent objects of nature, that so, all which the eye sees, may be a legible book in which every form, alone, or in composition, shall be significant”. 128 THOREAU, 2019, p. 304. 74 Leaves of Grass (1855), após ter expressado a pergunta de uma criança sobre o que é a relva, ele medita: Vai ver é o lenço do Senhor, Um presente perfumado e o lembrete derrubado por querer, Com o nome do dono bordado num canto, pra que possamos ver e examinar, e dizer É seu? Vai ver a relva é a própria criança…. o bebê grassado pela vegetação. Vai ver é um hieróglifo enorme [...]129. É essencial salientarmos que, ao mesmo tempo em que havia entre os transcendentalistas a crença de que a Natureza é um livro que pode ser lido, fazia-se igualmente presente a ênfase nas limitações do conhecimento humano, isto é, na pequenez da capacidade humana de apreender a totalidade das linguagens naturais. Em The Transcendentalist, Emerson pondera, nesse sentido, acerca do caráter inefável e transcendental da natureza, insinuando que o ser humano, no limite, é incapaz de cumprir plenamente suas expectativas de compreensão da realidade natural na qual ele se insere: A natureza é transcendental, existe primariamente, necessariamente, sempre trabalha e avança, mas não se preocupa com o dia seguinte. O ser humano possui a dignidade da vida que palpita ao seu redor, na química, na árvore e no animal, e nas funções involuntárias de seu próprio corpo; ainda assim, ele se frustra quando tenta se lançar neste círculo encantado [...]130. Thoreau, igualmente, manifestou, em diversas ocasiões, sua consciência da vastidão da vida e da insuficiência humana frente ao anseio por compreensão dos mistérios “insondáveis” da Natureza. Em Walden, ele pondera que “[a]o mesmo tempo em que queremos explorar e aprender todas as coisas, esperamos que todas as coisas sejam misteriosas e inexplicáveis, que a terra e o mar sejam infinitamente selvagens, imapeados e insondados porque insondáveis. Nunca nos cansaremos da Natureza”131. “Eu gostaria de encontrar a sentença grandiosa e serena, que não se revela”, escreve ele em seu diário de 1842, “a qual com o máximo da minha 129 WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. Tradução e posfácio de Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 51, grifo acrescentado. 130 EMERSON, The Transcendentalist, p. 339. No original: “Nature is transcendental, exists primarily, necessarily, ever works and advances, yet takes no thought for the morrow. Man owns the dignity of the life which throbs around him, in chemistry, and tree, and animal, and in the involuntary functions of his own body; yet he is balked when he tries to fling himself into this enchanted circle […]”. 131 THOREAU, 2019, p. 300. 75 inteligência nunca poderei penetrar e ir além (mais do que a própria terra), que nenhuma inteligência pode compreender”132. Ainda assim, prevalecia o anseio por uma plena comunhão com o cosmos. Invocando a ancestralidade espiritual da antiga Grécia, Thoreau procurou submergir-se completamente nos fenômenos selvagens da terra. Absorto em sua peregrinação pelas sendas telúricas, ele vislumbra a presença sagrada da deusa primordial Gaia, modulada na mistura elemental que tudo reúne. Em seu maravilhamento diante das faces ctônicas e incomensuráveis da Natureza, ele clama por contato com as raízes sagradas de Gaia, divindade “nascida do Caos e da Velha Noite”. Expressando seu anelo por uma comunhão terrenal que possa lhe conferir a resposta ao enigma da Esfinge (quem somos nós; onde habitamos?), em The Maine Woods [As Matas do Maine] (1848), ele confessa: A Natureza era aqui algo selvagem e terrível, embora bela. Olhei com maravilhamento para o solo em que pisei, a fim de ver o que os Poderes haviam realizado por lá, a forma, o estilo e o material de seu trabalho. Esta era aquela Terra da qual ouvimos falar, nascida do Caos e da Velha Noite. [...]. O que é esse Titã que me possui? Vocês falam de mistérios! Pensem em nossa vida na natureza — diariamente mostrando-se na matéria, para que entremos em contato com ela — pedras, árvores, vento em nossas bochechas! a terra sólida! o mundo real! o senso comum! Contato! Contato! Quem somos nós? onde estamos?133 132 Writings, VII, p. 331. 15 de março de 1842. No original: “I should like to meet the great and serene sentence, which does not reveal itself, [...] which I may never with my utmost intelligence pierce through and beyond (more than the earth itself), which no intelligence can understand”. 133 THOREAU, Henry David. The Maine Woods. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 3, p. 78-79, grifos do autor. Doravante citado como Writings, III. No original: “Nature was here something savage and awful, though beautiful. I looked with awe at the ground I trod on, to see what the Powers had made there, the form and fashion and material of their work. This was that Earth of which we have heard, made out of Chaos and Old Night. [...]. What is this Titan that has possession of me? Talk of mysteries! Think of our life in nature, — daily to be shown matter, to come in contact with it, — rocks, trees, wind on our cheeks! the solid earth! the actual world! the common sense! Contact! Contact! Who are we? where are we?”. 76 1.3. Entre o transcendentalismo e o naturalismo1 O mistério da vida das plantas é aparentado com o mistério de nossas próprias vidas, e o fisiologista não deve presumir explicar o crescimento das plantas de acordo com leis mecânicas, ou como se pudesse explicar algum mecanismo de fabricação própria. Não devemos esperar sondar com os dedos o santuário de qualquer vida, seja ela animal ou vegetal. Se o fizermos, não descobriremos nada além da superfície. A expressão última ou o fruto de qualquer coisa criada é uma bela efluência que somente o mais ingênuo adorador percebe a uma distância reverente [...]. (Henry David Thoreau, Journals)2. Paralelamente ao estudo dos textos religiosos e das literaturas clássicas da Antiguidade, o autor da Nova Inglaterra do séc. XIX, como já comentamos, foi também um ávido leitor das investigações da história natural, tendo abarcado em suas reflexões, por exemplo, as pesquisas científicas contemporâneas dos naturalistas Alexander von Humboldt (1769–1859) e Charles Darwin (1809–1882). A propósito, o estudioso de Concord nasceu em um ambiente que impulsionou, desde cedo, sua ligação com o mundo natural. Seus pais John e Cynthia Thoreau nutriram estreitas aproximações com as discussões da história natural e com a prática de participação em excursões botânicas que vigoraram no século XIX. Até o ano de 1833, quando foi estudar no Harvard College, Henry Thoreau desfrutou de seu tempo de juventude completamente imerso em seu ambiente nativo, espaço onde adquiriu as habilidades que o permitiram tornar-se também um agrimensor. Em vista disso, William Rossi salienta que os mergulhos de Thoreau nos ecossistemas autóctones dos rios Concord e Sudbury, ainda na tenra idade, fertilizaram sua apreciação pela beleza da paisagem3. Conta-nos Harding, ademais, que no tempo em que o pensador manteve sua escola privada em sua cidade natal, ele chegou a gabar-se com seus alunos com o fato de que “ele era tão familiar com as flores de Concord, 1 Na formulação de Alan Hodder, a posição intelectual de Thoreau em sua fase madura era a de um “naturalismo transcendental” (“transcendental naturalism”). Cf. HODDER, Alan D. Thoreau’s Ecstatic Witness. New Haven/London: Yale University Press, 2001, p. 70. As ideias aqui expostas foram elaboradas, de forma preliminar, no artigo que produzi no contexto do Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) de 2021. Cf. LAMHA, Letícia Ferreira. Entre Homero e Humboldt: Natureza, espiritualidade e ciência no pensamento de Henry D. Thoreau. Anais dos Simpósios da ABHR, p. 542-551, 2022. 2 Writings, XVIII, p. 523. 7 de março de 1859. No original: “The mystery of the life of plants is kindred with that of our own lives, and the physiologist must not presume to explain their growth according to mechanical laws, or as he might explain some machinery of his own making. We must not expect to probe with our fingers the sanctuary of any life, whether animal or vegetable. If we do, we shall discover nothing but surface still. The ultimate expression or fruit of any created thing is a fine effluence which only the most ingenious worshiper perceives at a reverent distance [...]”. 3 ROSSI, William. Introduction. In: THOREAU, Henry D. Wild Apples and Other Natural History Essays. Editado por William Rossi. Athens: University of Georgia Press, 2002, p. vii-xxiv, à página vii. 77 Acton e Lincoln que, por seu desabrochar, podia dizer em que mês ele estava”. Seus estudantes, por sua vez, costumavam dizer que “[s]e acontecesse algo nas matas densas que ocorresse apenas uma vez a cada cem anos, Henry Thoreau com certeza estaria no local e momento exatos e saberia toda a história”4. A narrativa perscrutada pelo autor, como podemos perceber de antemão, constitui-se de forma híbrida e multidisciplinar, abarcando os poetas-mitólogos clássicos juntamente com os estudiosos contemporâneos voltados para a investigação científica da Natureza. Procurando explorar as possibilidades de consonância entre as composições poéticas da Antiguidade e as pesquisas dos naturalistas modernos, o pensador de Massachusetts ressoa as melodias primaveris do cosmo — que, para além das distinções metodológicas dos propósitos mitológicos/poéticos e científicos, fazem-se ouvir, sob panoramas diversos, em todos os tempos e lugares. Como indicamos preliminarmente, a representação do “poeta-profeta”, apropriada pelos transcendentalistas a partir de suas aproximações do romantismo e das teorias histórico- literárias de interpretação da Bíblia e dos textos homéricos desenvolvidas na modernidade, encontrou em Thoreau, similarmente, uma via singular de manifestação. Isso é claro, por exemplo, logo no início de “Reading” [“Leitura”] e de “Sounds” [“Sons”], terceiro e quarto capítulos, respectivamente, de Walden: O mais antigo filósofo egípcio ou hindu ergueu uma ponta do véu da estátua da divindade; e o trêmulo tecido ainda se mantém erguido, e fito uma glória tão fresca quanto ele fitou, pois naquele momento era eu nele a ser tão ousado, e agora é ele em mim que renova a visão. Nenhum pó se assentou naquele tecido; nenhum tempo decorreu desde que se revelou aquela divindade5. Nenhum método ou disciplina pode substituir a necessidade de se estar sempre alerta. O que é um curso de história, de filosofia ou de poesia, por mais seleto que seja, ou a melhor companhia ou a mais admirável rotina de vida, em comparação à disciplina de olhar sempre o que há para ser visto? Você vai ser um leitor, um estudioso apenas, ou um vidente? Leia seu destino, veja o que está à sua frente, e avance para o futuro6. Esse anseio por profetizar o próprio destino e descobrir aquilo que foi revelado aos filósofos antigos em seu desvelamento da divindade perpassa, igualmente, sua perquirição 4 HARDING, 1965, p. 82. No original: “he was so well acquainted with the flowers of Concord, Acton, and Lincoln that he could tell by the blooming of the flowers in what month he was”; “If anything happened in the deep woods which only came about once in a hundred years, Henry Thoreau would be sure to be on the spot at the time and know the whole story”. 5 THOREAU, 2019, p. 103. 6 ibid., p. 113. 78 empírica das leis naturais. Crucial, para Thoreau, é a compreensão norteadora de que o saber, em todas as suas formas, deve ser sempre experienciado, incorporado. Em seu sentido essencial, conhecimento é conhecimento de si mesmo; diz respeito a uma “revelação”, uma “visão” recebida em primeira mão. A verdadeira filosofia, consequentemente, é aquela que se anuncia nas manifestações naturais do momento presente, tal como ele escreve, em meados de 1840, em seu diário: “O tordo da floresta é um filósofo mais moderno do que Platão e Aristóteles. Estes são atualmente um dogma, mas o tordo prega a doutrina desta hora”7. Em A Week on the Concord and Merrimack Rivers, Thoreau atrelou o argumento quanto à possibilidade de acesso individual às leis divinas também às leis naturais e, assim, à investigação científica: Muito se fala sobre o progresso da ciência nesses séculos. Devo dizer que os resultados úteis da ciência se acumularam, mas que não houve acúmulo de conhecimento, estritamente falando, para a posteridade; pois o conhecimento somente é adquirido por uma experiência correspondente. Como podemos conhecer aquilo que nos é meramente dito? Cada pessoa pode interpretar a experiência da outra apenas por sua própria. Lemos que Newton descobriu a lei da gravidade, mas quantos daqueles que ouviram a respeito de sua famosa descoberta reconheceram a mesma verdade que ele? [...]. A revelação que outrora foi feita a ele não foi substituída pela revelação feita a qualquer sucessor8. O conhecimento, como inferimos a partir dessas passagens dos dois únicos livros publicados por Thoreau ao longo de sua vida, é alicerçado sobre interpretações que emergem da própria experiência da pessoa que busca o saber; uma experiência que não deixa e não pode deixar de dialogar com as descobertas de buscadores precedentes, mas que não se limita aos dados por elas fornecidas. Compreende-se, assim, que as informações que recebemos acerca das visões gloriosas dos antigos filósofos egípcios e hindus, assim como os elementos propiciados pelas descobertas científicas de Newton, tornam-se significativos para nós apenas na medida em que se revelam verdadeiros na singularidade de nossa própria vivência — ou, como havia preconizado Ralph Emerson em Nature, quando nos apercebemos capazes de 7 Writings, VII, p. 171. 27 de julho de 1840. No original: “The wood thrush is a more modern philosopher than Plato and Aristotle. They are now a dogma, but he preaches the doctrine of this hour”. 8 Writings, I, p. 389-390, grifos do autor. No original: “Much is said about the progress of science in these centuries. I should say that the useful results of science had accumulated, but that there had been no accumulation of knowledge, strictly speaking, for posterity; for knowledge is to be acquired only by a corresponding experience. How can we know what we are told merely? Each man can interpret another’s experience only by his own. We read that Newton discovered the law of gravitation, but how many who have heard of his famous discovery have recognized the same truth that he did? [...]. The revelation which was then made to him has not been superseded by the revelation made to any successor”. 79 contemplar “Deus e a Natureza face a face”, tal como aqueles que vieram antes de nós9. Conhecer, em seu sentido substancial, pressupõe, portanto, o compartilhar de uma visão, de uma revelação: experienciar a erguida de “uma ponta do véu da estátua da divindade”10. Na esteira dos itinerários românticos percorridos pelos transcendentalistas, Thoreau entende que as leis da matéria e do espírito mantêm entre si uma relação de correspondência: estudar a Natureza significa, sobretudo, penetrar nos sendeiros do autoconhecimento. Como o poeta William Wordsworth, Thoreau encontra na “natureza e na linguagem dos sentidos” a âncora de seu “mais puro pensar” e de todo o seu “ser moral”11. Afinal, como compreende o autor norte- americano, todas as coisas profetizam, e os hieróglifos da Natureza se disponibilizam para todos aqueles que, através de suas empreitadas no sentido de decifrar os símbolos sagrados que se desenham nos mosaicos da realidade, buscam o aprimoramento moral de si mesmos: “Os oráculos de Deus servem ao interesse público gratuitamente. Para a mente justa e benevolente a natureza declara, assim como o sol ilumina o mundo”12. A Natureza, assim concebida, confere clareza à imagética formada nas mesclas dos tons das dimensões aqui identificadas como “divindade, Natureza e humanidade”, permitindo-nos trazer à lume a afirmação de Heráclito a respeito do oráculo de Febo Apolo, “o luminoso”, em Delfos: não afirma e não nega, mas declara por meio de sinais13. A partir desse diálogo emblemático, transparece a necessidade de que o consulente das profecias naturais interprete as declarações simbólicas apregoadas pela Natureza, pois o prophḗtēs, ao fim e ao cabo, é quem emite interpretações da fala divina. As inventivas do pensador de Concord no sentido de decifrar os oráculos cósmicos percorreram múltiplas direções ao longo do desenvolvimento de sua jornada intelectual. Embebido pela inspiração poética e pela divinação profética, o pesquisador esteve igualmente imerso em explorações nas matas e rios nos arredores da Nova Inglaterra, e, em sua devoção à descoberta do divino no universo natural, se valeu das ferramentas metodológicas de estudo 9 Cf. p. 70. 10 É significativo que, na passagem inicial de “Reading” supracitada, Thoreau diga que os antigos filósofos levantaram “uma ponta do véu da estátua da divindade”. Subentende-se, desse modo, que levantamos uma ponta do véu, mas não o erguemos inteiramente. Aqui, como em diversos outros momentos, o autor aponta para as limitações inerentes aos empreendimentos humanos de desvelamento do divino. A reflexão thoreauviana quanto aos óbices da episteme humana em sua apreensão do sagrado na realidade será abordada na última seção da dissertação, “Prelúdio de uma nota”. 11 Cf. p. 20-21. 12 Writings, VII, p. 201, grifo do autor. 6 de fevereiro de 1841. No original: “The oracles of God serve the public interest without fee. To the just and benevolent mind nature declares, as the sun lights the world”. 13 Cf. KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-socráticos: História Crítica com Selecção de Textos. Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 217: “O senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta, mas manifesta- se por sinais” (Frag. 93, Plutarco, de Pyth. or. 21, 404e). 80 científico do mundo que se faziam disponíveis em seu contexto, legando relevantes contribuições para o conhecimento dos biomas de sua terra natal. No atual Herbário da Universidade de Harvard, por exemplo, encontramos cerca de oitocentas e vinte espécimes de plantas por ele colhidas e armazenadas, uma das marcas de seus contributos às pesquisas das ciências naturais que ainda se fazem presentes na contemporaneidade14. A partir de uma percepção multifocal, o escritor norte-americano nos sugere que é através da expansão da visão que nos deparamos com o desconhecido; que são as visões que englobam “o lado do olho” as propiciadoras, para usarmos os termos do eminente poeta e mitógrafo inglês William Blake (1757–1827), da abertura das “portas da percepção”15. Em 1856, após dois anos da publicação do livro Walden, Thoreau ponderou, nesse sentido: Novamente, como em tantas outras vezes, lembro-me do proveito para o poeta, para o filósofo, para o naturalista, e para quem quer que seja, de buscar de tempos em tempos alguma outra atividade que não aquela escolhida por ele — ver com o lado do olho. O poeta receberá então visões que nenhum abandono deliberado pode assegurar. O filósofo é forçado então a reconhecer princípios que um longo estudo pode não detectar. E até mesmo o naturalista tropeçará em alguma flor ou animal novo e inesperado16. Explorar aquilo que não foi ainda considerado, aquilo que ficou ao “lado do olho” é, nesses termos, abrir caminho para a visão, para a percepção (perceptiō — uma colheita)17. Em seus cultivos e colheitas, o visionário de Concord, em sua inventiva de conceber a Natureza como um todo interconectado, incorporou visões multivalentes e, na profundidade de sua apropriação do prisma voltado para as indagações empíricas e para o contato sensitivo junto à Natureza, distinguiu-se de seu mestre Emerson e dos transcendentalistas em geral. À vista disso, Robert Richardson comenta, justamente, que muito embora o pensador de Boston, por ocasião 14 Cf. POWELL, Alvin. On Thoreau’s 200th birthday, a gift for botany. The Harvard Gazette. Cambridge, 7 jul., 2017, Health & Medicine. 15 Em seu mito moderno The Marriage of Heaven and Hell (O Matrimônio do Céu e do Inferno), na seção “A Memorable Fancy” (“Uma Visão Memorável”), Blake assim manifesta seu vislumbre: “Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é: infinito. / Pois o homem se encerrou em si mesmo, a ponto de ver tudo pelas estreitas fendas de sua caverna” (BLAKE, William. Visões: Poesia Completa. Tradução, organização, introdução e notas de José Antonio Arantes. São Paulo: Iluminuras, 2020, p. 183). 16 Writings, XIV, p. 314. 28 de abril de 1856. No original: “Again, as so many times, I am reminded of the advantage to the poet, and philosopher, and naturalist, and whomsoever, of pursuing from time to time some other business than his chosen one, — seeing with the side of the eye. The poet will so get visions which no deliberate abandonment can secure. The philosopher is so forced to recognize principles which long study might not detect. And the naturalist even will stumble upon some new and unexpected flower or animal”. 17 Um dos sentidos possíveis do termo latino perceptiō aponta para “The action of taking (crops, etc.) from the place of growth, gathering; the right of doing so” (GLARE, op. cit., p. 1465). 81 do assombro com o qual foi tomado em sua visita ao Jardin de Plantes, tenha escrito “Eu serei um naturalista”18, ele não chegou a se tornar um estudioso da natureza como seu sobrinho George B. Emerson19 ou como Thoreau20. O próprio Emerson apontou para essa distinção, quando, em 1863, um ano após a morte de seu amigo, afirmou que, embora ambos compartilhassem do mesmo “espírito” em suas respectivas reflexões, Thoreau deu “um passo além”, e expressou sua singularidade enquanto escritor e pensador ao trazer à baila a agudeza de sua captação sensitiva da Natureza: Ao ler o diário de Henry Thoreau, fico muito sensível ao vigor de sua constituição. Essa [mesma] força do carvalho que eu notava sempre que ele caminhava, trabalhava, ou examinava lotes de madeira, a mesma mão resoluta com a qual um trabalhador do campo se aproxima de uma atividade, que eu evitaria como um desperdício de força, Henry apresenta em sua tarefa literária. Ele possui musculatura [intelectual], & se aventura & realiza proezas que sou forçado a recusar. Ao lê-lo, encontro o mesmo pensamento, o mesmo espírito que está em mim, mas ele dá um passo além, & ilustra através de excelentes imagens aquilo que eu devo ter transmitido em uma generalidade langorosa21. Em sua eulogia a Thoreau, ele demarcou, de maneira semelhante, o hábito do andarilho de Concord de medir os objetos que cativavam sua atenção, habilidade matemática que, uma vez unida ao seu íntimo conhecimento das matas ao redor de Concord, impulsionou seu trabalho como agrimensor. Thoreau demonstrava possuir “uma maravilhosa adequação entre corpo e mente”, de modo que suas caminhadas pelas matas circundantes constituam um pilar essencial de seu trabalho intelectual: “Ele dizia que precisava de cada passada que davam suas pernas. O ritmo de suas caminhadas dava o ritmo de suas palavras escritas. Fechado em casa, não escrevia 18 Cf. p. 53. 19 George Barrell Emerson (1797–1881) foi uma figura proeminente na atuação em prol do estabelecimento da educação de mulheres, e um importante popularizador da história natural na América, tendo sido um dos fundadores e segundo presidente da Boston Society of Natural History. Foi o autor de uma das pesquisas clássicas de seu tempo sobre a botânica da Nova Inglaterra, A report on the trees and shrubs growing naturally in the forests of Massachusetts. Cf. George B. Emerson. Proceedings of the American Academy of Arts and Sciences, v. 16, American Academy of Arts & Sciences, p. 427-429, 1880. 20 RICHARDSON, 1995, p. 143. 21 EMERSON, Ralph Waldo. The Journals and Miscellaneous Notebooks of Ralph Waldo Emerson. Volume XV: 1860–1866. Editado por Linda Allardt, David W. Hill e Ruth H. Bennett. Cambridge/London: The Belknap Press of Harvard University Press, 1982, p. 352-353. No original: “In reading Henry Thoreau’s journal, I am very sensible of the vigor of his constitution. That [same] oaken strength which I noted whenever he walked, or worked, or surveyed wood-lots, the same unhesitating hand with which a field-laborer accosts a piece of work, which I should shun as a waste of strength, Henry shows in his literary [labor] task. He has [intellectual] muscle, & ventures on & performs feats which I am forced to decline. In reading him, I find the same thought, the same spirit that is in me, but he takes a step beyond, & illustrates by excellent images that which I should have [said] conveyed in a sleepy generality”. 82 uma única linha”, testificou Emerson22. Isso é evidenciado pelo próprio autor em Walking, onde, atestando sua propensão natural para divagações nas matas, realizadas no sentido de uma peregrinação (sauntering), ele apregoa que “cada caminhada é uma espécie de cruzada, proclamada por algum Pedro o Eremita dentro de nós”, e afirma que não era capaz de manter sua saúde e seu estado de espírito a não ser que passasse “pelo menos quatro horas por dia — e geralmente mais do que isso — perambulando pelos bosques, morros e campos”. “Gostaria que cada homem fosse tão semelhante a um antílope selvagem”, diz Thoreau nesse mesmo ensaio, “tão estranhamente parte da Natureza, que sua própria pessoa anunciasse docemente sua presença aos nossos sentidos, e nos fizesse lembrar daquelas partes da Natureza que ele mais frequenta”. O cheiro das roupas do caçador, que exalam o odor do rato-almiscarado, continua ele, “é para mim um aroma mais agradável do que o que geralmente emana dos trajes do comerciante ou do professor”, vestimentas que não carregam o perfume das “planícies relvadas ou campinas floridas”, mas a emanação de “empoeirados balcões de comércio e bibliotecas”23. Atestando a propensão do “poeta-naturalista” para a reflexão embasada na sensibilidade, o poeta William Ellery Channing (1817–1901), companheiro de caminhada de Thoreau e o primeiro a escrever uma biografia do autor — intitulada, justamente, Thoreau, The Poet-Naturalist (1873), sublinha uma característica do pensamento thoreauviano que exprime seu afastamento das discussões filosóficas nas quais muitos dos transcendentalistas estavam envolvidos, dentre os quais Emerson. Thoreau, relatou Ellery Channing, “filosofava ab initio. Metafísica era sua aversão. Ele acreditava e vivia em seus sentidos sublimemente. Especulações sobre as faculdades especiais da mente, ou sobre se o Não-Eu vem do ‘Eu’, ou se o Todo vem do Nada infinito, ele não poderia entreter”24. Um dos desejos norteadores de seu estudo da Natureza estava voltado para a estruturação de um calendário dos eventos naturais de sua terra autóctone, uma marcação que, na multiplicação da “imagem de um dia”, fosse capaz de representar o “panorama de um ano”. Ele empregava manômetros em seu estudo dos rios, “anotava as temperaturas de nascentes e lagos; registrava cada novo céu; o florescimento das plantas, seu desabrochar e seus frutos; o caimento das folhas; as chegadas e partidas das aves migratórias; os hábitos dos animais [...]”25. 22 EMERSON, Thoreau, p. 321-322. 23 THOREAU, 2012a, p. 82, 84 e 102. 24 CHANNING, William Ellery. Thoreau: The Poet-Naturalist. With Memorial Verses. Boston: Roberts Brothers, 1873, p. 41. No original: “philosophized ab initio. Metaphysics was his aversion. He believed and lived in his senses loftily. Speculations on the special faculties of the mind, or whether the Not Me comes out of the ‘I’, or the All out of the infinite Nothing, he could not entertain”. 25 ibid., p. 50-51. No original: “image of a day”; “panorama of the year”; “he noted the temperatures of springs and ponds; set down each novel sky; the flowering of plants, their blossom and fruit; the fall of 83 Conforme o testemunho de Channing, Thoreau foi um ávido leitor da história natural de Aristóteles, Teofrasto e Cláudio Eliano, bem como um estudioso fiel das obras sobre agricultura dos autores romanos Catão, Varrão e Columela. Especialmente valiosa foi a História Natural de Plínio, leitura posterior. Igualmente, Thoreau teve contato com os escritos do estudioso holandês Gerard Boate (1604–1650), autor de Ireland’s Naturall History (1652), bem como com o sistema classificatório do naturalista sueco Carlos Lineu (1707–1778), conhecido como o patrono da taxonomia botânica moderna26. A filosofia da Natureza thoreauviana, todavia, se fundamentava em um princípio espiritual: “Sua fé no selvagem era intrínseca”: ele “acreditava que a planta e o animal eram uma religião para si mesmos e para ele”27. Essa conjugação entre poesia, espiritualidade e ciência nas reflexões thoreauvianas, conforme aludida por Ellery Channing, foi construída gradativamente ao longo do desabrochar sapiencial de nosso autor. Em Thoreau’s Reading: A Study in Intellectual History, Robert Sattelmeyer aponta, nesse sentido, que, quando estudou no Harvard College, Thoreau ainda não havia desenvolvido o interesse pela linguagem descritiva da Natureza que se manifestou na fase madura de seu pensamento. Ainda assim, em seus anos iniciais de formação, ele frequentou o curso de história natural oferecido pelo futuro entomologista Thaddeus William Harris (1795–1856), cujas aulas estavam fundamentadas no livro An Introduction to Systematic and Physiological Botany (1827), do botânico britânico Thomas Nuttall (1786–1859), e, primordialmente, na obra Philosophy of Natural History (1790-99), do naturalista escocês William Smellie (1740–1795). A compilação de Smellie era a mais importante fonte de estudos do ramo da história natural no currículo de Harvard, uma vez que argumentava, nas trilhas da filosofia e da teologia do século XVIII, que as dinâmicas do mundo natural evidenciam a existência de um criador supremo do universo28. O “argumento do design” estava representado, igualmente, na Natural Theology: Or, Evidences of the Existence and Attributes of the Deity, Collected from the Appearences of Nature (1802), do teólogo britânico William Paley (1743–1805), livro que também foi examinado por Thoreau, e cujas formulações acerca da analogia do relojoeiro reverberaram, posteriormente, nas aulas por ele aplicadas na Concord Academy29. Outro cânone da época era a obra A Preliminary Discourse on the Study of Natural Philosophy (1830), do erudito inglês John Herschel (1792–1871), que apresentava aquele que leaves; the arrivals and departures of the migrating birds; the habits of animals […]”. 26 ibid., p. 58-60. 27 ibid., p. 324-325. No original: “His faith in wildness was intrinsic”; “believed that plant and animal were a religion unto themselves and unto him”. 28 SATTELMEYER, op. cit., p. 9-10. 29 ibid., p. 16. 84 posteriormente foi definido como o “método científico”. Herschel também propunha uma visão do mundo contemplado como “um sistema disposto com ordem e design” e sustentado por “um Poder e uma Inteligência superior a ele”. Não obstante apontasse para a necessidade das especializações dos ramos do conhecimento na análise desse todo ordenado, seu argumento era que a “filosofia natural é essencialmente unida em todos os seus departamentos, através dos quais um espírito reina e aplica-se um método de investigação”30. Ainda que em seus tempos de Harvard Thoreau não tenha se aprofundado nas discussões da filosofia/história natural e sua única produção nessa direção tenha sido um ensaio embasado em The Book of Seasons; Or The Calendar of Nature (1831), de William Howitt (1792–1879), podemos dizer que a inclinação para a observação dos ciclos naturais nele se manifestou desde seus anos juvenis. Por volta de seus 11 ou 12 anos, ele escreveu o ensaio The Seasons [As Estações]31, e, mais tarde, no tempo posterior à sua formação em Harvard, cultivou seu interesse por Goethe, autor que representou sua ponte inicial para o encontro com os elementos gerais da Naturphilosophie alemã32. Sua primeira composição voltada para o campo da história natural data da década de 1840, período em que Thoreau começou a demarcar o solo de sua pesquisa empírica como naturalista. Após Emerson ter assumido o editorial do periódico transcendentalista The Dial, em 1842, ele convidou Thoreau para revisar uma obra recente sobre a fauna e a flora de Massachusetts, ocasião da composição de Natural History of Massachusetts [História Natural de Massachusetts], ensaio publicado no mesmo ano33. Já nessa estruturação inicial, ele pinta a figura do mais proeminente cientista como aquele que, em seu intercurso junto ao vir a ser natural, devota sua sensibilidade à captação do conhecimento ofertado pela Natureza34. Em sua vinculação das leis morais às leis naturais (i. e., a busca por sapiência nos saberes), o estudioso 30 WALLS, Laura Dassow. Seeing New Worlds: Henry David Thoreau and Nineteenth-Century Natural Science. Madison: University of Wisconsin Press, 1995, p. 6. No original: “a system disposed with order and design”; “a Power and an Intelligence superior to his own”; “natural philosophy is essentially united in all its departments, through all which one spirit reigns and one method of enquiry applies”. 31 HARDING, 1965, p. 26. O texto começa com o seguinte poema: “Why do the seasons change? and why / Does Winter’s stormy brow appear? / Is it the word of him on high, / Who rules the changing varied year”. Vemos que, desde a infância, Thoreau atribuiu o ritmo sazonal à ordem divina. 32 SATTELMEYER, op. cit., p. 26-27. 33 ibid., p. 29-30 e 35. 34 Cabe-nos aqui lembrar que, na década de 1850, como comentam Richardson e Versluis, Thoreau passou a se aproximar da corrente filosófica aristotélica e sua ênfase na observação científica. “If Emersonian Transcendentalism was Platonic”, escreve Versluis, “late Thoreau is very much Aristotelian, interested not so much in the world of ideas as in the observation of the physical” (VERSLUIS, Arthur. Emerson, Thoreau, Alcott, and the Orient. In: ______. American Transcendentalism and Asian Religions. New York/Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 51-118, à página 97). 85 das ciências, enraizado em sua simpatia para com suas manifestações da Natureza, torna-se, assim, um genuíno porta-voz de sua vitalidade: O verdadeiro estudioso da ciência conhecerá melhor a natureza por intermédio de sua organização mais refinada; ele vai cheirar, provar, ver, ouvir e sentir de forma superior a outros estudiosos. Sua experiência será mais profunda e mais refinada. Não aprendemos por inferência, por dedução e pela aplicação da matemática à filosofia, mas por meio do contato direto e da simpatia. A ciência é como a ética, não podemos conhecer a verdade por artifício e método; o método baconiano é tão falso quanto qualquer outro, e, com todas as ajudas da maquinaria e das artes, o estudioso mais científico ainda será a pessoa mais salutar e amigável, e possuirá uma sabedoria indígena mais perfeita35. Seis anos depois da publicação desse ensaio, o autor estabeleceu contato com Hints Towards the Formation of a More Comprehensive Theory of Life, obra já citada de Coleridge, que lhe forneceu novos elementos para seu encalço por uma finalidade superior no estudo dos fenômenos naturais. Nesse livro, o patriarca do romantismo inglês presume a existência de uma “grande finalidade da Natureza, seu objetivo último, ou por qualquer outra palavra que possamos designar aquele algo que nutre com a causa final a mesma relação que a própria Natureza tem com a Inteligência Suprema”36. Conforme Sattelmeyer, esse texto pode ter sido um importante mobilizador do próprio trabalho de Thoreau enquanto naturalista, uma vez que propunha uma articulação da ciência natural que ia de encontro com os pressupostos epistemológicos e estéticos do romantismo, remontando à Naturphilosophie de Schelling e contemplando, concomitantemente, os trabalhos de observação e classificação de espécimes37. Essas averiguações de fontes filosóficas que remontavam, de forma panorâmica, ao romantismo e ao idealismo estavam vinculadas com suas buscas físicas junto às estruturações endêmicas de sua localidade, que o inseriram no panorama das pesquisas dos naturalistas modernos. Assim, na primavera de 1847, Thoreau começou a recolher espécimes de peixes e tartarugas para o 35 THOREAU, Henry David. Natural History of Massachusetts. In: ______. Essays: A Fully Annotated Edition. Editado por Jeffrey S. Cramer. New Haven/London: Yale University Press, 2013, p. 1-26, à página 26. Doravante citado como THOREAU, 2013b. No original: “The true man of science will know nature better by his finer organization; he will smell, taste, see, hear, feel, better than other men. His will be a deeper and finer experience. We do not learn by inference and deduction, and the application of mathematics to philosophy, but by direct intercourse and sympathy. It is with science as with ethics, we cannot know truth by contrivance and method; the Baconian is as false as any other, and with all the helps of machinery and the arts, the most scientific will still be the healthiest and friendliest man, and possess a more perfect Indian wisdom”. 36 COLERIDGE, 1848, p. 50. No original: “the one great end of Nature, her ultimate object, or by whatever other word we may designate that something which bears to a final cause the same relation that Nature herself bears to the Supreme Intelligence”. 37 SATTELMEYER, op. cit., p. 45. 86 mais eminente naturalista das redondezas, Louis Agassiz (1807–1873), que se tornou professor de zoologia e geologia na Lawrence Scientific School, em Harvard, e o patrono divulgador dos estudos voltados à história natural na América38. Já em dezembro de 1850, após ter apresentado ao curador de aves da Boston Natural History Society, Samuel Cabot (1815–1885), um espécime raro da ave de rapina açor, Thoreau foi convidado a se tornar um colaborador da instituição, oportunidade que lhe garantiu o acesso à biblioteca da sociedade de História Natural e, conseguintemente, às mais recentes pesquisas neste campo39. Entrementes, ele começou a manter dois cadernos, um para a transcrição de “fatos” e outro para as expressões da “poesia”40. Interessante notar que, pouco tempo depois, ele confessou, em seu diário, que não era possível, no limite, traçar a linha de divisão entre “fatos” e “poesia”, uma vez tendo concluído que todas as coisas se mostram, em seu sentido substancial, na condição de poíēsis. “Tenho um livro comum para fatos e um outro para poesia, mas acho difícil sempre preservar a vaga distinção que eu tinha em mente”, escreve ele, “pois os fatos mais interessantes e belos o são tanto quanto são poesia, e nisso consiste o seu sucesso. Eles são traduzidos da terra para o céu”. Ao que continua: “Vejo que se meus fatos fossem suficientemente vitais e significativos — talvez mais transmutados na substância da mente humana — eu precisaria apenas de um livro de poesia para contê-los todos”41. Doravante, ele passou a se engajar, de modo mais profundo, na imbricação de seus estudos literários e de suas perquirições nas rotas dos naturalistas. Nessa época, os estudos thoreauvianos da Natureza encontraram em Voyage of a Naturalist round the World (1839), de Charles Darwin, uma importante referência. A relação com as pesquisas do naturalista britânico perdurou, e, já em janeiro de 1860, por ocasião de uma reunião com o ministro e reformador Charles Brace (1826–1890), o transcendentalista 38 SATTELMEYER, op. cit., p. 45-47; WALLS, 1995, p. 113. Contudo, como observa Walls, Thoreau aparentemente se desinteressou dessa atividade pouco tempo depois, ainda que Agassiz, impressionado com seu trabalho, tenha lhe requisitado mais espécimes. “Thoreau’s flirtation with institutionalized science, at least à la Agassiz, was apparently at an end” (WALLS, 1995, p. 115). Agassiz era um divulgador da teoria da geração espontânea (também denominada “abiogênese”, tese que defendia a geração da vida a partir da matéria inorgânica), e, por conseguinte, um posterior oponente da corrente darwinista e sua compreensão acerca da evolução das espécies, fundamentada em um processo de seleção natural. 39 WALLS, 1955, p. 122; SATTELMEYER, op. cit., p. 59. 40 SATTELMEYER, op. cit., p. 62-63. 41 Writings, IX, p. 311, grifo do autor. 18 de fevereiro de 1852. No original: “I have a commonplace- book for facts and another for poetry, but I find it difficult always to preserve the vague distinction which I had in my mind, for the most interesting and beautiful facts are so much the more poetry and that is their success. They are translated from earth to heaven. I see that if my facts were sufficiently vital and significant, — perhaps transmuted more into the substance of the human mind, — I should need but one book of poetry to contain them all”. 87 Bronson Alcott e o abolicionista Franklin Sanborn (1831–1917), Thoreau conheceu On the Origin of Species (1859), publicado originalmente cinco semanas antes, e logo pegou uma cópia do livro emprestada com o botânico de Cambridge Asa Gray (1810–1888)42. A discussão sobre a interconexão entre a evolução e a extinção de espécies nos mais diversos graus de interações naturais influenciou sobremaneira o pensamento do intelectual de Concord, reverberando, de modo especial, no ensaio The Succession of Forest Trees [A Sucessão das Árvores Florestais]. Nesse texto, publicado no New-York Weekly Tribune em 1860, aplicando seu conhecimento das proposições darwinistas e de suas próprias observações nas matas locais, ele apresentou sua teoria a respeito da formação das florestas, em oposição à tese da abiogênese, cujo argumento de que a vida se originaria espontaneamente a partir da matéria inorgânica era então sustentada por Agassiz, um dos mais influentes cientistas no contexto científico americano. Thoreau não foi o primeiro a formular essa concepção, mas foi pioneiro na apresentação pública da ideia de que as manifestações arbóreas mantêm, entre si, uma relação de interdependência, bem como no posicionamento dos esquilos como agentes fundamentais na propagação das sementes que viabilizam as perpetuações das florestas43. Como nos lembra o biólogo Richard Primack, durante os anos de 1850 Thoreau realizou registros sobre o período de florescimento de mais de trezentas espécies de plantas, e anotou suas observações de outros acontecimentos sazonais, como a migração de aves e a formação e derretimento da superfície de gelo sobre o Lago Walden. Ao recordar o propósito do autor de compor um calendário das estações, Primack realça, precisamente, o caráter pluridisciplinar que norteava suas observações junto aos ciclos estacionais. Thoreau “extraiu de suas notas de campo e diários informações sobre os tempos de floração e as compilou em tabelas, em grandes folhas de agrimensor — a ação de um cientista”. Todavia, ele “também se preocupava com as conexões entre beleza, filosofia e os ritmos naturais das estações”. Em vista disso, seu propósito era “empregar esse tempo com a natureza para enriquecer seu próprio senso de vida. Ele desejava ver a natureza adentro o mais profundamente possível [...]”44. 42 WALLS, 1995, p. 125 e 194; HARDING, 1965, p. 429. 43 CRAMER, Jeffrey S. Introduction: Thoreau and the Periodic Press. In: THOREAU, Henry David. Essays: A Fully Annotated Edition. Editado por Jeffrey S. Cramer. New Haven/London: Yale University Press, 2013, p. xi-xlix, à página xl. 44 PRIMACK, Richard B. Walden Warming: Climate Change comes to Thoreau’s Woods. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2014, p. 29-30, grifo do autor. No original: “extracted information on flowering times from his field notes and journals and compiled them into tables on large sheets of surveyor’s paper — the action of a scientist”; “was also preoccupied with the connections among beauty, philosophy, and the natural rhythms of the seasons”; “to use this time with nature to enrich his own sense of life. He wanted to see as deeply as possible into nature […]”. 88 Apropriando-se dos pressupostos fundamentais dos pensadores românticos, Henry Thoreau traz à baila uma proposta de conciliação entre a arte e a ciência, entre os poderes da imaginação e as capacidades mensurativas do entendimento, como enunciado em A Week: “Devo dizer que os cientistas mais proeminentes de nosso país, e talvez desta época, estão servindo às artes e não à ciência pura, ou realizando trabalhos fiéis, mas bastante subordinados, em departamentos específicos”45. Buscando recuperar o ponto de entrecruzamento entre as rotas do saber, ele se devotou a descobrir, por si mesmo, aquilo que foi revelado aos sábios de outrora, tenham sido eles poetas desveladores de profecias ou naturalistas desbravadores de novos horizontes. Na excursão romântica A Walk to Wachusett [Uma Caminhada por Wachusett], publicada em janeiro de 1843 no periódico Boston Miscellany of Literature and Fashion, ele declarou, logo nas linhas iniciais, ser capaz de encontrar nos mitos dos poetas da Antiguidade, assim como nas descrições dos naturalistas modernos, alusões convergentes com sua própria visão da paisagem: No verão e no inverno, nossos olhos pousaram no fino contorno das montanhas de nosso horizonte, [...] de modo que serviam igualmente para interpretar todas as alusões de poetas e viajantes; seja com Homero, em uma manhã de primavera, sentando-nos rusticamente no Olimpo de muitos picos, ou com Virgílio e seus companheiros, vagando pelas colinas etrúrias e tessálicas, ou com Humboldt, medindo os mais modernos Andes e Tenerife46. O explorador Alexander von Humboldt, que, conforme Andrea Wulf, desde pequeno carregava para casa pequenos insetos e plantas com as quais ele se deparava ao longo de suas andanças (e que, por isso mesmo, era chamado por sua família de “o pequeno boticário”), exerceu influências significativas sobre o pensador de Concord. Em seu estudo sobre o naturalista prussiano e seu papel na constituição da ideia contemporânea de Natureza como um todo orgânico e interconectado, a pesquisadora sublinhou que “[a] visão humboldtiana da natureza deu a Thoreau a confiança para entretecer ciência e poesia”47. No primeiro volume de 45 Writings, I, p. 388. No original: “I should say that the most prominent scientific men of our country, and perhaps of this age, are either serving the arts and not pure science, or are performing faithful but quite subordinate labors in particular departments”. 46 THOREAU, Henry David. A Walk to Wachusett. In: ______. Excursions and Poems. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 5, p. 133-152, à página 133. No original: “Summer and winter our eyes had rested on the slim outline of the mountains in our horizon, [...] so that they served equally to interpret all the allusions of poets and travelers; whether with Homer, on a spring morning, we sat down on the many- peaked Olympus, or with Virgil and his compeers roamed the Etrurian and Thessalian hills, or with Humboldt measured the more modern Andes and Teneriffe”. 47 WULF, Andrea. Poesia, ciência e natureza: Henry David Thoreau e Humboldt. In: ______. A Invenção da Natureza: A vida e as descobertas de Alexander von Humboldt. Tradução de Renato Marques. 2. ed. 89 sua famosa obra Cosmos (1845), Humboldt havia exposto sua visão quanto à correlação entre os fenômenos naturais e a alma/mente humana, afirmando que “em todos os lugares, a mente é penetrada pelo mesmo sentido de grandeza e da vasta expansão da natureza, revelando à alma, por uma misteriosa inspiração, a existência de leis que regulam as forças do universo”48. A captação destas leis não deveria deixar de abarcar as cores da imaginação, como postulado no segundo volume de sua composição: As descrições da natureza, devo repetir aqui, devem ser nitidamente definidas e cientificamente corretas, sem serem, por isso, privadas do sopro vivificante da imaginação. Os elementos poéticos devem derivar de um reconhecimento dos vínculos que unem o sensível ao intelectual; de um sentimento da extensão universal, da limitação recíproca e da unidade das forças que constituem a vida da Natureza49. Tendo isso em vista, Laura Dassow Walls afirma que Humboldt compreendia o universo natural como “um conjunto de forças e fenômenos complexos que não pode ser totalmente compreendido se cortado e dividido em um laboratório”, de modo a nos permitir entender que o naturalista “deve estar imerso nas particularidades sensuais da natureza e aberto ao desafio do imprevisto, do surpreendente e até do avassalador. A natureza fala: o cientista deve sair e ouvir”50. Segundo a pesquisadora, os preceitos da investigação humboldtiana (explorar, coletar, medir, conectar) foram também seguidos por Thoreau, que “criou uma das melhores coleções botânicas da região”, e havia coletado, para seus estudos, “ninhos de pássaros, pontas de São Paulo: Planeta do Brasil, 2019, p. 357-374, à página 359. “Walden”, diz ainda Andrea Wulf, “era o mini-Cosmos de Thoreau de um lugar específico, uma evocação da natureza em que tudo estava conectado, apinhado de detalhes sobre hábitos de animais, flores e a espessura do gelo do lago” (ibid., p. 374). 48 HUMBOLDT, Alexander von. Cosmos: A Sketch of A Physical Description of the Universe. Traduzido por E. C. Otté. New York: Harper & Brothers, Publishers, 1858, v. 1, p. 25. Na tradução consultada: “every where, the mind is penetrated by the same sense of the grandeur and vast expanse of nature, revealing to the soul, by a mysterious inspiration, the existence of laws that regulate the forces of the universe”. 49 HUMBOLDT, Alexander von. Cosmos: A Sketch of A Physical Description of the Universe. Traduzido por E. C. Otté. London: Longman, Brown, Green, and Longmans, 1848, v. 2, p. 72. Na tradução consultada: “Descriptions of nature, I would here repeat, may be sharply defined and scientifically correct, without being deprived thereby of the vivifying breath of imagination. The poetic elements must be derived from a recognition of the links which unite the sensuous with the intellectual; from a feeling of the universal extension, the reciprocal limitation, and the unity of the forces which constitute the life of Nature”. Essa passagem é também citada por Laura Walls (1995, p. 131). 50 WALLS, Laura Dassow. The passage to Cosmos: Alexander von Humboldt and the Shaping of America. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2009, p. 127. No original: “an ensemble of complex forces and phenomena that cannot be fully understood by chopping it up and parceling it out into a laboratory”; “must be immersed in the sensual particulars of nature and open to the challenge of the unpredicted, the surprising, even the overwhelming. Nature speaks: the scientist must go out and listen”. 90 flechas, pinhos e sementes, ovos de tartarugas e insetos curiosos” com a finalidade de “conectar esses fatos naturais com um sentido humano”51. Poderíamos dizer que a ênfase na imaginação, no mistério e nas expressões poéticas do cosmo está presente de modo ainda mais radical no pensamento thoreauviano. Avultando a faceta inextricável da busca por construção de discursos sobre a realidade, Thoreau, já em seus anos finais de vida, afirma o seguinte: O catecismo diz que a finalidade superior do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre, o que obviamente se aplica principalmente a Deus conforme visto em suas obras. No entanto, a única descrição de seus belos insetos — borboletas etc. —, que Deus fez e colocou diante de nós, e com a qual o Estado pensa em gastar algum dinheiro, é a descrição daqueles que são prejudiciais à vegetação! É assim que glorificamos a Deus e o gozamos para sempre. Venha aqui fora e contemple mil borboletas pintadas e outros belos insetos que povoam o ar, e depois vá para as bibliotecas e veja que tipo de oração e glorificação a Deus está registrada lá. Massachusetts publicou seu relatório sobre “Insetos nocivos à vegetação”, e nossos vizinhos os “Insetos nocivos de Nova York”. Prestamos atenção ao mal e nada dissemos sobre o bem. […]. As crianças são atraídas pela beleza das borboletas, mas seus pais e legisladores julgam ser essa uma busca inútil. Os pais me fazem lembrar do diabo, mas os filhos me lembram de Deus. […]. A ciência é desumana. As coisas vistas com um microscópio começam a ser insignificantes. Assim descritos, eles são tão monstruosos como se fossem aumentados em mil diâmetros. Suponha que eu visse e descrevesse homens, casas, árvores e pássaros como se fossem mil vezes maiores do que são! Com nossos instrumentos intrometidos, perturbamos o equilíbrio e a harmonia da natureza52. 51 ibid., p. 164-165. No original: “created one of the best botanical collections in the region”; “birds nests, arrowheads, cones and seeds, hatching turtles, and curious insects”; “connect these natural facts with human meaning”. 52 Writings, XVIII, p. 170-171, grifo do autor. 1 de maio de 1859. No original: “The catechism says that the chief end of man is to glorify God and enjoy him forever, which of course is applicable mainly to trod as seen in his works. Yet the only account of its beautiful insects — butterflies, etc. — which God has made and set before us which the State ever thinks of spending any money on is the account of those which are injurious to the vegetation! This is the way we glorify God and enjoy him forever. Come out here and behold a thousand painted butterflies and other beautiful insects which people the air, then go to the libraries and see what kind of prayer and glorification of God is there recorded. Massachusetts has published her report on ‘Insects Injurious to Vegetation,’ and our neighbor the ‘Noxious Insects of New York.’ We have attended to the evil and said nothing about the good. […]. Children are attracted by the beauty of butterflies, but their parents and legislators deem it an idle pursuit. The parents remind me of the devil, but the children of God. […]. Science is inhuman. Things seen with a microscope begin to be insignificant. So described, they are as monstrous as if they should be magnified a thousand diameters. Suppose I should see and describe men and houses and trees and birds as if they were a thousand times larger than they are! With our prying instruments we disturb the balance and harmony of nature”. 91 Nesse sentido, apesar de suas aproximações com os naturalistas modernos, Thoreau frequentemente expressou seu distanciamento dos moldes científicos de seu tempo, realçando o imperativo da experiência subjetiva das leis da Natureza — a garantidora da transmissão, pela via da linguagem da investigação empírica, do “frescor” e “vigor” naturais; de um verdadeiro louvor às obras naturais do divino. O poeta-profeta-naturalista de Concord insinua que as expressões da história natural e da mitologia/poesia, ao serem compreendidas como discursos que não dialogam entre si, falham em captar os múltiplos tons e vozes que nos reconectam à linguagem viva da Natureza. “O homem de ciência que não busca uma expressão, mas meramente um fato a ser expresso”, escreve ele em 1853, “estuda a natureza como uma linguagem morta”53. Esse entendimento já estava presente em A Week, quando o autor alertava para a perda, por parte dos métodos contemporâneos de discriminação dos fatos, da tonalidade poética que ele acreditava circular nos movimentos ambientais: Nossos livros de ciência, à medida que se aprimoram em precisão, correm o risco de perder o frescor, o vigor e a prontidão para apreciar as leis reais da Natureza, o que é um mérito marcante nas teorias muitas vezes falsas dos antigos. Sinto-me atraído pelo leve orgulho e a satisfação, o estilo enfático e até exagerado com que alguns dos naturalistas mais antigos falam das operações da Natureza, embora sejam mais qualificados para apreciar do que para discriminar os fatos54. O leitor é assim convidado a refletir acerca da complementaridade entre as diversas linguagens humanas em seu cultivo dos variegados campos cósmicos. O autor sugere, dessa forma, que o relato sobre o universo natural que se mostra verdadeiramente significativo tem sua origem na experiência individual daquele que o divulga; é fruto de uma devoção ao conhecimento — o que foi reconhecido por diversos pesquisadores ao longo da história da humanidade. Nesse quesito, Thoreau se aproxima, por exemplo, do físico alemão Albert Einstein (1879–1955) quando este sustenta, em um texto onde comenta suas percepções acerca da religiosidade e sua relação com as empreitadas humanas de busca por saber, que “o sentimento religioso cósmico é o motivo mais forte e mais nobre da investigação científica”, pois somente “aqueles que entendem os imensos esforços e, sobretudo, essa devoção sem a qual 53 Writings, XI, p. 135. 10 de maio de 1853. No original: “The man of science, who is not seeking for expression but for a fact to be expressed merely, studies nature as a dead language”. 54 Writings, I, p. 388-389. No original: “Our books of science, as they improve in accuracy, are in danger of losing the freshness and vigor and readiness to appreciate the real laws of Nature, which is a marked merit in the ofttimes false theories of the ancients. I am attracted by the slight pride and satisfaction, the emphatic and even exaggerated style, in which some of the older naturalists speak of the operations of Nature, though they are better qualified to appreciate than to discriminate the facts”. 92 seria impossível o trabalho inovador na ciência teórica, são capazes de captar a força da única emoção da qual pode surgir tal empreendimento”55. Antecipando a discussão sobre a inexistência de um discurso científico que seja pautado exclusivamente na neutralidade do pesquisador, Thoreau sugere que aquilo que realmente importa na busca pelo conhecimento é a história da relação de amor entre o observador e o observado. Esse é o relato que comunica uma linguagem viva — expressão da interconexão entre o mundo material e o universo espiritual —, e o responsável por conferir sentido à existência humana e à sua concatenação com os seres que conosco comungam a diversidade de linguagens naturais. Não existe tal coisa de uma observação objetiva pura. A sua observação, para ser interessante, i.e., para ser significativa, deve ser subjetiva. A soma daquilo que o escritor de qualquer classe tem a relatar é simplesmente uma experiência humana, seja ele poeta, filósofo ou homem de ciência. O homem de maior ciência é o homem mais vivo, cuja vida é o maior acontecimento. Sentidos que tomam conhecimento das coisas meramente exteriores são inúteis. Não importa para onde ou a que distância você viaja — quanto mais longe, pior — mas o quão vivo você está. [...]. Nenhuma mera atividade intencional, seja escrevendo versos ou coletando estatísticas, produzirá poesia ou ciência verdadeiras. [...]. Tudo o que um homem tem a dizer ou fazer que possa interessar à humanidade é, de uma forma ou de outra, contar a história de seu amor — cantar; e, se ele for afortunado e continuar vivo, ele estará para sempre apaixonado. Somente isso é estar vivo até as extremidades. [...]. Eu examino o relato das ações de uma associação científica e fico surpreso que haja tão pouca vida a ser relatada; sou levado a perder o interesse em uma parcela de termos técnicos áridos. Qualquer coisa viva é fácil e naturalmente expressa na linguagem popular. Não posso deixar de suspeitar que a vida desses professores eruditos tem sido quase tão desumana e inexpressiva quanto um pluviômetro ou uma máquina magnética de autorregistro. Eles não comunicam nenhum fato que aumenta a temperatura do calor do sangue. Nem tudo se resume a uma rima56. 55 EINSTEIN, Albert. Religion y Ciencia. In: EINSTEIN, Albert. Sobre la teoría de la relatividad y otras aportaciones científicas. Tradução de José M. Alvarez Flores e Ana Goldar. Madrid: Sarpe, 1983, p. 224-227, à página 227. Na tradução consultada: “el sentimiento religioso cósmico es el motivo más fuerte y más noble de la investigación científica”; “quienes entienden los inmensos esfuerzos y, sobre todo, esa devoción sin la cual sería imposible el trabajo innovador en la ciencia teórica, son capaces de captar la fuerza de la única emoción de la que puede surgir tal empresa”. 56 THOREAU, Henry David. Journal VI: December 1, 1853 — August 31, 1854. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 12, p. 236-238, grifos do autor. 6 de maio de 1854. Doravante citado como Writings, XII. No original: “There is no such thing as pure objective observation. Your observation, to be interesting, i.e. to be significant, must be subjective. The sum of what the writer of whatever class has to report is simply some human experience, whether he be poet or philosopher or man of science. The man of most science is the man most alive, whose life is the greatest event. Senses that take cognizance of outward things merely are of no avail. It matters not where or how far you travel, — the farther commonly the worse, — but how much alive you are. [...]. No mere willful activity whatever, whether in writing verses or collecting statistics, will produce true poetry or science. [...]. All that a man has to say or do that can 93 Henry Thoreau, em suas formas de expressar os modos de ser de outros animais e seres que compartilham conosco a morada telúrica, simboliza, em seus entrelaçamentos objetivos e subjetivos, a íntima conexão entre o divino, o natural e o humano, relação que, seguindo seus predecessores românticos, ele acreditava estruturar a realidade. Em uma descrição de determinada paisagem, ele indica, categoricamente, que os anseios humanos por compreender o mundo ultrapassam as capacidades do entendimento: “Meu gênio faz distinções que meu entendimento não pode, e que meus sentidos não relatam [...]; os elementos eram tão vivos e ativos, e eu simpatizava tanto com eles, que não pude sentar enquanto o vento passava”. E se questiona: “O homem literário deve viver sempre ou, principalmente, sentado em um aposento através do qual a natureza entra somente por uma janela? Qual é a finalidade do verão?”57. A seu ver, é justamente o contato da fisicalidade com o mundo natural o garantidor dessa simpatia com o cosmo, fundamento de sua composição literária, fosse ela no campo poético-profético ou no âmbito das ciências naturais — afinal, os relatos poéticos, filosóficos e científicos, em síntese, consistem em narrativas acerca de uma experiência humana. Assim, na construção linguística de sua “palavra em favor da Natureza”, que considera “o homem como um habitante, uma parte, um quinhão da Natureza, mais do que como um membro da sociedade”58, ele busca espargir o solo comum das diversas formas de linguagens manifestas na miríade de composições da realidade. Ao narrar, por exemplo, sua descoberta de uma toca de raposas, ele aventa que também elas são partícipes dos encantamentos que governam o mundo, e detêm, ao seu próprio modo, seus rituais, suas linguagens comunicadoras de suas empreitadas heroicas singulares: Que vida é a delas, aventurando-se apenas durante a noite em busca de sua presa, percorrendo uma grande distância, confiando em apanhar uma perdiz ou uma lebre adormecida, e estar em casa novamente antes do amanhecer! Com que prazer elas devem relatar suas aventuras noturnas umas com as outras ali em suas tocas durante o dia, caso tenham uma sociedade! Nunca possibly concern mankind, is in some shape or other to tell the story of his love, — to sing; and, if he is fortunate and keeps alive, he will be forever in love. This alone is to be alive to the extremities. [...]. I look over the report of the doings of a scientific association and am surprised that there is so little life to be reported; I am put off with a parcel of dry technical terms. Anything living is easily and naturally expressed in popular language. I cannot help suspecting that the life of these learned professors has been almost as inhuman and wooden as a rain gauge or self-registering magnetic machine. They communicate no fact which rises to the temperature of blood heat. It doesn’t all amount to one rhyme”. 57 Writings, VIII, p. 337-338. 23 de julho de 1851. No original: “My genius makes distinctions which my understanding cannot, and which my senses do not report [...]; the elements were so lively and active, and I so sympathized with them, that I could not sit while the wind went by. Is the literary man to live always or chiefly sitting in a chamber through which nature enters by a window only? What is the use of the summer?”. 58 THOREAU, 2012a, p. 81. 94 associei aquela pedra a uma toca de raposa, embora talvez eu já tenha sentado nela muitas vezes. Há mais coisas no céu e na terra, Horácio etc., etc. Eles são os únicos foragidos, os únicos Robin Hoods aqui hoje em dia59. Ultrapassando as fronteiras comumente traçadas na modernidade entre “natureza” e “cultura”, Thoreau, em seu intercurso com a pluralidade de povos que assentam morada sobre a terra, reconhece, em suas reflexões empíricas, o acoplamento da profusão de vidas, revelador do encadeamento entre divindade, Natureza e humanidade. Na poesia ou na ciência, o método da simpatia (do grego sumpathḗs: afetação/paixão compartilhada) sustenta a trama de suas vocalizações do universo natural. Assim ele nos propõe a partir de sua comunhão particular com os peixes — experiência reveladora, enfim, da unidade que jaz por detrás da percepção da diferença entre a vida humana e a vida píscea: Quantos jovens piscosos contemporâneos de vários caráteres e destinos, formas e hábitos, temos nesta água! E não será esquecido por alguma memória que fomos contemporâneos. É de alguma importância. Por algum tempo seremos amigos, eu acredito, e nos conheceremos melhor. A desconfiança é muito predominante agora. Somos muito parecidos! Temos tantas faculdades em comum! Ainda não me encontrei com o filósofo que pudesse, de forma bastante conclusiva e indiscutível, mostrar-me o porquê, e, se não o porquê, então como existe diferença entre o homem e o peixe. Somos muito parecidos! O que não poderia fazer com eles um homem realmente tolerante, paciente, humano e verdadeiramente grandioso e natural, se ele tentasse? Pois eles devem ser entendidos, certamente, como todas as outras coisas, por nenhum outro método senão o da simpatia. É fácil dizer o que eles não são para nós, ou seja, o que não somos para eles; mas o que podemos e devemos ser é uma outra questão60. 59 THOREAU, Henry David. Journal VII: September 1, 1854 — October 30, 1855. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 13, p. 152-3. 27 de janeiro de 1855. Doravante citado como Writings, XIII. No original: “What a life is theirs, venturing forth only at night for their prey, ranging a great distance, trusting to pick up a sleeping partridge or a hare, and at home again before morning! With what relish they must relate their midnight adventures to one another there in their dens by day, if they have society! I had never associated that rock with a fox’s den, though perhaps I had sat on it many a time. There are more things in heaven and earth, Horatio, etc., etc. They are the only outlaws, the only Robin Hoods, here nowadays”. 60 THOREAU, Henry David. The Journal (1837–1861). Editado por Damion Searls. New York: New York Review Books, 2009, p. 27, grifos do autor. 31 de março de 1842. No original: “How many young finny contemporaries of various character and destiny, form and habits, we have even in this water! And it will not be forgotten by some memory that we were contemporaries. It is of some import. We shall be some time friends, I trust, and know each other better. Distrust is too prevalent now. We are so much alike! have so many faculties in common! I have not yet met with the philosopher who could, in a quite conclusive, undoubtful way, show me the, and, if not the, then how any, difference between man and a fish. We are so much alike! How much could a really tolerant, patient, humane, and truly great and natural man make of them, if he should try? For they are to be understood, surely, as all things else, by no other method than that of sympathy. It is easy to say what they are not to us, i.e., what we are not to them; but what we might and ought to be is another affair”. 95 Semelhantemente, ao falar da verbena azul, em uma analogia imagética, ele conecta simbolicamente o natural, o humano e o espiritual, reconhecendo os limites dos termos explicativos em sua tentativa de expressar sua cosmovisão: “Ela possui uma história. Próxima ao nosso sangue está a nossa perspectiva de céu. O sangue não se mostra de fato azul nas veias e nas artérias recobertas, quando a distância empresta encantamento à vista?”, questiona-se ele. E assim conclui: “A visão disso é mais comovente do que posso descrever ou explicar”61. As “visões”, enfim, pelas quais, incorporando as configurações do poeta-profeta e do naturalista, Thoreau é tomado, se norteiam pelo “método da simpatia”, caminho que abre espaço tanto para a explicação (o domínio do entendimento) quanto para a comoção (o domínio da imaginação). Apropriando-nos dos termos de Manoel de Barros (1916–2014), poderíamos dizer que Thoreau se posiciona, concomitantemente, no classificar e no divinar, tendo em mente que os encantos naturais ultrapassam as capacidades humanas de mensuração objetiva. Em seu Livro sobre Nada, o poeta brasileiro alumia: A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá. Quem acumula muita informação, perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam62. Bron Taylor, estudioso das relações entre ética ambiental e religião, a partir do quadro de correspondência entre as leis naturais e as leis espirituais, argumenta que Thoreau, em sua conjugação entre os pressupostos dos naturalistas e sua devoção particular à Natureza, sugeria que “a ciência sozinha não poderia e nunca seria capaz de explicar totalmente a sacralidade da natureza”, aparentando “acreditar que as características reais das forças divinas da natureza estavam para além da compreensão humana”63. Dessa forma, mesmo em seus escritos de caráter científico, Thoreau não deixa de condecorar a presença do divino nas paisagens naturais e seu 61 Writings, X, p. 284. 6 de agosto de 1852. No original: “It has a story. Next to our blood is our prospect of heaven. Does not the blood in fact show blue in the covered veins and arteries, when distance lends enchantment to the view? The sight of it is more affecting than I can describe or account for”. 62 BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. 3. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 1997, p. 53. 63 TAYLOR, Bron. Dark Green Religion: Nature Spirituality and the Planetary Future. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 2010, p. 52. No original: “science alone could not and never would be able to account fully for the sacredness of nature”; “to believe that the actual characteristics of the divine forces of nature were beyond human ken”. 96 condão para o divinare. Assim, em The Succession of Forest Trees, após descrever sua teoria acerca da propagação das sementes, possibilitadoras da sucessão das florestas, ele confessa possuir “grande fé em uma semente” — e, apesar de sua contrariedade à abiogênese, declara estar cônscio das origens misteriosas da vida: Embora eu não acredite que uma parede viva brote onde não havia nenhuma semente, tenho grande fé em uma semente — que, para mim, possui uma origem igualmente misteriosa. Convença-me de que você tem uma semente aí, e me preparo para esperar maravilhas. Até acreditarei que o novo milênio está próximo, e que o reino da justiça está prestes a começar, quando o Escritório de Patentes, ou o Governo, começar a distribuir, e as pessoas começarem a plantar, as sementes dessas coisas64. Essa indicação do mistério originário dos fenômenos vitais é mantida até seus anos finais. Em seu diário de 1860, ao remontar à dimensão selvagem — ou seja: intocável, indomesticável, não nomeável — das manifestações telúricas, ele anuncia o elã por uma visão que reconecte o céu e a terra, nossas aspirações espirituais e nossos anseios por desbravar as rotas naturais: “Qualquer que seja a ajuda que venha a ser derivada do uso de um termo científico, nunca podemos começar a ver nada em si mesmo desde que nos lembremos do termo científico que a nossa ignorância sempre lhe impôs”. “Objetos e fenômenos naturais são, nesse sentido, para sempre selvagens e não nomeados por nós”, continua ele. “Assim, o céu e a terra se simpatizam, e estão sujeitos às mesmas leis, e no horizonte, por assim dizer, eles se encontram e são vistos como um só”65. Centremo-nos, doravante, na linguagem poético-profética que Thoreau assinalava em seus escritos — a qual, em seus termos, guardam um sentido mais profundo e sublime sobre as constituições da Natureza do que aquelas formuladas pela linguagem científica: O científico difere da descrição poética ou da descrição vívida tanto quanto as fotografias, que estamos tão cansados de ver, diferem das pinturas e dos 64 THOREAU, Henry David. The Succession of Forest Trees. In: ______. Excursions and Poems. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 5, p. 184-204, à página 203. No original: “Though I do not believe that a plant wall spring up where no seed has been, I have great faith in a seed, — a, to me, equally mysterious origin for it. Convince me that you have a seed there, and I am prepared to expect wonders. I shall even believe that the millennium is at hand, and that the reign of justice is about to commence, when the Patent Office, or Government, begins to distribute, and the people to plant, the seeds of these things”. 65 Writings, XIX, p. 140-141. 12 de fevereiro de 1860. No original: “Whatever aid is to be derived from the use of a scientific term, we can never begin to see anything as it is so long as we remember the scientific term which always our ignorance has imposed on it. Natural objects and phenomena are in this sense forever wild and unnamed by us. Thus the sky and the earth sympathize, and are subject to the same laws, and in the horizon they, as it were, meet and are seen to be one”. 97 esboços, embora essa comparação seja muito favorável à ciência. Afinal, a descrição mais verdadeira, aquela por meio da qual outro ser humano pode mais facilmente reconhecer uma flor, é aquela não medida e eloquente que a visão dela inspira. Nenhuma descrição científica irá suprir a necessidade disso, embora você deva contar, medir e analisar cada átomo que parece compô-la. Mas as expressões não consideradas de nosso deleite, que qualquer objeto natural extrai de nós, são algo completo e final em si mesmo, uma vez que toda a natureza deve ser considerada no que concerne ao homem; e quem sabe quão perto da verdade absoluta tais afirmações inconscientes podem chegar? Quais são as mais verdadeiras, as concepções sublimes dos poetas e profetas hebreus, ou as declarações cautelosas dos geólogos modernos, que devemos modificar ou desaprender tão rápido?66 66 THOREAU, Henry David. Journal XIV: August 1, 1860 — November 3, 1861. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 20, p. 607, grifo do autor. 13 de outubro de 1860. No original: “The scientific differs from the poetic or lively description somewhat as the photographs, which we so weary of viewing, from paintings and sketches, though this comparison is too favorable to science. After all, the truest description, and that by which another living man can most readily recognize a flower, is the unmeasured and eloquent one which the sight of it inspires. No scientific description will supply the want of this, though you should count and measure and analyze every atom that seems to compose it. But unconsidered expressions of our delight which any natural object draws from us are something complete and final in themselves, since all nature is to be regarded as it concerns man; and who knows how near to absolute truth such unconscious affirmations may come? Which are the truest, the sublime conceptions of Hebrew poets and seers, or the guarded statements of modern geologists, which we must modify or unlearn so fast?”. 98 2. Hieróglifos mitopoéticos1: o livro da Natureza A pessoa mais rica é aquela que tem mais uso da natureza enquanto matéria- prima de tropos e símbolos para descrever sua vida. Se esses portais de salgueiros dourados me afetam, eles correspondem à beleza e à promessa de alguma experiência na qual estou adentrando. Se estou transbordando de vida e sou rico em experiências para as quais me falta a expressão, então a natureza será minha linguagem plena de poesia — toda a natureza fabulará, e todo fenômeno natural será um mito. (Henry David Thoreau, Journals)2. Em 1838, Ralph Emerson, em seu discurso Divinity School Address, assim exortava os recém-formados na Harvard Divinity School: “Sendo você mesmo um bardo recém-nascido do Espírito Santo, deixe para trás toda a conformidade, e encaminhe as pessoas para um contato em primeira mão com a Divindade”3. Como expusemos anteriormente, um dos pilares das movimentações transcendentalistas era a crença de que todo ser humano possui em si mesmo, de forma inata, as vias para a comunicação com a divindade regente das leis do espírito e da matéria. A partir dos cruzamentos com as alas emersonianas e sua disseminação da ideia de que “[s]omente pela visão dessa Sabedoria [do eterno uno] pode-se ler o horóscopo das eras [...], cedendo ao espírito de profecia que é inato em cada homem [...]”4, os escritores conterrâneos atrelados ao Transcendentalismo encontraram seus próprios meios de propagação dos hieróglifos mitopoéticos da Natureza e suas respectivas indicações de nosso pertencimento nessas teofanias. Assim, Walt Whitman, o poeta de todas as pessoas e fenômenos, em Song of Myself, também imbuído por ares poético-proféticos, proclamou: 1 O Prof. Dr. Clodomir Barros de Andrade já empregou, antes de nós, os termos “hieróglifo” e “mitopoética” em suas abordagens da obra de Thoreau, embora a partir de uma perspectiva distinta desta que apresentamos aqui. 2 Writings, XI, p. 135, grifo do autor. 10 de maio de 1853. No original: “He is the richest who has most use for nature as raw material of tropes and symbols with which to describe his life. If these gates of golden willows affect me, they correspond to the beauty and promise of some experience on which I am entering. If I am overflowing with life, am rich in experience for which I lack expression, then nature will be my language full of poetry, — all nature will fable, and every natural phenomenon be a myth”. 3 EMERSON, Ralph Waldo. An Address. In: ______. Nature addresses and lectures. The Complete Works of Ralph Waldo Emerson, with a biographical introduction and notes by Edward Waldo Emerson, 12v. Boston/New York: Houghton, and Mifflin Company, 1903-1904, v. 1, p. 117-151, à página 146. No original: “Yourself a new-born bard of the Holy Ghost, — cast behind you all conformity and acquaint men at first hand with Deity”. 4 EMERSON, Ralph Waldo. The Over-Soul. In: ______. Essays: First Series. The Complete Works of Ralph Waldo Emerson, with a biographical introduction and notes by Edward Waldo Emerson, 12v. Boston/New York: Houghton, and Mifflin Company, 1903-1904, v. 2, p. 265-297, à página 269. No original: “Only by the vision of that Wisdom can the horoscope of the ages be read [...], by yielding to the spirit of prophecy which is innate in every man [...]”. 99 Sou o parceiro e o companheiro das pessoas, todas tão imortais e impenetráveis quanto eu mesmo; Mas elas não sabem que são imortais, eu sei. [...]. O alce do norte de cascos afiados, o gato na soleira, o canário, a marmota, Os filhotes da porca, que roncam enquanto mamam suas tetas, A ninhada da perua que desfila de asas semiabertas, Enxergo neles e em mim a mesma lei ancestral. [...]. Para mim os objetos do universo convergem num fluxo perpétuo, Todos são escritos para mim, e preciso entender o que a escrita significa5. Henry David Thoreau, enquanto um herdeiro da cultura intelectual de sua época, também buscou a não-conformidade e o “contato em primeira mão com a Divindade”, a compreensão do sentido da escrita cósmica e a convergência dos fenômenos “num fluxo perpétuo”, os meios de expressão de sua própria “reverência pelo mistério do universo”6. Já em The Story-Telling Faculty, ensaio dos anos iniciais de sua jornada acadêmica, ele apresenta a poesia como o canal de manifestação sempre aberto do “volume da Natureza”; a linha de ligação entre as eras históricas; o fluxo, sempre abundante, da inspiração de todos os poetas: “a página da História nunca se fecha, a Fonte Castália7 nunca seca. O volume da Natureza está sempre aberto; a história do mundo nunca deixa de nos interessar”8. Por meio da modulação poético-profética que é própria de sua obra, interessava-lhe empregar a Natureza não como matéria-prima mercantil, pois a pessoa mais rica, como sugere ele de forma crítica na passagem que traz a epígrafe, é antes aquela capaz de usufruir da “linguagem plena de poesia” da Natureza como fonte de “matéria-prima de tropos e símbolos” para expressar uma fala existencial — que, ao contrário do uso do meio natural como objeto, nele enxerga a origem subjetiva da expressão espiritual, codificada com emblemas míticos que 5 WHITMAN, op. cit., p. 53, 61 e 71. 6 Em uma entrada de seu diário de 29 de janeiro de 1840, Thoreau assim se refere ao tragediógrafo grego Ésquilo: “The social condition of genius is the same in all ages. Aeschylus was undoubtedly alone and without sympathy in his simple reverence for the mystery of the universe” (Writings, VII, p. 117, grifos acrescentados). 7 Segundo algumas versões da mitologia, Castália era uma jovem de Delfos que, perseguida por Apolo em seu santuário, acabou por se lançar em uma fonte, que então recebeu seu nome e foi consagrada ao deus dos poetas, profetas e músicos (GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Tradução de Victor Jabouille. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 78). A fonte Castália foi invocada, em várias épocas, como manancial de inspiração dos encantadores de palavras e proclamadores dos anúncios dos deuses. 8 SEYBOLD, Ethel. Thoreau: The Quest and the Classics. New Haven: Yale University Press, 1951, p. 26. No original: “the page of History is never closed, the Castalian Spring is never dry. The volume of Nature is ever open; the story of the world never ceases to interest”. 100 se espelham nos mais diversos enquadramentos vitais. A forma poética dos mitos e suas estruturas simbólicas, como nos sugere Thoreau, é um dos modos que o sacro dizer da Natureza assume, e assim se comunica através dos seres humanos de todas as épocas. Tendo como tonalidade simbólica o cantar do galo e seu chamado para um novo amanhecer (um símbolo favorito), ele exprime, em Walking, sua dedicação à tarefa de ouvir o “evangelho segundo o atual momento”, proclamado, no instante presente, pelos movimentos da Natureza; sua sede por beber da “nova fonte das Musas”, cujas sinalizações cheias de vida e de sacralidade lhe indicam um caminho de censura aos empreendimentos escravagistas de seu tempo e, de forma geral, a todos os padrões socioculturais que afastam o ser humano de seu estado originário de liberdade e de contato com a terra: Acima de tudo, não podemos nos dar ao luxo de deixar de viver no presente. [...]. A menos que nossa filosofia ouça o galo cantar em cada curral ao nosso redor, ela perderá a hora. Esse som sempre nos lembra que estamos ficando enferrujados e obsoletos em nossas ocupações e hábitos de pensamento. A filosofia do galo tem os pés fincados num tempo mais atual que o nosso. Há algo sugerido por ela que é um testamento ainda mais novo — o evangelho segundo o atual momento. [...]. Seu canto é uma expressão da saúde e da integridade da Natureza, uma bravata lançada ao mundo todo — saúde como uma nascente brotando, uma nova fonte das Musas, a celebrar este último instante do tempo. Onde ele vive não é aprovada nenhuma lei do escravo fugitivo9. ⚜ 9 THOREAU, 2012a, p. 119. Aprovada em 1850 pelo Congresso dos Estados Unidos sob a pena de Daniel Webster, a Lei do Escravo Fugitivo previa que pessoas escravizadas que fugiam para o norte do país fossem capturadas e levadas de volta aos senhores escravagistas sulistas, também com a colaboração dos cidadãos. A promulgação da lei enfatizou a polarização sobre a escravidão no país, e foi uma das causas impulsionadoras da Guerra Civil Americana (1861–1865). O abolicionista John Brown (1800–1859), executado por enforcamento, foi uma figura crucial do movimento antiescravista na década de 1850, e esteve à frente de ações armadas em favor da abolição, como o Massacre de Pottawatomie (“Bleeding Kansas”), ocorrido em 1856, e o ataque ao arsenal federal de Harpers Ferry (Virginia), em 1859, que culminou com sua execução. Thoreau pronunciou discursos públicos em defesa de Brown que resultaram no ensaio A Plea for Captain John Brown, publicado em 1860. Após a execução de Brown, o escritor de Concord, em After the death of John Brown, declarou encontrar no abolicionista a universalidade da face heroica que constitui a “liturgia universal” transmitida pela poesia, mas que geralmente não é lembrada pelas instituições religiosas e civis: “So universal and widely related is any transcendent moral greatness, and so nearly identical with greatness everywhere and in every age, [...] that, when I now look over my commonplace-book of poetry, I find that the best of it is oftenest applicable, in part or wholly, to the case of Captain Brown. [...]. Indeed, such are now discovered to be the parts of a universal liturgy, applicable to those rare cases of heroes and martyrs for which the ritual of no church has provided” (THOREAU, Henry David. After the death of John Brown. In: ______. Cape Cod and Miscellanies. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 4, p. 451-454, à página 451). 101 2.1. O poeta-profeta Caminho para dentro de uma natureza semelhante àquela onde penetravam os velhos profetas e poetas, Manu, Moisés, Homero, Chaucer. Podem chamá-la de América, mas não é de fato a América: nem Américo Vespúcio, nem Colombo, nem os outros foram seus descobridores. Encontra-se na mitologia uma descrição mais verdadeira dela do que em qualquer assim chamada história da América que eu tenha visto. (Henry David Thoreau, Walking)1. A poesia redime da corrupção as visitações da divindade no homem. (Percy Bysshe Shelley, A Defence of Poetry)2. A recordação dos tempos arcaicos e suas sinalizações espirituais nos ambientes do romantismo propiciou o resgate da figura do “poeta-profeta”, aquele que, conforme elucida Samantha Harvey, “comunicava percepções espirituais ao resto do mundo pela mediação da literatura” e se caracterizava “pela capacidade de discernir a unidade espiritual na multiplicidade das formas naturais”, apresentando-se na condição de “mediador ideal da tríade romântica”3 — i.e., a triangulação divindade, natureza e humanidade. A ideia de “poeta- profeta” angariou diversas formulações entre os pensadores românticos, que encontraram nas trilhas artísticas e religiosas o viático para as transformações sociais por ele visionadas. Rememorando o comentário de Ian Balfour acerca da profecia no contexto do romantismo — que, em suas palavras, é “muito mais um chamado e uma reivindicação do que uma predição, um chamado orientado para um presente que não é presente” — Clemens Spahr, por sua vez, pontua que “[o]s românticos compreendiam a qualidade visionária da poesia como sua habilidade de detectar uma forma de profecia no presente”4. Na verdade, como já havia dito 1 THOREAU, 2012a, p. 89-90. 2 SHELLEY, Percy Bysshe. Defesa da Poesia. In: WORDSWORTH; HAZLITT; SHELLEY; STUART MILL. Poéticas Românticas Inglesas. Organização, tradução, apresentação e notas de Roberto Acízelo de Souza. São Paulo: Filocalia, 2017, p. 97-136, à página 131. 3 HARVEY, op. cit., p. 81 e 84. No original: “The poet-prophet communicated spiritual perceptions to the rest of the world through the medium of literature”; “by the ability to discern spiritual unity in the multiplicity of natural forms”; “endowed with heightened perceptive powers”; “ideal mediator of the Romantic triad”. 4 SPAHR, Clemens. Poet-Prophets and Seers: American Romanticism, Authorship, and Literary Institutions. In: LÖFFLER, Philipp; SPAHR, Clemens; STIEVERMANN, Jan. (eds.). Handbook of American Romanticism. Berlin/Boston: De Gruyter, 2021, p. 249-267, à página 250. No original: “a call and a claim much more than it is a prediction, a call oriented toward a present that is not present”; “The Romantics understood the visionary quality of poetry as its ability to detect a form of prophecy in the present”. Como Clemens Spahr elucida em seu texto, a figura do poeta-profeta foi crucial para os transcendentalistas em um sentido social e político, tendo se tornado seu meio de inserção no espaço público enquanto pensadores distintos dos unitaristas dominantes e da elite intelectual de Harvard. 102 Max Weber (1864–1920), a profecia “é uma das primeiras formas de literatura política, o antigo ancestral do panfleto ou folheto moderno”5. As origens da acepção romântica do poeta-profeta, o bardo inspirado que recebe seu conhecimento através de um íntimo intercurso com a Natureza, remetem aos estudos consolidadores da crítica histórico-literária da Bíblia e de Homero na modernidade. As investigações de eruditos como Thomas Blackwell e Robert Lowth foram capitais nesse sentido, especialmente no que diz respeito às suas indicações de que, nesses escritos de teor religioso, o poeta é o profeta, o primeiro transmissor de palavras míticas sobre a realidade, pois tanto o primeiro quanto o último são identificados, nas línguas grega, latina e hebraica, como um e o mesmo. Thomas Blackwell (1701–1757) foi um dos mais importantes representantes do primitivismo escocês, e o responsável por empreender a primeira investigação moderna revolucionária da figura de Homero e dos textos míticos a ele atribuídos. Em An Enquiry into the Life and Writings of Homer (1735), observa Neil Grobman, Blackwell “notou que a mitologia e a poesia antigas cresceram juntas e foram moldadas em um corpo de fábulas teológicas e contos alegóricos morais por Bardos como Hesíodo e Homero”6. O bardo da Jônia foi por ele apresentado como um protótipo do poeta épico e da expressividade primitiva da poesia (detentora, na antiga Grécia, de um status divino). Na Antiguidade, acreditava-se que “Homero era inspirado pelo Céu”; que “ele cantou e escreveu como o Profeta e o Intérprete dos Deuses”7. Homero, conforme percebido pelos gregos, era um ser humano inspirado por cuja voz se comunicavam os deuses, e se tornou a via de registro da ambientação, dos costumes, crenças e narrativas gloriosas dos heróis de seu povo. Em contraposição àqueles que viam no mito uma ficção sem sentido, Blackwell elevou Homero por ter copiado a Natureza. “HOMERO tirou seu Plano da Natureza”, argumentou Blackwell. “Ele a seguiu de perto em cada passo: ele relatou Ações e Paixões de todo tipo: Ele retratou Lugares, Pessoas, Animais e 5 BALFOUR, Ian. The Rhetoric of Romantic Prophecy. Stanford: Stanford University Press, 2002, p. 48. No original: “is one of the earliest forms of political literature, the ancient ancestor of modern-day broadside or pamphlet”. 6 GROBMAN, Neil R. Thomas Blackwell’s Commentary on The Oral Nature of Epic. Western Folklore, v. 38, n. 3, p. 186-198, jul. 1979, às páginas 196-197. No original: “felt that ancient Mythology and poetry grew together and were shaped into a body of theological fable and moral allegorical tale by Bards such as Hesiod and Homer”. 7 BLACKWELL, Thomas. An Enquiry into the Life and Writings of Homer. 2. ed. London: Oswald, 1736, p. 3, grifos do autor. No original: “Homer was inspired from Heaven”; “he sung, and wrote as the Prophet and Interpreter of the Gods”. 103 Estações com suas Marcas e Qualidades próprias”8. Com o termo “Natureza” ele englobava tanto “os eventos sociais e históricos imediatos e as pessoas diante dos olhos de Homero” quanto “o que é metafisicamente verdadeiro — isto é, a Natureza em seu sentido divino”9. Outro eminente representante da ligação entre a narrativa poética e a entonação profética foi o bispo anglicano e professor de poesia em Oxford Robert Lowth (1710–1787), que, em 1753, publicou De Sacra Poesi Hebraeorum, obra traduzida para o inglês sob o título Lectures on the Sacred Poetry of the Hebrews. Foi Robert Lowth, explicita James Kugel, “talvez mais do que qualquer outro moderno, que solidificou a conexão entre poesia e profecia que se tornou tão importante duas ou três gerações depois em todo o empreendimento da poesia romântica na Inglaterra e no continente”10. Para o erudito inglês, que analisou a totalidade do Antigo Testamento com olhar literário (mas sem perder de vista seu estatuto sagrado), “se a real origem da poesia for investigada, ela deve necessariamente ser referida à religião”, pois é certo que a poesia foi nutrida naqueles lugares sagrados, onde ela parece ter sido pela primeira vez chamada à existência; e que sua ocupação original era no templo e no altar. Por mais que as eras e as nações tenham diferido em seus sentimentos e opiniões religiosas, nisto, ao menos, constatamos que todas concordaram: que os mistérios de sua devoção eram celebrados em verso. [...] [A] poesia [...] sempre abraça assuntos divinos e sagrados com uma espécie de ternura e afeição filiais. À poesia apraz recorrer aos territórios sagrados da religião como se se tratasse de seu solo nativo; lá ela habita de bom grado, e lá ela floresce em toda a sua beleza e vigor prístinos11. 8 ibid., p. 325, grifos do autor. No original: “HOMER took his Plan from Nature: He has followed her closely in every step: He has related Actions and Passions of every kind: He has painted Places, Persons, Animals, and Seasons, with their proper Marks and Qualities”. 9 FELDMAN, Burton; RICHARDSON, Robert D. The rise of modern mythology: 1680–1860. Bloomington/London: Indiana University Press, 1972, p. 101-102. No original: “the immediate social, historical events and people before Homer’s eyes”; “what is metaphysically true — that is, Nature in the divine sense”. 10 KUGEL, James L. Poets and Prophets: An Overview. In: KUGEL, James L. (ed.). Poetry and Prophecy: The Beginnings of a Literary Tradition. Ithaca/London: Cornell University Press, 1990, p. 1- 25, à página 21. No original: “perhaps more than any other modern, who solidified the connection between poetry and prophecy which became so important two or three generations later in the whole enterprise of Romantic poetry in England and on the Continent”. 11 LOWTH, Robert. Lectures on the Sacred Poetry of the Hebrews. Traduzido por George Gregory. Notas de Calvin Ellis Stowe. Andover: Crocker & Brewster, 1829, p. 22-23. Na tradução consultada: “if the actual origin of poetry be inquired after, it must of necessity be referred to religion”; “that poetry has been nurtured in those sacred places, where she seems to have been first called into existence; and that her original occupation was in the temple and at the altar. However ages and nations may have differed in their religious sentiments and opinions, in this at least we find them all agreed, that the mysteries of their devotion were celebrated in verse. […] poetry […] ever embraces a divine and sacred subject with a kind of filial tenderness and affection. To the sacred haunts of religion she delights to resort as to her native soil; there she most willingly inhabits, and there she flourishes in all her pristine beauty and vigour”. 104 Como apontou Lowth, no Antigo Testamento a palavra nābîʾ (ָנִביא) “denotava igualmente um profeta, um poeta, ou um músico, sob a influência da inspiração divina”12. Essa relação entre o profeta e o poeta, tal como exposta na língua hebraica, está também presente nas línguas árabe, grega e latina13, similaridades indicativas de que, nas sociedades arcaicas, “o ofício profético possuía uma sólida conexão com a arte poética”, e de que aqueles que foram chamados por um poder superior à manifestação profética “estavam previamente familiarizados com a poesia sagrada”14. Entre 1819 e 1820, sob a tutela do professor de literatura grega em Harvard Edward Everett (que, como comentamos anteriormente, após sua formação em Göttingen, buscou transmitir, na Nova Inglaterra, os estudos filológicos e histórico-literários das mitologias divulgados mais recentemente na Europa), Ralph Emerson se dedicou à leitura das obras de Blackwell e de Lowth. Suas visões críticas sobre a poesia, a profecia e a narrativa mítica o auxiliaram a moldar sua própria interpretação da figura e do papel do poeta, conforme apresentada, por exemplo, nos ensaios The American Scholar e The Poet15. Neste último, ele afirmou que os poetas são representativos e “proclamadores naturais, enviados ao mundo com o propósito da expressão”, a quem “[a] Natureza oferece todas as suas criaturas como uma linguagem imagética”. Por meio da linguagem simbólica do poeta, insinua o filósofo de Boston, descobrimos que “o mundo é um templo cujas paredes estão cobertas de emblemas, imagens e mandamentos da Divindade”. “Tudo aquilo que chamamos de história sagrada”, declara ele a partir do panorama de interligação entre poesia e sagrado, “atesta que o nascimento de um poeta é o evento principal na cronologia”16. Já em Poetry and Imagination, o autor, reconhecendo a origem religiosa da linguagem poética, afirma que “o começo da literatura são as orações de um povo”, e que o poeta em seu sentido supremo é aquele que emite “oráculos”17. 12 ibid., p. 149. Na tradução consultada: “denoted a prophet, a poet, or a musician, under the influence of divine inspiration”. Um de seus exemplos do emprego do termo nābîʾ é 1 Sam. 10:5-10. 13 ibid., p. 150. 14 ibid., p. 150-151. Na tradução consultada: “the prophetic office had a most strict connexion with the poetic art”; “were previously conversant with the sacred poetry”. 15 ANGLEN, K. P. van. Greek and Roman Classics. In: PETRULIONIS, Sandra Harbert; WALLS, Laura Dassow; MYERSON, Joel. The Oxford Handbook of Transcendentalism. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 3-8, à página 5. 16 EMERSON, The Poet, p. 7, 13, 17 e 11. No original: “natural sayers, sent into the world to the end of expression”; “Nature offers all her creatures as a picture-language”; “the world is a temple whose walls are covered with emblems, pictures and commandments of the Deity”; “All that we call sacred history attests that the birth of a poet is the principal event in chronology”. 17 EMERSON, Poetry and Imagination, p. 53 e 65. No original: “the beginning of literature is the prayers of a people”; “oracles”. 105 Thoreau, por sua vez, além de ter sido um leitor cuidadoso da obra emersoniana e dos poetas ingleses, recebeu ao longo de seus estudos universitários influências fulcrais para a formulação de sua própria concepção do bardo e da poesia profética, e procurou vincular os princípios mítico-poéticos da linguagem à verdade da existência humana e sua vinculação à Natureza. Na época em que desenvolvia sua formação, o estudo da literatura e das línguas clássicas cumpria um importante papel, e se tornou uma herança central do autor. Uma vez herdada em Harvard18, essa atmosfera expandiu-se ao longo da jornada sapiencial de Thoreau, que remeteu suas reflexões a sábios de diferentes momentos da cultura greco-romana (como, por exemplo, Homero, Pitágoras, Ésquilo, Píndaro, Catão, o Velho, Varrão, Virgílio, Columela e Jâmblico). Como registrou ele em uma carta enviada a um colega de classe, a leitura de Homero na língua original foi marcante, e, desde então, nos termos de Sattelmeyer, “o épico grego causou-lhe uma forte impressão enquanto uma expressão do potencial heroico da vida”19. Ademais, as aulas com o professor de literatura grega Cornelius Conway Felton (1807–1862), assim como suas leituras dos clássicos, escreve Kevin van Anglen, “o introduziram à ideia de que a poesia grega havia sido criada por bardos primitivos, cuja pureza de visão e expressão os posiciona lado a lado de outros que viveram (ou vivem) fora da influência corruptora da civilização moderna”20. As percepções literárias de Thoreau foram também estimuladas pelo curso sobre as literaturas nórdicas e germânicas lecionado pelo poeta e professor de línguas modernas Henry Wadsworth Longfellow (1807–1882). Mais do que o conteúdo propriamente dito da disciplina por ele ministrada, suas aulas foram relevantes no sentido de apresentarem uma pedagogia para a formação de pensadores imbuídos eles próprios pelo princípio poético (indo além, portanto, do padrão costumeiro da educação literária através da recitação)21. Em 1835, Thoreau transcreveu em um caderno pessoal comentários sobre a visão de Longfellow sobre a poesia e 18 As classes iniciais de literatura grega e romana incluíam a leitura das Odes de Horácio, da Anábase de Xenofonte, trechos de Tito Lívio e os discursos de Demóstenes e Ésquines. Já as turmas mais avançadas dedicavam-se à leitura de Sófocles (Édipo Tirano, Édipo Colono e Antígona), Eurípedes (Alceste), Cícero (Dos Ofícios e Do orador), Horácio (Sátiras e Epístolas) e Sêneca (Medeia). Posteriormente, era recomendado aos alunos o estudo das Sátiras de Juvenal, em latim, e da Ilíada de Homero, em grego. Em seu último ano de formação, Thoreau, para além de suas obrigações curriculares, escreveu resenhas das obras Introductions to the Study of the Greek Classic Poets, de H. N. Coleridge, e History of the Progress and Termination of the Roman Republic, de Adam Ferguson (SATTELMEYER, op. cit., p. 7-8; SEYBOLD, op. cit., p. 24). 19 SATTELMEYER, op. cit., p. 8. No original: “the Greek epic made a powerful impression on him as an expression of the heroic potential in life”. 20 ANGLEN, 2010, p. 7. No original: “introduced him to the idea that Greek poetry had been created by primitive bards, whose purity of vision and expression ranks them alongside others who lived (or live) outside the corrupting influence of modern civilization”. 21 SATTELMEYER, op. cit., p. 13-14. 106 a figura do poeta, que era um partidário das ideias de que a linguagem poética teve sua origem em cenas pastoris, de que o poeta tem a Natureza como fonte de sua inspiração e de que seu discurso é uma via de encaminhamento para a ação nobre — pilares dos românticos de modo geral, assim como de Thoreau22. A ideia de que o poeta é um profeta ecoou em pensadores como Blake, Wordsworth, Shelley, Carlyle, Emerson, Thoreau e Whitman. No romantismo inglês, William Blake, o mediador de narrativas mitopoéticas como The Marriage of Heaven and Hell e The Book of Urizen, em um manuscrito denominado All Religions are One (1788), pronuncia, com os sons da “Voz de quem chora na Natureza Selvagem”, que “As Religiões de todas as Nações são derivadas das diferentes recepções de cada Nação do Gênio Poético, que em toda parte é chamado de Espírito da Profecia”. Seguindo esta mesma linha, em There is No Natural Religion, texto do mesmo ano, Blake direciona suas visões poético-proféticas para as possibilidades epistemológicas do ser humano — o qual, a seu ver, uma vez despido do gênio criador que caracteriza o poeta e o profeta, está fadado à monótona e infértil repetição daquilo que já foi alçado pela tradição: “Se não fosse o caráter Poético e Profético, o Filosófico e o Experimental logo estariam na proporção de todas as coisas, e ficariam imóveis, incapazes de fazer algo mais senão repetir a mesma rodada enfadonha novamente”23. Na geração posterior, Percy Bysshe Shelley (1792–1822), em sua A Defence of Poetry (1840), alega que os poetas, para além de “autores da linguagem e da música, da dança e da arquitetura, e da estatuária e da pintura”, “são os instituidores das leis, os fundadores da sociedade civil, os inventores das artes da vida e os mestres que delineiam, numa certa proximidade com o belo e o verdadeiro, aquela apreensão parcial das intervenções do mundo invisível que se chama religião”. Em seu panorama romântico, Shelley também atesta que a profecia é um atributo originário da expressão poética: Os poetas, de acordo com as circunstâncias da época e da nação em que apareceram, foram chamados, nos primórdios do mundo, legisladores ou profetas: um poeta essencialmente engloba e unifica ambos esses papéis. Pois o poeta não só contempla intensamente o presente como ele é, e descobre as leis de acordo com as quais as coisas presentes deveriam ser ordenadas, mas 22 SEYBOLD, op. cit., p. 26. 23 PRICKETT, Stephen. Poetry and Prophecy: Bishop Lowth and The Hebrew Scriptures in Eighteenth- century England. In: JASPER, David. Images of Belief in Literature. London/Basingstoke: The Macmillan Press, 1984, p. 81-103, à página 83. No original: “Voice of one crying in the Wilderness”; “The Religions of all Nations are derived from each Nation’s different reception of the Poetic Genius, which is everywhere call’d the Spirit of Prophecy”; “If it were not for the Poetic or Prophetic character the Philosophic and Experimental would soon be at the ratio of all things, and stand still, unable to do other than repeat the same dull round over again”. 107 também contempla o futuro no presente, e seus pensamentos constituem as sementes da flor e o fruto dos tempos posteriores. Não que eu afirme que os poetas sejam profetas no sentido vulgar da palavra, ou que possam prever a forma dos acontecimentos com tanta certeza quanto preveem seu espírito [...]. Um poeta participa do eterno, do infinito e do uno; com relação a suas concepções, tempo, lugar e quantidade não existem24. Antes de Shelley, o poeta inglês da era elisabetana Sir Philip Sidney (1554–1586), opondo-se aos ataques contra a figura do poeta e o conteúdo de seus dizeres, em The Defence of Poesy (1595), texto com o qual Thoreau teve contato e cuja ideia de poeta-profeta foi por ele apreciada25, ao voltar-se para as religiões politeístas antigas, recordava que Entre os romanos, ao poeta chamavam vates, o que significa tanto adivinho, visionário quanto profeta, como mostram claramente as palavras vaticinium e vaticinari, que lhes estão associadas: tal é o título celestial outorgado por aquele grande povo a esse saber extasiante. E tão grande era a admiração a ele votada, que julgavam na leitura fortuita de versos encontrar importantes premonições de seus destinos26. O poeta é um profeta, sugere Shelley, na medida em que “participa do eterno, do infinito e do uno”, incorporando, em suas vocalizações, os atributos da dimensão espiritual da vida. Participando do tempo mítico que reúne a eternidade e a temporalidade, suas entonações transmitem uma visão que, ainda que endereçada à contemporaneidade, tem em vista traços indeléveis da existência, sinais indicativos da unidade entre todas as coisas e todas as eras e, deste modo, “com relação a suas concepções, tempo, lugar e quantidade não existem”. Ao “saber extasiante” da poesia os antigos outorgaram o “título celestial” do visionário, do profeta, diz Sidney, pois em suas palavras eram encontrados presságios de seu próprio destino. E ainda nós próprios encontramos nas indicações poéticas dos mais remotos tempos algo que nos diz 24 SHELLEY, 2017, p. 100-101, grifos do autor. Thoreau possuía em sua biblioteca pessoal uma edição compilada das obras poéticas de Coleridge, Shelley e Keats (SATTELMEYER, op. cit., p. 155). As citações de Shelley e Carlyle acerca da figura do poeta-profeta aqui feitas as encontramos também em um trabalho acadêmico sobre a ressonância dessa personificação na obra de Walt Whitman, investigação que, diferentemente daquilo que propomos aqui, parte da perspectiva do “vazio romântico” na elucidação da constituição dessa ideia. Cf. MACKAY, Helen H. The romantic concept of the poet- prophet and its culmination in Walt Whitman. 1970. 95 f. Dissertação (Master of Arts in English) – University of North Carolina at Greensboro, Greensboro, 1970. 25 SATTELMEYER, op. cit., p. 269. Logo após ter se formado em Harvard, Thoreau mencionou em seus cadernos pessoais sua aprovação à ideia de poeta-profeta sustentada por Sidney, e transcreveu a passagem final de sua Apologia, na qual o autor inglês relacionava a verdade proclamada pelo poeta às formas míticas, e exemplificava as verdades da mitologia pelas figuras de Homero e de Hesíodo (SEYBOLD, op. cit., p. 27-28). 26 SIDNEY, Sir Philip. Defesa da poesia. In: SIDNEY, Sir Philip; SHELLEY, Percy Bysshe. Defesas da poesia. Ensaio, tradução e notas de Enid Abreu Dobránszky. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 89-167, à página 94. 108 respeito diretamente: a atmosfera criada pelas palavras dos poetas e profetas nos devolvem a um horizonte primevo, às questões existenciais que são emaranhadas nas profundezas de nosso ser. Seguindo a Poética de Aristóteles, Sidney e Shelley posicionam a poesia em um patamar superior ao da história. Ao passo em que esta última lida com os particulares, o discurso poético se envolve com aquilo que é universal27. Esta ênfase no universal é um traço distintivo do romantismo britânico. Roberto Acízelo de Souza explica que “enquanto em outros países da Europa os estudos literários se inclinavam para o historicismo [...], na Inglaterra — por razões que não parece fácil explicar — predominavam especulações teóricas e universalistas sobre a ideia de poesia, isto é, poéticas”28. Convergente com essa corrente, Thoreau, indo além da distinção entre essas artes e seus respectivos interesses pelo particular e pelo universal, busca aliar a perspectiva histórica com a busca pela verdade poética da vida, tal como ela se expressa nos diferentes tempos e lugares: “A perspicácia crítica é exercida em vão para desvendar o passado; o passado não pode ser apresentado; não podemos saber o que não somos”, escreve ele em A Week. Para Thoreau, o que interessa propriamente no estudo das particularidades históricas é a descoberta daquilo que ainda hoje permanece verdadeiro. O historiador-poeta, por assim dizer, através da relação com os particulares, dedica-se à descoberta de seus traços universais, ao desvelamento poético da vida: “Mas um véu paira sobre o passado, o presente e o futuro, e cabe ao historiador descobrir não o que foi, mas o que é”29. Os românticos ingleses também seguem a tradição aristotélica quando afirmam que não é a métrica que caracteriza o espírito poético, tendo em vista que também a prosa pode constituir-se poeticamente30, compreensão que neutraliza a comum distinção da tradição 27 Como escreveu Sidney, Aristóteles ensinou que “a poesia trata do katholou, isto é, do universal, e a história, do kathekaston, o particular”. Shelley, por sua vez, seguindo seu antecessor, afirma que ao passo em que a história é “um catálogo de fatos isolados, ligados apenas pelo tempo”, “o poema é a criação de ações segundo as formas imutáveis da natureza humana”, de modo tal que a linguagem poética “é universal e contém em si mesma o germe de uma relação com quaisquer motivos ou ações que ocorram nas variedades possíveis da natureza humana” (DOBRÁNSZKY, Enid Abreu. Elogio da Literatura. In: SIDNEY, Sir Philip; SHELLEY, Percy Bysshe. Defesas da poesia. Ensaio, tradução e notas de Enid Abreu Dobránszky. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 11-87, às páginas 58-59). 28 SOUZA, Roberto Acízelo de. Apresentação. In: WORDSWORTH; HAZLITT; SHELLEY; STUART MILL. Poéticas Românticas Inglesas. Organização, tradução, apresentação e notas de Roberto Acízelo de Souza. São Paulo: Filocalia, 2017, p. 9-23, à página 13. 29 Writings, I, p. 162, grifos do autor. No original: “Critical acumen is exerted in vain to uncover the past; the past cannot be presented; we cannot know what we are not. But one veil hangs over past, present, and future, and it is the province of the historian to find out, not what was, but what is”. 30 “Pode-se ser poeta”, diz Sidney, “sem fazer versos e fazer versos sem fazer poesia” (SIDNEY, op. cit., p. 118). Para Wordsworth, “não há, nem pode haver, qualquer diferença essencial entre a linguagem da prosa e a composição métrica” (WORDSWORTH, 2017, p. 38). Shelley, por sua vez, assevera: “A distinção entre poetas e prosadores constitui um erro vulgar. A distinção entre filósofos e poetas a 109 clássica entre o poeta e o filósofo, afiançada, em boa medida, a partir de interpretações das reflexões de Platão e a expulsão do poeta de sua República. Como já observou Fred Lorch, Thoreau, tal como Wordsworth, por exemplo, não reconhecia a separação entre poesia e prosa. A literatura poética, como aqui compreendida, não se caracteriza pela composição de versos, mas pelo movimento da musicalidade do pensamento. Assim indica Thoreau em seu diário: a “mais elevada sabedoria escrita é rimada ou de alguma forma medida musicalmente — é, tanto na forma como na substância, poesia”31. Deteremos nossa atenção na relação entre o discurso poético e a música no capítulo seguinte. Por ora, basta dizermos que o poeta e sua linguagem, como aqui enroupados, não se caracterizam pela palavra versificada somente, mas, antes, por um movimento que é ritmado pela própria experiência32. O retrato autêntico da poesia e do poeta, por conseguinte, não culmina, no limite, na literatura em si mesma, mas na existência concreta que o espírito poético embala. “O verdadeiro poema não é aquele que o público lê”, afirma Thoreau em A Week. “Há sempre um poema que não é impresso em papel, coincidente com sua produção, estereotipado na vida do poeta. Esse poema é o que ele se tornou por meio de seu trabalho”. “Não se trata de como a ideia se expressa na pedra, na tela ou no papel”, continua o autor, “mas até que ponto ela obteve forma e expressão na vida do artista. Seu verdadeiro trabalho não será situado na galeria de nenhum príncipe”33. O poema genuíno encontra-se incorporado na vida mesma, e ultrapassa os intentos literários: Minha vida tem sido o poema que eu teria escrito, precedeu” (SHELLEY, 2017, p. 103). Roberto de Souza atesta, nesse sentido, que o afastamento romântico da distinção gramatical entre prosa e poesia possui seu antecedente clássico em Aristóteles, que, em sua Poética, conclui que “não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa)” (SOUZA, op. cit., p. 20). 31 LORCH, Fred W. Thoreau and the Organic Principle in Poetry. PMLA, v. 53, n. 1, p. 286-302, 1938, à página 293. No original: “loftiest written wisdom is either rhymed or in some way musically measured — is, in form as well as in substance, poetry”. 32 Cf., p. ex., Writings, VII, p. 289 (30 de novembro de 1841): “Poetry is nothing but healthy speech. Though the speech of the poet goes to the heart of things, yet he is that one especially who speaks civilly to Nature as a second person and in some sense is the patron of the world. Though more than any he stands in the midst of Nature, yet more than any he can stand aloof from her. The best lines, perhaps, only suggest to me that that man simply saw or heard or felt what seems the commonest fact in my experience”. 33 Writings, I, p. 365, grifos do autor. No original: “The true poem is not that which the public read. There is always a poem not printed on paper, coincident with the production of this, stereotyped in the poet’s life. It is what he has become through his work. Not how is the idea expressed in stone, or on canvas or paper, is the question, but how far it has obtained form and expression in the life of the artist. His true work will not stand in any prince’s gallery”. Numa variação dessa passagem, presente no diário de Thoreau, assim lemos: “Some symbol of value may shape itself to the senses in wood, or marble, or verse, but this is fluctuating as the laborer’s hire, which may or may not be withheld. His very material is not material but supernatural” (Writings, VII, p. 157, grifo acrescentado. 1 de julho de 1840). 110 Mas eu não poderia vivê-lo e também proferi-lo34. Assim alega o poeta concordiano. A partir deste panorama onde o caráter experiencial e revelatório do espírito poético é decisivo, é possível recordarmos daquilo que assinala o poeta mexicano Octavio Paz (1914–1998) em O Arco e a Lira (1956) sobre ser a poesia, em seu sentido mais sutil, “um penetrar, um estar ou ser na realidade”35. Através da “experiência poética”, o leitor e o falante da poesia resgatam a presença do “tempo original”, tornando-se contemporâneos das angústias e glorificações narradas nas composições mitopoéticas. Ao consumar-se no instante presente, a possibilidade de reviver as experiências heroicas transforma a estrutura daquele que com essa linguagem mediadora comunga, na medida em que reinstaura a condição humana originária, proclamada primariamente pelos poetas-profetas de outrora: Tal como a criação poética, a experiência do poema se dá na história, é história e, ao mesmo tempo, nega a história. O leitor luta e morre com Heitor, duvida e mata com Arjuna, reconhece as rochas natais com Odisseu. Revive uma imagem, nega a sucessão, retorna no tempo. O poema é mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, encarna-se num momento. A sucessão se converte em presente puro, manancial que se alimenta a si próprio e transmuta o homem36. Voltemos à figura do poeta-profeta entre os românticos de língua inglesa. Thomas Carlyle (1795–1881), inserido no panorama do romantismo e um importante porta-voz de suas feições europeias entre os transcendentalistas, em On Heroes, Hero-Worship, & the Heroic in History (1841), obra acessada por Thoreau por intermédio de Emerson37, também assinala a conexão entre a atividade poética e seu fundo espiritual. Ao retratar as aparições da personalidade heroica e suas particularidades ao longo da história, embora distinga o “herói- poeta” e o “herói-profeta”, o pensador escocês reconhece em ambos uma profunda familiaridade, e, como seus predecessores, retorna à epistemologia dos termos para atestar a comunhão entre o canto poético e o anúncio profético. 34 ibidem. No original: “My life has been the poem I would have writ, / But I could not both live and utter it”. 35 PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Tradução de Olga Savary. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 137. 36 ibid., p. 30. 37 SATTELMEYER, op. cit., p. 146. Carlyle foi um grande amigo e correspondente intelectual de Emerson, e sua obra foi cuidadosamente lida por Thoreau, que, em 1847, publicou um ensaio denominado Thomas Carlyle and His Works [Thomas Carlyle e Suas Obras]. 111 O Poeta e o Profeta diferem enormemente em nossas vagas noções modernas sobre eles. Em algumas línguas antigas, mais uma vez, os títulos são sinônimos; Vates significa tanto Profeta quanto Poeta: e, de fato, em todos os tempos, o Profeta e o Poeta, se bem compreendidos, possuem um grande parentesco de sentido. Na verdade, fundamentalmente, eles ainda são o mesmo; especialmente neste aspecto mais importante: que ambos penetraram no mistério sagrado do Universo; o que Goethe chama de “o segredo aberto”38. A qualidade profética do poeta havia sido antes invocada nos cenários românticos por William Wordsworth. Para o poeta inglês, este penetrar no “mistério sagrado do Universo”, como expressou Carlyle, é conduzido pela mentoria das linguagens naturais, viabilizadoras de uma visão integradora de todas as particularidades da realidade em uma unidade de sentido. Em composições como Tintern Abbey e The Prelude, sugerem Jan Wojcik e Raymond-Jean Frontain, Wordsworth “proclama o poder restaurador de uma imaginação que, despertada pela natureza, permite ao indivíduo ver integrativamente”. Em terras americanas, seu chamado foi reelaborado por Emerson e por Thoreau, que também enxergavam na totalidade da Natureza uma potencialidade capaz de reeducar as pessoas em suas visões de si mesmas e do mundo39. No poema conclusivo das Lyrical Ballads (1798), Lines Composed a Few Miles above Tintern Abbey, Wordsworth posiciona a Natureza como a mais genuína preceptora, a modeladora da alma e a proporcionadora de sua participação na beleza; a garantidora da fé de que as manifestações cósmicas estão plenas de bençãos, apesar das frivolidades das vivências humanas. É a relação de amor com o conhecimento propiciado pela Natureza que nutre a promessa do manifestar de grandiosos vaticínios que se levantam das profundezas da alma e que contemplam as bem-aventuranças da vida, a despeito das superficialidades e torpezas das 38 CARLYLE, Thomas. Sartor Resartus: The life and opinions of Herr Teufelsdröckh / Heroes and Hero-Worship. Boston: Dana Estes & Company, 1892, p. 309. No original: “Poet and Prophet differ greatly in our loose modern notions of them. In some old languages, again, the titles are synonymous; Vates means both Prophet and Poet: and indeed at all times, Prophet and Poet, well understood, have much kindred of meaning. Fundamentally indeed they are still the same; in this most important respect especially, That they have penetrated both of them into the sacred mystery of the Universe; what Goethe calls ‘the open secret’”. E assim ele prossegue: “‘Which is the great secret?’ asks one. — ‘The open secret,’ — open to all, seen by almost none! That divine mystery, which lies everywhere in all Beings, ‘the Divine Idea of the World, that which lies at the bottom of Appearance,’ as Fichte styles it […]. This divine mystery is in all times and in all places; veritably is. In most times and places it is greatly overlooked; and the Universe, definable always in one or the other dialect, as the realized Thought of God, is considered a trivial, inert, commonplace matter […]. the Vates, whether Prophet or Poet, has penetrated into it [this divine mystery]; is a man sent hither to make it more impressively known to us” (ibidem, grifos do autor). 39 WOJCIK, Jan; FRONTAIN, Raymond-Jean. Poetic Prophecy in Western Literature. London/Toronto: Associated University Presses, 1984, p. 28. No original: “proclaims the restorative power of an imagination that, aroused by nature, enables the individual to see integratively”. 112 relações sociais, pautadas por uma cosmovisão meramente materialista. É com esta confiança que canta o poeta, Sabendo que a Natureza nunca traiu O coração que a amou: é seu privilégio Conduzir-nos por todos os anos da vida, De alegria a alegria: Pois é capaz de moldar A alma dentro de nós, incutindo-lhe Quietude e beleza, nutrindo-a Com altivos pensamentos, e nem as línguas vis, Os juízos impensados, a troça dos egoístas, As frias saudações, ou A tediosa rotina da vida cotidiana Jamais nos dominarão, nem abolirão Nossa jubilosa fé de que tudo que contemplamos Está pleno de bênçãos40. Insuflado ele próprio pelo impulso poético-profético, nas linhas iniciais de seu poema autobiográfico The Prelude, conhecido, em grande medida, pelos transcendentalistas41, ele declara sentir “o doce sopro do Céu” (I, 41) penetrar em seu corpo, transmitindo-lhe “[u]ma leve brisa criativa correspondente” (43) que anuncia a promessa de uma “vida sagrada de música e de verso” (54). Junto ao campo que lhe envolvia, ele pronunciou “Uma profecia: números poéticos surgiram / Espontaneamente, e vestidos em manto sacerdotal / Meu espírito, assim escolhido, como poderia parecer, / Para serviços sagrados […]” (60-63)42. Conforme compreendiam os românticos, na esteira das tradições grega, latina e hebraica, em especial, o poeta-profeta — ou, o que significa dizer o mesmo, o bardo43, o gênio — e suas visões eram dotadas de um estatuto sagrado, indicação de sua participação no eterno, no infinito e no uno, como havia escrito Shelley, de sua convocação para “serviços sagrados”, como enunciou Wordsworth, ou, como proferiu Blake em suas Canções de Experiência (1789– 94), sinal da amplitude de suas palavras, que, por meio do poder conector proveniente de seu atento escutar do “Verbo Sagrado”, ligam presente, passado e futuro: “Ouve a voz do Bardo! / 40 WORDSWORTH, 2007, p. 97-99. 41 Conforme a listagem do catálogo bibliográfico reunido por Sattelmeyer (op. cit., p. 294), Thoreau leu a edição de 1850 da obra The Prelude, que compunha sua biblioteca pessoal. Ele também possuía um exemplar das Complete poetical works de Wordsworth, que contava com Tintern Abbey entre os poemas listados. 42 WORDSWORTH, 1970, p. 2. No original: “the sweet breath of Heaven”; “A corresponding mild creative breeze”; “holy life of music and of verse”; “A prophecy: poetic numbers came / Spontaneously, and cloth’d in priestly robe / My spirit, thus singled out, as it might seem, / For holy services […]”. 43 O termo latino bardus tem origem céltica (gaélico: bard; armoricano e câmbrico: barz) (NASCENTES, op. cit., p. 63). 113 Que vê o Presente, o Passado & o Futuro, / Que tem escutado / O Verbo Sagrado, / Que passeou pelo jardim maduro [...]”44. Embora tenhamos destacado aqui os poetas ingleses, os românticos alemães já haviam observado essa mesma relação entre a poesia e a profecia45. Ian Balfour, em The Rhetoric of Romantic Prophecy, destaca as seguintes formulações de Novalis: O sentido da P[oesia] tem estreito parentesco com o sentido da profecia e com o sentido religioso e oracular em geral. O poeta ordena, unifica, escolhe, descobre [...]. Assim também é com a linguagem — quem é sensível ao seu toque, seu tempo, seu espírito musical, quem quer que ouça as suaves operações de sua natureza interior e mova sua língua ou sua mão em concordância com ela, será um profeta46. Friedrich Hölderlin (1770–1843), por sua vez, assim anunciou a sacra tarefa da linguagem poética: 44 BLAKE, op. cit., p. 101. 45 Cabe sublinharmos que a figura do poeta-profeta foi também realçada no campo dos estudos históricos — mais especificamente com o historiador holandês Johan Huizinga, que dedicou toda uma seção de sua obra Homo Ludens (1938) à discussão da proeminência cultural da figura do poeta nas sociedades arcaicas. Recordando-se da ligação entre a atuação poética e o ofício profético, ele diz o seguinte: “Poesis doctrinae tamquam somnium — poetry is like a dream of philosophic love, says the deep- minded Francis Bacon. The mythical imaginings of savages, those children of nature, concerning the origins of existence often contain the seeds of a wisdom which will find expression in the logical forms of a later age. […]. In any flourishing, living civilization, above all in archaic cultures, poetry has a vital function that is both social and liturgical. All antique poetry is at one and the same time ritual, entertainment, artistry, riddle-making, doctrine, persuasion, sorcery, soothsaying, prophecy, and competition. […]. The true appellation of the archaic poet is vates, the possessed, the God-smitten, the raving one. These qualifications imply at the same time his possession of extraordinary knowledge. He is the Knower, sha’ir, as the old Arabs called him. In Eddic mythology the mead that one has to drink to become a poet is prepared from the blood of Kvasir, the wisest of all creatures who was never yet questioned in vain. Gradually the poet-seer splits up into the figures of the prophet, the priest, the soothsayer, the mystagogue and the poet as we know him; even the philosopher, the legislator, the orator, the demagogue, the sophist and the rhetor spring from that primordial composite type, the vates. The early Greek poets all show traces of their common progenitor. Their function is eminently a social one; they speak as the educators and monitors of their people” (HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: A Study of the Play-Element in Culture. Traduzido por Richard Francis Carrington Hull. London: Routledge, 2002, p. 119-121). Agradeço ao Prof. Dr. Arnaldo Érico Huff Júnior por, na ocasião da defesa desta dissertação, ter me apresentado a referida passagem e apontado sua convergência com a temática aqui exposta. 46 BALFOUR, op. cit., p. 43 e 46. Na tradução consultada: “The sense for P[oetry] has a close kinship with the sense of prophecy and for the religious, oracular sense in general. The poet orders, unites, chooses, discovers [...]”; “So, it is too, with language — whoever is sensitive to its touch, its tempo, its musical spirit, whoever hearkens to the gentle workings of its inner nature and moves his tongue or hand accordingly, will be a prophet”. 114 Os poetas são vasos sagrados Onde o vinho da vida, o espírito Dos heróis, se conserva47. O bardo moderno, imbuído pelo legado grandioso dos antigos poetas-profetas, torna-se canal mediador do tempo originário no instante presente, e apresenta-se enquanto prophḗtēs, um “declarador” de uma realidade divinamente fundamentada, e como poiētḗs, um “criador” de formulações linguísticas e modulações existenciais. O poeta-profeta, como compreendido no horizonte aqui delineado, não traz à baila em sua mensagem sapiencial uma “novidade”, mas, antes, busca recordar seu leitor daquilo que é eterno, daquilo que, sendo contemporâneo a todas as temporalidades, “nunca envelhece”. “Para um filósofo, toda novidade, como se diz, é mexerico”, escreve Thoreau no segundo capítulo de Walden. “Que novidade coisa nenhuma! Muito mais importante é saber o que nunca envelhece!”48. A poesia traduz na finitude a infinitude que se espelha nas crenças dos diversos povos; decodifica a vivacidade eterna que se mostra nas manifestações temporais da Natureza. “A poesia”, declara Thoreau, “é o misticismo da humanidade”, pois revela as diferentes formas de relação humana com o sagrado; e é também um “fruto natural”49, porquanto é em si mesma uma linguagem orgânica da Natureza. Embora sejam múltiplos como os modos de manifestação vital da Natureza, os poetas nascem de um solo comum: a busca por aquilo que permanece para além do tempo. Detectando a unidade na multiplicidade, a palavra do poeta-profeta agrega as diversas potencialidades naturais, as distintas circunstâncias espaço-temporais e as diferentes formulações humanas sobre seus respectivos encontros e convivências com o divino. “Os deuses não são parciais a nenhuma era”, escreve Thoreau. “O tempo não esconde nenhum tesouro”50, e a vida do sábio é o experienciar da eternidade que engloba todos os tempos: A vida de um sábio é sobretudo extemporânea, pois ele vive de uma eternidade que inclui todo o tempo. A mente astuta viaja mais longe do que Zoroastro a cada instante, e chega ao presente com sua revelação. [...]. Ele [o sábio] deve tentar a sorte de novo hoje como ontem. Todas as questões dependem do presente para a sua resolução. O tempo não mede nada além de si próprio51. 47 CURIONI, Marise Moassab. Sobre o Empédocles de Hölderlin. In: HÖLDERLIN, Friedrich. A Morte de Empédocles. Tradução e introdução de Marise Moassab Curioni. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 17- 79, à página 75. 48 THOREAU, 2019, p. 99, grifo do autor. 49 Writings, I, p. 350 e 94. No original: “Poetry is the mysticism of mankind”; “a natural fruit”. 50 ibid., p. 164 e 161. No original: “The gods are partial to no era”; “Time hides no treasures”. 51 ibid., p. 332. No original: “The life of a wise man is most of all extemporaneous, for he lives out of an eternity which includes all time. The cunning mind travels further back than Zoroaster each instant, and comes quite down to the present with its revelation. [...]. He must try his fortune again to-day as yesterday. All questions rely on the present for their solution. Time measures nothing but itself”. 115 Herdeiro das discussões contemporâneas, Thoreau enxerga no poeta — que, para ele, assim como para os românticos ingleses, é também um filósofo52 — o desempenho de um posto sagrado. Buscando recuperar, como seus predecessores, o fulgor sagrado da composição poética e dos exercícios existenciais do poeta, ele comemora, em “Friday” [“Sexta-feira”], capítulo final de A Week, a proporção visionária e profética de seu ofício. Se entre os antigos o poeta era dotado de uma insígnia sagrada por ser capaz de ver além, à medida em que a civilização se distanciou da Natureza (a fonte de toda visão para além do particular e rumo ao universal e, portanto, das misteriosas interconexões entre todas as coisas), deixou de transmitir, em seu uso da palavra, uma entonação visionária. “O bardo”, escreve ele, “perdeu, em grande medida, a dignidade e a sacralidade de seu ofício. Antigamente ele era chamado de vidente, mas agora considera-se que uma pessoa vê tanto quanto a outra”. “O poeta”, censura Thoreau, “foi para dentro de casa, e trocou a floresta e o penhasco pela lareira, a choupana de Gael e Stonehenge com seus círculos de pedras pelo domicílio dos ingleses”53. O poeta-profeta, o bardo, é aquele que desempenha um serviço sagrado — que, como indica Thoreau a partir dessa passagem, é desenvolvido ao ar livre, em uma atmosfera cúltica, de encantamento. A sacralidade de seu dizer provém das florestas e penhascos, e não das casas e suas lareiras; seu saber provém de uma concepção mítica de mundo onde tudo se interconecta, aqui simbolizada nas linguagens celtas e pré-celtas dos clãs gaélicos e das pedras de Stonehenge, em oposição aos ambientes domésticos ingleses. Assim, em Thoreau, o poeta-profeta aparece como o 52 Todo grande poeta, como sugere Thoreau, na medida em que se ocupa com a sabedoria, possui uma face filosófica, e, na medida em que se ocupa com os fenômenos da Natureza, possui uma face científica. No campo da linguagem poética, por conseguinte, ocorre o amalgamento daquilo que há de mais relevante nas óticas por nós empregadas para conhecer o mundo. “The poet”, escreve Thoreau em A Week, “uses the results of science and philosophy, and generalizes their widest deductions” (Writings, I, p. 387). Antes de Thoreau, Coleridge, em sua discussão sobre o caráter poético de Shakespeare, havia escrito o seguinte em sua Biographia Literaria: “No Man was ever yet a great poet, without being at the same time a profound philosopher. For poetry is the blossom and the fragrancy of all human knowledge, human thoughts, human passions, emotion, language” (COLERIDGE, 1884, p. 381). Lowth (op. cit., p. 11), na introdução de seu estudo sobre a poesia da religião hebraica, já havia assinalado, antes dos românticos, a correlação entre o poeta e o filósofo, de modo a ressaltar o fato de que ambos são preceptores de sua comunidade. “The philosopher and the poet indeed seem principally to differ in the means, by which they pursue the same end”, atesta o erudito. “Each sustains the character of a preceptor […]. The one makes his appeal to reason only, independent of the passions; the other addresses the reason in such a manner, as even to engage the passions on his side. The one proceeds to virtue and truth by the nearest and most compendious ways; the other leads to the same point through certain deflexions and deviations, by a winding, but pleasanter path. It is the part of the former so to describe and explain these objects, that we must necessarily become acquainted with them; it is the part of the latter so to dress and adorn them, that of our own accord we must love and embrace them”. 53 Writings, I, p. 392. No original: “The bard has in a great measure lost the dignity and sacredness of his office. Formerly he was called a seer, but now it is thought that one man sees as much as another”; “The poet has come within doors, and exchanged the forest and crag for the fireside, the hut of the Gael, and Stonehenge with its circles of stones, for the house of the Englishman”. 116 proclamador da ancestral sacralidade da terra, de nosso parentesco com os povos originários, seu cultivo dos veios telúricos e seus dizeres sapienciais, esquecidos pelos tempos industriais. A partir de sua imersão neste cenário, também em A Week, através das trilhas míticas ancestrais da Grécia, ele afirma, em contraposição aos seus antecessores ingleses, que o poeta não carece de manifestos em sua defesa, pois é “o mais robusto filho da terra e do Céu”, um mensageiro das vias sacras da Natureza, em cuja face “seus companheiros enfraquecidos reconhecerão Deus”. “Foram os adoradores da beleza, afinal”, continua ele, “que realizaram o verdadeiro trabalho pioneiro deste mundo”54. Atrelando a fala poética à herança primordial da humanidade, o autor concebe o poeta como um proclamador e construtor de possibilidades de ser no mundo; um mediador, entre o céu e a terra, de tudo aquilo que é belo e que permanece para além do tempo; um partícipe da construção das escoras que alicerçam o universo e nossas visões de encantamento frente às suas dinâmicas (que não cessam de ser entoadas a despeito do estado de desencantamento e de esquecimento da conexão primordial entre céu e terra). A fala verdadeiramente poética, conforme assimilada por Thoreau, faz transluzir a presença do divino: em oposição à fraqueza vital e linguística causada pelo distanciamento humano das falas dos demais seres da terra, no poeta genuíno reconhecemos a presença de uma força superior a comandar o condão de vocalizar as linguagens da Natureza e sua beleza, as progenitoras do cosmo. Thoreau acreditava que, assim como os gregos de outrora, também nós estamos aptos a descobrir as atividades cósmicas como expressão da beleza e da ordem que vibra no princípio elemental que tudo franqueia. “Como é escassa entre nós a apreciação da beleza da paisagem! É preciso que nos digam que os gregos chamavam o mundo de Kósmos — Beleza, ou Ordem —, mas não vemos com clareza por que eles faziam isso, e reduzimos o assunto a um curioso fato filológico”55. O poeta empresta sua voz para que se façam expressas as vozes da Natureza, e assim se comunica de modo orgânico e dinâmico com o “leitor de fé”, isto é, aquele que está “em sintonia com a Natureza circundante”. Conforme a fala simbólica thoreauviana em Walking, a partir dessa “literatura que dá expressão à Natureza”, as mensagens das linguagens naturais florescem e frutificam, e espalham, enfim, seus panegíricos: 54 ibid., p. 362. No original: “the toughest son of earth and of Heaven”; “his fainting companions will recognize the God in him”; “It is the worshipers of beauty, after all, who have done the real pioneer work of the world”. Emerson diz algo similar em seu ensaio The Poet: “The poet is the sayer, the namer, and represents beauty. [...]. God has not made some beautiful things, but Beauty is the creator of the universe. Therefore the poet is not any permissive potentate, but is emperor in his own right” (EMERSON, The Poet, p. 7). 55 THOREAU, 2012a, p. 117. 117 Onde está a literatura que dá expressão à Natureza? Seria um poeta aquele que conseguisse imprimir em seu trabalho os ventos e os rios, fazer com que falassem por ele; aquele que cravasse as palavras em seus sentidos primitivos [...]; aquele cujas palavras fossem tão verdadeiras, vigorosas e naturais que parecessem expandir-se como flores desabrochadas com a chegada da primavera, ainda que jazessem meio abafadas entre duas folhas mofadas numa biblioteca — para florir e frutificar ali anualmente, como é o feitio de sua espécie, para um leitor de fé, em sintonia com a Natureza circundante56. O poeta penetra nas extremidades e sutilezas das coisas: em suas palavras jorram os dizeres do mundo. “É apenas por um milagre que a poesia é escrita”57, afirma Thoreau, pois é a convergência da multiplicidade de sentidos e particularidades da vida em uma unidade semântica, um movimento integrador prodigioso, que faz produzir a fala poética genuína. Metamorfoseando-se através da linguagem, o poeta se torna as próprias chuvas, tardes, ventos e passarinhos, como transbordou o espírito poético-profético nas bandas de cá, por meio da voz de Manoel de Barros e seu Retrato do artista como coisa: Há um cio vegetal na voz do artista. Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto de alcançar o murmúrio das águas nas folhas das árvores. Não terá mais o condão de refletir sobre as coisas. Mas terá o condão de sê-las. Não terá mais ideias: terá chuvas, tardes, ventos, passarinhos…58 As modalizações desse “cio vegetal” que se embrenha na natureza das coisas são encontradas por Thoreau nas falas poéticas dos antigos. É em A Week que as opiniões de Thoreau sobre o poeta, a poesia e a mitologia encontram-se expostas de modo mais explícito, um livro no qual seu autor identifica a presença do “caráter hipetral” que era particular de certos templos egípcios antigos que, uma vez desprovidos de coberturas superiores, eram permeados pelo éter59. Suas visões particulares das pessoas e dos demais seres que se movimentam naquela fração da Natureza lhe remetem a questões universais: junto à descrição de sua trajetória e dos emblemas que a paisagem comunica, suas histórias e suas constituições, emergem suas perspectivas sobre o mito, a história, a religião, a literatura, a poesia e o caráter do poeta. O movimento corporal no fluxo e nas margens dos rios descobre, assim, a exploração de uma jornada de retorno às origens que assume proporções míticas. No curso de suas meditações 56 ibid., p. 108. 57 Writings, I, p. 350. No original: “It is only by a miracle that poetry is written at all”. 58 BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2022, p. 23. 59 Writings, VIII, p. 274, grifo do autor. 29 de junho de 1851. No original: “hypaethral character”. 118 sobre aquilo que se manifesta em todos os tempos, o autor, para além do tempo histórico, retorna a um passado mítico, atemporal, e de caráter universal60. Ao longo de sua narrativa, ele identifica nos antigos poetas a perpetuação daquilo que há de essencial a ser comunicado entre os seres humanos, a oferta de trajetórias sublimes para a reflexão. “Aquela via de Homero e Hesíodo a Horácio e Juvenal”, diz ele em A Week, “é mais atraente que a Ápia61. Ler os clássicos, conversar com aqueles antigos gregos e latinos em suas obras sobreviventes, é como caminhar entre as estrelas e constelações, um caminho superior e sereno para viajar”62. Para Thoreau, assim como para estudiosos do mito como Blackwell, a linguagem da poesia e do poeta, em suas origens, é mítica63: a mitologia é uma narrativa poética, e, inversamente, a verdadeira poesia sempre detém um caráter mítico. O mito é o solo a partir do qual germina a expressão poética, que, tal como o poiētḗs, participa criativamente da contínua gênese cósmica. É do encantamento propiciado pelo caráter mítico da realidade que emerge o impulso poético, que faz viver e reviver essa linguagem auroral que dá vida e plenitude ao mundo. Como bem afirmou o filólogo e estudioso da espiritualidade grega Walter F. Otto (1874–1958), “a própria aparição de grandes poetas ensinou que o grande poeta, enquanto tal, é tocado pelo espírito do mito, e de suas profundezas faz vir a ser a palavra vivente”64. Sob o prisma thoreauviano, os mitos são “vestígios de antigos poemas, destroços de poemas”, “uma sabedoria retirada da mais remota experiência”, responsável por aliar “esse momento à manhã da criação”65. Assim como são, para o precursor do romantismo alemão Johann Gottfried von Herder (1744–1803), retratos do “drama contínuo” da história da humanidade66, os mitos, para Thoreau, são “a herança do mundo, ainda refletindo parte de seu 60 HODDER, 2001, p. 107. 61 A Via Ápia é conhecida como uma das mais importantes estradas que levam à Roma. 62 Writings, I, p. 239. No original: “That highway down from Homer and Hesiod to Horace and Juvenal is more attractive than the Appian. Reading the classics, or conversing with those old Greeks and Latins in their surviving works, is like walking amid the stars and constellations, a high and by way serene to travel”. 63 Essa era também a opinião de Herder e de um romântico como Friedrich Schlegel (1772–1829). Este último havia afirmado, em seu Discurso sobre a mitologia, que “mitologia e poesia são unas e inseparáveis. Os poemas da Antiguidade unem-se todos, um com o outro, até se constituírem em partes e membros sempre maiores do todo” (SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Tradução de Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994, p. 51). 64 OTTO, Walter Friedrich. Teofania: o espírito da religião dos gregos antigos. Tradução de Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 24. 65 Writings, I, p. 164, 102 e 164. No original: “vestiges of ancient poems, wrecks of poems”; “a wisdom drawn from the remotest experience”; “this hour to the morning of creation”. 66 Como escreveu o filósofo alemão em Excerpt from a Correspondence on Ossian and the Songs of Ancient Peoples (1775), “The human race is fated to a progression of scenes, cultures, and customs [...]. Since they all belong in the whole of the continuous drama, each one demonstrates a new and remarkable side of mankind” (FELDMAN; RICHARDSON, op. cit., p. 229, grifos acrescentados). 119 esplendor original”, “materiais e pistas para uma história da ascensão e progresso da raça”67. Seu conteúdo sapiencial, de teor cosmogônico/cosmológico/teofânico, reflete um estado auroral da existência humana de profunda interconexão entre todas as coisas, um amalgamento simbólico que, para Thoreau, permanece irrompendo aqui e agora. No ponto de vista thoreauviano, a mitologia, como expressou Clodomir Andrade, “é a encarnação linguística mais arcaica da Natureza nos humanos, sua voz mais singular, bela e verdadeira. É a linguagem usada pela própria realidade para contar sua história, desde o momento mais primitivo até agora, estendendo-se por um horizonte sem fim”68. Caminhando também nessa direção, compreendemos que, para o escritor de Concord, é através das formas poéticas e míticas que a Natureza, em seu sentido mais profundo e original, apresenta-se, ao longo do tempo, em humana voz. Nas prístinas palavras dos poetas-profetas antigos, diz Thoreau, “qualquer reconhecimento da natureza viva nos atrai”, pois elas “foram escritas enquanto a grama crescia e a água corria”69, tendo sido geradas no mesmo ritmo de profusão das obras da Natureza e, portanto, convergentes com a lei da organicidade da vida. Não por acaso, a “floresta é em todas as mitologias um lugar sagrado, como os carvalhos entre os druidas e o bosque de Egéria”, e são “as ações realizadas e a vida vivida no segredo inexplorado da mata que nos encantam e nos fazem crianças de novo”70. São os mistérios que tecem esse manto hierofântico que cobre a terra os investidores do sentido e da beleza dos mitos, e são suas alusões sobre os filamentos enigmáticos que sustentam a constituição cósmica, abertas a diversas interpretações, que continuam instigando a nossa atenção e nos remetendo à infância da vida. Os mitos têm sua origem em questões inadiáveis do estar e vir a ser no mundo: as causas e finalidades do cosmo e suas dinâmicas, a origem e o propósito da existência e suas correlações, a plenitude e a decadência de nosso ser, nossas bem-aventuranças e nossos infortúnios — em suma, tudo aquilo 67 Writings, I, p. 164-165. No original: “the world’s inheritance, still reflecting some of their original splendor”; “materials and hints for a history of the rise and progress of the race”. 68 ANDRADE, Clodomir Barros de. Thoreau’s Pedagogy of Awakening. Lanham: Hamilton Books/The Rowman Littlefield Publishing Group, 2022, p. 56. No original: “is the most archaic linguistic embodiment of Nature in humans, its most singular, beautiful and true voice. It is the language used by reality itself to tell its history, from the most primeval moment until now stretching into an unending horizon”. 69 Writings, I, p. 93. No original: “any recognition of living nature attracts us”; “were written while grass grew and water ran”. 70 Writings, VII, p. 298-299. 23 de dezembro de 1841. No original: “A forest is in all mythologies a sacred place, as the oaks among the Druids and the grove of Egeria”; “the deeds done and the life lived in the unexplored secrecy of the wood, that charm us and make us children again”. A fonte e o bosque consagrados à Egéria localizavam-se próximos à Porta Capena romana. Egéria é uma ninfa que, como conta a lenda, foi a companheira e conselheira do rei romano Numa Pompílio. Ao verter-se em lágrimas após a morte do rei, ela foi transformada em uma fonte (GRIMAL, op. cit., p. 129-130). 120 que sugere uma pista para a fonte vital de nosso assombro perante os emblemas que nos envolvem assim como a todas as coisas. Thoreau estava ciente do caráter histórico das composições dos poetas-profetas antigos, e, consequentemente, do translado oral dos mitos de geração em geração até alcançarem a forma estruturada da escrita literária tal como a conhecemos, processo no qual estiveram envolvidos diversos rapsodos de várias épocas. Essas ideias haviam sido propostas de forma consolidada por Friedrich August Wolf (1759–1824) em sua Prolegomena ad Homerum (1795), erudito que, ao sugerir que a Ilíada e a Odisseia não foram compostas por um único autor, deu um novo tom aos estudos posteriores das mitologias71. Muito embora estivesse cônscio da dimensão cronológica e sociocultural da mitologia, a atenção do autor norte-americano não é dirigida aos seus feitios particulares, mas àquilo que entende ser universal — àquilo que, ao longo do tempo, é atribuído ao próprio gênio superior do poeta e à exteriorização revelatória dos deuses, e que, portanto, encontra-se para além da transitoriedade espaço-temporal: Assim também, sem dúvida, Homero teve seu Homero, e Orfeu seu Orfeu, na obscura antiguidade que os precedeu. O sistema mitológico dos antigos — e ainda é a mitologia dos modernos —, o poema da humanidade, tão maravilhosamente entrelaçado com sua astronomia, e combinando em grandeza e harmonia com a arquitetura dos próprios céus, parece apontar para um tempo em que um gênio mais poderoso habitava a terra. Mas, afinal, o homem é o grande poeta, e não Homero nem Shakespeare; e nossa própria linguagem, e as artes comuns da vida, são sua obra. A poesia é tão universalmente verdadeira e independente da experiência que não precisa de nenhuma biografia particular para ilustrá-la, mas a remetemos mais cedo ou mais tarde a algum Orfeu ou Lino72, e, depois de séculos, ao gênio da humanidade e aos próprios deuses73. 71 GRAVER, Bruce. Romanticism. In: KALLENDORF, Craig W. (ed.). A Companion to the Classical Tradition. Malden/Oxford/Carlton: Blackwell Publishing, 2007, p. 72-86, à página 76. 72 Lino, segundo uma das versões mitológicas gregas, é um filho de Apolo e, numa outra versão, descendente de uma Musa. Com o passar do tempo, ele foi identificado como irmão de Orfeu. Segundo uma das variantes, teria sido o professor de música de Héracles (GRIMAL, op. cit., p. 284). Seja como for, Lino sempre aparece ligado à música e à poesia. 73 Writings, I, p. 97-98. No original: “So too, no doubt, Homer had his Homer, and Orpheus his Orpheus, in the dim antiquity which preceded them. The mythological system of the ancients, and it is still the mythology of the moderns, the poem of mankind, interwoven so wonderfully with their astronomy, and matching in grandeur and harmony the architecture of the heavens themselves, seems to point to a time when a mightier genius inhabited the earth. But, after all, man is the great poet, and not Homer nor Shakespeare; and our language itself, and the common arts of life, are his work. Poetry is so universally true and independent of experience, that it does not need any particular biography to illustrate it, but we refer it sooner or later to some Orpheus or Linus, and after ages to the genius of humanity and the gods themselves”. 121 As diferentes narrativas míticas, componentes de uma “linguagem universal” que se apresenta como “a prova mais impressionante de uma humanidade comum”74, falam de algo que não pode ser dito diretamente, mas que é, ao mesmo tempo, aquilo que há de mais essencial a ser comunicado. Tratando daquilo que nasce das profundezas das experiências humanas, os mitos, afirma Thoreau, não se endereçam ao entendimento, mas, antes, soam à imaginação como “a música de um pensamento”, comunicando “uma verdade poética superior”75. Sua atmosfera é “auroral” e precede “o clarão da filosofia”, pois as mitologias e seus transmissores, os poetas, não têm em vista uma decodificação racional, mas, antes, em suas linhas esfíngicas, aludem à condição originária da natureza humana e da natureza de todas as coisas, aos encantamentos e misteriosos agenciamentos do divino na organização deste mundo. Seus hieróglifos76 são sinais emblemáticos que incitam a interpretação dos viajantes de todas as eras, rastros da hierofania em tudo declarada, indicações de uma “verdade duradoura e essencial”. Até certo ponto, a mitologia é apenas a história e a biografia mais antigas. Longe de ser falsa ou fabulosa no sentido comum da palavra, ela contém apenas a verdade duradoura e essencial, sendo o eu e o você, o aqui e o ali, o agora e o então, omitidos. O tempo ou a rara sabedoria a escreve. [...]. O poeta é aquele que pode escrever alguma mitologia genuína hoje sem a ajuda da posteridade. [...]. No mito, uma inteligência sobre-humana usa os pensamentos e sonhos inconscientes dos homens como seus hieróglifos para se dirigir àqueles que ainda não nasceram. Na história da mente humana, essas fábulas brilhantes e avermelhadas precedem os pensamentos vespertinos dos homens, assim como a Aurora precede os raios do sol. O intelecto matutino do poeta, mantendo-se à frente do clarão da filosofia, sempre habita nesta atmosfera auroral77. Sendo protagonistas da mais antiga composição da história e da biografia da humanidade, os poetas e os mitos por eles irradiados fornecem as formas linguísticas para a expressão daquilo que há de mais inexorável na existência humana e sua configuração no bordado cósmico, e nos recordam da existência de “artigos secretos em nossos tratados com os 74 ibid., p. 59. No original: “universal language”; “the most impressive proof of a common humanity”. 75 ibid., p. 58. No original: “the music of a thought”; “a higher poetical truth”. 76 Schlegel (op. cit., p. 54) também havia se referido à mitologia como hieróglifo. “Toda bela mitologia”, formulou ele, não é “senão uma expressão hieróglifa da natureza circundante”. 77 Writings, I, p. 100-101. No original: “To some extent, mythology is only the most ancient history and biography. So far from being false or fabulous in the common sense, it contains only enduring and essential truth, the I and you, the here and there, the now and then, being omitted. Either time or rare wisdom, writes it. [...]. The poet is he who can write some pure mythology to-day without the aid of posterity. [...]. In the mythus a superhuman intelligence uses the unconscious thoughts and dreams of men as its hieroglyphics to address men unborn. In the history of the human mind, these glowing and ruddy fables precede the noonday thoughts of men, as Aurora the sun’s rays. The matutine intellect of the poet, keeping in advance of the glare of philosophy, always dwells in this auroral atmosphere”. 122 deuses”78. Sua linguagem é “avermelhada”, pois assim como os indígenas de pele vermelha estavam mais próximos de seu meio em suas conformações vitais, assim também o mito está enraizado nos linguajares primordiais da Natureza. Por isso, como nosso autor insinua em Walking, na literatura somente o que é selvagem e originário move nossa reflexão. Na medida em que reflete esse horizonte arquetípico, primevo e selvático, a mitologia mostra-se como a descrição literária que mais se aproxima da Natureza, como a herança sempre presente do mundo — que, tal como as operações naturais, permanecem brotando, em todos os tempos e lugares. “A mitologia é a safra que o Velho Mundo produziu antes que seu solo se exaurisse [...]; e segue produzindo, onde quer que seu vigor primitivo continue intacto”79. É nesse sentido de seguir o “vigor primitivo” da mitologia que Thoreau intenciona adentrar os sentidos da Natureza de forma similar aos antigos profetas e poetas, como afirma a passagem de Walking que traz a epígrafe do presente tópico: (i) Manu, o primeiro ancestral da humanidade, identificado pela tradição mitológica hindu como o divulgador das Leis de Manu, regentes das sociedades indianas de geração em geração; (ii) Moisés, o profeta que Deus usou para abrir o Mar Vermelho e libertar os hebreus, propiciando-lhes, conforme a mitologia judaico-cristã, a construção da nação originária, e a quem foi atribuída a composição revelada da Torá e a propagação das leis divinas; (iii) Homero, o poeta inspirado pela palavra divinal da Musa, que tornou-se lembrado como o corporificador da mitologia dos gregos e da memória épica de seus heróis, o educador de seu povo e perpetuador de seus valores e paisagens sagradas; e (iv) Chaucer, um dos patronos da literatura inglesa, cujos relatos do cenário medieval em seus The Canterbury Tales (c. 1400) fizeram dele “o filho da Musa inglesa”, e em cujas falas sobre Deus reconhecemos a expressão da inocência e da reverência80. Para o bardo de Concord, é na mitologia e nos relatos dos poetas e dos profetas que são dadas as trajetórias para a descoberta de um “novo mundo”, em seu sentido primário — o mundo que se desvela aqui e agora, e que também se descortinava nas matas da Nova Inglaterra. Em algumas paragens de A Week, deparamo-nos com as considerações de Thoreau sobre os poetas Homero e Ossian81, dois bardos cegos (um interessante símbolo para representar seu 78 ibid., p. 129. No original: “secret articles in our treaties with the gods”. 79 THOREAU, 2012a, p. 108-109. 80 Writings, I, p. 398. No original: “the child of the English muse”. Sobre Chaucer o poeta norte- americano nos diz: “Such pure and genuine and childlike love of Nature is hardly to be found in any poet. Chaucer’s remarkably trustful and affectionate character appears in his familiar, yet innocent and reverent, manner of speaking of his God” (ibidem). 81 Os apontamentos de Thoreau sobre Homero e Ossian presentes em A Week derivam do ensaio Ancient Poets: Homer, Ossian, Chaucer, publicado em 1844 na revista The Dial e lido publicamente no Concord Lyceum em 29 de novembro de 1845. 123 poder de ver além da superfície das coisas), cujas palavras marcaram a formação da literatura europeia. Suas narrativas mitopoéticas, como exporemos panoramicamente adiante, podem ser entendidas como expressões representativas da condição original de entrecruzamento da Natureza, do divino e do ser humano, irradiações da fala mitológica primordial e seu “vigor primitivo”. É válido lembrar aqui que o pano de fundo da visão thoreauviana sobre a literatura homérica foi formulado, inicialmente, a partir de suas aulas com C. C. Felton, que havia organizado a edição da Ilíada utilizada por Thoreau em Harvard e durante toda a sua trajetória intelectual. Felton, assim como os transcendentalistas, acreditava que o grego de Homero era uma língua primitiva que representava uma maior proximidade com as origens poéticas da linguagem, interpretação elaborada também por Schlegel em Lectures on the History of Literature: Ancient and Modern (1818), uma obra importante entre os românticos82. Também as considerações de H. N. Coleridge sobre a poesia grega em Introductions to the Study of the Greek Classic Poets (1830) constituíram uma influência relevante. Do romântico inglês Thoreau herdou a predileção pela passagem da Ilíada que narra a ira de Apolo e o bombardeio sonoro de suas flechas contra o exército grego (i, 47), bem como pela descrição poética dos guerreiros caindo na batalha de Troia como flocos de neve enviados por Zeus em um dia de inverno (xii, 278-285)83. Junto a esse que foi identificado pela tradição como o mais importante bardo da cultura grega, o escritor norte-americano, como era habitual entre os românticos, encontrava excelente companhia. Na Ilíada84, e, de forma geral, na antiga Grécia85, Thoreau vislumbrava o pronunciamento mítico de uma era primordial e elevada que permanece, até os dias de hoje, promulgando sua glória, sugerindo a infância de “uma vida mais divina” do que aquela cultivada pelos modernos86: “A Grécia estende-se bela e ensolarada em inundações de luz, pois há sol e o clarão do dia em sua literatura e arte. Homero não nos permite esquecer que o sol brilhou, nem Fídias87, nem o Partenon”88, escreve Thoreau em A Week. Homero era seu 82 SATTELMEYER, op. cit., p. 8-9. 83 SEYBOLD, op. cit., p. 24. 84 Não há indícios de que Thoreau tenha lido a Odisseia (SATTELMEYER, op. cit., p. 9). 85 Para um aprofundamento da reflexão sobre o caráter helênico do pensamento de Thoreau, cf., em especial, os estudos de ANDRADE, op. cit. e SEYBOLD, op. cit. 86 Writings, VII, p. 116. 29 de janeiro de 1840. No original: “a diviner life”. 87 Fídias (séc. V a.e.c.) foi o mais notório escultor da Grécia clássica, celebrado pela projeção do Partenon, o grandioso templo ateniense dedicado à deusa patrona da cidade. 88 Writings, I, p. 164. No original: “Greece lies outspread fair and sunshiny in floods of light, for there is the sun and daylight in her literature and art. Homer does not allow us to forget that the sun shone, — nor Phidias, nor the Parthenon”. 124 arquétipo do poeta iluminado em seu sentido mais originário, e a Ilíada seu modelo da verdadeira poesia. Em seu poema Greece [Grécia], nosso autor assim canta: Quando a vida se contrai em vulgares arfadas, E o homem se cansa de sua natureza original, Pela Grécia aos deuses dou graças Por aquele reino de paz imortal89. A Natureza expressa através de Homero fornecia a Thoreau indícios de uma linha de continuidade entre aquele tempo primitivo e sua própria época; de uma Natureza que é contínua e sempre a mesma90. Sobre a épica homérica, ele escreve: “Nenhuma alegria ou êxtase modernos podem diminuir sua elevação ou ofuscar seu brilho”; podemos chegar a afirmar que é “como se fosse a primeira e a última produção da mente”91. O bardo da Jônia traduz um modelo primitivo de literatura que espelha um modo de vida simples e de contato com a paisagem circundante e, para Thoreau, mais glorioso e sempre verdadeiro. Mostrando-se mais próximas da Natureza, as vocalizações homéricas expressam, de forma mais acurada, o estado real das coisas, cenas nas quais se entrelaçam atores divinos, humanos, e a totalidade cósmica. Concorde com o que antes havia proposto Blackwell sobre ter sido a grandeza de Homero a capacidade de expressar fielmente os enquadramentos da Natureza, Thoreau afirma que, no que diz respeito à épica homérica, é “como se a [própria] natureza falasse”: Basta que Homero diga que o sol se põe. Ele é tão sereno quanto a natureza, e dificilmente podemos detectar o entusiasmo do bardo. É como se a natureza falasse. Ele nos apresenta as imagens mais simples da vida humana, para que a própria criança possa entendê-las, e a pessoa não deve pensar duas vezes para apreciar sua naturalidade. Cada leitor descobre por si mesmo que, com respeito às características mais simples da natureza, os poetas que lhe sucederam pouco fizeram além de copiar seus símiles. Suas passagens mais memoráveis são tão naturalmente brilhantes quanto raios de sol em tempo nublado. A natureza fornece-lhe não apenas palavras, mas também versos estereotipados e sentenças de seu manancial92. 89 THOREAU, Henry David. Greece. In: ______. Excursions and Poems. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 5, p. 404. No original: “When life contracts into a vulgar span, / And human nature tires to be a man, / I thank the gods for Greece, / That permanent realm of peace”. 90 SEYBOLD, op. cit., p. 56-57. 91 Writings, I, p. 97. No original: “No modern joy or ecstasy of ours can lower its height or dim its lustre”; “as it were the earliest and latest production of the mind”. 92 ibid., p. 94. No original: “It is enough if Homer but say the sun sets. He is as serene as nature, and we can hardly detect the enthusiasm of the bard. It is as if nature spoke. He presents to us the simplest pictures of human life, so the child itself can understand them, and the man must not think twice to appreciate his naturalness. Each reader discovers for himself that, with respect to the simpler features of nature, succeeding poets have done little else than copy his similes. His more memorable passages are 125 Além de ser vislumbrado como um modelo de perpetuação das linguagens da Natureza, Homero fornece a Thoreau uma exemplificação de um modo de vida heroico, pautado em um imperativo de simplicidade e em uma relação de maior proximidade com a Natureza (a qual, como sabemos, é sempre personificada na visão mítica do poeta-profeta grego). É nesse sentido que Ethel Seybold propõe que Thoreau se dispôs a construir uma morada provisória às margens do Lago Walden (sobre a qual discorreremos adiante) como parte de um “experimento homérico”, sua própria tentativa de viver de modo simples e heroico, em uma relação filial com a Natureza e seus aspectos sagrados. De acordo com a pesquisadora, ainda que sua aventura pudesse ser também interpretada como uma tentativa de colocar em prática um modo de vida oriental de contemplação, ou como uma forma de retorno à comunidade sagrada da terra aos modos dos indígenas, foi nos gregos antigos e, mais propriamente, na figura de Homero, que o escritor de Concord encontrou um modelo tanto para a constituição de seu ser no mundo, quanto de sua expressão literária93. Outra figura notória para Thoreau foi Ossian, o “Homero do Norte”, poeta concebido por James Macpherson (1736–1796), um dos representantes centrais da chamada “Renascença Nórdica”94, tempo que havia presenciado a descoberta dos Eddas, das mitologias nórdicas e escandinavas. Em 1760, Macpherson publicou Fragments of Ancient Poetry collected in the Highlands of Scotland and translated from the Gaelic or Erse Language. Os poemas de Ossian, um suposto bardo celta do séc. III a.e.c., e suas narrativas sobre o líder tribal Fingal, sua terra Morven e seus heróis, constituíram uma demonstração de que o mito, além de herdado, pode também ser recriado pelos poetas. O grande impacto de Ossian nos eruditos contemporâneos o imortalizaram como um dos primeiros representantes do romantismo na Alemanha, influenciando, de forma mais ampla, pensadores como Hume, Herder, Hamann, Goethe, Blake, Coleridge e Rousseau, este último igualmente um defensor da ideia, transparecida pelos poemas ossiânicos, de “um estado de natureza primitivo, nobre e rural”95. Em 1762, após novo tempo as naturally bright as gleams of sunshine in misty weather. Nature furnishes him not only with words, but with stereotyped lines and sentences from her mint”. 93 SEYBOLD, op. cit., p. 51. 94 Outro importante autor contemporâneo foi Paul Henri Mallet (1730–1807), responsável por fornecer aos seus contemporâneos os mitos dos deuses Odin, Thor, Frigga, Freya, e dos ares divinos e heroicos de Valhalla. Para Mallet (em oposição às ideias de Rousseau e às representações de Ossian), os povos nórdicos eram ignorantes e bárbaros. Ainda assim, seus estudos mostraram-se significativos para os estudiosos posteriores. Seu trabalho foi traduzido para o inglês em 1770, sob o título Northern Antiquities (FELDMAN; RICHARDSON, op. cit., p. 200). Thoreau estabeleceu contato com essa obra por meio da biblioteca de Emerson (SATTELMEYER, op. cit., p. 231). 95 FELDMAN; RICHARDSON, op. cit., p. 201-202. No original: “a primitive, noble, rural state of nature”. 126 para composição, ele publicou Fingal; an Ancient Epic Poem in Six Books; Together with Several other poems, composed by Ossian the son of Fingal e, um ano depois, Temora, an Ancient Epic Poem96. O filósofo escocês Hugh Blair (1718–1800)97 foi um importante disseminador do valor poético dos poemas apresentados por Macpherson. Em sua A Critical Dissertation on The Poems of Ossian, The Son of Fingal, ele afirmou que as narrativas gaélicas “prometem algumas das mais elevadas belezas da escrita poética”, na medida em que abundam “com esse entusiasmo, essa veemência e esse fulgor, que são a alma da poesia; pois muitas circunstâncias daqueles tempos que chamamos de bárbaros são favoráveis ao espírito poético”. “A mitologia de Ossian é, por assim dizer”, defendeu Blair, “a mitologia da natureza humana, pois se baseia no que tem sido a crença popular, em todas as épocas e países, e sob todas as formas de religião [...]”98. Para Thoreau, o bardo celta comunica uma era auroral, de íntimo contato com a Natureza circundante; como também captou Blair, Ossian, sob o olhar thoreauviano, difunde uma sabedoria universal. Por conseguinte, suas palavras apenas se mostram inteiramente em seu sentido se meditadas sob o prisma de uma ampla visão: “Ossian parece falar uma linguagem gigantesca e universal. As imagens e quadros ocupam ainda mais espaço na paisagem, como se pudessem ser vistos apenas das encostas das montanhas, e de planícies com um amplo horizonte, ou para além de braças marítimas”99. O poeta de Macpherson fala da vida em seu estado primitivo de simplicidade, condição de maior contato com a Natureza — que, como acreditava Thoreau na linha geral de pensadores como Rousseau e Herder100, é mais propício para a expressão do espírito poético: Ossian nos lembra das épocas mais refinadas e rústicas, de Homero, Píndaro, Isaías e do indígena americano. Em sua poesia, como na de Homero, apenas 96 ibid., p. 199-201. 97 Não encontramos indícios de que Thoreau tenha tido contato com o trabalho de Blair sobre os poemas de Ossian. Contudo, a obra religiosa de Blair era conhecida pelo autor norte-americano, que possuía, em sua biblioteca pessoal, volumes de seus Sermões (SATTELMEYER, op. cit., p. 134-135). 98 FELDMAN; RICHARDSON, op. cit., p. 212 e 214. No original: “promise some of the highest beauties of poetical writing”; “with that enthusiasm, that vehemence and fire, which are the soul of poetry; for many circumstances of those times which we call barbarous, are favorable to the poetical spirit”; “Ossian’s mythology is, to speak so, the mythology of human nature, for it is founded on what has been the popular belief, in all ages and countries, and under all forms of religion [...]”. 99 Writings, I, p. 369-370. No original: “Ossian seems to speak a gigantic and universal language. The images and pictures occupy even much space in the landscape, as if they could be seen only from the sides of mountains, and plains with a wide horizon, or across arms of the sea”. 100 Herder compreendia que as formas primitivas da civilização condiziam com uma expressão mais vívida do espírito poético: “the more savage, that is, the more alive and freedom-loving a people is … the more savage, that is, alive, free, sensuous, lyrically active, its songs must be” (FELDMAN; RICHARDSON, op. cit., p. 229). 127 os traços mais simples e duradouros da humanidade são vistos, as partes essenciais de um homem, tal como Stonehenge exibe as partes de um templo; vemos apenas os círculos de pedra e a haste vertical. Os fenômenos da vida adquirem um tamanho quase irreal e gigantesco visto através de suas brumas. Como toda poesia mais antiga e grandiosa, distingue-se pelos poucos elementos da vida de seus heróis. Eles descansam no matagal, entre as estrelas e a terra, encolhidos até os ossos e tendões. A terra é uma planície sem limites para suas ações. Eles levam uma vida tão simples, árida e eterna, que dificilmente sua existência precisa partir junto com a carne, mas é transmitida em sua inteireza de geração em geração101. Na concepção do autor norte-americano, os poemas de Ossian chegam a se comparar com a primeira épica homérica, pois cantam a sacralidade do mundo e mostram que o poeta é o homem religioso por excelência. Seu entendimento é que as formas de louvor retratadas no cenário ossiânico, direcionadas aos fenômenos naturais, ainda que sejam identificadas pela instituição religiosa dominante como “pagãs” (do latim pāgānus, aquele que habita o campo102), são dignas de seu devido valor. Os restos genuínos de Ossian, ou aqueles poemas antigos que levam seu nome, embora de menor fama e extensão, são, em muitos aspectos, do mesmo timbre da própria Ilíada. Ele afirma a dignidade do bardo não menos do que Homero, e em sua época não ouvimos falar de nenhum outro sacerdote além dele. Não adianta chamá-lo de pagão porque ele personifica o sol e se dirige a ele [...]. Não podemos deixar de respeitar a fé vigorosa daqueles pagãos, que acreditavam firmemente em algo, e estamos inclinados a dizer aos críticos, que se ofendem com seus ritos supersticiosos: — Não interrompa as orações desses homens. Como se soubéssemos mais sobre a vida humana e um Deus, do que os pagãos e os antigos103. 101 Writings, I, p. 367. No original: “Ossian reminds us of the most refined and rudest eras, of Homer, Pindar, Isaiah, and the American Indian. In his poetry, as in Homer’s, only the simplest and most enduring features of humanity are seen, such essential parts of a man as Stonehenge exhibits of a temple; we see the circles of stone, and the upright shaft alone. The phenomena of life acquire almost an unreal and gigantic size seen through his mists. Like all older and grander poetry, it is distinguished by the few elements in the lives of its heroes. They stand on the heath, between the stars and the earth, shrunk to the bones and sinews. The earth is a boundless plain for their deeds. They lead such a simple, dry, and everlasting life, as hardly needs depart with the flesh, but is transmitted entire from age to age”. 102 “Of, belonging to, or associated with a pagus or country community” (GLARE, op. cit., p. 1412). 103 Writings, I, p. 366-367. No original: “The genuine remains of Ossian, or those ancient poems which bear his name, though of less fame and extent, are, in many respects, of the same stamp with the Iliad itself. He asserts the dignity of the bard no less than Homer, and in his era we hear of no other priest than he. It will not avail to call him a heathen, because he personifies the sun and addresses it [...]. We cannot but respect the vigorous faith of those heathen, who sternly believed somewhat, and are inclined to say to the critics, who are offended by their superstitious rites, — Don’t interrupt these men’s prayers. As if we knew more about human life and a God, than the heathen and ancients”. 128 Poetas e proclamadores como Homero e Ossian não podem, contudo, reviver em lugares como Londres ou Boston104, despidos da atmosfera de encantamento propiciada pela vida simples, a porta de entrada para a experiência visionária do tempo mítico, da encarnação poética. O distanciamento da Natureza cravado nos modos civilizacionais modernos, produtores de “roupas de fina tessitura” que não nos revestem com sentido para a vida, destoa profundamente das formas de comunhão retratadas por poetas como esses: Comparada com essa vida simples e fibrosa, nossa história civilizada parece a crônica da debilidade, da moda e das artes do luxo. Mas o homem civilizado não perde nenhum refinamento real na poesia da era mais rústica. Esta o recorda que a civilização apenas veste os homens. Ela produz sapatos, mas não fortalece as solas dos pés105. Produz roupas de fina tessitura, mas não toca a canela da perna. No interior do homem civilizado ainda reside o homem selvagem no lugar de honra106. Vistos sob essa ótica, esses bardos mostram-se como modelos de escrita e de existência representativos de uma vida em (re)união com a Natureza, e revelam a linguagem mitopoética como a forma através da qual a vivacidade sagrada da Natureza se faz expressar de forma mais genuína. Simbolizadores de uma dimensão auroral da existência e do sacro posto da fala poética, essas personalidades literárias distintivas compõem o horizonte de beleza, simplicidade e contato sensório com o meio natural contemplado pelo escritor norte-americano em seu próprio ofício poético-profético, movido pela difusão de sua nota nas Escrituras da Natureza, tema de nossas próximas reflexões. 104 “Homer and Ossian even can never revive in London or Boston” (ibid., p. 56). 105 Tal passagem parece ecoar a seguinte colocação de Emerson em Self-Reliance: “The civilized man has built a coach, but has lost the use of his feet” (EMERSON, Self-Reliance, p. 85). 106 Writings, I, p. 368. No original: “Compared with this simple, fibrous life, our civilized history appears the chronicle of debility, of fashion, and the arts of luxury. But the civilized man misses no real refinement in the poetry of the rudest era. It reminds him that civilization does but dress men. It makes shoes, but it does not toughen the soles of the feet. It makes cloth of finer texture, but it does not touch the shin. Inside the civilized man stands the savage still in the place of honor”. 129 2.2. Escrituras da Natureza Resta a outros, além dos gregos, escrever a literatura do próximo século. (Henry David Thoreau, Journals)1. Os transcendentalistas, como apontamos ao início do primeiro capítulo, foram leitores entusiasmados das mitologias e importantes representantes, em seu contexto, do estudo comparado das diferentes escrituras ocidentais e orientais. Para Thoreau, esses registros da relação humana com o divino, assim como as expressões dos grandes poetas, em sentido mais amplo, constituem um verdadeiro patrimônio da humanidade. Representativo de uma visão policromática frente à relação humana com o sagrado, Thoreau sugere, em Walden, que nossas visões da vida são enriquecidas pelas palavras de sabedoria das diferentes épocas e nações quando nos despimos do impulso castrador por afirmação de uma verdade monolítica, e quando reconhecemos haver diversos caminhos que nos levam ao “céu”2. De fato, rica será a época em que essas relíquias que chamamos de Clássicos, assim como as Escrituras ainda mais antigas e mais do que clássicas, mas ainda menos conhecidas, das nações, forem ainda mais entesouradas, quando os Vaticanos estiverem repletos de Vedas, Zendavestas e Bíblias, de Homeros, Dantes e Shakespeares, e todos os séculos vindouros tiverem depositado sucessivamente seus troféus no fórum do mundo. Com tal pilha finalmente podemos ter a esperança de escalar o céu3. A imbricação de suas meditações sobre os mitos, as escrituras da humanidade e a religião com suas reflexões sobre o caráter da poesia e do poeta nos capítulos “Sunday” [“Domingo”] e “Monday” [“Segunda-feira”], de A Week, e, de forma geral, na narrativa do livro como um todo, não parece gratuita. Assim como indicamos na seção anterior, para os românticos ingleses, assim como para Thoreau, foram os poetas os primeiros construtores do mundo e suas linguagens, os transmissores de tudo aquilo que, sendo ponte entre o temporal e o eterno, o múltiplo e o uno, foi gestado para permanecer às ruínas dos povos e ao passar do tempo. Os poetas são os verbalizadores das escrituras sagradas das diversas culturas, suas cosmovisões e suas sabedorias, a literatura original da humanidade, expressiva daquilo que há 1 Writings, VII, p. 116. 29 de janeiro de 1840. No original: “It remains for others than Greeks to write the literature of the next century”. 2 Como veremos em seguida, a ironização de Thoreau da “esperança de escalar o céu”, identificada na cosmovisão religiosa cristã predominante em sua época, permeia o discurso poético de seus dois livros. Em contraste com a ênfase no mundo celeste, sua literatura nos apresenta uma perspectiva de religamento entre céu e terra, pressuposto nuclear no desdobramento de nossas próximas reflexões. 3 THOREAU, 2019, p. 107. 130 de mais valoroso na existência. É isso que afirma Thoreau em Thomas Carlyle and His Works (1847): “Depois de o tempo ter peneirado a literatura de um povo, resta apenas a sua ESCRITURA, pois esta é a ESCRITA, par excellence”4. Em seu pensamento religioso, o intelectual de Concord, assim como outros transcendentalistas, não se volta às questões sobre a institucionalização da religião, mas se endereça às origens do impulso religioso, e as únicas fontes das tradições religiosas abarcadas em suas reflexões são seus textos sagrados e seus mitos5. Na perspectiva thoreauviana, o compromisso exterior com as instituições e seus dogmas, que são circunstanciais e perecíveis, acaba por obliterar o compromisso interior com a contínua expansão da reverência perante o poder supremo do universo, indomesticável e impassível de conceitualizações. Acredito que podem ser tão próximos e queridos de Buda, Cristo ou Swedenborg aqueles que estão fora do alcance de suas igrejas6. O homem mais sábio não prega doutrinas [...]. Seu esquema deve ser a estrutura do universo; os demais sistemas serão em breve ruínas. O Deus perfeito em suas revelações de si mesmo nunca chegou à extensão das proposições tais quais vocês, seus profetas, afirmam. Você aprendeu o alfabeto do céu e pode contar até três? Você sabe o número dos familiares de Deus? Você pode expressar mistérios através de palavras? Você presume fabular o inefável? Por gentileza, que geógrafo é você, que é capaz de falar da topografia do céu? De quem você é amigo para poder falar da personalidade de Deus?7 Vejamos o que Thoreau diz sobre as escrituras da humanidade em sua própria fala religiosa dedicada ao dia de domingo. Nas linhas iniciais de “Sunday”, o narrador descreve uma manhã imersa em ares datados de um tempo anterior à queda, comunicadores de “uma integridade pagã” que ainda se presentifica no horizonte8. A atmosfera do capítulo é a de um 4 THOREAU, Henry David. Thomas Carlyle and His Works. In: ______. Cape Cod and Miscellanies. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 4, p. 316-355, à página 337, grifos do autor. No original: “After time has sifted the literature of a people, there is left only their SCRIPTURE, for that is WRITING, par excellence”. 5 HODDER, 2001, p. 139 e 141. 6 Writings, I, p. 68. No original: “I trust that some may be as near and dear to Buddha, or Christ, or Swedenborg, who are without the pale of their churches”. 7 ibid., p. 70-71. No original: “The wisest man preaches no doctrines [...]. Your scheme must be the framework of the universe; all other schemes will soon be ruins. The perfect God in his revelations of himself has never got to the length of one such proposition as you, his prophets, state. Have you learned the alphabet of heaven and can count three? Do you know the number of God’s family? Can you put mysteries into words? Do you presume to fable of the ineffable? Pray, what geographer are you, that speak of heaven’s topography? Whose friend are you, that speak of God’s personality?”. 8 ibid., p. 42. No original: “a heathenish integrity”. 131 “Sabbath natural”, onde “as rãs põem-se a meditar, todos pensamentos sabáticos, resumindo a sua semana [...] [e] contemplando o maravilhoso universo no qual desempenham o seu papel”9. As pessoas que saíam da igreja, descreve o narrador, olharam os viajantes com reprovação por sua ausência no rito dominical. Porém, para Thoreau, ele e seu irmão John eram os verdadeiros devotos do dia de domingo, pois suas perambulações pelos rios e suas matas consagravam o dia ao irradiar do sol, e assim rememoravam a tradição religiosa dos gregos que, conforme Hesíodo, devotavam o domingo ao deus solar Apolo, que teria nascido nesse dia, bem como à linhagem espiritual dos nórdicos, que, conforme o Edda, sagravam o “Suna-day” à deusa do sol Sunna10. Antecipando o filósofo Ludwig Feuerbach (1804–1872) e o antropólogo Émile Durkheim (1858–1917) e suas respectivas visões da religião e do divino enquanto uma projeção humana que cumpre importante papel no ordenamento social11, Thoreau afirma categoricamente que adotamos deuses que correspondem às nossas circunstâncias e expectativas, e que a religião, em certo sentido, pode ser entendida como uma resposta contextual à nossa inserção no mundo: Todo povo tem deuses para se adequar às suas circunstâncias; os Society Islanders tinham um deus chamado Toahitu, “em forma de cachorro; ele salvava os que estavam em perigo de cair de pedras e árvores”. Acho que podemos passar sem ele, pois não temos muitas escaladas para fazer12. Cada livro sagrado, um após o outro, foi aceito na fé que deveria ser o local de descanso final da alma peregrina [...]13. Apesar disso, sua visão das religiões, de seus mitos e seus deuses não é psicológica ou funcionalista. Mesmo que seja crítico à crença irrefletida, à fé que não parte de dentro, mas que se afirma a partir daquilo que vem de fora, daquilo que dita determinada tradição, em sua perspectiva, as formas humanas de devoção não se reduzem a espelhamentos de algo que se conclui inexistente e é antes alienação, ou a um mecanismo social apenas, mas remetem a uma realidade devocional que irrompe nas sociedades humanas de diversas maneiras, sugerindo-nos 9 ibid., p. 48. No original: “the frogs set meditating, all sabbath thoughts, summing up their week [...] eying the wondrous universe in which they act their part”. 10 ibid., p. 64 e 67. 11 HODDER, 2001, p. 144. 12 Writings, I, p. 66. No original: “Every people have gods to suit their circumstances; the Society Islanders had a god called Toahitu, ‘in shape like a dog; he saved such as were in danger of falling from rocks and trees’. I think that we can do without him, as we have not much climbing to do”. 13 ibid., p. 155. No original: “Every sacred book, successively, has been accepted in the faith that it was to be the final resting-place of the sojourning soul [...]”. 132 a proliferação de uma fonte comum: “Existem várias, ou melhor, fés incríveis; por que ficaríamos alarmados com qualquer uma delas? Naquilo que o homem acredita, Deus acredita”14. “Não prefiro uma religião ou filosofia à outra”, pondera ele de forma semelhante em seu diário de 1850. “Não simpatizo com o fanatismo e a ignorância que fazem distinções transitórias, parciais e pueris entre a fé ou forma de fé de um homem e a de outro — como cristão e pagão. Eu rezo para ser liberto da estreiteza, da parcialidade, do exagero e do fanatismo”, alega o pensador. “Para o filósofo, todas as seitas, todas as nações, são semelhantes. Eu gosto de Brahma, de Hare, de Buda, do Grande Espírito, assim como de Deus”15. Neste cenário de reflexão sobre as religiões e suas mitologias, o autor, que havia se desligado da igreja unitarista na qual foi batizado oito anos antes da publicação de seu primeiro livro, insere sua crítica à religião cristã dominante, que, para ele, evidencia um afastamento da diversidade do sagrado e da Natureza (uma posição que não era compartilhada pelos transcendentalistas de modo geral16). Cristo é o “novo Prometeu”17, e são as cosmovisões sustentadas a partir de determinadas interpretações de sua figura aquelas que ditam o tom civilizacional de sua época. Comparando as escrituras judaico-cristãs com as formas divinas dos gregos e os textos sagrados asiáticos, ele declara encontrar nestes últimos paisagens de devoção que mais se aproximam de sua própria visão de mundo. Não sei ao certo, mas eu me entregaria até as extremidades às divindades liberais da Grécia, mas não ao Deus de meu país. Jeová, embora conosco tenha adquirido novos atributos, é mais absoluto e inacessível, mas dificilmente mais divino do que Júpiter. Ele não é tanto um cavalheiro, não é tão gracioso e abrangente, e não exerce uma influência tão íntima e genial sobre a natureza, como muitos deuses dos gregos. Eu deveria temer o poder infinito e a justiça inflexível do mortal todo-poderoso ainda em apoteose, tão totalmente masculino, sem irmã Juno, sem Apolo, sem Vênus e sem Minerva para intercederem por mim [...]18. 14 ibid., p. 67. No original: “There are various, nay, incredible faiths; why should we be alarmed at any of them? What man believes, God believes”. 15 Writings, VIII, p. 4. 1850. No original: “I do not prefer one religion or philosophy to another. I have no sympathy with the bigotry and ignorance which make transient and partial and puerile distinctions between one man’s faith or form of faith and another’s, — as Christian and heathen. I pray to be delivered from narrowness, partiality, exaggeration, bigotry. To the philosopher all sects, all nations, are alike. I like Brahma, Hari, Buddha, the Great Spirit, as well as God”. 16 Como comenta Hodder, George Ripley, p. ex., pensava que as impressões de Thoreau sobre o cristianismo eram desrespeitosas e de mau gosto. Cf. HODDER, Alan D. “Ex Oriente Lux”: Thoreau’s Ecstasies and the Hindu Texts. The Harvard Theological Review, v. 86, n. 4, p. 403-438, out. 1993, à página 404. 17 Writings, I, p. 67. No original: “new Prometheus”. 18 ibid., p. 64. No original: “I am not sure but I should betake myself in extremities to the liberal divinities of Greece, rather than to my country’s God. Jehovah, though with us he has acquired new attributes, is more absolute and unapproachable, but hardly more divine, than Jove. He is not so much of a gentleman, 133 A leitura que eu mais amo são as escrituras das várias nações, embora aconteça que eu esteja mais familiarizado com as dos hindus, chineses e persas, do que com as dos hebreus [...]. Dê-me uma dessas bíblias e você terá me silenciado por algum tempo19. Mais adiante, em “Monday”, Thoreau propõe que o moto “Ex oriente lux” ainda deve iluminar os estudiosos, e recomenda a seus leitores o estudo do Bhagavad-Gītā “como parte dos escritos sagrados de um povo devoto; e o hebreu inteligente se regozijará ao encontrar nele uma grandeza moral e uma sublimidade semelhantes às de suas próprias Escrituras”. Um texto como o diálogo entre Kṛṣṇa e Arjuna (que, para Thoreau, é “inquestionavelmente uma das escrituras mais nobres e sagradas que chegaram até nós”), assim como os Oráculos de Zoroastro, fazem-nos duvidar que as formas poéticas não sejam, afinal, “essenciais para a expressão mais eficaz e duradoura do pensamento”20. As convergências com a tradição filosófica/soteriológica da Índia, em especial, são notórias em várias composições de Thoreau e no próprio espírito do Transcendentalismo. Suas falas sobre a interconexão entre todas as coisas mostram-se consonantes com os dizeres de uma das mais importantes passagens dos Upaniṣads, que condensam o princípio central da tradição védica quanto ao pertencimento de Ātman em Brahman, os primeiros versos do Īśa Upaniṣad: “(Saiba que) tudo isso, o que quer que se mova neste mundo em movimento, está envolvido por Deus”21. Também as palavras de Kṛṣṇa no Bhagavad-Gītā (7.6) a respeito de sua natureza física e seu caráter superior, bem como seus dizeres sobre a essência sutil de Brahman (13.15) soam semelhantes à perspectiva thoreauviana de ligação entre o mundo material e o universo espiritual em uma completude divina: Entenda minha natureza superior not so gracious and catholic, he does not exert so intimate and genial an influence on nature, as many a god of the Greeks. I should fear the infinite power and inflexible justice of the almighty mortal hardly as yet apotheosized, so wholly masculine, with no sister Juno, no Apollo, no Venus, nor Minerva, to intercede for me [...]”. Na mitologia grega, Juno/Hera, irmã e esposa de Júpiter/Zeus, Vênus/Afrodite e Minerva/Atena são alguns dos doze deuses olímpicos. Júpiter, Juno e Minerva constituíam a tríade capitolina dos romanos. 19 ibid., p. 72. No original: “The reading which I love best is the scriptures of the several nations, though it happens that I am better acquainted with those of the Hindoos, the Chinese, and the Persians, than of the Hebrews [...]. Give me one of these bibles, and you have silenced me for a while”. 20 ibid., p. 148, 142 e 149. No original: “as a part of the sacred writings of a devout people; and the intelligent Hebrew will rejoice to find in it a moral grandeur and sublimity akin to those of his own Scriptures”; “unquestionably one of the noblest and most sacred scriptures that have come down to us”; “essential to the most effective and enduring expression of thought”. 21 The Principal Upaniṣads. Traduzido e editado por S. Radhakrishnan. London: George Allen & Unwin Ltd, 1968, p. 567. Na tradução consultada: “(Know that) all this, whatever moves in this moving world, is enveloped by God”. 134 como o ventre de cada ser; e, portanto, a fonte e a dissolução de todo o universo. [...] Dentro e fora de todos os seres, ao mesmo tempo em movimento e imóvel em sutileza incompreendida, mora longe, e ainda assim está perto22. As formas da religião cristã, por outro lado, são para o autor de Concord expressões do esquecimento da vitalidade sagrada deste mundo. O Novo Testamento, diz o autor de A Week, trata exclusivamente da dimensão extrafísica do ser humano; os pensamentos de Cristo, conforme registrados pela tradição, “estavam todos direcionados para outro mundo”, embora seja uma exigência da vida que nos movimentemos entre o espírito e a matéria, entre o céu e a terra23. Em sua crítica lancinante, Thoreau afirma que o cristianismo praticado em seu contexto se endereça àqueles que sustentam uma vida social adoentada, desprovida do vigor da Natureza — e, justamente por isso, um homem sadio que ganha a vida em meio às matas não seria, afinal, um bom assunto para suas pregações24. A doutrina cristã, como percebida por Thoreau, prega soluções que aparecem somente no fim da vida neste mundo25, e não acolhe, com o renascer do dia, a possibilidade de transmutar as concepções humanas a fim de vislumbrar as graças que pairam sobre nós aqui e agora: “O Cristianismo apenas espera. Ele pendurou sua harpa nos salgueiros e não pode cantar uma canção em uma terra estranha26. Sonhou um sonho triste e 22 The Bhagavad-Gītā: a new translation, contexts, criticism. Traduzido por Gavin Flood e Charles Martin. Editado por Gavin Flood. New York/London: W. W. Norton & Company, 2015, p. 38-39 e 67. Na tradução consultada: “Understand my higher nature / as the womb of every being; / thus the source and dissolution / of the entire universe”; “Within all beings and without, / moving and motionless at once / in uncomprehended fineness, / it dwells afar and yet nearby”. 23 Writings, I, p. 74. No original: “were all directed to another world”. Nos termos de Thoreau, “the New Testament treats of man and man’s so-called spiritual affairs too exclusively, and is too constantly moral and personal, to alone content me, who am not interested solely in man’s religious or moral nature, or in man even. […]. There are various tough problems yet to solve, and we must make shift to live, betwixt spirit and matter, such a human life as we can” (ibidem, grifos acrescentados). 24 “A healthy man, with steady employment, as woodchopping at fifty cents a cord, and a camp in the woods, will not be a good subject for Christianity” (ibid., p. 74-75). 25 “Men have a singular desire to be good without being good for anything, because, perchance, they think vaguely that so it will be good for them in the end” (ibid., p. 75). 26 Referência ao Antigo Testamento, Salmo 137, versículo 2: “Nos salgueiros da vizinhança / havíamos pendurado as nossas cítaras” (BÍBLIA. Tradução Ecumênica – TEB. São Paulo: Edições Loyola, 1994, p. 1151). 135 ainda não acolhe a manhã com alegria”27. Jogando com a etimologia da palavra “religião” e a ideia latina de religare, Thoreau propõe que não há entre seus contemporâneos menos religião do que antes (ou, digamos, menos possibilidades de se religar ao sagrado), mas, talvez, haja sim um problema de “ligadura” que não permite que conectemos as duas polaridades, pois, na tentativa de ligação, uma delas se mostra mais preponderante do que outra: A sociedade afrouxou um pouco o seu rigor, dir-se-ia, mas presumo que não haja menos religião do que antigamente. Se a ligadura estiver afrouxada em uma parte, ela simplesmente estará mais apertada na outra parte28. Na religião da maioria dos homens, a ligadura, que deveria ser o cordão umbilical que os conecta com a divindade, é como aquele fio que os cúmplices de Cílon seguravam em suas mãos quando saíam do templo de Minerva, sendo a outra extremidade presa à estátua da deusa29. Mas, frequentemente, como no caso deles, o fio, uma vez esticado, se rompe, e eles são deixados sem refúgio30. Em suas anotações pessoais, ele se expressa sobre seu afastamento da cristandade apontando sua discordância perante a ênfase na crença em outro mundo em detrimento das maravilhas deste mundo: O homem que acredita em outro mundo e não neste costuma me afastar do Cristianismo. O momento presente do qual falamos é um pouco menos valioso para ele do que o próximo mundo. Então nos dizem para termos esperança na proporção em que não percebemos. É tudo esperança adiada. Mas um grão de 27 Writings, I, p. 78. No original: “Christianity only hopes. It has hung its harp on the willows, and cannot sing a song in a strange land. It has dreamed a sad dream, and does not yet welcome the morning with joy”. 28 ibid., p. 64, grifos do autor. No original: “Society has relaxed a little from its strictness, one would say, but I presume that there is not less religion than formerly. If the ligature is found to be loosened in one part, it is only drawn the tighter in another”. 29 Cílon, genro de Teágenes, que governava como tirano na cidade de Mégara, foi um nobre ateniense, que ficou lembrado como o primeiro a encabeçar um golpe de estado em Atenas. Junto a aristocratas de Atenas e de Mégara, ele tentou tomar a cidade. Mas, mediante a falha de sua tentativa, os cúmplices do golpe se refugiaram no templo de Minerva. Segundo o relato de Plutarco em suas Vidas Paralelas, os seguidores de Cílon se ligaram por uma corda à estátua de Minerva, pensando que, se assim se apresentassem aos atenienses para julgamento, a deusa os protegeria. No entanto, quando decidiram sair do templo para serem julgados, eles passaram perto das imagens das Fúrias, as deusas da justa punição, e, então, a corda que haviam prendido à estátua da deusa protetora de Atenas se rompeu, sinal da contrariedade de Minerva às ações daqueles homens que, ao fim, não tiveram suas vidas poupadas. 30 Writings, I, p. 79. No original: “In most men’s religion, the ligature which should be its umbilical cord connecting them with divinity is rather like that thread which the accomplices of Cylon held in their hands when they went abroad from the temple of Minerva, the other end being attached to the statue of the goddess. But frequently, as in their case, the thread breaks, being stretched, and they are left without an asylum”. 136 realização, de um instante da vida, no qual nos encontramos, é equivalente a acres da folha de esperança forjada para dourar nossa expectativa31. Não por acaso, em oposição às doutrinas mais difundidas do cristianismo, ele afirma encontrar uma maior familiaridade nos simbolismos teriomórficos de Pan, a divindade grega das matas32, que ligam o transcendente ao imanente e o espiritual ao natural, e, assim, busca resgatar os panoramas de uma crença na presença do sagrado na Natureza, que se desdobra aqui e agora, neste mundo, em uma fertilidade e gozo divinais que não perecem jamais. “Em meu Panteão”, escreveu o autor, “Pan ainda reina em sua glória primitiva, com seu rosto corado, sua barba esvoaçante e seu corpo peludo, sua flauta e seu cajado, sua ninfa Eco, e sua filha escolhida Iambe, pois o grande deus Pan não está morto, como se dizia. Nenhum deus nunca morre”33. As instituições cristãs conterrâneas, como percebidas por Thoreau, esmaecem aquilo que diz respeito ao vigor deste mundo e seus milagres naturais, as verdadeiras vias de convalescência e de religamento com a fonte. Importa aqui destacar que sua censura, no limite, não se direciona à fé cristã propriamente dita, mas a seus dogmas e suas instituições, os quais, em seu entender, se afastaram da essência dos ensinamentos de seu mestre. Ironicamente, pondera ele, o Novo Testamento (o registro da nova mitologia acrescentada à história da humanidade; a “fábula cristã”34, outorgada como base para as instituições sociais dominantes), no fim das contas, é o livro que tem menos leitores, o mais impopular. Ensinamentos grandiosos como aquele que nos sugere buscar o reino dos céus, pois assim tudo nos será dado na terra, assim como aquele que nos sinaliza que se tivermos fé como um grão de mostarda seremos capazes de mover montanhas e nada nos será impossível, não foram verdadeiramente compreendidos, pois, do contrário, as pessoas teriam se dado conta de sua própria divindade, da ligação entre o material e o imaterial, o natural e o espiritual, a terra e o céu, e expandiriam sua devoção para além dos limites de uma igreja, fazendo do mundo seu templo. Palavras como 31 Writings, IX, p. 263. 1 de fevereiro de 1852. No original: “The man who believes in another world and not in this is wont to put me off with Christianity. The present moment in which we talk is of a little less value to him than the next world. So we are said to hope in proportion as we do not realize. It is all hope deferred. But one grain of realization, of instant life, on which we stand, is equivalent to acres of the leaf of hope hammered out to gild our prospect”. 32 Também não por acaso, foi com o deus silvano que a escritora Louisa May Alcott (1832–1888), em seu poema fúnebre, Thoreau’s Flute, identificou o autor, que foi por ela denominado “Our Pan” e “Genius of the wood”. Cf. BLOOM, Harold. (ed.). Henry David Thoreau. New York: Bloom’s Literary Criticism, 2008, p. 9-10. 33 Writings, I, p. 65. No original: “In my Pantheon, Pan still reigns in his pristine glory, with his ruddy face, his flowing beard, and his shaggy body, his pipe and his crook, his nymph Echo, and his chosen daughter Iambe; for the great god Pan is not dead, as was rumored. No god ever dies”. Eco, na mitologia grega, é a ninfa amada por Pan, e Iambe fruto da união de ambos (GRIMAL, op. cit., p. 126 e 238). 34 ibid., p. 67. No original: “the Christian fable”. 137 essas “nunca foram lidas, nunca foram ouvidas. Que apenas uma dessas sentenças seja corretamente lida, de qualquer púlpito da terra, e de sua igreja não sobraria pedra sobre pedra”35, escreve criticamente Thoreau. O problema crucial, para ele, reside na limitação da visão que determinadas instituições cristãs impõem sobre sua comunidade e àqueles que dela não participam. Na medida em que seus integrantes proclamam seu alicerçamento do mundo na condição de uma verdade unívoca, restringem seu conhecimento de si mesmas e dos demais. No entanto, os deuses não pertencem a nenhuma seita, e não se posicionam ao lado de nenhuma pessoa de forma exclusiva36. Enquadrando a compreensão de sua própria vida e o panorama daqueles que os cercam, os partidários do esquema de mundo cristão, quando se mostram etnocêntricos e contrários à diversidade de crenças, esmaecem a pluralidade da vida e dos horizontes de sentido para o viver: “Que direito você tem de levantar esse obstáculo para que eu entenda você, para que você me entenda?! Você não o inventou; foi imposto a você. Examine sua autoridade. Até mesmo Cristo, receamos, teve seu esquema, sua conformidade com a tradição [...]”37. Suas críticas à cosmovisão judaico-cristã aparecem em outros lugares, atreladas à sua detecção da imensa diferença entre as paisagens naturais descritas nas escrituras dessas tradições e aquelas de sua própria experiência38. Em A Winter Walk, em meio à sua excursão pelas matas da Nova Inglaterra em dias de inverno, ele escreve: A boa revelação hebraica não toma conhecimento de toda essa neve alegre. Não há religião para as zonas temperadas e frias? Não conhecemos nenhuma escritura que registre a pura benignidade dos deuses em uma noite de inverno na Nova Inglaterra. Seus louvores nunca foram cantados, apenas sua ira reprovada. Afinal, a melhor escritura registra apenas uma fé insuficiente. Seus santos vivem reservados e de forma austera. Deixe um homem corajoso e devoto passar o ano nas florestas do Maine ou do Labrador, e veja se as escrituras hebraicas falam adequadamente sobre sua condição e experiência, desde o início do inverno até o rompimento do gelo39. 35 ibid., p. 74, grifos do autor. No original: “never were read, they never were heard. Let but one of these sentences be rightly read, from any pulpit in the land, and there would not be left one stone of that meeting-house upon another”. Cf. Mt. 24:2; Mc. 13:2 e Lc. 21:6. 36 Cf. Writings, VII, p. 249. 15 de abril de 1841. No original: “The gods are of no sect; they side with no man”. 37 Writings, I, p. 71. No original: “What right have you to hold up this obstacle to my understanding you, to your understanding me! You did not invent it; it was imposed on you. Examine your authority. Even Christ, we fear, had his scheme, his conformity to tradition [...]”. 38 A despeito disso, o leitor atento se dá conta de que, em diversas ocasiões, o autor se vale das formulações bíblicas para fazer valer seu próprio posicionamento espiritual. 39 THOREAU, Henry David. A Winter Walk. In: ______. Essays: A Fully Annotated Edition. Editado por Jeffrey S. Cramer. New Haven: Yale University Press, 2013, p. 27-45, à página 44. Doravante citado como THOREAU, 2013a. No original: “The good Hebrew revelation takes no cognizance of all this cheerful snow. Is there no religion for the temperate and frigid zones? We know of no scripture which 138 Já em seu diário de 1851, Thoreau assim desabafa: Fiscalizamos e reprimimos a divindade que se agita dentro de nós, para decairmos e adorarmos a divindade que está morta fora de nós. Eu me encontro com muitos homens ou mulheres de bem, como são chamados, e pronuncio livremente aquele pensamento que somente me foi dado proferir; mas houve um homem que viveu há muito, muito tempo atrás, e seu nome era Moisés, e outro cujo nome era Cristo, e se seu pensamento não coincide, ou não parece coincidir com o que eles disseram, o homem ou a mulher de bem não tem ouvidos para te ouvir. Eles pensam que amam a Deus! São apenas suas velhas roupagens, das quais eles fazem espantalhos para as crianças40. Aqui vemos Thoreau antecipando reflexões como as de Friedrich Nietzsche (1844– 1900), que via no modelo religioso do Crucificado uma expressão da morte para este mundo, um esmaecimento da potência sagrada que pulsa em todas as dinâmicas corpóreas da vida terrena. De modo semelhante a Thoreau, que, antes de Nietzsche, respondeu à declaração de Plutarco sobre a morte de Pan (Obsolescência dos Oráculos, 419c) com uma altiva afirmação das múltiplas possibilidades de cultivo e sacralização da vida e do mundo, o filósofo alemão, por intermédio de seu poeta-profeta Zaratustra, brada a morte metafísica de Deus e anuncia a reverência pela terra, em contraposição à expectativa por um outro mundo, pois “o crime mais espantoso é blasfemar da terra, e dar mais valor às entranhas do insondável do que ao sentido da terra”41. Em sua penetrante crítica à cristandade, o pensador, em uma obra como O Anticristo (1895), denuncia as deturpações das ideias de Jesus pela tradição e seu afastamento das dinâmicas deste mundo. Em contrapartida à suposta decadência de seus dogmas, vemos despontar, na aurora de nossa civilização, a manifestação do espírito religioso da antiga Hélade. Balanceando as distintas potencialidades vitais, a cosmovisão dos gregos é representada na famosa conjugação entre os aspectos ordenador e harmonizador de Apolo e os aspectos transformador e fertilizador de Dioniso. Este último, em especial, em sua celebração da records the pure benignity of the gods on a New England winter night. Their praises have never been sung, only their wrath deprecated. The best scripture, after all, records but a meagre faith. Its saints live reserved and austere. Let a brave devout man spend the year in the woods of Maine or Labrador, and see if the Hebrew scriptures speak adequately to his condition and experience, from the setting in of winter to the breaking up of the ice”. 40 Writings, IX, p. 119. 16 de novembro de 1851. No original: “We check and repress the divinity that stirs within us, to fall down and worship the divinity that is dead without us. I go to see many a good man or good woman, so called, and utter freely that thought which alone it was given to me to utter; but there was a man who lived a long, long time ago, and his name was Moses, and another whose name was Christ, and if your thought does not, or does not appear to, coincide with what they said, the good man or the good woman has no ears to hear you. They think they love God! It is only his old clothes, of which they make scarecrows for the children”. 41 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 15. 139 corporeidade e do encanto do mundo, fornece um panorama oposto à metafísica do cristianismo e sua ideia de um mundo pós-morte. Tanto para Nietzsche quanto para Thoreau (autores que, cada qual ao seu modo, em oposição à centralidade metafísica do céu, retornam aos cenários espirituais gregos, revestindo a terra com um manto sagrado), as respostas para as perguntas e preocupações às quais atribuímos valor incondicional são tecidas na organicidade dos mecanismos terrenos, e algo só é percebido genuinamente em seu caráter celestial se correlacionado à sua contraparte terrenal, pois os domínios sagrados por ambos se estende. É também no cenário dessa crítica a uma ênfase exacerbada em um outro mundo, que aparece atrelada à crítica aos modos civilizacionais modernos, que Thoreau, que nasceu “para ser um panteísta”, como ele mesmo disse42, planta a semente de sua mensagem e de seu próprio exercício poético-profético, como desenvolveremos adiante. Antes, porém, é necessário que se diga que, entre os transcendentalistas, a figura do poeta-profeta está entrelaçada à perspectiva de concepção de novas escrituras, testemunhos religiosos do tempo presente. As discussões quanto ao caráter profético do poeta tornaram-se pivotais entre esses pensadores e, a propósito, o tema da primeira reunião que Thoreau participou junto a Emerson e os demais intelectuais transcendentalistas, em maio de 1840, era, justamente, “A Inspiração do Profeta e do Bardo, a Natureza da Poesia e as Causas da Esterilidade da Inspiração Poética em nossa própria Época e País”43. Em meio ao estreitamento do “desencantamento do mundo”44 que caracteriza os auspícios trazidos pela modernidade, os transcendentalistas emergem, cada qual ao seu modo, enquanto proclamadores da centelha divina em todas as coisas; celebradores de uma realidade que não cessa de entoar suas sagradas revelações e convidar à expressão as pessoas que dela participam. A voz do poeta-profeta — o canto do bardo; a declaração da pessoa dotada de gênio — é o canal de manifestação do divino 42 “When his friend and literary patron Horace Greeley later complained of the stumbling blocks created by his ‘defiant Pantheism’, Thoreau reported that unfortunate as that might be, it could not be helped, since he ‘was born to be a pantheist’” (HODDER, 1993, p. 404). 43 SEYBOLD, op. cit., p. 34. No original: “The Inspiration of the Prophet and Bard, the Nature of Poetry and the Causes of the Sterility of the Poetic Inspiration in our own Age and Country”. 44 Essa formulação tornou-se consagrada no pensamento weberiano. Como afirma Antônio Pierucci, na formulação de seu conceito de “desencantamento do mundo”, Max Weber (1864–1920) se inspirou em uma expressão estética do pensador e poeta romântico alemão Friedrich Schiller (1759–1805). “Para condensar numa única expressão os impactos da modernidade sobre a mãe natureza, Schiller teria pensado num efeito de ‘desdivinização’, [...] um efeito de desendeusamento da natureza — Entgötterung der Natur”. Adaptando a ideia romântica para sua análise dos mecanismos sociais da modernidade, “Weber usa a ideia de ‘desdivinização’ para se referir precisamente ao ‘mecanismo desdivinizado do mundo’”. Esse despojamento do mundo de sua ontologia de encantamento evidencia a diferença entre o “conhecimento e a dominação racional do mundo natural” e “as experiências místicas individuais, inexprimíveis, incomunicáveis, inefáveis” (PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 30-31). 140 natural a se desvelar no momento presente, revelações orgânicas e processuais, que, para os transcendentalistas de modo geral, são contínuas e diversificadas assim como a experiência do divino45. Figurando como partícipe da composição da literatura de caráter espiritual que apregoa a reconexão do indivíduo com Deus/os deuses e com a Natureza, o poeta-profeta é um escritor que se configura como um mediador das revelações que despontam no tempo presente, um partícipe da expressão das escrituras contemporâneas. Tal expectativa remete às reformulações dos românticos ingleses do caráter poético-profético, primeiramente abordado por estudiosos dos mitos como Blackwell e Lowth, como já mencionamos. “Se podemos abordar a poesia homérica enquanto religião grega e a religião hebraica enquanto poesia judaica”, pontua Richardson, “o resultado é [...] a elevação do poeta como o profeta da época presente, o narrador da verdade, o escritor de evangelhos, a testemunha primária de seu tempo e lugar”. Nesse sentido, “o poeta-profeta moderno inglês, americano ou alemão pode legitimamente perguntar: ‘Onde está nossa escritura?’ ‘Onde estão nossas testemunhas?’”46. Lawrence Buell, por sua vez, propõe que o distanciamento dos transcendentalistas da prosa religiosa unitarista pode ser caracterizado pela mudança da escrita de sermões para a composição de escrituras. Em seus textos, ressoam as formas linguísticas das escrituras sagradas: seu tom moral, suas expressões figurativas, sua vagueza e sua atmosfera poética47. Ralph Emerson, pontua Charles Foster, “enxergava a poesia romântica não como um produto literário, mas como uma escritura misticamente democrática”48, tendo sustentado um objetivo mitopoético que foi seguido por autores como Henry Thoreau e Walt Whitman, escritores também movidos, em sua literatura, por uma motivação essencialmente religiosa. “[A] experiência de cada nova era exige uma nova confissão”, declarou Emerson, “e o mundo parece sempre à espera de seu poeta”49. Thoreau, por sua vez, como traz a epígrafe desta seção, 45 WILLSKY, Lydia. Prophet among Rebels: Henry David Thoreau and the Creation of a Transcendentalist Bible. The New England Quarterly, v. 86, n. 4, p. 625-654, dez. 2013, à página 632. 46 RICHARDSON, 1995, p. 12. No original: “If we can approach Homeric poetry as Greek religion and Hebrew religion as Jewish poetry, the result is [...] the elevation of the poet as the prophet of the present age, the truth teller, the gospel maker, the primary witness for his time and place”; “the modern English or American or German poet-prophet may legitimately ask, ‘Where is our scripture? Where are our witnesses?’”. 47 BUELL, Lawrence. Literary Transcendentalism: Style and Vision in the American Renaissance. Ithaca/London: Cornell University Press, 1973, p. 135. 48 FOSTER, Charles Howell. Emerson as American Scripture. The New England Quarterly, v. 16, n. 1, p. 91-105, mar. 1943, às páginas 95-96. No original: “had his eye on romantic poetry not as a literary product, but as a mystically democratic scripture”. 49 EMERSON, The Poet, p. 10. No original: “the experience of each new age requires a new confession, and the world seems always waiting for its poet”. 141 apregoava que, tal como os gregos, os norte-americanos poderiam conceber uma literatura grandiosa para o próximo século, inspirada pelas vozes da poetisa e mitógrafa superior, pelas “Escrituras da Natureza”, como aqui denominamos. Em seu próprio testamento religioso deveriam estar presentes as vozes das linguagens naturais de sua terra natal. É isso o que ele sugere mais nitidamente já em seu diário de 1859, quando comenta sobre os abrigos invernais de ratos-almiscarados que ele havia encontrado: “Haverá alguma referência a ele, por meio de uma parábola ou de alguma outra forma, no meu Novo Testamento”, escreve o poeta-profeta concordiano. “Certamente, é um defeito em nossa Bíblia que ela não seja verdadeiramente nossa, mas uma Bíblia Hebraica. As ilustrações mais pertinentes para nós devem ser tiradas não do Egito ou da Babilônia, mas da Nova Inglaterra”50. Em seu sentido mais amplo, a ideia de “escrituras” representa aqui um escrito de teor religioso; um testemunho contemporâneo do encontro com o divino. Evidentemente, esses escritos religiosos com os quais os transcendentalistas identificam sua literatura não partilham do complexo tecimento das escrituras das nações, que se inserem em seus respectivos cenários socioculturais, suas tradições espirituais e dinâmicas ritualísticas que foram e permanecem sendo perpetuadas de geração em geração. Ainda assim, supõe-se que as escrituras do tempo presente convergem com as escrituras ancestrais na medida em que compartilham da linhagem da linguagem mitopoética e da fala poético-profética que, como temos procurado salientar, nos cenários românticos, manifesta-se em todas as circunstâncias espaço-temporais. Os poetas- profetas transcendentalistas, já pontuamos anteriormente, são os mediadores dos símbolos espirituais forjados a partir das linguagens naturais. A partir desse prisma, entendemos que suas pretensões literárias são imbuídas por uma perspectiva religiosa afirmadora da possibilidade de conceber novos testemunhos simbólicos sobre a relação humana com o divino. Neste contexto, o poeta enquanto profeta, como já dissemos, é o escritor que emprega a literatura de forma criativa para comunicar a pertença da particularidade na unidade (no “eterno” e no “uno”, para usarmos os termos de Shelley). Se o poeta detém uma insígnia sagrada que se procura resgatar, também sua fala a possui. Na proporção em que diz algo sobre o divino, a palavra poética é revelatória. E, na medida em que é revelatória, é atribuída à inspiração. Tendo em vista os antigos poetas gregos, que remetiam o impulso pela expressão por meio da palavra a um reino divino, à inspiração das Musas, Thoreau emprega o termo “inspiração” para 50 Writings, XVIII, p. 389, grifo do autor. 16 de outubro de 1859. No original: “There will be some reference to it, by way of parable or otherwise, in my New Testament. Surely, it is a defect in our Bible that it is not truly ours, but a Hebrew Bible. The most pertinent illustrations for us are to be drawn, not from Egypt or Babylonia, but from New England”. 142 resgatar o uso superior da palavra e a posição religiosa do poeta. Entre os transcendentalistas, todavia, importa relembrar, como o faz Buell, a teoria da inspiração não se dissociava da afirmação do papel ativo do poeta em sua experiência religiosa individual e em sua construção artística51. O poeta, afinal, é, essencialmente, um criador, o que indicaram os gregos com a ideia de ποιητής. Os poetas são gestores de símbolos particulares que denotam uma unidade maior da qual eles participam, como já sugerimos a partir da teoria de Coleridge sobre o símbolo e de sua repercussão em Emerson e Thoreau. Daí se segue que as criações poéticas são inferidas imageticamente de uma unidade de sentido que ultrapassa a particularidade de seu emprego singular da linguagem simbólica. Essa unidade semântica não é ela própria criada pelo poeta, mas, ao contrário, é entendida como a dimensão gestora de todas as particularidades, o poeta e as formas artísticas de sua obra incluídas. Inspirados pelo agenciamento superior da própria Natureza, como indicou Emerson em Society and Solitude, os discursos poéticos, por extrapolarem as especificidades de seu próprio autor, remetem à manifestação de um cenário universal revelador de que o poder da Natureza predomina sobre a vontade humana em todas as obras, até mesmo nas belas artes [...]. A Natureza pinta a melhor parte do quadro, esculpe a melhor parte da estátua, constrói a melhor parte da casa e pronuncia a melhor parte do discurso. [...]. O artista que intenciona produzir uma obra a ser admirada, não por seus amigos, citadinos ou contemporâneos, mas por todas as pessoas, e a ser a mais bela aos olhos na proporção de sua cultura, deve se desindividualizar [...]. Ele deve trabalhar no espírito no qual concebemos um profeta a falar, ou um anjo do Senhor a agir; isto é, ele não deve falar suas próprias palavras, ou realizar suas próprias obras, ou pensar seus próprios pensamentos, mas deve ser um órgão através do qual age a mente universal52. 51 Em seus termos, o método literário transcendentalista começa, “like the concept of the poet-priest itself, with their intuitions about religious experience. Inspiration did not mean for them a great idea for a poem or story, so much as the experience of that Truth or Reality of which the finished work was to be the expression”. Na alusão dos transcendentalistas à inspiração, Thoreau incluído, percebemos, portanto, uma “equation of creativity with spiritual or intellectual fulfilment” que entrelaça a experiência espiritual da inspiração às técnicas composicionais (BUELL, op. cit., p. 58-59). 52 EMERSON, Ralph Waldo. Society and Solitude. Boston: Fields, Osgood & Co., 1870, p. 42-43. No original: “the power of Nature predominates over the human will in all works of even the fine arts [...]. Nature paints the best part of the picture, carves the best part of the statue, builds the best part of the house, and speaks the best part of the oration. [...]. The artist who is to produce a work which is to be admired, not by his friends or his towns-people or his contemporaries, but by all men, and which is to be more beautiful to the eye in proportion to its culture, must disindividualize himself [...]. He must work in the spirit in which we conceive a prophet to speak, or an angel of the Lord to act; that is, he is not to speak his own words, or do his own works, or think his own thoughts, but he is to be an organ through which the universal mind acts”. 143 Na literatura thoreauviana, como já argumentou Lydia Willsky53, a ideia de inspiração está ligada à perspectiva de intercâmbio corpóreo com as diversas dinâmicas orgânicas que compõem o sistema natural. A Natureza é a professora mais sábia não em um sentido metafísico, primordialmente, mas em um sentido plenamente físico. Junto às matas e suas maturações selvagens, diz Thoreau em Wild Fruits [Frutos Selvagens] (1999)54, encontramo- nos em uma verdadeira “sala de aula” que não cessa de proferir suas lições e de convocar a atenção da visão e da audição de seus aprendizes: “Apercebi-me em uma sala de aula onde eu não podia deixar de ver e ouvir coisas que valiam a pena ver e ouvir, onde eu não poderia evitar o aprendizado de minhas lições, pois a minha lição vinha até mim”55. “Paisagens e sons predominantes causam em mim a impressão da beleza e da música”, escreveu o autor em 1857, mencionando seus estados de “perfeita conexão com a natureza”, nos quais “a percepção, ou mesmo a lembrança, de qualquer fenômeno natural é acompanhada de uma excitação prazerosa e gentil”. “A simpatia pela natureza é uma evidência de perfeita saúde. Não se pode perceber a beleza senão com uma mente serena”56. Expressões como essas permitem-nos relembrar da “sábia passividade” que, pela pena de Wordsworth, já havia sido conclamada no romantismo inglês. No poema Expostulation and Reply, componente das Lyrical Ballads, ele assim pronuncia: “O olho — não pode escolher, senão ver; “Ao ouvido não se pode ordenar à inatividade; “Onde quer que seja, nossos corpos irão perceber, “Contra ou junto à nossa vontade. “Não deixo de creditar aos Poderes seu existir “Que às nossas mentes dão sua impressividade; “Para que esta nossa mente possamos nutrir 53 WILLSKY, op. cit., p. 636. Como afirma a pesquisadora, a perspectiva de que “divine insight and inspiration were derived from sensory experience was a motif he first introduced in Walden”. “By reintroducing humans to the proper use of their senses” por intermédio de sua literatura inspirada, argumenta Willsky, Thoreau pensava que “they would develop a better understanding of themselves as spiritual creatures”. Para além de Walden, veremos adiante que essa tônica já está presente em A Week. 54 Wild Fruits foi o último manuscrito de Thoreau, uma espécie de calendário sazonal dos fenômenos naturais de sua terra, publicado várias décadas após seu falecimento. 55 WILLSKY, op. cit., p. 649. No original: “I found myself in a schoolroom where I could not fail to see and hear things worth seeing and hearing, where I could hot help getting my lessons, for my lesson came to me”. 56 Writings, XVI, p. 188. 18 de novembro de 1857. No original: “Prevailing sights and sounds make the impression of beauty and music on me”; “perfect connection with nature”; “the perception, or remembrance even, of any natural phenomena is attended with a gentle pleasurable excitement”; “Sympathy with nature is an evidence of perfect health. You cannot perceive beauty but with a serene mind”. 144 “Em uma sábia passividade [...]”57. O olho, o ouvido, as linguagens dos sentidos. É essa inserção corpórea no mundo natural junto aos “Poderes” da Natureza que possibilita a repercussão de novos testemunhos, novas escrituras que transmitam as comunicações divinas simbolizadas nas matas e seus trânsitos. “Jamais me sinto inspirado a não ser que meu corpo também se sinta inspirado”, pondera Thoreau em 1840. “Estão fatalmente enganados aqueles que pensam, enquanto lutam com suas mentes, que podem deixar seus corpos estagnarem no luxo ou na preguiça. O corpo é o primeiro prosélito que a Alma faz. Nossa vida é apenas a Alma que se dá a conhecer por seus frutos, o corpo”. “Todo o dever do homem”, conclui o pensador, “pode ser expresso em uma frase: — Construa para si mesmo um corpo perfeito”58. Já em 1855, ele escreve, semelhantemente, que “[p]erceber com frescor, com os sentidos revigorados, é estar inspirado”59. A ideia de inspiração aparece sempre vinculada à corporeidade e aos sentidos em suas reflexões. A escrita do poeta- profeta (o gênio, o escritor inspirado), entendida na particularidade da ótica thoreauviana, germina quando sua percepção sensitiva do mundo é renovada, e seu próprio corpo é (re)ligado ao néctar e à ambrosia dos deuses. A sensibilidade, longe de representar a desconexão do indivíduo de uma totalidade etérea, é, ao contrário, o âmbito no qual o corpo e a finitude humana se conectam com aquilo que, sendo infinito, lhe contém. Na colocação de Hodder, “a virtude especial dos sentidos é sua capacidade de nos conectar ao poder superior, à natureza, acima de tudo”60. É isso, precisamente, que propõe Thoreau em A Week. Em seu entendimento, a pessoa alçada pelo espírito poético, por meio de seu intercurso com as fontes orgânicas e materiais dos nutrientes divinais, alcança os portentos celestiais neste mundo, experienciando na terra uma “vida divina” que do alto advém. Por conseguinte, a inspiração da qual fala o autor torna-se 57 WORDSWORTH, William; COLERIDGE, Samuel Taylor. Lyrical Ballads: 1798 and 1802. Edição, introdução e notas de Fiona Stafford. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 80. No original: “‘The eye — it cannot choose but see; / ‘We cannot bid the ear be still; / ‘Our bodies feel, where’er they be, / ‘Against, or with our will. / ‘Nor less I deem that there are Powers / ‘Which of themselves our minds impress; / ‘That we can feed this mind of ours / ‘In a wise passiveness [...]”. 58 Writings, VII, p. 147, grifos acrescentados. 21 de junho de 1840. No original: “I never feel that I am inspired unless my body is also. [...]. They are fatally mistaken who think, while they strive with their minds, that they may suffer their bodies to stagnate in luxury or sloth. The body is the first proselyte the Soul makes. Our life is but the Soul made known by its fruits, the body. The whole duty of man may be expressed in one line, — Make to yourself a perfect body”. 59 Writings, XIV, p. 44. 11 de dezembro de 1855. No original: “To perceive freshly, with fresh senses, is to be inspired”. Meditando sobre seu corpo “todo senciente” e seu contato com os “milagres” sempre presentes no mundo, ele assim continua: “My body is all sentient. As I go here or there, I am tickled by this or that I come in contact with, as if I touched the wires of a battery. [...]. The age of miracles is each moment thus returned”. 60 HODDER, 1993, p. 416. No original: “the special virtue of the senses is their ability to connect us to higher power, nature above all”. 145 possível em virtude de uma inserção salutar do corpo na totalidade maior da Natureza, um corpo que, conjuntamente com a “aura” espiritual do poeta, vibra com a vida e seu sagrado pulsar. Quando o poeta está mais inspirado, ele é estimulado por uma aura que não chega a colorir as tardes dos homens comuns, e, então, seu talento se esvai, e ele já não é mais um poeta. Os deuses não lhe concedem nenhuma habilidade mais do que outra. Eles nunca colocam seus presentes nas mãos do poeta, mas o envolvem e o sustentam com sua respiração. Dizer que Deus deu a um homem muitos e grandes talentos significa, frequentemente, que ele trouxe os céus ao alcance de suas mãos. [...]. Até mesmo o corpo do poeta não é alimentado como o de outros homens, mas, por vezes, ele saboreia o néctar e a ambrosia genuínos dos deuses, e vive uma vida divina. Pelos estremecimentos sadios e revigorantes da inspiração, sua vida é preservada à serena velhice61. A relação entre a espiritualidade e o cultivo do vigor da vida concreta é enfática em Thoreau. Esse nexo se estende, como temos visto, à literatura poética de gênio, de teor poético- profético. A escrita “de gênio, ou inspirada”, como a define o pensador, “sempre vibra e pulsa com vida. É sagrada e deve ser lida com reverência, assim como as obras da natureza são estudadas”. O “fluxo de inspiração” que nessas palavras poéticas ressoa “é sempre o mesmo”, e está presente tanto em Shakespeare, em Burns62, quanto nos mitos de Alfeu e Aretusa63. O poeta inspirado é aquele que “cultiva a vida”, e em seus exercícios existenciais e poéticos “busca alimento para nutrição”64. O poeta, portanto, conforme a caracterização thoreauviana, é impulsionado por seu modo de existência de proximidade e familiaridade com a Natureza, e tem nesse meio originário a fonte de sua inspiração e o conteúdo de sua expressão. Nesses termos, a literatura poética de Thoreau apresenta-se enquanto uma construção linguística “inspirada” no sentido de ter como fundamento e como objetivo a visagem e o anúncio de um 61 Writings, I, p. 364-365, grifo do autor. No original: “When the poet is most inspired, is stimulated by an aura which never even colors the afternoons of common men, then his talent is all gone, and he is no longer a poet. The gods do not grant him any skill more than another. They never put their gifts into his hands, but they encompass and sustain him with their breath. To say that God has given a man many and great talents frequently means that he has brought his heavens down within reach of his hands. [...]. The poet’s body even is not fed like other men’s, but he sometimes tastes the genuine nectar and ambrosia of the gods, and lives a divine life. By the healthful and invigorating thrills of inspiration his life is preserved to a serene old age”. 62 Robert Burns (1759–1796) foi um eminente poeta escocês, consagrado, em sua época, como o bardo de seu povo. 63 Alfeu é o nome de um deus-rio grego que passa pelo Peloponeso. Conforme as versões mitológicas mais conhecidas, ele era apaixonado por Ártemis e por sua ninfa Aretusa. Esta última, em decorrência de sua fuga do deus, foi transformada em uma fonte d’água (GRIMAL, op. cit., p. 21-22). 64 Writings, I, p. 400-401. No original: “of genius, or the inspired”; “vibrates and pulsates with life forever. It is sacred, and to be read with reverence, as the works of nature are studied”; “the stream of inspiration”; “ever the same”; “cultivates life”; “seeks food for nutriment”. 146 princípio transcendente a circular por todo o mundo imanente, um movimento que não separa o mundo espiritual do universo material, o pensamento da vida. Na obra de Thoreau, percebemos que a afirmação dos sentidos corpóreos como fonte de inspiração para a palavra poética está relacionada a uma postura crítica perante a sociedade de seu tempo. Cabe-nos recordar aqui que, mais do que a criação de uma composição artística, o objetivo do poeta, em um sentido mais amplo, é a construção de cosmovisões. O conteúdo da mensagem poético-profética tem em vista o universal, aquilo que, para além da particularidade e da temporalidade, sempre permanece, assim já dissemos. Olhando para a realidade concreta, o poeta-profeta a conecta com uma unidade de sentido que se desenrola em todos os tempos, chamando a atenção para aquilo que insiste em ser sinalizado ao longo das eras e, assim, talvez devesse ser sempre cultivado. Orientando-se nas particularidades de seu tempo pela ótica do uno, os poetas-profetas demonstram-se na condição de verdadeiros visionários e, portanto, de genuínos reformadores, que transformam a si mesmos e incitam os demais através do poder da palavra. Também nos cenários espirituais do romantismo os nexos entre os ofícios poéticos e proféticos são movidos por uma pauta reformatória. Nos termos de Jan Wojcik e Raymond- Jean Frontain, “o poeta-profeta é motivado por sua visão de uma vida espiritual para a qual outros são cegos e que outros ameaçam destruir. Com sua cultura ameaçada, a atividade visionária do profeta torna-se a base de um ‘movimento de revitalização’”. E, “quaisquer que sejam as fontes ou a causa de sua visão, o poeta nos tempos modernos considerou-se o salvador espiritual de uma civilização autodestrutiva”65. Entre os pensadores transcendentalistas da Nova Inglaterra, imersos no tempo da consolidação da sociedade industrial e da profusão de concepções mecanicistas do mundo, a ideia de poeta-profeta se mesclou ao imperativo da reforma religiosa e intelectual que movimentou o Transcendentalismo em primeiro lugar. Também na literatura thoreauviana o poeta-profeta aparece, vestindo uma roupagem própria, enquanto um crítico da sociedade contemporânea66. Ainda que o escritor de Concord não tenha apresentado “teorias reformatórias” consolidadas, como escreveu seu amigo William Ellery Channing, “ele usou suas opiniões na literatura para o benefício do homem e para a glória de Deus”67. “Thoreau 65 WOJCIK; FRONTAIN, op. cit., p. 28-29. No original: “poet-prophet is motivated by his vision of a spiritual life to which others are blind and that others threaten to destroy. His culture endangered, the prophet’s visionary activity becomes the basis of a ‘revitalization movement’”; “whatever the sources or the cause of his vision, the poet in modern times has considered himself the spiritual savior of a self- destructive civilization”. 66 SPAHR, op. cit., p. 258. 67 CHANNING, op. cit., p. 20. No original: “He had no reform theories, but used his opinions in literature for the benefit of man and the glory of God”. 147 acreditava”, atesta Willsky, “que o dever do poeta-profeta era traduzir a natureza em uma linguagem que a humanidade pudesse entender ou, como diz Sharon Cameron, ‘apresentar sua reverência pela natureza de uma forma que a tornasse acessível a outros dentro das circunscrições das convenções literárias’”68. A crítica do escritor norte-americano dirige-se tanto às formas religiosas predominantes e sua ênfase em um outro mundo quanto à domesticação da Natureza para fins industriais, fenômenos concomitantes. Em sua concepção, tanto o enfoque das instituições cristãs no “céu” quanto o discurso moderno de usufruto da terra como “matéria-prima” para o progresso da civilização despem o mundo de sua roupagem sagrada. No horizonte de sua literatura poética- profética, na contracorrente dessas cosmovisões, suas palavras apresentam-se como meio de expressão da permanente presença de um sentido superior na imanência da realidade. Essa ênfase nas linguagens sensoriais da Natureza, que não era partilhada por todos os transcendentalistas69, é incorporada de modo saliente na literatura thoreauviana e torna-se um traço distintivo do pensamento de Thoreau, que, em sua fase madura, como já observamos anteriormente, dedica-se não apenas ao estudo das culturas humanas, mas à descrição e reflexão sobre as culturas de outros animais e nossa relação para com elas70. 68 WILLSKY, op. cit., p. 650. No original: “Thoreau believed that the duty of the poet-prophet was to translate nature into a language humanity could understand or, as Sharon Cameron phrases it, to ‘present his reverence for nature in a way that makes it accessible to others within the circumscriptions of literary conventions’”. 69 Em uma carta a Ralph Emerson datada de 1843, sua esposa Lidian retrata um encontro entre os transcendentalistas especialmente dedicado à discussão do caráter do profeta e do amor à Natureza que expressa, de forma interessante, a distinção de Thoreau em relação aos seus companheiros — a saber, sua ênfase na imanência do sagrado, entendida por alguns (como o reformador Charles Lane, p. ex.) como uma forma “refinada” de “idolatria”. Assim narra ela: “Last evening we had the ‘Conversation,’ though, owing to the bad weather, but few attended. The subjects were: What is Prophecy? Who is a Prophet? and The Love of Nature. Mr. Lane decided, as for all time and the race, that this same love of nature — of which Henry was the champion [...] — that this love was the most subtle and dangerous of sins; a refined idolatry, much more to be dreaded than gross wickednesses, because the gross sinner would be alarmed by the depth of his degradation, and come up from it in terror, but the unhappy idolaters of Nature were deceived by the refined quality of their sin, and would be, the last to enter the kingdom. Henry frankly affirmed to both the wise men that they were wholly deficient in the faculty in question, and therefore could not judge of it. And Mr. Alcott as frankly answered that it was because they went beyond the mere material objects, and were filled with spiritual love and perception (as Mr. T. was not), that they seemed to Mr. Thoreau not to appreciate outward nature” (THOREAU, 1958, p. 91-92). 70 Em Walden, p. ex., Thoreau diz o seguinte: “Às vezes eu ouvia as raposas enquanto vagueavam pela crosta de neve, nas noites de luar, [...] como que afligidas por alguma ansiedade ou procurando uma forma de expressão, [...] pois, se levarmos em conta as eras, não poderia existir uma civilização em curso não só entre os homens, mas também entre os animais? Pareciam-me homens rudimentares, vivendo em tocas ainda na defensiva, aguardando sua transformação” (THOREAU, 2019, p. 260, grifos acrescentados). 148 Em Walking, em oposição às formas civilizacionais de seu tempo (interessadas na produção de batatas, mas esquecidas da formação de sábios), Thoreau indica ser seu intercurso físico e sapiencial com a Natureza selvagem, a força e o vigor renovadores de suas matas, a fonte de sua visão poético-profética, solo fértil para o florescimento de poetas, educadores e reformadores espirituais. Sob seu prisma, o poeta-profeta, o gênio, é aquele que, posicionando- se como um mensageiro da Natureza, um meio através do qual ela efetua suas transmissões, recorda seus contemporâneos de seus fundamentos originários e atesta seu distanciamento corpóreo e ontológico das raízes dessa ancestralidade: Quando quero me renovar, procuro o bosque mais escuro, o pântano mais denso, interminável e, aos olhos do cidadão urbano, mais lúgubre. Entro num pântano como quem entra num lugar sagrado — um sancto sanctorum. Ali está a força, o âmago da natureza. A mata selvagem cobre o humo virgem, e o mesmo solo é bom para os homens e para as árvores. [...]. Uma cidade é salva tanto por seus homens íntegros como pelas matas e pântanos que a cercam. Um município em que uma floresta primitiva floresce por sobre outra floresta primitiva em decomposição — uma cidade assim tem condições de produzir não apenas milho e batatas, mas também poetas e filósofos para as eras vindouras. De semelhante solo nasceram Homero, Confúcio e os outros, e de uma natureza assim agreste surge o Reformador71 que se alimenta de gafanhotos e mel selvagem72. Essas ideias atravessam a obra de Thoreau como um todo, e se manifestam, por exemplo, em um texto póstumo como Life Without Principle [Vida Sem Princípio] (1863), onde o autor, em sua crítica à vida desprovida de princípios superiores, afirma que, apesar deste mundo ser “um lugar de negócios”, “não existe nada [,] nem mesmo o crime, que se oponha tanto à poesia, à filosofia, à própria vida, quanto os incessantes negócios”. Contrastando a vida dedicada aos empreendimentos pecuniários à existência poético-filosófica73, o pensador 71 Referência a João Batista, o profeta do deserto. Cf. Mt. 3:4 e Mc. 1:6. 72 THOREAU, 2012a, p. 104-105. 73 A vida poético-filosófica, dedicada à busca pela sabedoria, é, para Thoreau (assim como era para os gregos), uma questão de saber viver; nos termos de Pierre Hadot: um “exercício espiritual”. Também em Life Without Principle, o autor norte-americano escreve o seguinte: “O título de sábio é, no mais das vezes, usado indevidamente. Como pode ser sábio um homem que não sabe melhor do que os outros como viver? Um homem que só é mais esperto e intelectualmente mais sutil do que os outros? Existe por acaso Sabedoria num trabalho bruto de tração? Ou ela ensina a ter êxito a partir do seu exemplo? Existe uma coisa chamada sabedoria que não seja aplicada à vida? Ela se resume ao moleiro que tritura a lógica mais sutil?” (THOREAU, Henry David. Vida sem princípios. In: ______. A Desobediência Civil. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012, p. 124-150, às páginas 131-132, grifos acrescentados. Doravante citado como THOREAU, 2012b). Sob a ótica thoreauviana, filosofia e poesia, vida filosófica e vida poética, como já comentamos, não se dissociam. 149 declara: “prefiro seguir meu aprendizado numa escola diferente”74. Referindo-se à corrida pelo ouro na Califórnia75 e à “imoralidade dos negócios”, que têm por objetivo “obter os meios de comandar o trabalho de outros menos afortunados, sem contribuir em nada para o bem da sociedade”, ele atesta, criticamente: “A filosofia, a poesia e a religião de uma humanidade assim não valem a poeira de um cogumelo orelha-de-pau”76. Os aperfeiçoamentos das técnicas civilizacionais, sugere Thoreau, não foram acompanhados pelo desenvolvimento moral das pessoas e suas relações: “Escolhemos o granito para calçar nossas casas e celeiros; construímos muros de pedra; mas nós próprios não nos escoramos em alicerces de verdade granítica, a mais humilde das rochas primitivas”. Sua conclusão é que “não ensinamos uns aos outros as lições de honestidade e sinceridade que os animais ensinam, nem a firmeza e solidez ensinada pelas rochas”. “Se nos profanamos dessa forma”, prossegue ele, “o remédio será nos ressacralizarmos mediante o cuidado e a devoção, convertendo de novo nossa mente num templo”77. Em seu costumeiro tom provocativo, ele convida seu leitor a mudar o foco de seu olhar, e, ao invés de deter-se somente no mundo das notícias vindas das cidades, lançar-se no aprendizado ofertado pelo sagrado livro cuja caligrafia se estampa ao nosso redor: “Em vez de ler o Times, leiamos a Eternidade”78. É nesta busca pelos verdadeiros recursos da Natureza que uma nação é agraciada com aquilo que lhe deveria ser mais valioso — não as “matérias-primas” para a efetivação das luxuosas engenhosidades industriais e humanas, de sua dominação da terra e de sua escravização de pessoas, mas genuínos seres humanos: poetas, heróis, profetas. Quando queremos mais cultura do que batatas, e mais esclarecimento do que guloseimas, então os verdadeiros recursos de um mundo são explorados e extraídos, e o resultado, ou produção essencial, não são escravos, nem operários, mas homens — aqueles frutos raros chamados heróis, santos, poetas, filósofos e redentores79. Se, por um lado, as dinâmicas industriais modernas removem as semânticas sagradas da terra, por outro lado, a cosmovisão religiosa socialmente dominante afirma um outro mundo, 74 ibid., p. 126. 75 A corrida do ouro na Califórnia (1848–1855) levou milhares de pessoas ao oeste do país, que, na expectativa de enriquecimento, se lançaram em arriscadas atividades garimpeiras. 76 THOREAU, 2012b, p. 132. 77 ibid., p. 139 e 144, grifos acrescentados. 78 ibid., p. 145. Ver também passagem deste ensaio onde Thoreau, sob um pano de fundo religioso, contrapõe à leitura dos dizeres da Natureza com a leitura dos jornais, trazendo à vista uma nítida referência à posição de Jesus frente à mercantilização da vida (cf. Mt. 6:24 e Lc. 16:13): “Não sei ao certo, mas me parece um excesso ler um jornal por semana. [...]. O sol, as nuvens, a neve e as árvores já não me diziam tanto. Não é possível servir a dois senhores” (p. 141). 79 ibid., p. 148-149. 150 oposto à vida terrena e, portanto, separado das linguagens divinas. Enquanto alguns acreditam que as revelações foram solfejadas em um tempo remoto, e que a plena bem-aventurança pode ser conquistada somente em um outro mundo, pensava Thoreau, por meio do contato sensitivo com os fenômenos naturais a pessoa descobre que, na verdade, a Natureza permanece revelando mensagens superiores tais quais aquelas proclamadas pelos poetas e profetas de quem temos tradição. Os cenários terrenos se mostram eles próprios como entonações da poetisa e mitógrafa suprema: a Natureza, potencialidade criativa dotada de uma linguagem simbólica que comunica a existência de uma unidade a permear as particularidades; que comunica a presença de um princípio integrador a correlacionar todas as eras e todas as suas reivindicações mitopoéticas de sentido para a vida e seus mistérios. A Natureza é a linguista primordial: em seus fenômenos a linguagem simbólica das escrituras e das mitologias já se encontra em protótipo. Assim como os poetas e profetas de outrora aprenderam dos símbolos naturais a respeito de seu ser no mundo, também os poetas-profetas das gerações posteriores assimilam sua linguagem religiosa a partir de seu intercurso sensitivo e simbólico com o mundo e sua miríade de vidas. A Natureza, nos termos de Thoreau, é “a arte de Deus”80; seus acontecimentos revelam- se como parábolas do “Grande Mestre”81. “A Natureza é uma feiticeira. As noites de Concord são mais desconhecidas do que as Mil e uma noites”82. Ela é “sempre mítica e mística, e trabalha com a licença e a extravagância de um gênio”. Suas manifestações vitais soam como “o carro de alguma divindade marinha fabulosa, um Nereu ou Tritão”83. E seu poema Outono demonstra que sua técnica “é superior a todos os estilos e a todas as épocas”84. “A terra parece tão bela”, afinal, “quanto o Valhalla dos deuses”85. Com sentenças como essas, o autor quer nos dizer que o mundo imanente é ele próprio a força motriz dos encantamentos espirituais que são despertos nos seres humanos em formas diversas, e se comunica com aqueles que atendem ao seu chamado os remetendo à mesma dimensão mítica transmitida nos termos escriturísticos dos poetas e profetas. Dizendo que a própria Natureza é mítica, Thoreau sinaliza que esta vida e 80 Writings, I, p. 339. No original: “the art of God”. 81 Writings, IX, p. 438. 18 de abril de 1852. No original: “Every incident is a parable of the Great Teacher”. 82 Writings, VII, p. 261. 27 de maio de 1841. No original: “Nature is a wizard. The Concord nights are stranger than the Arabian Nights”. 83 THOREAU, 2013b, p. 21-22. No original: “Nature is mythical and mystical always, and works with the license and extravagance of genius”; “the car of some fabulous marine deity, a Nereus or Triton”. Nereu, na mitologia grega, é filho de Ponto e de Gaia, um dos “velhos do Mar”. Com Dóris, filha do Oceano, gerou as Nereidas. Já Tritão, filho de Posídon e Anfitrite, é um deus marinho semelhante a Nereu (GRIMAL, op. cit., p. 328 e 456). 84 Writings, I, p. 403. No original: “superior to all styles and ages”. 85 Writings, VII, p. 295. 15 de dezembro de 1841. No original: “The earth looks as fair this morning as the Valhalla of the gods”. 151 este mundo são sagrados: por meio das linguagens da terra, manifesta-se a presença do divino aqui e agora. Tal como indica o escritor a partir de suas alusões de teor mítico aos seres e fenômenos nas paisagens por ele contempladas em suas viagens pelos rios Concord e Merrimack, a Natureza permanece nos remetendo, através de seus seres e fenômenos, à sua linguagem mitopoética e aos tempos aurorais, e conversa conosco em sua gramática mitológica. Na medida em que sobem o rio Merrimack e, longe das vilas, os viajantes de A Week veem apenas as matas, eles se sentem próximos do tempo originário onde naquelas terras habitavam solenemente os povos indígenas86. As correntes fluviais e seu cantar glorioso permanecem convocando a atenção daqueles que atravessam suas águas, como outrora fizera o famoso deus-rio Xanto87; o desabrochar das flores ainda ressoam os domínios divinais da deusa Proserpina88; as obras naturais permanecem revelando o agir de Apolo e de Diana, os filhos gêmeos de Latona89; a aparente rudeza das pessoas ainda nos faz lembrar dos sátiros das florestas90; as montanhas das matas de New Hampshire ressoam como se em seu interior estivessem enterrados os Titãs, e como se em suas proximidades habitassem Oréades, Dríades e Náiades91. O cantar dos grilos proclama “uma continuação do código sagrado” das leis morais e de conduta do Dharmaśāstra dos hindus92, e um velho homem inglês demonstra ter na pesca uma espécie de “sacramento solene e afastamento do mundo, assim como os mais velhos leem suas bíblias”93. Também aqui é válido, afinal, aquilo que havia afirmado o poeta latino Salústio (c. 86–35 a.e.c.), pois na 86 Writings, I, p. 204. 87 ibid., p. 10. Rio da planície de Tróia, também chamado de Xanto, “o Vermelho”. Na Ilíada, é filho de Zeus, e toma parte na guerra entre gregos e troianos (GRIMAL, op. cit., p. 149). 88 ibid., p. 18. Proserpina, para os romanos, e Perséfone, para os gregos, é a deusa da agricultura e das estações, assim como do submundo, onde reina junto a Hades/Plutão (GRIMAL, op. cit., p. 397). 89 ibid., p. 64. Apolo, deus do arco, da lira e da profecia, e Diana/Ártemis, deusa da caça e das matas selvagens, são filhos gêmeos, segundo algumas versões, da titânide Latona/Leto e de Zeus/Júpiter. 90 ibid., p. 217. Os sátiros/silenos, são gênios das matas, criaturas híbridas e lúbricas, que geralmente figuram no cortejo de Dioniso (GRIMAL, op. cit., p. 413). 91 ibid., p. 86. Os Titãs, na mitologia grega, são os filhos da Terra (Gaia) e do Céu (Urano), os primeiros descendentes dos deuses primordiais. Já as Oréades, as Dríades e as Náiades são, respectivamente, ninfas encarnadas nas montanhas, nas árvores e nas águas, guardiãs do mistério divino que se movimenta nos seres e espaços que elas habitam (GRIMAL, op. cit., p. 321). 92 ibid., p. 157. No original: “a continuation of the sacred code”. Dharmaśāstra é um gênero de textos hindus relativos aos códigos normativos das leis religiosas e civis, onde estão incluídas as Leis de Manu (Mānava-Dharmaśāstra). O interesse de Thoreau nesses tratados remonta às fontes orientalistas das traduções dos textos hindus por ele acessadas. Sobre isso, cf. HODDER, 2001. 93 ibid., p. 22-23. No original: “a sort of solemn sacrament and withdrawal from the world, just as the aged read their bibles”. 152 cosmovisão thoreauviana, similarmente, “até o próprio universo pode ser considerado um mito”94. Cada fenômeno, seja ele não humano ou humano, remete-nos, enfim, a uma paisagem poética e teofânica. Expressando o caráter sagrado do mundo através de imagens míticas, Thoreau parece querer nos indicar que a percepção de um fundamento divino a sustentar o universo, que outrora ambientou os mitos e escrituras dos diversos povos e nações, continua sendo possível no instante presente, pois permanece sendo anunciado simbolicamente nos próprios fenômenos naturais. Sem se envolver com reflexões filosóficas rebuscadas sobre o tema, o pensador nos alude aos deuses, aos textos sagrados e suas narrativas míticas por meio da sinalização de eventos que se desdobram sob seus próprios olhos, expressivos da circulação do divino neste mundo. Em um sentido superior aos próprios textos religiosos, a Natureza, entre os transcendentalistas, mostra-se ela mesma como o espelhamento dos sinais e dizeres divinos95, o que é especialmente nítido em Thoreau. Assim sendo, a pessoa que busca um desenvolvimento sapiencial se dá conta de que a Natureza, que entoa as glórias cósmicas com seus mínimos detalhes, é mítica, e “o universo é o único sanctum sanctorum”96. O leitor das sagradas escrituras da Natureza, como propõe o escritor de Concord, reconhece na linguagem mitopoética natural a costura da vida em sua totalidade. O próprio universo está pleno de encantamentos, e continuamente nos põe a encenar eventos tais quais aqueles retratados nas mitologias, fábulas e poesias conservadas pelas tradições. Não é de se admirar que a Mitologia, as Mil e uma noites, Shakespeare e os romances de Scott97 nos entretenham — nós próprios somos poetas e escritores de fábulas, dramaturgos e novelistas. Estamos continuamente performanceando um papel em um drama mais interessante do que qualquer um que já foi escrito98. Na construção de seu caminho de “ressacralização”, uma senda de retorno para os verdadeiros “recursos” da Natureza, vem à tona a visão para além do “véu”. Esse desvelamento, 94 CALASSO, Roberto. A Literatura e os Deuses. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 120. 95 “For transcendentalists”, como aponta Alan Hodder (1993, p. 422), “nature supplanted scriptures as the medium of divine revelation: nature as a whole, or in one of its parts, was the veritable mirror of the divine”. Essa citação é destacada também por Willsky (op. cit., p. 634). 96 Writings, I, p. 330-331. No original: “the universe is the only sanctum sanctorum”. 97 Sir Walter Scott (1771–1832) foi um poeta romântico escocês, considerado pela tradição como o inventor da novela histórica. 98 Writings, I, p. 281. No original: “No wonder that the Mythology, and Arabian Nights, and Shakespeare, and Scott’s novels, entertain us, — we are poets and fablers and dramatists and novelists ourselves. We are continually acting a part in a more interesting drama than any written”. 153 como Thoreau expressa em “Friday”, último capítulo de A Week, descobre a íntima relação entre o mundo interior e o universo exterior, entre o natural e o espiritual, a terra e o céu; em suma, a interconexão entre todas as coisas. Aqui ele retoma sua crítica à ênfase no céu em detrimento da terra, às abstrações metafísicas em prejuízo do contato efetivo com as circulações da vida. Em parte alguma, a leste ou a oeste, os homens vivem ainda uma vida natural, em torno da qual a videira se une, e na qual o olmo de bom grado sombreia. O homem a profanaria com seu toque, e assim a beleza do mundo permanece velada para ele. Ele precisa não apenas ser espiritualizado, mas naturalizado, no solo da terra. [...]. Somente os convalescentes levantam o véu da natureza. [...]. O que é esse céu que eles esperam, se não é superior ao que eles presumem? Eles estão preparados para algo melhor do que aquilo que podem imaginar agora? [...]. Aqui ou em lugar algum está o nosso céu. [...]. Precisamos ser nascidos da terra assim como nascidos do céu, γηγενείς [nativos], como foi dito dos Titãs de outrora, ou em um sentido melhor do que eles. Existiram heróis para os quais este mundo parecia estar claramente pronto, como se a criação finalmente tivesse dado certo; cuja vida cotidiana era a matéria da qual são feitos nossos sonhos, e cuja presença elevava a beleza e a amplitude da própria Natureza99. Como podemos apreender a partir do que dissemos até agora, a mensagem poético- profética do escritor norte-americano gira em torno da reconexão com o conhecimento sensitivo das linguagens da Natureza, dinâmica na qual está implicado o retorno para o sentido superior da sensibilidade (a qual, em seu entender, deve ser destinada à absorção dos encantos deste mundo). Somente percorrendo este caminho — que é, para Thoreau, uma senda de cura, de convalescência —, seremos capazes de ler corretamente as escrituras da Natureza e seus mistérios. Na construção de suas próprias impressões escriturísticas, o autor, relembrando os poetas-profetas de outrora, vale-se constantemente de cenários míticos para expor seu caminho religioso de (re)conexão entre o âmbito espiritual e os fenômenos naturais. Essas coisas sugerem, possivelmente, que vivemos à beira de um outro reino, mais puro, de onde provêm esses odores e sons que flutuam sobre nós. As 99 ibid., p. 405-406, grifos do autor. No original: “Men nowhere, east or west, live yet a natural life, round which the vine clings, and which the elm willingly shadows. Man would desecrate it by his touch, and so the beauty of the world remains veiled to him. He needs not only to be spiritualized, but naturalized, on the soil of earth. [...]. Only the convalescent raise the veil of nature. [...]. What is this heaven which they expect, if it is no better than they expect? Are they prepared for a better than they can now imagine? [...]. Here or nowhere is our heaven. [...]. We have need to be earth-born as well as heaven-born, γηγενείς, as was said of the Titans of old, or in a better sense than they. There have been heroes for whom this world seemed expressly prepared, as if creation had at last succeeded; whose daily life was the stuff of which our dreams are made, and whose presence enhanced the beauty and ampleness of Nature herself”. 154 bordas de nosso campo são ambientadas com flores, cujas sementes foram sopradas de outros campos elísios100 adjacentes. São as ervas dos deuses. [...]. Não precisamos orar por nenhum céu mais alto do que aquilo que os puros sentidos podem fornecer, uma vida puramente sensitiva. Nossos sentidos atuais são apenas os rudimentos daquilo que eles estão destinados a se tornar. Somos comparativamente surdos, mudos e cegos, desprovidos de olfato, gosto ou sentimento. Cada geração descobre que seu vigor divino foi dissipado, e que cada sentido e faculdade são mal aplicados e depravados. Os ouvidos foram feitos não para os usos triviais que as pessoas costumam supor, mas para ouvir sons celestiais. Os olhos não foram feitos para os usos rastejantes com os quais são atualmente usados e desgastados, mas para contemplar a beleza agora invisível. Não podemos ver Deus? Devemos ser desencorajados e entretidos nesta vida, como se ela fosse, por assim dizer, uma mera alegoria? Não é a Natureza, corretamente lida, aquilo pelo qual ela é comumente considerada como sendo meramente um símbolo? Quando o homem comum olha para o céu, que ele não profanou tanto, ele o considera menos grosseiro do que a terra, e com reverência fala dos “Céus”, mas o profeta falará no mesmo sentido das “Terras” e seu Pai que nelas está. “Não é aquele que criou o interior também aquele que criou o exterior?”101 O que é, então, se educar senão desenvolver esses germes divinos chamados sentidos?102 Em oposição à sociedade contemporânea, Thoreau defende que os sentidos corpóreos não são destinados aos usos para os quais normalmente são postos, mas, ao contrário, são fontes do “vigor divino” a habitar em nós e ao nosso redor, vias de captação da presença do divino neste mundo. Esta percepção advém de um intercurso físico e espiritual junto às matas e seus seres, balizado na educação dos sentidos. Estes são entendidos não como forças que nos 100 Na mitologia grega, os Campos Elísios constituem o lugar destinado às pessoas bem-aventuradas. Lá, “nos confins da terra”, conta Homero (Od., iv, 563-568), “a vida para os homens é da maior suavidade. / Não há neve, nem grandes tempestades nem sequer chuva, / mas o Oceano faz soprar as brisas do Zéfiro guinchante / para trazer aos homens o deleite da frescura” (HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço. Introdução e notas de Bernard Knox. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p. 184). 101 Referência ao Evangelho de Lucas (11:40). 102 Writings, I, p. 407-408, grifos do autor. No original: “These things imply, perchance, that we live on the verge of another and purer realm, from which these odors and sounds are wafted over to us. The borders of our plot are set with flowers, whose seeds were blown from more Elysian fields adjacent. They are the potherbs of the gods. [...]. We need pray for no higher heaven than the pure senses can furnish, a purely sensuous life. Our present senses are but the rudiments of what they are destined to become. We are comparatively deaf and dumb and blind, and without smell or taste or feeling. Every generation makes the discovery that its divine vigor has been dissipated, and each sense and faculty misapplied and debauched. The ears were made, not for such trivial uses as men are wont to suppose, but to hear celestial sounds. The eyes were not made for such groveling uses as they are now put to and worn out by, but to behold beauty now invisible. May we not see God? Are we to be put off and amused in this life, as it were with a mere allegory? Is not Nature, rightly read, that of which she is commonly taken to be the symbol merely? When the common man looks into the sky, which he has not so much profaned, he thinks it less gross than the earth, and with reverence speaks of ‘the Heavens,’ but the seer will in the same sense speak of ‘the Earths,’ and his Father who is in them. ‘Did not he that made that which is within make that which is without also?’ What is it, then, to educate but to develop these divine germs called the senses?”. 155 separam da eternidade e do poder supremo do universo, mas, ao contrário, como os verdadeiros “germes divinos”, as vias que nos possibilitam ver e ouvir o espiritual no natural. A “vida puramente sensitiva”, portanto, é aquela que se atenta ao valor sagrado do mundo imanente, construindo-se a partir de um desenvolvimento dos sentidos que os mostra em sua qualidade de vias expressivas do divino no mundo. Sob essa perspectiva, os poetas-profetas da história da humanidade são apresentados, em A Week, como leitores dos sinais celestes percebidos em sua relação com a terra e, por consequência, aparecem como os verdadeiros educadores — mestres da conexão entre a terra e o céu. Buscando descobrir o exterior em relação ao interior e afirmando a conjunção entre os sentidos materiais e os sentidos espirituais, os proclamadores da relação entre o céu e a terra são aqueles que nos fornecem, afinal, pistas genuínas para nossa relação concreta com o “outro mundo”. Como sugere Thoreau, podemos, mesmo aqui e agora, obter algumas informações precisas sobre aquele OUTRO MUNDO que o instinto da humanidade há tanto tempo predisse. De fato, tudo o que chamamos de ciência, assim como tudo o que chamamos de poesia, é uma partícula de tal informação [...]. Certamente, somos providos de sentidos tão aptos para penetrar nos espaços do real, do substancial, do eterno, quanto desses sentidos externos que estão aptos para penetrar no universo material. Vyāsa103, Manu, Zoroastro, Sócrates, Cristo, Shakespeare, Swedenborg — estes são alguns dos nossos astrônomos104. Este possível resgate da ligação entre céu e terra, entre transcendência e imanência — que entendemos ser o tema principal da dimensão religiosa do pensamento thoreauviano — decorre, como temos buscado argumentar, de um aprofundamento da sensibilidade para o reconhecimento do valor do universo imanente. Para Thoreau, somente através do aperfeiçoamento da sensibilidade as pessoas podem vir a habitar plenamente este mundo, que, afinal, é a contraparte do “outro mundo” que parecia ocupar inteiramente a atenção de seus contemporâneos105. Sendo corretamente vista e lida, a Natureza é descoberta, portanto, enquanto a própria presentificação do céu na terra. Em oposição à religião cristã dominante, que encontra no “céu” e no paraíso a salvação, Thoreau apresenta a sensibilidade corpórea como 103 Kṛṣṇa Ḍvaipāyana Vyāsa é identificado, na tradição sapiencial hindu, como o compositor do Mahābhārata, do qual o Bhagavad-Gītā é uma parte, assim como autor e organizador de outros textos sagrados. 104 Writings, I, p. 412, grifos do autor. No original: “we may, even here and now, obtain some accurate information concerning that OTHER WORLD which the instinct of mankind has so long predicted. Indeed, all that we call science, as well as all that we call poetry, is a particle of such information [...]. Surely, we are provided with senses as well fitted to penetrate the spaces of the real, the substantial, the eternal, as these outward are to penetrate the material universe. Veias, Menu, Zoroaster, Socrates, Christ, Shakespeare, Swedenborg, — these are some of our astronomers”. 105 SEYBOLD, op. cit., p. 62. 156 o campo por excelência onde a germinação e consolidação da relação com o sagrado é operada. Vista sob esse prisma, a circulação do divino em todas as coisas é descoberta sensivelmente, na corporeidade, e, portanto, nos meandros da terra, nos fenômenos deste mundo e nas linguagens dos sentidos: Eu vejo, cheiro, provo, ouço, sinto aquele Algo eterno ao qual estamos ligados, ao mesmo tempo nosso criador, nossa morada, nosso destino, nosso próprio Eu: a única verdade histórica, o fato mais notável que pode vir a tornar-se o assunto distinto e inesperado de nosso pensamento, a verdadeira glória do universo; o único fato que um ser humano não pode evitar reconhecer, ou de alguma forma esquecer ou dispensar106. Em suma, o gênio poético-profético, como encarnado em Thoreau, remete a um cultivo pessoal da devoção à terra tanto quanto ao céu, e, através de seu exercício literário e sua participação na entonação das escrituras da Natureza, chama seus contemporâneos para também se empreenderem em sua própria jornada de convalescência: uma reeducação dos sentidos que os revele na condição de potencialidades divinas, de revelação do céu na terra. O profeta vislumbrado pelo autor é, portanto, quem fala com reverência das “Terras” assim como dos “Céus”, reunindo as semânticas da esfera interior e do mundo exterior em uma única unidade linguística, epistêmica e devocional. Adiante, em nossa caminhada, veremos que, incorporando os auspícios do poeta-profeta, Thoreau se vale da fala poética em Walden, sua “literatura do próximo século”, a fim de relembrar seus contemporâneos que o sacro dizer da Natureza permanece sendo entoado ao nosso redor e através de nós. Por meio desse percurso, o autor nos indica uma rota de reencantamento do mundo percorrida na lapidação da sensibilidade — um “remédio” para a ressacralização, um caminho soteriológico de usufruto das potências naturais não como “matéria-prima” para o lucro e o luxo da civilização moderna, que despiu a Natureza de seu manto sagrado e voltou-se para a devoção ao “céu” somente, mas para a construção de expressões existenciais que apregoem simbolicamente a reconexão entre o interior e o exterior, o espiritual e o natural, o transcendente e o imanente, o céu e a terra. 106 Writings, I, p. 182. No original: “I see, smell, taste, hear, feel, that everlasting Something to which we are allied, at once our maker, our abode, our destiny, our very Selves; the one historic truth, the most remarkable fact which can become the distinct and uninvited subject of our thought, the actual glory of the universe; the only fact which a human being cannot avoid recognizing, or in some way forget or dispense with”. 157 2.3. Walden: exercícios religiosos e simbolismos Certamente não gostaríamos de viver perto de muita gente, nem da estação de trem, da agência do correio, do bar, da igreja, da escola, da mercearia, de Beacon Hill ou dos Five Points, onde mais se reúnem as pessoas, e sim perto da fonte eterna de nossa vida, de onde toda a nossa experiência diz que ela brota, como o salgueiro que fica perto d’água e lança suas raízes em sua direção. Ela vai variar segundo as diversas naturezas, mas é o local onde o sábio irá cavar seu porão… (Henry David Thoreau, Walden)1. Walden é uma obra de muitas faces. Nela estão retratados os interesses multifocais de um autor que, como procuramos mostrar em nossa caminhada até aqui, era simultaneamente um estudioso da Natureza ao modo dos naturalistas e um buscador de seus símbolos e sua dimensão sagrada, como os poetas. Ainda assim, por qualquer via que o leitor for chamado a se nortear em seu diálogo com a narrativa de Thoreau, irá se deparar com o caráter pessoal de suas meditações. A propósito, seus primeiros textos sobre sua experiência junto ao lago de Concord foram denominados “A History of Myself” [“Uma História de Mim Mesmo”]2, tonalidade biográfica que ele confere às suas palavras desde as primeiras linhas do livro: “A maioria dos livros omite o eu ou a primeira pessoa; aqui ele será mantido [...]. Geralmente não lembramos que, afinal, é sempre a primeira pessoa que está falando”3. A finalidade de sua literatura é existencial, e seu horizonte é a expressão de sua própria vida heroica. “Não é o poeta impelido a escrever sua própria biografia?”, pergunta-se ele em seu diário de 1857. “Não queremos saber como seu herói imaginário, mas como ele, o herói real, viveu no dia a dia”4. A “verdade poética superior” da mitologia, como expressa em A Week, é incorporada, em Walden, na própria concretude da vida, trazendo à baila um manifesto literário de que a realidade mítica, por intermédio dos símbolos da Natureza, permanece jorrando no tempo presente, impulsionando a apreciação deste mundo. Afinal, tais quais os personagens dessas narrativas, também nós vivenciamos nossas próprias jornadas, suas glórias e seus percalços, e somos convidados a conversar com os simbolismos da vida. As leis que operavam sobre a ordem natural de Concord eram as mesmas que pairavam sobre os heróis de antigamente e, por isso, também Thoreau, através de seu experimento às margens do Lago Walden, buscava, como 1 THOREAU, 2019, p. 133. 2 CRAMER, Jeffrey S. Introduction: Thoreau and the Periodic Press. In: THOREAU, Henry David. Essays: A Fully Annotated Edition. Editado por Jeffrey S. Cramer. New Haven/London: Yale University Press, 2013, p. xi-xlix, à página xlviii. 3 THOREAU, 2019, p. 17, grifo do autor. 4 CRAMER, 2013, p. xlviii. No original: “Is not the poet bound to write his own biography? We do not wish to know how his imaginary hero, but how he, the actual hero, lived from day to day”. 158 Odisseu, retornar à sua Ítaca. “Fico feliz em lembrar esta noite, enquanto estou sentado à minha porta”, medita o poeta em seus primeiros dias na mata, “que também sou pelo menos um descendente remoto daquela raça heroica de homens de quem há tradição. Também estou aqui sentado à margem da minha Ítaca, companheiro de viagem e sobrevivente de Ulisses”5. Sua assimilação de um sentido mítico e simbólico do mundo é manifesta em termos poéticos e, como avisa o autor de Walden, por vezes obscuros — “segredos” do ofício poético-profético que só podem ser compreendidos por aquele que também trilhar seu próprio caminho de viver plenamente o tempo presente. A qualquer tempo, a qualquer hora do dia ou da noite, eu ansiava em penetrar na cunha do tempo e também cunhá-lo em meu bordão; colocar-me no cruzamento de duas eternidades, o passado e o futuro, que é exatamente o momento presente: pôr-me ali pleno e pronto. Vocês hão de perdoar algumas obscuridades, pois há mais segredos em meu ofício do que no da maioria dos homens, não porque eu os guarde voluntariamente, mas porque são indissociáveis de sua própria natureza6. A partir de seu panorama heroico, a obra-prima do escritor norte-americano nos apresenta uma épica da vida moderna, sua própria nota nas escrituras que a Natureza não cessa de proclamar. Nos termos de Feldman e Richardson, Thoreau buscou na mitologia, uma importante temática das discussões que aclimataram a América da época, “a força vital para uma nova literatura heroica”7. Incorporando em sua própria circunstancialidade espaço- temporal o horizonte mítico do herói, Walden emerge, assim, como a recomendação de uma vida de heroísmo a ser experienciada no espaço-tempo vigente. Sua narrativa gira em torno da figura de um viajante que, ao invés de desbravar novos horizontes em busca de riquezas materiais, como os exploradores e colonizadores, aventura-se em sua própria terra natal8, enxergando nas formas mais rústicas da Natureza seu próprio “oeste”, o ambiente mais propício para navegar em si mesmo no percalço de riquezas espirituais, e assim se tornar “o Colombo de novos continentes e mundos inteiros dentro de si mesmo, abrindo novos canais, não de comércio, mas de pensamento”; afinal, “existem oceanos e continentes ainda inexplorados no mundo moral”9. Como apontou Stanley Cavell em seu estudo sobre os propósitos escriturísticos 5 Writings, VII, p. 363. 7 de julho de 1845. No original: “I am glad to remember to-night, as I sit by my door, that I too am at least a remote descendant of that heroic race of men of whom there is tradition. I too sit here on the shore of my Ithaca, a fellow-wanderer and survivor of Ulysses”. 6 THOREAU, 2019, p. 29. 7 FELDMAN; RICHARDSON, op. cit., p. 513. No original: “the vital force for a new heroic literature”. 8 DRAKE, William. Walden. In: PAUL, Sherman. (ed.). Thoreau: a collection of critical essays. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1962, p. 71-91, à página 71. 9 THOREAU, 2019, p. 303. 159 de Thoreau e seu emprego profético da autoridade da linguagem, “o herói deste livro é o seu escritor”, um autor que “está escrevendo um texto sagrado”, o que significa, do ponto de vista religioso, que “suas palavras são reveladas, recebidas, e não meramente abstrações”10. Ao longo da odisseia thoreauviana, a presença teofânica do sagrado a todo tempo se impõe, descortinando a amplitude dos “artigos secretos em nossos tratados com os deuses”, como havia sido formulado em A Week. A partir de seu prisma poético-profético, o autor compõe uma mensagem soteriológica, que delineia sua proposta de convalescência para o que entende ser o estado doentio de esquecimento do valor sagrado do mundo. Nesse horizonte, o heroísmo condiz com a recognição de que a cada novo instante, através dos mais simples fenômenos da Natureza, é anunciada a possibilidade de renascimento para nossa pertença ao vigor sagrado deste mundo. É também nesse sentido que Thoreau diz ser um adorador não das práticas medicinais da civilização, representadas pela deusa grega Higéia, filha de Esculápio, mas um devoto da medicina originária da Natureza, cujos ciclos não cessam de entoar o retorno da primavera, simbolizada mitologicamente em Hebe11, “a escansã de Júpiter, filha de Juno e da alface-silvestre, e que tinha o poder de devolver aos deuses e aos homens o vigor da juventude [...], e por onde ela ia, era primavera”12. Em 4 de julho de 1845, dia de comemoração da libertação dos Estados Unidos da Inglaterra, Thoreau se encaminhou para os arredores do Lago Walden, em Concord, que era então propriedade de Emerson, para buscar os fundamentos de sua relação com a terra, em uma tentativa individual de sondar as necessidades primárias do viver. Thoreau esteve nesse lago quando era ainda uma criança pequena, e sua lembrança da ocasião ficou marcada como uma de suas memórias mais remotas (em suas palavras, “uma das cenas mais antigas estampadas nas tábuas de minha memória, o vale oriental asiático do meu mundo”13). Das margens de 10 CAVELL, Stanley. The Senses of Walden. Chicago: The University of Chicago Press, 1992, p. 5 e 14- 15. No original: “the hero of this book is its writer”; “is writing a sacred text”; “its words are revealed, received, and not merely mused”. 11 Esculápio, para os latinos, e Asclépio, para os gregos, é filho de Apolo, e o herói/deus da medicina; um herdeiro dos conhecimentos do centauro Quíron a respeito da arte médica da cura. Higéia, personificação da saúde, aparece como uma de suas filhas. Hebe, por sua vez, é filha de Zeus e de Hera, e incorpora a juventude, sendo também a responsável por servir o néctar aos deuses (GRIMAL, op. cit., p. 49, 228 e 193). 12 THOREAU, 2019, p. 138. 13 Cf. Writings, VII, p. 380-381. Agosto de 1845: “Twenty-three years since, when I was five years old, I was brought from Boston to this pond, away in the country, — which was then but another name for the extended world for me, — one of the most ancient scenes stamped on the tablets of my memory, the oriental Asiatic valley of my world [...]. That sweet solitude my spirit seemed so early to require that I might have room to entertain my thronging guests, and that speaking silence that my ears might distinguish the significant sounds. Somehow or other it at once gave the preference to this recess among 160 Walden Thoreau foi hóspede por dois anos, dois meses e dois dias. Lá ele se propôs a dormir em uma pequena casa construída por suas próprias mãos, que concentrava todas as atrações em um único cômodo; uma vivenda que não tinha quintal ou jardins, mas onde habitava “a própria Natureza sem cercas, chegando até a soleira”14. Sua morada, escreveu o poeta William Ellery Channing, “não tinha fechadura na porta, nem cortina na janela, e pertencia à natureza quase tanto quanto ao homem”15. “Simplicidade! Simplicidade! Simplicidade!” era o princípio de sua doutrina sapiencial16. “A simplicidade”, afinal, medita ele dois anos antes da publicação de Walden, “é a lei da natureza tanto para os homens quanto para as flores”17. Nos campos das cercanias Thoreau plantou batata, milho, ervilha, nabo e, principalmente, feijão. Apesar de jantar frequentemente na cidade, ele, que era um admirador da tradição sapiencial hindu, viveu ali basicamente de arroz, e aproveitou a ocasião para fazer pão sovado ao modo da antiga receita romana transmitida por Catão18. Em Walden vemos o autor proclamar sua defesa à abstenção de carne animal (uma postura que, a seu ver, faz parte do processo evolutivo da humanidade)19, embora ele próprio figure como um pescador em algumas cenas do livro. No que diz respeito aos seus meios para ganhar o dinheiro necessário para viver, como o deus Apolo cuidando dos rebanhos de Admeto (uma imagem mitológica favorita)20, Thoreau, que dedicava sua vida à poesia e à sabedoria (domínios apolíneos), acabou adentrando as vias comerciais para servir interesses estatais tais quais aqueles representados the pines, where almost sunshine and shadow were the only inhabitants that varied the scene, over that tumultuous and varied city, as if it had found its proper nursery”. 14 ibid., p. 232, 17 e 128. 15 CHANNING, op. cit., p. 4. No original: “had no lock on the door, no curtain to the windows, and belonged to nature nearly as much to man”. 16 THOREAU, 2019, p. 96. 17 Writings, IX, p. 324. 29 de fevereiro de 1852. No original: “Simplicity is the law of nature for men as well as for flowers”. 18 THOREAU, 2019, p. 62, 68 e 70. 19 A abstenção de alimentos de origem animal é defendida, principalmente, em termos de praticidade; sua principal objeção, como disse ele, “era a impureza” envolvida no ato de caçar e cozinhar a carne. Ainda assim, sua posição também carrega uma face poética: “Acredito que todo homem que algum dia se empenhou seriamente em preservar ao máximo suas faculdades poéticas ou mais elevadas teve uma especial propensão em se abster de alimentos de origem animal, e de grandes quantidades de qualquer alimento”. “Qualquer que seja minha prática pessoal”, continua ele, “não tenho dúvida de que faz parte do destino da espécie humana, em seu gradual aperfeiçoamento, deixar de comer animais [...]” (ibid., p. 207-208). 20 Em seu diário de 1845, ele assim se refere à imagem mitológica presente na tragédia Alceste, de Eurípedes: “The wisdom of some of those Greek fables is remarkable. The god Apollo (Wisdom, Wit, Poetry) condemned to serve, keep the sheep of King Admetus. So is poetry allied to the state” (Writings, VII, p. 391, grifo do autor). 161 pelo rei da Tessália, e chegou a colher frutos como os mirtilos para vender, mas concluiu, no fim das contas, que a ocupação de diarista rural era a que mais lhe convinha21. Ainda que o autor diga que a data de sua mudança foi fortuita22, a frase mais famosa do livro, que hoje recebe os visitantes da casa reconstruída de Thoreau23, sugere o emprego desse símbolo como um anúncio de seu próprio anseio por libertação da alienação da vida, por consultar livremente com sua interioridade e com o oráculo da Natureza24. A continuação deste excerto muito citado, presente no segundo capítulo do livro, “Where I Lived, and What I Lived For” [“Onde e Para Que Vivi”], confirma o teor religioso de seus propósitos deliberativos. Ao descrever a finalidade de sua experiência existencial, ele indica que a construção de uma morada nas proximidades do lago estava diretamente relacionada à perspectiva de uma (re)aproximação orgânica de si mesmo e do princípio sagrado que rege o viver: Fui para a mata porque queria viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida e ver se não poderia aprender o que ela tinha a ensinar, em vez de, vindo a morrer, descobrir que não tinha vivido. Não queria viver o que não era vida, tão caro é viver; e tampouco queria praticar a resignação, a menos que fosse absolutamente necessário. Queria viver profundamente e sugar a vida até a medula, viver com tanto vigor e de forma tão espartana que eliminasse tudo o que não fosse vida, recortar-lhe um largo talho e passar-lhe rente um alfanje, acuá-la num canto e reduzi-la a seus termos mais simples e, se ela se revelasse mesquinha, ora, aí então eu pegaria sua total e genuína mesquinharia e divulgaria ao mundo essa mesquinharia; ou, se fosse sublime, iria saber por experiência própria, e poderia apresentar um relato fiel em minha próxima excursão. Pois muitos homens, ao que me parece, vivem numa estranha incerteza a respeito da vida, se é obra de demônio ou de Deus, e têm concluído de forma um tanto apressada que a principal finalidade do homem na terra é “glorificar Deus e gozá-Lo para sempre”25. A contraposição que aparece nesse trecho entre a vida deliberada e a conclusão um tanto apressada de que o fim da vida é glorificar a Deus é crucial. O leitor de Walden descobre, ao longo do livro, que seu autor é um autor religioso, e que ele tem em vista uma proposta de religar, uma orientação que diverge da proposta religiosa preponderante, e que ele busca 21 THOREAU, 2019, p. 76. 22 ibid., p. 90. Sua mudança, “por acaso, ocorreu no dia da Independência, em 4 de julho de 1845”. 23 O “The Walden Woods Project”, que conta com diversos curadores, é responsável pela manutenção do espaço natural onde viveu Thoreau, bem como pelo fomento de diversos projetos voltados à preservação do legado do autor. O site da organização (https://www.walden.org/) disponibiliza, em formato virtual e de forma gratuita, as obras completas do nativo de Concord, assim como outras informações sobre sua vida e sua produção intelectual. 24 O termo latino dēlīberō denota o pensar cuidadoso, o pesar os prós e os contras de alguma situação. Em sua origem, pode também significar a consulta a um oráculo e a tomada de determinada decisão (GLARE, op. cit., p. 558). 25 THOREAU, 2019, p. 95-96, grifos do autor. 162 experienciar por si próprio para então a narrar aos demais. Como bem disse Walter Harding em seu prefácio à obra, “para Thoreau e para o leitor perspicaz, Walden é um documento religioso tanto quanto qualquer escritura”; trata-se de um texto sagrado que “não está preocupado com disputas teológicas”, certamente, mas “com valores espirituais”26. O que está então em jogo, para Thoreau, é a aproximação livre, deliberada, com o fundamento divino da vida, uma relação que não se pauta naquilo que outras pessoas e instituições concluíram sobre Deus, mas sim naquilo que o autor que ora se apresenta busca apreender e transcrever da manifestação do divino: o “eu” que fala em primeira pessoa. Como vemos nessa aclamada passagem, essa jornada é percorrida no aprofundamento das questões mais essenciais da existência humana, um aperfeiçoamento espiritual viabilizado pela adoção de uma postura de simplicidade, de (re)educação dos sentidos, como desenvolveremos nas considerações que se seguem. Ao buscar devolver à vida seus termos mais simples, Thoreau tinha em vista o encontro das questões primordiais do viver, tais quais estampadas nas paisagens e fenômenos pelos poderes divinos. “Quero encontrar os fatos da vida — os fatos vitais, que são os fenômenos ou a realidade que os deuses pretendiam nos mostrar — face a face, e por isso vim para cá”27, escreveu ele em seu terceiro dia junto ao lago. Como declarou um comentador anônimo na revista Salem Observer em 1849, na realização de palestras sobre sua vida rústica junto ao lago de Concord, Thoreau tinha por propósito “a elucidação da visão poética da vida — mostrando como a vida pode ser tornada poética, a imaginação perceptiva revestindo todas as coisas com formas divinas e coletando delas uma linguagem divina”28. O objetivo do autor com a formulação textual de sua experiência, como disse ele próprio, era a transmissão das mensagens aventadas pelas linguagens da Natureza, um alimento sagrado e miraculoso que, como o maná, tal como sugere o mito hebraico, dispõe-se para nós diariamente como se dispôs outrora aos israelitas no deserto (Ex. 16:31), não podendo ser armazenado para o dia seguinte, pois seu destino é fornecer sustento para o momento presente. “Quantos dias de outono e, ai!, de inverno passei fora da cidade, tentando ouvir o que trazia o vento, ouvir e transmitir com urgência!”, escreve ele na primeira seção. “Outras vezes ficando de prontidão no observatório de alguma 26 THOREAU, Henry David. Walden: An Annotated Edition. Prefácio e notas de Walter Harding. Boston/New York: Houghton Mifflin Company, 1995, p. ix. No original: “to Thoreau and to the perceptive reader, Walden is as much a religious document as any scripture”; “It is not concerned with theological disputation”; “with spiritual values”. 27 Writings, VII, p. 362. 6 de julho de 1845. No original: “I wish to meet the facts of life — the vital facts, which are the phenomena or actuality the gods meant to show us — face to face, and so I came down here”. 28 SPAHR, op. cit., p. 258. No original: “the elucidation of the poetical view of life — showing how life may be made poetical, the apprehensive imagination clothing all things with divine forms, and gathering from them a divine language”. 163 rocha ou árvore, para telegrafar qualquer nova chegada”, continua o autor, “embora nunca tenha pegado muito, que, como maná, iria se dissolver de novo ao sol”29. É necessário que se diga que Walden não é uma glorificação do hermetismo, como sugere ironicamente o autor no sexto capítulo do livro, “Visitors” [“Visitas”]: “Não sou ermitão por natureza, e poderia muito bem me converter no mais convicto frequentador de bares, se meus assuntos me chamassem a isso”30. O objetivo de Thoreau não é declarar seu abandono da sociedade, mas, ao contrário, a ela se dirigir de forma crítica pela mediação de seu discurso de libertação pessoal. Nesse sentido, como sugeriu Sherman Paul, podemos considerar Walden como “um evangelho social”31, a proclamação de uma mensagem que, apesar de afirmar a posição individual do narrador, agrega toda a comunidade. O afastamento temporário de Thoreau de sua moradia na cidade, longe de ser um ato antissocial ou apolítico, tem como pano de fundo a recuperação de nossa postura crítica perante a vida e a sociedade. Assim, em sua literatura, vemos o autor reduzir determinadas práticas civilizacionais aos termos mais simples, no sentido de fornecer uma possível resposta à alienação humana que ele enxergava nos tempos modernos32. O intuito de Thoreau, portanto, é fazer reverberar seu próprio projeto de humanização, tanto no sentido corriqueiro do termo quanto no sentido de retorno à saúde e à simplicidade da terra, ao húmus, nossa pertença mais radicular: “A indescritível inocência e beneficência da Natureza — do sol, vento e chuva, do verão e do inverno —, quanta saúde, quanta disposição eles sempre proporcionam! [...]. E como eu não me entenderia com a terra? Não sou também folha e húmus?”33. Assim, relembrando os versos do poeta galês Thomas Evans (1840–1865)34, em contraste com o enquadramento da civilização moderna, Thoreau ambienta sua narrativa em um cenário pastoril; uma fronteira entre as formas civilizacionais e as matas silvanas; um ambiente que, tal qual seu campo de feijão, era “semicultivado”, “o elo de ligação entre os campos selvagens e os campos cultivados”35. 29 THOREAU, 2019, p. 30. 30 ibid., p. 139. 31 PAUL, Sherman. A Fable of the Renewal of Life. In: PAUL, Sherman. (ed.). Thoreau: a collection of critical essays. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1962, p. 100-116, à página 103. No original: “a social gospel”. 32 MARIOTTI, Shannon L. Thoreau’s Democratic Withdrawal: Alienation, Participation, and Modernity. Madison: The University of Wisconsin Press, 2010, p. 102-103. 33 THOREAU, 2019, p. 137. 34 Os versos pastoris citados no segundo capítulo (que, a propósito, nos remetem à teoria da correspondência simbólica entre Natureza e espírito, o mundo material e o universo espiritual) são do poema “The Shepherd’s Love For Philliday”, componente das Old Ballads (1777): “Existia um pastor com uma vida / E pensamentos tão altos / Como os montes onde, apascentando, / Seus rebanhos o apascentavam” (ibid., p. 93). O pastoreio torna-se, assim, um símbolo para o cultivo espiritual. 35 ibid., p. 155. 164 A partir desse horizonte, o retrato escriturístico do experimento de Thoreau apresenta seus juízos sobre os comportamentos que ele entende representar as mesquinharias de seu tempo, bem como sua contraposição a elas, que é sempre acompanhada de uma proposta de renovação heroica bradada pela própria Natureza e seus simbolismos. Na epígrafe de seu texto, ele toma para si o símbolo do galo (que, como vimos ao início do capítulo, também aparece no ensaio Walking), representação do anúncio de um novo amanhecer para o sentido superior deste mundo. Marcando simultaneamente sua herança e seu distanciamento dos poetas românticos ingleses, Thoreau apresenta a mensagem de sua narrativa poético-profética na condição de um canto vigoroso consagrado a uma possibilidade renovada de despertar, a um novo amanhecer de nossas concepções: “Não pretendo escrever uma ode à melancolia, e sim trombetear vigorosamente como um galo ao amanhecer, no alto de seu poleiro, quando menos para despertar meus vizinhos”36. Ilustrando seu ofício poético-profético com o simbolismo do galo, Thoreau se mantém longe do louvor à melancolia37, que é para ele uma expressão do sombreamento da valoração sagrada do mundo e de nossa inserção em suas dinâmicas. Associando-se simbolicamente com a luminosidade da aurora e seu anunciador, Thoreau canta o vigor primitivo do mundo. O galo que anuncia um novo dia é uma indicação de que a possibilidade de renascer está anunciada, como um “alarme”, na Natureza, dispondo-se reiteradamente ao alcance do ser humano38. O galo, diz ele em “Sounds” [“Sons”]39, emite a música “mais admirável de todas”; seu bravo canto desperta os indivíduos e a sociedade para a vida virtuosa, para sua elevação espiritual: “ouvir o canto dos galos silvestres nas árvores, claro e penetrante num raio de quilômetros pela terra ressoante, [...] pensem só! Poria nações inteiras em alerta. Quem não levantaria cedo [...] até se tornar indizivelmente sábio, rico e saudável?”40. A virtude da sabedoria, da verdadeira riqueza e da sanidade dos sentidos é o destino ambicionado nos exercícios religiosos e simbólicos de Walden, objeto de nossas considerações no decorrer desta seção. Devemos notar, de antemão, que, uma vez constituída enquanto uma narrativa simbólica em sua totalidade, diversos são os símbolos da obra-prima do pensador de Massachusetts, assim 36 ibid., p. 15. 37 Percebemos, por conseguinte, que, ao mesmo tempo em que Thoreau é profundamente influenciado pelos poetas ingleses, ele se distancia destes no que diz respeito à sua ênfase na melancolia, tal qual expressa por Coleridge em sua Dejection: An Ode (1802) e por Keats em sua Ode on Melancholy (1820). 38 SHULMAN, George. Thoreau, Prophecy, and Politics. In: TURNER, Jack. (ed.). A Political Companion to Henry David Thoreau. Kentucky: The University Press of Kentucky, 2009, p. 124-150, à página 138. 39 Refletiremos sobre esse capítulo em nossa discussão posterior acerca da relação entre o poeta e a música da Natureza em “Hieróglifos musicais: a orquestra da Natureza”. 40 THOREAU, 2019, p. 128. 165 como diferentes são as possibilidades interpretativas por eles fornecidas. Tendo isso em vista, concentraremos nossa reflexão em apenas algumas das narrativas simbólicas em que julgamos ser possível encontrar a expressão do propósito poético-profético do autor: o prognóstico da doença do desencantamento da Natureza e do esquecimento generalizado da interdependência entre todas as coisas. Nesse panorama, como temos salientado ao longo de nossa argumentação, a doutrina transcendentalista da correspondência simbólica entre Natureza e espírito é nuclear. Nos termos de Mckusick, Thoreau, em sua narrativa sobre o Lago Walden, “deve muito ao conceito de símbolo de Coleridge”. “Thoreau concordaria com Coleridge que um símbolo ‘sempre participa da realidade que o torna inteligível’”; no entanto, “ele discordaria da afirmação subsequente de Coleridge de que um ‘símbolo material’ serve para representar ‘o brilho puro e imperturbável de uma IDEIA’”. Isso porque, na ótica thoreauviana, “os atributos simbólicos do Lago Walden não surgem de sua participação em uma Ideia transcendental, mas são inerentes à sua própria existência como objeto material”, o que, segundo Mckusick, “exemplifica a tendência inelutável da cultura americana moderna para o secular, o material e o pragmático”41. Em nossa compreensão, isso é assim porque o intuito de Thoreau é, de fato, um intuito prático: os símbolos transformam, concretamente, a existência de seus leitores. Apesar disso, entendemos ser inegável a transcendentalidade de seu ponto de vista. A resposta pessoal de Thoreau ao adoecimento que ele detecta na modernidade é traduzida em vários símbolos que conectam o espiritual e o natural, a transcendência e a imanência. Dentre aqueles que aparecem logo nos parágrafos iniciais do livro, destacamos aqui dois: a mobelha e o cipreste, representativos do caminho soteriológico da literatura thoreauviana. Neles estão manifestos a reconexão entre o natural e o espiritual, o exterior e o interior, a terra e o céu, o religamento intencionado em seu projeto de (re)educação dos sentidos e (re)encontro de seu propósito superior: a descoberta da presença do divino neste mundo e em nós mesmos. Se o canto do galo traz o teor do anúncio — um novo amanhecer e despertar para este mundo —, a mobelha e o cipreste ilustram as sendas religiosas pelas quais essa cosmovisão é exercitada. A mobelha, diz Thoreau, ia ao lago durante o outono para trocar suas penas e banhar- 41 MCKUSICK, op. cit., p. 225, grifo do autor. No original: “owes a great deal to Coleridge’s concept of the symbol”; “Thoreau would agree with Coleridge that a symbol ‘always partakes of the reality which it renders intelligible’”; “he would disagree with Coleridge’s subsequent assertion that a ‘material symbol’ serves to represent ‘the pure untroubled brightness of an IDEA’”; “the symbolic attributes of Walden Pond do not arise from its participation in a transcendental Idea, but are inherent in its very existence as a material object”; “exemplifies the ineluctable tendency of modern American culture towards the secular, the material and the pragmatic”. 166 se em suas águas, fazendo a mata bramir sua “risada selvagem”, um símbolo da possibilidade de renascimento para esta vida a partir de um esforço da interioridade: “Nossa estação de muda, como a das aves, deve ser um momento de crise em nossa vida. A mobelha, durante a muda, se retira para um lago solitário. Assim também a cobra solta sua casca e a lagarta seu casulo por expansão e trabalho interno”42. O cipreste, por sua vez, símbolo que fecha o primeiro capítulo, é concebido a partir das palavras do poeta persa Saʿdī em sua obra Gulistān, para quem, por ser essa árvore sempre florescente e não prover frutos, representa a independência dos religiosos livres (azads), que vão além dos frutos sazonais e, como o cipreste, sempre florescem43. Incorporando o modo de ser da mobelha e seu símbolo de restauração, bem como o modo de ser do cipreste e seu símbolo de eternidade, o escritor busca seguir não as circunstancialidades da vida humana, os frutos de sua época, mas o fruto sempre renovado que colhem os sábios em todos os tempos. Ele se apresenta, assim, como um personagem excêntrico e “extra-vagante” em suas concepções sobre o mundo e nossa posição em suas solenidades44. O primeiro e mais extenso capítulo do livro, “Economy” [“Economia”], dedica-se a traçar a contraposição que anuncia a epígrafe entre o caminho de gestão da morada escolhido pelo autor e o modo de vida de seus contemporâneos. Como já dissemos, a voz poético-profética que o autor assume, paralelamente à sua reprovação da ênfase na metafísica celeste, modula uma crítica à sociedade industrial. Thoreau vivenciou justamente o tempo da modernização de Massachusetts e dos Estados Unidos de forma geral, e, como comenta Shannon Mariotti, se expressou criticamente a respeito da instrumentalização da Natureza, da crescente preocupação com o comércio e a proliferação dos “homens de negócios”, e sobre a adoção de regras de etiqueta e superficialidades similares no convívio social. A cidade de Concord acompanhava o crescimento populacional generalizado do país, e entre as décadas de 1840 e 1850 (durante o período, portanto, no qual Thoreau realizou seu experimento às margens do Lago Walden), a população cresceu significativamente, passando de 1784 para 2240 habitantes. Nessa época, a agricultura de subsistência familiar estava sendo substituída pela produção de excedentes destinados ao abastecimento dos mercados próximos à cidade de Boston, processo no qual as ferrovias cumpriram um importante papel. No decorrer do intervalo entre 1790 e 1860, todavia, 42 THOREAU, 2019, p. 35. 43 ibid., p. 84. 44 A “extra-vagância” tem o mesmo sentido que a ideia do caminhar em Walking: o perspectivismo como postura fundamental para o desenvolvimento do pensamento. Em Walden, ele diz: “O que mais temo é que minha expressão não seja extra-vagante o suficiente, que não possa vaguear muito além dos limites estreitos de minha experiência diária para se adequar à verdade da qual estou convencido. Extra vagância!” (ibid., p. 206, grifos do autor). 167 a produção doméstica de bens de consumo foi dando espaço para a produção fabril em larga escala, e, por consequência, ampliaram-se as possibilidades de consumo e a disposição de maiores luxos aos cidadãos. O alcance desses refinamentos materiais na cidade de Concord é ilustrado por Mariotti a partir dos anúncios presentes em um exemplar do jornal local Concord Freeman de 4 de julho de 1844, publicado exatamente um ano antes da mudança de Thoreau para as matas de Walden. Nele, os anúncios das lojas de roupas “Rich Fancy Goods” e “Fancy Goods” ocupam um espaço considerável, propagandas marcadas pela ênfase na derivação dos modelos de seus trajes dos padrões das modas inglesa e francesa45. Sobre o luxo nos modos de vestir, Thoreau tinha muito o que dizer. “É mais fácil irem à cidade mancando com uma perna quebrada do que com uma calça rasgada”, escreve ele. Sua sátira perante a preocupação com as vestimentas é incisiva: “Vistam um espantalho com uma roupa mais nova, e fiquem ao lado dele com uma roupa velha: quem não vai cumprimentar primeiro o espantalho?”46. Comparando a antiga devoção dos gregos às deusas provedoras da beleza e às fiandeiras do destino com o culto secular à moda e seus ditames, ele traça sua crítica àquilo que entende ser uma expressão do declínio de nossos sistemas simbólicos: “Cultuamos não as Graças, não as Parcas, mas a Moda. Ela fia, tece e corta com toda a autoridade”47. Tendo em vista a crescente ênfase nos luxos materiais e a consequente coisificação da vida e dos costumes, Thoreau observa que a maioria das pessoas vive “uma vida de calado desespero”, empregando todo seu tempo e seu ser em “falsas preocupações”. Não tendo “tempo de ser nada além de uma máquina”, os indivíduos se esquecem de cultivar os “frutos mais delicados” da vida48. “Nossas invenções costumam ser brinquedos bonitinhos, que distraem nossa atenção das coisas sérias”, censura ele. Tudo indica que se, por um lado, as formas de nos comunicarmos foram ampliadas ao longo do avanço civilizacional de domesticação da Natureza, o conteúdo de nossas comunicações, por outro lado, não passou por um processo de lapidação: “Estamos na maior pressa para construir um telégrafo magnético do Maine ao Texas; mas o Maine e o Texas possivelmente não têm nada de importante para comunicar”49. “Os 45 MARIOTTI, op. cit., p. 87-89. 46 THOREAU, 2019, p. 34. 47 ibid., p. 37. Graças, para os romanos, e Cárites, para os gregos, são as divindades femininas responsáveis por espalhar beleza e alegria na vida dos deuses, dos humanos, e nas dinâmicas da Natureza; são partícipes da ala divina regida pelo encantamento de Apolo. “Atribui-se às Graças”, comenta Grimal (op. cit., p. 75), “toda a espécie de influências nos trabalhos do espírito e nas obras de arte”. Já as Parcas/Moiras são as fiandeiras do destino: Átropo, Cloto e Láquesis. Inicialmente, em uma representação impessoal, a Moira/Mera simboliza a inflexibilidade do destino, “uma lei que os próprios deuses não podem transgredir sem pôr em perigo a ordem do mundo” (ibid., p. 306). 48 THOREAU, 2019, p. 21 e 20. 49 ibid., p. 61. 168 homens pensam que é essencial que a Nação tenha comércio, exporte gelo, fale por telégrafo, ande a 50 quilômetros por hora, sem qualquer hesitação [...], já se devemos viver como símios ou como homens, é uma questão um pouco mais incerta”50. Os ganhos mais sutis da vida, como os compreende Thoreau, são aqueles provenientes da vida vivida em simplicidade. Ao passo em que o saber maquinizado do ser humano sobre a Natureza se amplia, carece lugar para o reconhecimento de nossa ignorância acerca da miríade de liames que se entrelaçam no universo no qual nosso ser se insere. A opinião do autor é que antes de pensarmos que já sabemos muito sobre as operações naturais e o modo com o qual devemos nos agregar na paisagem, é preciso, em primeiro lugar, abrir espaço para a ignorância, o primeiro passo para a sabedoria. Para exprimir essa ideia, ele cita as palavras do sábio chinês Confúcio (551–479 a.e.c.) em seus Analectos (2.17): “Toda mudança é um milagre a contemplar; mas esse milagre está ocorrendo a cada instante. Confúcio disse: ‘Saber que sabemos o que sabemos, e que não sabemos o que não sabemos, esta é a verdadeira sabedoria’”51. Paralelamente, enquanto a variedade dos luxos cresce, mais proeminente torna- se a ausência geral de cultivo da simplicidade das formas, a responsável pelo transparecer da riqueza de conteúdo — a qual, em seu entender, “é proporcional ao número de coisas que [a pessoa] pode deixar em paz”52. Também embebido por um ar socrático, de forma similar a Antístenes, um dos expoentes da escola cínica na antiga Grécia, Thoreau recomendava viver de acordo não com as leis da cidade e seus luxos materiais, que são contingentes, mas em harmonia com as leis da virtude, conforme exteriorizadas na Natureza, que não perecem jamais53. A experiência thoreauviana é movida pelo primado da sapiência e do bem viver, e, nesse sentido, é expressa enquanto uma atitude filosófica. Com “filosofia”, o autor não quer remeter à construção de sistemas conceituais, senão à incorporação de uma busca dinâmica pelos princípios da vida, uma atitude existencial que se fundamenta em uma postura ética de 50 ibid., p. 97, grifo do autor. 51 ibid., p. 24-25. 52 ibid., p. 88. 53 Segundo Diógenes Laércio (6.11), Antístenes, que havia sido um discípulo de Sócrates, pensava que “the wise man is self-sufficient” e que “the wise man will conduct himself in public life not by the established laws, but by the law of virtue” (LAERTIUS, Diogenes. Lives of the Eminent Philosophers. Traduzido por Pamela Mensch e editado por James Miller. Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 264). Thoreau também poderia ser aproximado de Diógenes de Sínope, assim como dos cínicos em geral, filósofos que, conforme Abbagnano, em uma posição crítica perante à pólis, acreditavam que a virtude estava relacionada à simplicidade e ao retorno à Natureza, “de modo que foi característica dos cínicos o desprezo pela comodidade, pelas riquezas, pelos prazeres, bem como o mais radical desprezo pelas convenções humanas e, em geral, por tudo o que afasta o homem da simplicidade natural de que os animais dão exemplo” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Edição revista e ampliada. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 141-142). Sobre a relação de Thoreau com a filosofia cínica, cf. ANDERSON, op. cit. 169 simplicidade. Em contraposição à luxuosidade da sociedade, que oblitera a percepção daquilo que é verdadeiramente belo e valoroso (afinal, “o gosto pelo belo se cultiva melhor ao ar livre”54), a simplicidade simboliza a riqueza interior, um polimento espiritual atrelado ao retorno para os termos mais simples da vida, uma educação da sensibilidade remetida aos antigos filósofos chineses, hindus, persas e gregos: Não só a maioria dos luxos e muitos dos ditos confortos da vida não são indispensáveis, como são francos obstáculos à elevação da humanidade. [...]. Os filósofos antigos, chineses, hindus, persas e gregos, formavam uma classe jamais igualada em sua ausência de riquezas exteriores e abundância de riquezas interiores. Não sabemos muito sobre eles. Aliás, surpreende que nós saibamos tanto sobre eles. O mesmo vale para os reformadores e benfeitores mais modernos de suas raças. [...]. Atualmente existem professores de filosofia, mas não filósofos. Mesmo assim é admirável professar, pois um dia foi admirável viver. Ser filósofo não é simplesmente ter pensamentos sutis, nem mesmo fundar uma escola, mas amar a sabedoria a ponto de viver de acordo com seus ditames, uma vida de simplicidade, independência, generosidade e confiança. É resolver alguns problemas da vida, não apenas teoricamente, e sim na prática55. A simplicidade esposada por Thoreau (cuja aura religiosa é salientada quando identificada com a “castidade”56) é uma prática espiritual, um exercício religioso de releitura da Natureza e de religamento com a organicidade de suas dinâmicas, uma concepção que já estava presente em sua representação de bardos como Homero e Ossian, como já vimos. Os entrelaçamentos naturais, como haviam indicado os gregos com a ideia de cosmos, transparecem beleza, harmonia e verdade, e, assim como ordenam todas as coisas, regem também a vida humana. “Pela simplicidade”, escreveu ele em 1857, “minha vida, que era antes inorgânica e inerte, se concentra e assim se torna organizada, ou um κόσμος [cosmos]”57. No limite, o problema da economia do habitar moderna, como sugere Thoreau ao final do primeiro capítulo de Walden, é o distanciamento do ser humano de suas raízes naturais e divinais. Esse desmembramento é para ele a causa do estado de adoecimento generalizado da sociedade moderna, de desconhecimento dos encadeamentos nas quais se desenvolvem nosso ser — uma 54 THOREAU, 2019, p. 48. 55 ibid., p. 27-28, grifo do autor. 56 A castidade de que fala Thoreau aparece atrelada à sabedoria e à pureza; trata-se da educação dos sentidos, que permite que nos conectemos com aquilo que há de superior na vida humana: “A castidade é o florescimento do homem; e o que se chama Gênio, Heroísmo, Santidade e similares não são senão os vários frutos que se seguem a ela. O homem flui imediatamente para Deus quando o canal da pureza está desobstruído” (ibid., p. 211, grifos acrescentados). 57 PAUL, 1962, p. 104. No original: “By simplicity [...] my life is concentrated and so becomes organized, or a κόσμος, which before was inorganic and lumpish”. 170 enfermidade ontológica em nossa relação para conosco mesmos e para com o princípio vital, doença que se estende de forma devastadora em nossa relação com os demais. A crítica à religião dominante que em A Week aparece nos termos da problemática da “ligadura” é aqui traduzida nos termos da corrupção das vias de nossa comunicação com os princípios espirituais da vida; uma perda da sanidade de nossos sentidos causada por consequência da expulsão do divino do mundo. “Nossas maneiras foram corrompidas pela comunicação com os santos. Nossos hinários ressoam melodiosamente praguejando contra Deus e suportando-o para todo sempre”, insinua ele ironicamente. “Não existem em lugar algum os registros de uma manifestação simples e irreprimível com a dádiva da vida, nenhum memorável louvor a Deus”. “Então, se de fato queremos restaurar a humanidade com meios realmente nativos, botânicos, magnéticos ou naturais”, propõe o autor em seguida, “sejamos primeiro simples e saudáveis como a Natureza, dissipemos as nuvens que nos pesam na fronte, instilemos um pouco de vida em nossos poros”58. Na medida em que diz respeito à nossa compreensão ontológica, a enfermidade moderna, conforme formulada por Thoreau, condiz com um empobrecimento epistemológico que se traduz nas formas linguísticas dominantes e seus simbolismos. O esmaecimento das semânticas do universo natural tem por consequência a perda do poder simbólico da linguagem e sua capacidade de expressar algo significativo a partir das analogias desenhadas nos eventos cósmicos. “É como se a própria linguagem de nossos parlatórios perdesse todo o seu vigor e degenerasse em simples palavrório”, escreve o poeta em “House-Warming” [“Inauguração”], “tão grande é a distância entre nossa vida e os símbolos da linguagem, e tão inevitavelmente forçadas são suas figuras e metáforas, como se fossem trazidas à sala num carrinho de bufê, por assim dizer; em outras palavras, tão grande é a distância entre a sala e a cozinha ou a oficina”59. É também nesse sentido que, em A Week, Thoreau direciona-se criticamente aos eruditos de seu tempo: na medida em que não convivem sensorialmente com a vivacidade das linguagens naturais e seus símbolos, eles não se tornam aptos a expressar, por meio das palavras, o vigor da vida. Assim, a linguagem vivaz dos poetas gregos, por exemplo, acaba sendo mais bem expressa, afinal, por aqueles que ganham a vida no trabalho com a terra, e não pelos estudiosos das “antiguidades” da Grécia: “O lavrador é sempre um grego superior do que aquilo que o erudito está preparado para apreciar [...]”60. 58 THOREAU, 2019, p. 83-84. 59 ibid., p. 234, grifo do autor. 60 Writings, I, p. 360. No original: “The husbandman is always a better Greek than the scholar is prepared to appreciate [...]”. 171 A simplicidade que Thoreau propõe no escrito poético-profético de Walden atenta-se, por conseguinte, à utilização da palavra para fins superiores, ao resgate da vivacidade de seus símbolos através dos intermédios da própria linguagem simbólica da Natureza. Jeffrey Cramer sustenta, nesse sentido, que o propósito do poeta de Walden era transpor em sua obra a mesma qualidade simbólica da linguagem que ele havia encontrado, por exemplo, em The Human Body and its Connexion with Man (1851), de James John Garth Wilkinson (1812–1899), médico homeopata e admirador de Swedenborg, obra que Thoreau havia lido na mesma época em que foi publicada. “O livro de Wilkinson, até certo ponto”, comenta nosso poeta em suas anotações pessoais, “torna real aquilo que sonhei — um retorno ao sentido primitivo analógico e derivativo das palavras. [...]. Toda percepção da verdade é a detecção de uma analogia; raciocinamos em nossas cabeças a partir de nossas mãos”61. Sob esse prisma, podemos dizer que o próprio emprego da linguagem para um uso espiritual (o objetivo, afinal, do poeta- profeta) torna-se, em Walden, um exercício religioso e heroico, que tem nos símbolos naturais e sua relação sensitiva com a dimensão espiritual seu ponto inicial. A doutrina da simplicidade apregoada pelo poeta de Concord ao início de sua escrita devocional apresenta-se, assim, enquanto um possível caminho de retorno para as questões indeléveis da vida, expressivas dos sentidos mais profundos dos episódios nos quais tomamos parte. O sendeiro religioso por ele proposto consiste em uma recordação da pertença originária e eterna do ser humano, esquecida pelas circunstâncias transitórias, e nesse sentido soa similar à filosofia platônica e seu tema da recordação das ideias eternas, assim como à soteriologia do hinduísmo e sua proposta de retorno à realidade toda abrangente de Brahman. Thoreau sugere que o sujeito moderno ainda é, afinal, como aquele príncipe que, conforme narra um conto hindu, por ter sido criado entre bárbaros, desconhecia sua natureza real. Como esse príncipe, também a alma humana, por não enxergar para além da imediatidade, não sabe que é Brahman até que essa identidade lhe seja revelada por intermédio de um mestre. Assim, escreve ele, também “nós, os habitantes da Nova Inglaterra, vivemos a vida mesquinha que vivemos porque nossa visão não atravessa a superfície das coisas”62. Por outro lado, quando sobrevém a percepção de que há algo sublime que é permanente, os modos de conversarmos com a vida se transformam: o mundo mostra-se encantado em sua interconexão de todas as coisas; a vida, um 61 CRAMER, Jeffrey S. Introduction. In: THOREAU, Henry David. Walden: A Fully Annotated Edition. Editado por Jeffrey S. Cramer. New Haven: Yale University Press, 2004, p. xv-xxv, à página xxii. No original: “Wilkinson’s book to some extent realizes what I have dreamed of, — a return to the primitive analogical and derivative sense of the words. [...]. All perception of truth is the detection of an analogy; we reason from our hands to our heads”. 62 THOREAU, 2019, p. 101. 172 enredo épico característico de um romance. O falseamento que é comumente atribuído às narrativas fabulosas passa, então, a ser encontrado nas normas sociais, que se mostram ilusórias na medida em que esmaecem o divino pulsar do mundo e de nós mesmos. Imposturas e ilusões são estimadas como as mais sólidas verdades, ao passo que a realidade é fabulosa. Se os homens observassem constantemente apenas as realidades, e não se deixassem iludir, a vida, comparada às coisas que conhecemos, seria como um conto de fadas ou uma história das Mil e uma noites. Se respeitássemos apenas o que é inevitável e tem o direito de existir, as ruas ressoariam com música e poesia. Quando somos sábios e não temos pressa, percebemos que somente as coisas grandes e valiosas têm alguma existência absoluta e permanente — que os pequenos medos e os pequenos prazeres não passam de sombras da realidade. Esta é sempre revigorante e sublime. Em meu modo de vida, eu tinha pelo menos a vantagem em relação aos que eram obrigados a procurar entretenimento fora de si, no convívio social e no teatro, de que a minha própria vida tinha se tornado um romance palpitante. Era uma novela com muitas cenas e nenhum final63. Por conseguinte, ao expor a relação entre o lugar que escolheu para morar temporariamente e os fins últimos da vida, o pensador de Concord se vale da linguagem poética, que, como vimos a partir de nossas reflexões sobre A Week, é a forma perene de expressão do eterno, da relação entre o particular e o universal. Em sua sede rústica, ele entrevê o processo contínuo da criação cósmica, a possibilidade de presentificação dos deuses sobrevindo naquele espaço-tempo particular. A música das linguagens da Natureza que ressoava em sua morada conectava o céu e a terra, ligando o reino etéreo dos deuses olímpicos aos confins deste mundo. Em seus termos, sua casa era “uma cabana graciosa, não rebocada, própria para hospedar um deus viajante e por onde uma deusa poderia arrastar a cauda de seu vestido”. “Os ventos que sobrepassavam minha morada”, vislumbra Thoreau, “eram daqueles que varriam a crista das montanhas, trazendo trechos de melodias, ou apenas as partes celestiais, de uma música terrestre”. Amplificando esse tom de ligação entre o céu e a terra, o transcendente e o imanente, que também ambienta seu primeiro livro, ele assim prossegue: “O vento matinal sopra sem cessar; o poema da criação é ininterrupto; mas poucos são os ouvidos que os escutam. O Olimpo é apenas a fímbria exterior de toda a terra”64. As matas ao redor do lago eram amplas o suficiente para aguçar as vozes de sua imaginação, pois o devolviam a uma condição originária. Através da imaginação, um 63 ibid., p. 100 e 114. 64 ibid., p. 90-91. 173 instrumento pedagógico auxiliar da experiência epistemológica de retorno à condição originária de ser parte da Natureza, a pessoa pode entender-se partícipe do contínuo processo de criação cósmica, dando-se conta de que, na verdade, essa condição originária desponta no espaço- tempo corrente ininterruptamente. Em meio ao esquecimento da condição humana de mais um filamento, entre outros, do tecido natural, a sugestão de Thoreau, desenvolvida a partir de seu panorama intelectual romântico, é nos educarmos em nossa relação com os sentidos materiais e espirituais tendo como auxiliar o poder imaginativo, as “faculdades poéticas”. Essa jornada descobre que o divino irrompe em todos os tempos e lugares, fecundando a ligação simbólica entre as experiências de outrora e as vivências de agora. “O tempo e o espaço haviam mudado, e eu morava mais perto daqueles lugares do universo e daquelas épocas da história que mais tinham me atraído”, declara o autor. “Costumamos imaginar lugares raros e maravilhosos em algum canto mais celestial e longínquo do sistema, para além da constelação de Cassiopeia”, prossegue, “longe do barulho e da agitação. Descobri que minha casa realmente tinha seu lugar nessa parte tão retirada, mas sempre nova e inviolada, do universo”65. A pressuposição quanto à existência de uma unidade nas multiplicidades contextuais está também indicada no sentido simbólico atribuído ao rio no trecho que conclui o segundo capítulo. Como sugere o autor, as circunstâncias do tempo no qual nos inserimos nos alimentam apenas nas superfícies, e são, portanto, como rios rasos. Aquilo que há de essencial para o pleno viver, todavia, está para além de sua corrente, e sugere a existência de um mar no qual convergem todos os fluxos66: “O tempo é apenas o rio em que vou pescando. Bebo nele; mas, enquanto tomo sua água, vejo o leito arenoso e percebo como é raso. A corrente rala desliza e vai embora, mas a eternidade permanece”67. Em meio a essa atmosfera de integração entre os tempos primevos e sua própria circunstancialidade, Thoreau faz da manhã um símbolo da renovação, um símbolo que, tal como a repetição dos ritmos temporais, a todos engloba e a todos se oferece. O amanhecer, ao mesmo tempo em que instaura materialmente o início de um novo ciclo, apregoa, simbolicamente, o despertar espiritual. No reinício de cada dia, como discorre o autor, ele se sentia convidado a renovar o corpo e a alma nas águas do Lago Walden, um “exercício religioso” que dá forma 65 ibid., p. 93. 66 Essa ideia também está expressa em A Week: “All streams are but tributary to the ocean, which itself does not stream, and the shores are unchanged, but in longer periods than man can measure. Go where we will, we discover infinite change in particulars only, not in generals. [...]. I come out into the streets, and meet men who declare that the time is near at hand for the redemption of the race. But as men lived in Thebes, so do they live in Dunstable today” (Writings, I, p. 128). 67 THOREAU, 2019, p. 102. 174 concreta à teoria romântica-transcendentalista da correspondência simbólica entre Natureza e espírito. Sendo o tempo heroico por excelência, a manhã representa “a parte mais memorável do dia, é a hora do despertar”. Ao contrário da melancolia e do calado desespero que caracterizam a contemporaneidade, a manhã anuncia a cura, o religamento com a saúde e a alegria da Natureza, que, com a simplicidade de seu vir a ser, dá plenitude às formas vitais que habitam este mundo. Indo além, portanto, do acontecer físico do raiar de um novo dia, o amanhecer, em seu sentido transcendente, sinaliza a possibilidade de ressacralização do mundo e do viver, o jorrar sempre renovado das fontes poético-proféticas que inspiram os poetas. Quando somos absortos por essa aura matinal e incorporamos uma visão desperta para os sacros agenciamentos dos movimentos naturais que neste mundo circulam, a voz da Musa, a cantar as glórias das matas, é descoberta no zumbido de um simples mosquito. Tal como Aurora, a “que cedo desponta” (Od., ii, 1), a deusa de rósea cor que abre caminhos para o despontar resplandecente da carruagem de Hélio, o Sol, aquele “que tudo vê e tudo ouve” (Od., xii, 323)68, o amanhecer e seu tempo sagrado anunciam a luminosidade de novas concepções, capazes de tornar a existência uma experiência poética e heroica. Cada manhã era um alegre convite para viver a vida com a mesma simplicidade e, diria eu, inocência da própria Natureza. Eu era um adorador da Aurora tão sincero quanto os gregos. Levantava cedo e me banhava no lago; era um exercício religioso, e uma das melhores coisas que eu fazia. [...]. A manhã traz de volta os tempos heroicos. O débil zumbido de um mosquito fazendo seu invisível e inimaginável percurso por meus aposentos nas primeiras horas do amanhecer, quando estava sentado com a porta e as janelas abertas, atingia-me tanto quanto me atingiria qualquer trombeta que algum dia cantou a fama. Era o réquiem de Homero; ele mesmo uma Ilíada e Odisseia no ar, cantando suas iras e andanças. Havia algo de cósmico nele; um anúncio corrido, até segundo aviso, do imorredouro vigor e fertilidade do mundo. [...]. O homem que não acredita que cada dia encerra uma hora mais matutina, mais sagrada e mais radiosa do que a que já profanou, este desesperou da vida e desce por uma senda cada vez mais escura. [...]. Todos os acontecimentos memoráveis, diria eu, dão-se na hora matutina e numa atmosfera matinal. Os Vedas dizem: “Todas as inteligências despertam com a manhã”. A poesia e a arte, e as mais belas e memoráveis ações dos homens provêm dessa hora. Todos os poetas e heróis, como Mêmnon, são filhos da Aurora, e emitem sua música ao nascer do sol69. Alinhando-se à tradição do herói Mêmnon, descendente da linhagem de Aurora na mitologia grega, o autor norte-americano reinterpreta a hierofania da manhã e nela imprime suas próprias perspectivas. Em sua narrativa, o amanhecer simboliza uma renovação individual, 68 HOMERO, op. cit., p. 134 e 329. 69 THOREAU, 2019, p. 94-95, grifos acrescentados. 175 uma regeneração heroica na qual está envolvida a adoção de uma postura existencial de reencantamento, de ressacralização do mundo, em oposição à profanação moderna dos ritmos terrenos. A “manhã interior”, que já estava sinalizada em A Week70, condiz, portanto, com uma mudança de perspectiva sobre a vida humana e suas relações simbióticas com o cosmo. É isso o que também sugerem as frases finais do livro. Empregando um jogo simbólico de luz e sombra que nos faz lembrar o mito da caverna de Platão, Thoreau afirma que “o mero decorrer do tempo” não nos contemplará com o amanhecer para um mundo esclarecido onde não reinam os padrões sombrios, ilusões sobre a verdadeira essência da realidade: “A luz que extingue nossos olhos é escuridão para nós. Só amanhece o dia para o qual estamos despertos. O dia não cessa de amanhecer. O sol é apenas uma estrela da manhã”71. Também nós, afinal, cumprimos um papel ativo na mudança de nosso ângulo de visão, assim como as plantas se inclinam em direção ao sol para receber sua luz em maior grau. Em Walden, a narrativa mitopoética da antiga Grécia não é empregada para fazer referência à cadência das leis naturais somente, mas também para indicar suas marchas mais brutais, os mistérios de suas dinâmicas selvagens. É o consagrado poeta jônico, lembrado como o patriarca da tradição mitológica ocidental, que desempenha aqui um papel decisivo. Além do horizonte de uma vida simples e heroica, Homero fornecia a Thoreau uma visão da Natureza caracterizada pelo hibridismo de suas operações. Na cosmovisão homérica, tudo o que habita o mundo está conectado a uma vinculação de leis e eventos que são a todo instante moldados pelos deuses. Suas paisagens e heróis participam de uma organização cósmica que é concomitantemente gentil e brutal com seus seres, um contraste que não busca uma solução conceitual, mas que se afirma enquanto contraste, enquanto integração de contrários. O reconhecimento de que o sublime e o selvagem se entrecruzam em malhas divinamente costuradas é uma das direções do propósito espiritual de Walden, o que demonstram diversas passagens do texto. Quando descreve sua relação com os feijões e suas práticas de cultivo, por 70 Clodomir Andrade, em seu estudo sobre os propósitos pedagógicos de Thoreau, centrado na imagem simbólica do despertar, enfatiza o quão nuclear é a relação entre o interior e o exterior no pensamento thoreauviano, tal como manifesta, p. ex., no poema “The Inward Morning”, que aparece em A Week e que se relaciona com o painel soteriológico atribuído à manhã também em Walden. Em uma versão preliminar desse poema, redigida no diário do autor, assim lemos: “Packed in my mind lie all the clothes / Which outward nature wears, / And in its fashion’s hourly change / It all things else repairs / My eyes look inward, not without / And I hear but myself, / And this new wealth which I have got / Is part of my own self” (ANDRADE, op. cit., p. 102-103). Esses versos expressam nitidamente as profundas ressonâncias em Thoreau da doutrina romântica-transcendentalista da correspondência simbólica entre Natureza e espírito, as roupagens da mente e aquelas do mundo natural. 71 THOREAU, 2019, p. 314. 176 exemplo, Thoreau se vale da imagem mitopoética da guerra entre gregos e troianos para ilustrar o caráter bélico das operações naturais. Considerem a íntima e curiosa familiaridade que se adquire com várias espécies de matos, [...] perturbando tão impiedosamente a delicada organização deles, e fazendo distinções tão odiosas com a enxada, derrubando filas inteiras de uma espécie e cultivando laboriosamente outra. [...]. Uma longa guerra, não com grous, mas com matos daninhos, aqueles troianos que tinham a seu lado o sol, a chuva e o sereno. Diariamente os feijões me viam chegar em seu socorro, armado com uma enxada, para dizimar as fileiras de seus inimigos, lotando as trincheiras com mortos daninhos. Mais de um robusto Heitor de penacho ondulante, sobranceando em quase dois palmos seus camaradas aglomerados ao redor, caiu sob minha arma e rolou no pó72. Também em “Brute Neighbors” [“Vizinhos Brutos”], através de sua observação dos hábitos dos seres que com ele dividiam o espaço próximo ao lago e sua relação com o meio, ele descobre a beleza e a brutalidade de suas atividades. Entre seu relato do contato com camundongos selvagens, perdizes (cujos olhos refletem a sabedoria e “a idade do céu que se reflete neles”73), lontras, guaxinins, galinholas, rolinhas, esquilos, gatos, mobelhas e patos, a narrativa construída a partir de sua observação das formigas ocupa um espaço central. Certo dia, ao ir até o lugar onde ele havia empilhado lenha, como conta o autor, ele se deparou com duas formigas “lutando ferozmente entre si”, e percebeu que caídos ao redor já estavam outros combatentes da batalha, que haviam deixado a vida. Expressando a luta entre as formigas nos termos da guerra de Tróia e seus heróis, Thoreau confere um tom mítico a um fenômeno que é corriqueiro no palco natural, expressando, de forma simbólica, a extensão e a complexidade das leis naturais, que operam sobre os seres humanos assim como sobre outros animais. Esta é uma bela passagem, que carrega a crítica ambientalista formulada pelo autor e sua percepção de haver em todos os seres da Natureza aquilo que atribuímos de forma exclusiva aos humanos: As legiões desses mirmidões recobriam todos os montes e vales de meu lenheiro, e o chão já estava juncado de cadáveres e moribundos, vermelhos e negros. Foi a única batalha que presenciei na vida [...]. Nesse ínterim, apareceu um combatente vermelho sozinho na colina daquele vale, fremente de excitação, que ou tinha liquidado o inimigo ou ainda não ingressara na batalha [...]. Ou talvez fosse algum Aquiles, que havia alimentado sua cólera longe do campo de batalha, e agora vinha vingar ou resgatar seu Pátroclo. [...]. Eu não me admiraria naquele momento se descobrisse que eles tinham suas respectivas bandas de músicas estacionadas na eminência de alguma lasca, a tocar seus hinos nacionais para incentivar os morosos e saudar os agonizantes. 72 ibid., p. 157-158. 73 ibid., p. 218. 177 Eu mesmo fiquei um pouco excitado, como se fossem homens. Quanto mais a gente pensa, menor é a diferença74. Esse hibridismo das operações naturais é percebido não apenas no campo de feijão ou nas formigas, mas no próprio ser humano. É o que propõe o décimo primeiro capítulo, “Superior Laws” [“Leis Superiores”]. “Eu encontrava, e ainda encontro, em mim”, afirma o autor nas linhas iniciais, “um instinto para uma vida mais elevada ou, como dizem, espiritual, [...] e um outro instinto para um nível primitivo e a vida selvagem, e reverencio ambos. Amo o bom como amo o feroz”75. Embora o leitor possa inicialmente detectar aqui uma dualidade, Thoreau diz amar tanto sua face selvagem quanto suas aspirações superiores. Ainda que ele de fato reconheça a presença de uma relação de polaridades a reger a vida, ele não afirma uma linha de separação entre elas76, e não constrói um sistema teórico a respeito da associação entre a dimensão anímica e a esfera material na existência humana. Há algumas passagens de seus primeiros diários que nos auxiliam a captar essa correlação entre corpo e alma nas meditações thoreauvianas, uma interdependência que se insere no horizonte mais amplo da correspondência entre Natureza e espírito, estética (a sensibilidade corpórea) e ética (a transformação existencial): Bom para o corpo é o trabalho do corpo, bom para a alma é o trabalho da alma, e bom para um deles é o trabalho do outro. Que eles não sejam chamados por nomes difíceis, e nem conheçam interesses separados77. E a alma dilui o corpo e o torna navegável. Minha alma e meu corpo cambalearam juntos ultimamente, tropeçando e obstruindo um ao outro como gêmeos siameses inexperientes. Os dois devem andar como uma coisa só, para que nenhum obstáculo esteja mais próximo do que seu firmamento78. Assim como todas as curvas possuem uma referência em relação aos seus centros ou focos, toda beleza de caráter possui uma referência em relação à 74 ibid., p. 220-221. 75 ibid., p. 203. 76 Concordamos com Christopher Dustin quando afirma que “Thoreau acknowledges the difference between body and soul, or the outward and the inward life, but not the line that separates them. They are not simply one, but neither are they definitely two” (DUSTIN, Christopher A. Thoreau on the Strange Relation of Matter and Spirit. The Concord Saunterer, v. 21, p. 53-76, 2013, à página 54). 77 Writings, VII, p. 174. 23 de janeiro de 1841. No original: “Good for the body is the work of the body, good for the soul the work of the soul, and good for either the work of the other. Let them not call hard names, nor know a divided interest”. 78 ibid., p. 322. 21 de fevereiro de 1842. No original: “And the soul dilutes the body and makes it passable. My soul and body have tottered along together of late, tripping and hindering one another like unpracticed Siamese twins. They two should walk as one, that no obstacle may be nearer than the firmament”. 178 alma, e é um gesto gracioso de reconhecimento ou aceno do corpo em direção à alma79. Apesar disso, o autor deixa nítido que, por qualquer via que pudéssemos traçar uma antropologia thoreauviana, nela deveria estar envolvida a afirmação do hibridismo, tendo em vista que Thoreau declara perceber em si mesmo, assim como em todos os fenômenos naturais, a presença de uma constituição híbrida, como aquela disposição teriomórfica que configurava os sátiros dos mitos da Grécia. Não por acaso, junto à exposição de seus puritanismos e sua aspiração pela castidade, ele discorre, igualmente, sobre sua fome simbólica pelo selvagem e sua pertença à animalidade natural80, levando o leitor a pensar que tanto seus instintos animais quanto seus instintos espirituais, afinal, são regidos pelas mesmas leis superiores81. Como já apontamos, a mitologia grega, conforme expressa nos cenários homéricos, cumpre um papel central na expressão dessa ideia. Nos termos de Seybold, a partir da narrativa mitopoética de Homero, o pensador de Concord foi capaz de “considerar os diferentes aspectos de sua natureza como igualmente bons. [...]. Era uma prova para ele de sua ligação com os homens de uma época anterior [...]”. “O selvagem de sua própria natureza”, afinal, “era apenas uma parte do selvagem [...] da natureza universal”82. Não será nosso intuito aqui aprofundar essa temática, mas apenas sugerir que nosso autor não fornece um desenlace filosófico-teórico para a relação entre a alma e o corpo, os sentidos superiores e os sentidos selvagens, embora esse nexo entre dimensões polares esteja sempre presumido. O sentir-se filamento da Natureza, tema proeminente em suas meditações, não é tratado em termos conceituais, mas se apresenta enquanto símbolo, enquanto uma indicação poética. Apesar disso, é nítido que Thoreau articula, a partir de seus simbolismos, o 79 ibid., p. 332. 15 de março de 1842. No original: “As all curves have reference to their centres or foci, so all beauty of character has reference to the soul, and is a graceful gesture of recognition or waving of the body toward it”. 80 Ao se deparar com uma marmota no meio do caminho, Thoreau se vê invadido por “uma estranha emoção de prazer selvagem”, e, embora ele não estivesse com fome, quis devorá-la crua, em virtude de seu apetite pelo símbolo da vida selvagem que ela carregava consigo; por “fome daquele agreste que ela representava” (THOREAU, 2019, p. 203). 81 “Temos a consciência de um animal dentro de nós, que desperta na proporção em que nossa natureza mais elevada adormece. É réptil e sensual, e talvez não possa ser totalmente expelido, como os vermes que, mesmo em vida e com saúde, ocupam nosso corpo. Podemos talvez nos retrair diante dele, mas nunca lhe alterar a natureza. Receio que ele tenha uma certa saúde própria; que possamos estar bem, mas não puros. [...]. Talvez não exista ninguém que deva se envergonhar por causa da natureza inferior e bruta a que está ligado. Temo que sejamos deuses ou semideuses como faunos e sátiros, a divindade ligada aos animais [...]” (ibid., p. 211-212). 82 SEYBOLD, op. cit., p. 53. No original: “regard the different aspects of his nature as equally good. […]. It was a proof to him of his connection with the men of an earlier time […]”; “The wildness of his own nature was only a part of the wildness […] of universal nature”. 179 esboço de uma reeducação dos sentidos, um autoaprimoramento alicerçado no uso superior da sensibilidade: a detecção da presença do divino neste mundo, em seus aspectos sublimes e selvagens. É nesta direção, de forma especial, que caminha o quinto capítulo do livro — que, aliás, tem sido um foco central da atual literatura ecocrítica que se desenvolve em torno das proposições thoreauvianas, na medida em que traz à baila, como aponta Lance Newman, “a experiência vivida da consciência ecocêntrica, compelindo uma postura ética em relação à natureza”83. Em “Solitude” [“Solidão”], em contraste com o que sugere o título à primeira vista, Thoreau solfeja sua ode à amistosidade da Natureza e à sensação de ser mais uma parte de seu reino, um saber-se integrado em uma totalidade maior que lhe afasta da solidão sombria e da melancolia, uma vez que ressignifica seus sentidos corpóreos e, portanto, sua ótica epistêmica, seu modo de se ver e se conhecer no mundo. “É uma noite deliciosa, em que o corpo todo é um sentido só, e absorve prazer por todos os poros. Vou e volto em estranha liberdade na Natureza, uma parte dela mesma”, diz ele nas primeiras linhas. Caminhando pela margem do rio em um dia frio, ouvindo as rãs-touro, a ondulação do vento e o canto do noitibó, e sentindo simpatia pelas folhas do choupo e do amieiro, nele emerge uma sensação de “invulgar afinidade com todos os elementos”; afinal, como escreve o sábio concordiano, “às vezes eu sentia que qualquer objeto natural podia oferecer a mais suave e meiga, a mais inocente e animadora companhia”84. Se a Natureza, para os calvinistas da Nova Inglaterra, era um domínio maligno, responsável pelo afastamento humano do poder superior, e, para os cidadãos em geral, meramente um espaço de extração de recursos materiais, aqui ela aparece como a verdadeira panaceia, a expressão da interconexão entre todas as coisas e o palco onde se celebra o encantamento deste mundo. Nessa narrativa de afinidade com todas as coisas, está incorporada a reeducação dos sentidos (os “germes divinos”) que havia sido proposta anteriormente em A Week. A valoração do mundo que aí está envolvida é contraposta à posição doentia da modernidade, marcada pela melancolia, pelo desencantamento do mundo, pela deturpação da sensibilidade: “Não há como existir nenhuma negra melancolia para quem vive entre a Natureza e tem serenidade dos sentidos. Jamais existiu temporal algum que não fosse música eólica a ouvidos sadios e inocentes”, declara o autor. “Enquanto desfruto a amizade das estações, sinto que nada conseguirá fazer da vida um fardo para mim”85. 83 NEWMAN, Lance. Our Common Dwelling: Henry Thoreau, Transcendentalism, and the Class Politics of Nature. New York: Palgrave Macmillan, 2005, p. 135. No original: “the lived experience of ecocentric consciousness compelling an ethical stance toward nature”. 84 THOREAU, 2019, p. 129. 85 ibid., p. 131. 180 Em sua vivência em conexão sensorial e espiritual com a Natureza, Thoreau encontra os meios para a convalescência. “Qual a pílula que nos manterá bem, serenos, contentes?”, pergunta ele. “Não a do meu ou do teu bisavô, mas a botânica medicinal universal de nossa bisavó Natureza, com a qual ela mesma se conserva sempre jovem”86. Ao contrário dos luxos materiais da civilização moderna, é o sentir-se membro de um corpo maior a garantia do verdadeiro prazer; a fonte remediadora da separação do ser humano da congregação maior da Natureza. Lembrando, nesse sentido, os epicuristas, o pensador de Concord encontra na ordenação das leis naturais — o logos que constitui o cosmo — a fonte do deleite superior e o caminho para uma vida livre, pautada em princípios superiores. Também ele olhava para si mesmo como uma expressão do divino no mundo, tal como havia expressado Epicuro (341– 270 a.e.c.) em sua Carta a Meneceu (135): “Jamais te sentirás perturbado seja na vigília, seja em sonho, e viverás como um deus entre os homens. Porque em nada se parece a um mortal o homem que vive entre bens imortais”87. Esses “bens imortais”, como temos dito, são frequentemente abordados por Thoreau a partir da perspectiva de aperfeiçoamento dos sentidos, de seu uso poético para fins superiores — o que, para o escritor aqui em questão, significa ver e ouvir o céu na terra; ou, como ele expressa mais adiante em sua obra-prima, ser religado à Natureza a partir de experiências concretas de contato sensorial com a profusão das linguagens emitidas por seus seres: Às vezes, depois de ficar numa sala de visitas da cidade [...], eu voltava para a mata e, em parte pensando no almoço do dia seguinte, passava os meados da noite pescando num barco ao luar, ao som da serenata de corujas e raposas, e de tempos em tempos ouvindo ali por perto o canto chiado de algum pássaro desconhecido. Essas experiências me eram muito valiosas e memoráveis [...]. Finalmente, devagarinho, puxando com uma mão e depois com outra, eu erguia um peixe-gato guinchando e se contorcendo no ar. Era muito esquisito, principalmente nas noites escuras, quando os pensamentos vagueavam por grandiosos temas cosmogônicos em outras esferas, sentir esse leve tranco que vinha interromper os sonhos e ligar a pessoa de volta à Natureza. [...]. Eu pescava dois peixes, por assim dizer, com um anzol só88. No terceiro capítulo, “Reading” [“Leituras”], o estudo dos clássicos e das escrituras da humanidade aparece também como um exercício religioso, embora o autor não use diretamente essa expressão. Os clássicos e os vaticínios de seus poetas, tal qual em A Week, são aqui 86 ibid., p. 137. 87 EPICURO. Cartas & Máximas principais: “Como um deus entre os homens”. Tradução do grego, apresentação e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis. Introdução de Tim O’Keefe. São Paulo: Penguin Companhia, 2020, p. 90. 88 THOREAU, 2019, p. 170-171, grifos acrescentados. 181 elevados ao “registro dos pensamentos mais nobres dos homens”. Devido à sua sublimidade, eles “devem ser lidos com a deliberação e a reserva com que foram escritos”. Afinal, a literatura dos antigos são “os únicos oráculos que não caducaram, e há neles respostas à mais moderna indagação que Delfos e Dodona89 jamais deram”. “O símbolo do pensamento de um antigo se torna a fala de um moderno”, e sua palavra é “algo ao mesmo tempo mais íntimo e mais universal do que qualquer outra obra de arte”; é a “arte mais próxima da vida”. A leitura de Homero e de Ésquilo em sua língua original demonstra-se enquanto um desempenho de uma atividade espiritual quando o leitor “emula seus heróis e consagra horas matinais a suas páginas”90, no empenho por compreender seus símbolos e suas sugestões para o bem viver. Nos escritos dos poetas consagrados encontramos possíveis respostas para as nossas próprias angústias, e, assim, damo-nos conta de que há questões indeléveis a pervadir a existência humana em todos os tempos e em todos os lugares. As mesmas perguntas pelo sentido da vida que não cessam de nos fazer estremecer e de conduzir-nos no bailado do viver foram também meditadas pelo profeta persa Zoroastro e pelos sábios de outrora: Talvez exista o livro que nos explique nossos milagres e nos revele outros. As coisas atualmente inexpressáveis, talvez as encontremos expressas em algum lugar. Essas mesmas perguntas que nos inquietam, desconcertam, confundem, também ocorreram, por sua vez, a todos os homens sábios; nenhuma delas foi omitida; e cada qual respondeu a elas com suas palavras e sua vida, conforme sua capacidade. [...]. O lavrador solitário trabalhando num sítio nos arredores de Concord, que teve sua experiência religiosa pessoal e renasceu na fé, levado a uma atitude de exclusividade e gravidade silenciosa, pode achar que não é verdade; mas Zoroastro, milênios atrás, percorreu a mesma estrada e teve a mesma experiência; porém, sendo sábio, não ignorava que era algo universal, e tratou seus próximos de acordo com isso, e dizem até que foi ele que inventou e criou a adoração divina entre os homens91. Oposta a essa visão é o contentamento com a versão fácil da Bíblia e os enredos destinados ao relaxamento e ao divertimento. Como indica Thoreau, a ênfase na satisfação de desejos mais superficiais desfalece não apenas o uso superior da palavra, mas a apreensão da profundidade de sentido que a fala, posta a um uso superior, a um fim poético, comunica. “Os livros heroicos, mesmo impressos no alfabeto de nossa língua materna, sempre estarão numa língua morta para tempos degenerados”, pois “apenas grandes poetas” podem ler as “obras dos grandes poetas”92. Ao contrário da literatura que não exige de nossas faculdades superiores (o 89 Referência aos oráculos gregos de Apolo, na cidade de Delfos, e de Zeus, em Dodona. 90 THOREAU, 2019, p. 103-104. 91 ibid., p. 110-111. 92 ibid., p. 104 e 107. 182 “pãozinho confeitado” que “tem venda mais garantida”93), os grandes poetas se dirigem àquilo que há de mais elevado em nós, e o estabelecimento desse diálogo por meio da literatura é um “exercício nobre”, pois “só é leitura em sentido elevado, não aquela que nos embala como um luxo e permite que as faculdades mais nobres adormeçam, e sim aquela que temos de ficar na ponta dos pés para ler e à qual devotamos nossas horas mais despertas e alertas”94. A degeneração dos hábitos de leitura, afinal, é apenas mais um sinal da decadência espiritual de um povo, da perda da profundidade de seus sistemas simbólicos. “Muita gente nem sabe que alguma nação além dos hebreus teve suas escrituras”, adverte ele. “Um homem, qualquer um, é capaz de se afastar um bom trecho de seu caminho para apanhar um dólar de prata”, ironiza o autor, “mas aqui há palavras de ouro, que os homens mais sábios da Antiguidade proferiram, e cujo valor nos é assegurado pelos sábios de todas as eras posteriores — e no entanto aprendemos a ler só a Versão Fácil, as cartilhas e os livros escolares”. E, assim, “nossa leitura, nossa conversa e nosso pensamento ficam todos num nível baixíssimo, próprio apenas para pigmeus e bonecos”95. No fim das contas, Thoreau parece se incluir entre a saga dos grandes poetas que, através de suas palavras e seus ritmos, nos levam para o alerta e o despertar. Em “The Bean-Field” [“O Campo de Feijão”], ele nos apresenta outro que aqui também identificamos como um “exercício religioso”, que é remetido à sua doutrina da simplicidade e à sua leitura dos clássicos, partes que compõem a arquitetura maior do experimento heroico de educação da sensibilidade que é esboçado em seu escrito religioso. No sétimo capítulo do livro, ele nos informa que seu plantio de feijão, que chegou a formar uma linha de doze quilômetros de extensão, não era uma tarefa qualquer, mas detinha muito “respeito próprio”: era uma atividade heroica, “um pequeno trabalho de Hércules”. Como o gigante mitológico Anteu, filho de Gaia96, o autor recebia, em sua pequena “guerra” com os “inimigos” dos feijões, a força da terra e, por meio dessa prática agrícola, sentia-se reconectado ao solo e ao vigor da vida. Valendo-se das imagens do céu e da terra, que, como vimos, está também presente em A Week, ele afirma receber da terra a força necessária para a atividade, e, do céu, a inspiração para perseverar. Os feijões, diz Thoreau, “me ligavam à terra, e eu me sentia forte como Anteu. Mas por que cultivá-los? Só os Céus sabem”. O cultivo do campo de feijão, como o entendemos 93 ibid., p. 108. 94 ibid., p. 104 e 107. 95 ibid., p. 109-110. 96 Anteu, na cosmovisão grega, é um gigante, filho de Gaia e Posídon. Como contam as narrativas mitopoéticas, ele travava luta com todos os viajantes que passavam por sua morada, na Líbia, e mostrava-se invulnerável enquanto estava em contato com a força da terra. Hércules, que passava pela região do gigante em busca das maçãs de ouro, sufocou Anteu ao pegá-lo pelos braços e desconectá-lo da força terrena de sua divina mãe (GRIMAL, op. cit., p. 30). 183 aqui, compõe um dos exercícios religiosos aos quais Thoreau se dedica em sua reeducação dos sentidos, sua proposta de valoração deste mundo. Sendo uma tarefa heroica, ensina ao seu cultivador a interrelação entre todas as coisas: “O que hei de aprender sobre o feijão, e o feijão sobre mim?”97, indaga-se ele. A agricultura, afinal, era entre os antigos uma “arte sagrada” compreendida a partir da interdependência entre tudo o que existe: os romanos estavam cientes de que o ser humano não detém um poder supremo sobre os agenciamentos da Natureza — perante seus reinos eles sentiam encantamento e assombro. Os modernos, por outro lado, praticam a agricultura não como um cultivo de sua relação com o sagrado e consigo mesmos, mas como um meio para o enriquecimento e para o exercício do poder sobre determinada fração da terra. Nossa relação com os frutos terrenos é pautada pelo “desmazelo” e por “uma pressa pouco respeitosa, pois nosso objetivo é apenas ter grandes sítios e grandes safras”. Thoreau parece sugerir que, no limite, seus contemporâneos estão fadados a “olhar o solo como propriedade”, e que, no fim das contas, toda inserção do humano na paisagem, ainda que baseada na delicadeza, envolve uma certa violência, um sofrimento, batalhas travadas contra outros seres. Contudo, diferentemente da sociedade moderna, os povos antigos, ainda que também derrubassem as matas para seu sustento, nutriam a percepção de um divino poder a permear as conexões estabelecidas entre todos os domínios naturais, compreendendo a agricultura como um ofício sagrado, e, por isso, pediam licença à Natureza e aos deuses a fim de realizarem suas intervenções. Não temos nenhuma festa, nenhuma procissão, nenhuma cerimônia [...] em que o agricultor expresse a percepção do caráter sagrado de sua atividade ou lhe sejam relembradas suas origens sagradas. O que o atrai é o prêmio e a comilança. Ele faz suas oferendas não a Ceres e ao Jove Terrestre, e sim ao infernal Plutão. Por avareza e egoísmo, e por um hábito degradante, do qual nenhum de nós está livre, de olhar o solo como propriedade ou principalmente como meio de adquirir propriedades, a paisagem é deformada, a agricultura é degradada junto conosco, e o agricultor leva a mais mesquinha das vidas. Ele conhece a Natureza apenas como ladrão. Catão diz que os lucros da agricultura são especialmente justos e piedosos (maximeque pius quaestus), e segundo Varrão os romanos antigos “chamavam a mesma terra de Mãe e Ceres, e consideravam que os agricultores levavam uma vida piedosa e útil, e que eram os únicos remanescentes da linhagem do Rei Saturno”98. Gostaria que nossos agricultores, ao derrubar uma floresta, sentissem um pouco daquele respeito que os antigos romanos sentiam quando desbastavam ou deixavam a luz entrar num bosque consagrado (lucum conlucare), isto é, 97 THOREAU, 2019, p. 152. 98 ibid., p. 161-162. 184 acreditavam que era consagrado a alguma divindade. Os romanos faziam uma oferenda expiatória e oravam: Quem sejas, deus ou deusa a quem este bosque é consagrado, sê propício a mim, à minha família e filhos etc.99. Na violência que permeia o trato humano com o solo primordial, não é possível ver aquilo que há de mais importante a ser visto neste mundo. No ensaio The Maine Woods essa perspectiva crítica-existencial é novamente apresentada em termos mitopoéticos: “O anglo- americano pode de fato cortar e arrancar toda essa floresta ondulante”, pondera o autor, “mas ele não pode conversar com o espírito da árvore que ele derruba, ele não pode ler a poesia e a mitologia que se afasta na medida em que ele avança”. E assim prossegue em sua reprovação dos procedimentos materialistas da sociedade moderna: “Ele apaga, de forma ignorante, tabuinhas mitológicas para nelas imprimir seus panfletos e mandatos de reunião da cidade”100. É esse também o teor da comunicação poética-profética de Walden. Voltemos aos campos de Massachusetts. Conta-nos Thoreau que, apesar de ter posto boa parte de seus feijões à venda, pois ele era “por natureza um pitagórico no que concerne aos feijões”101, seu intuito não era o comércio meramente, mas o conhecimento de si mesmo através do modo de ser do feijão, na medida em que isso fosse possível. “Era uma experiência familiar, aquela longa familiaridade que cultivei com os feijões”, narra o autor. “Eu estava decidido a conhecer o feijão”102. Os frutos de suas plantações, no fim das contas, não diziam respeito aos feijões em si mesmos, mas ao sentido em que esse exercício de cultivo correspondia ao cultivo de si mesmo. A enxada batendo sobre a terra revolvia “as cinzas de nações desconhecidas que, em anos primevos, viviam sob estes céus”. O rendimento simbólico de seu trabalho é expresso, enfim, como música, uma melodia que liga a terra e o céu e sugere o ritmo de uma sabedoria superior, distinta do modus operandi da cidade e suas instituições: “Quando minha enxada batia contra as pedras, aquela música ressoava até a mata e o céu, e era um acompanhamento de meu trabalho que dava uma safra instantânea e imensurável”, diz ele. “Não era mais feijão que eu carpia, e nem era eu que carpia feijão; e com pena e orgulho lembrava, se é que lembrava, meus conhecidos que tinham ido à cidade para assistir aos oratórios”. O conteúdo dessa sabedoria sugerida pela música da enxada, que trazia ao vento o canto de nações primitivas, como indica 99 ibid., p. 239. 100 Writings, III, p. 253. No original: “The Anglo-American can indeed cut down, and grub up all this waving forest [...], but he cannot converse with the spirit of the tree he fells, he cannot read the poetry and mythology which retire as he advances. He ignorantly erases mythological tablets in order to print his handbills and town-meeting warrants on them”. 101 THOREAU, 2019, p. 158. Os pitagóricos tornaram-se conhecidos pela tradição por interditarem a ingestão de determinados alimentos, como os feijões. 102 ibid., p. 157. 185 a simbologia que aparece ao fim do capítulo, é o cultivo interior. O símbolo da semente, que era empregado pelos estoicos na antiga Grécia para representar o cultivo da virtude a partir das leis divinas103, e que foi também amplamente utilizado pelos Quakers e, em especial, por seu fundador, George Fox (1624–1691)104, aparece constantemente na obra thoreauviana, também remetendo ao aprimoramento individual e à vida virtuosa105, e assim expressando a correspondência simbólica entre o cultivo da terra e o cultivo do espírito: ganhei mais uma experiência. Disse para mim mesmo: não vou mais plantar feijão e milho com tanto trabalho no próximo verão; vou, isso sim, plantar as sementes, se é que não se perderam, da sinceridade, da verdade, da 103 Um dos pressupostos do estoicismo, segundo Abbagnano (op. cit., p. 375), é o “conceito de uma Razão divina que rege o mundo e todas as coisas no mundo, segundo uma ordem necessária e perfeita”. Na cosmologia estoica, na qual todo o universo é compreendido como um sistema vivo, a expressão para fazer referência a Deus/ao Logos enquanto força criativa a animar o cosmo e o ser humano é spermatikos logos, traduzida como “razão seminal”, “princípios seminais” ou “razão criativa”. Correlatos dessa ideia são os conceitos de semina virtutis (sementes da virtude) e de semina scientia (sementes do conhecimento). Em sua carta sobre a causa primeira, explica Horowitz, Sêneca “utilizes the image ‘seed’ to explicate Stoic educational theory. The seeds of virtue and knowledge are the origins in nature of man’s striving for wisdom; the art of developing human nature can only be effective if it activates the beginnings of learning that are in man by nature”. No contexto do estoicismo, portanto, o ser humano, ainda que seja naturalmente provido das sementes da virtude e do conhecimento, cumpre um papel ativo ao cultivar essas sementes (HOROWITZ, Maryanne Cline. The Stoic Synthesis of the Idea of Natural Law in Man: Four Themes. Journal of the History of Ideas, v. 35, n. 1, p. 3-16, jan./mar. 1974, às páginas 10-14). O posicionamento de Thoreau sobre o cultivo da virtude é, a nosso ver, muito similar com a concepção moral do estoicismo no sentido aqui delineado. 104 Richardson observa que a metáfora da semente era frequentemente empregada pelos Quakers, George Fox principalmente. Thoreau tomou conhecimento do relato de William Sewell (1653–1720) sobre a fundação dos Quakers (The History of the Rise, Increase, and Progress of the Christian People Called Quakers, 1717) por meio de sua avó materna, que era uma integrante desse movimento religioso. Emerson também estava ciente do poder simbólico da semente, e assim observou: “George Fox’s chosen expression for the God manifest in the mind is the Seed. He means the seed of which the Beauty of the world is the flower and Goodness the fruit” (RICHARDSON Jr., Robert D. Introduction: Thoreau’s Broken Task. In: THOREAU, Henry David. Faith in a Seed: The Dispersion of Seeds and Other Late Natural History Writings. Editado por Bradley P. Dean. Washington/Covelo: Island Press, 1993, p. 3- 17, à página 16). Imperioso recordamos também da “parábola do semeador” de Jesus (Mt. 13:1-23; Mc. 4:1-20; Lc. 8:4-15). 105 O simbolismo da semente está amplamente presente em The Dispersion of Seeds, um ensaio que, embora seja marcado pela linguagem dos estudos empíricos do mundo natural, possui também uma face poética. Nele, “[t]he seed means not only birth but rebirth. Every plant can be born again in every seed. Every day is a day of creation and at the same time a day of rebirth” (RICHARDSON, 1993, p. 16). Sobre o emprego simbólico da semente em The Succession of Forest Trees, cf. citação na p. 96. Já em A Week, em uma das aplicações dessa imagem simbólica, Thoreau afirma: “He who eats the fruit should at least plant the seed; ay, if possible, a better seed than that whose fruit he has enjoyed. Seeds, there are seeds enough which need only be stirred in with the soil where they lie, by an inspired voice or pen, to bear fruit of a divine flavor. O thou spendthrift! Defray thy debt to the world; eat not the seed of institutions, as the luxurious do, but plant it rather, while thou devourest the pulp and tuber for thy subsistence; that so, perchance, one variety may at last be found worthy of preservation” (Writings, I, p. 129-130). Aliás, poderíamos pensar em Walden justamente como uma tentativa de plantar essa semente que faça crescer o fruto de “sabor divino”, em oposição ao fruto do luxo moderno. 186 simplicidade, da fé, da inocência e outras que tais, e ver se crescem neste solo com ainda menos labuta e adubação, e se me provêm sustento, pois certamente a terra não está cansada para tais plantios. [...]. Nossos embaixadores deveriam ser instruídos a mandar essas sementes para cá, e o Congresso deveria ajudar a distribuí-las por todo o país. Nunca trapacearíamos, insultaríamos, expulsaríamos uns aos outros com nossa mesquinharia, se houvesse um cerne de valor e amizade106. Retomando a origem das palavras “espiga [de trigo]” e “grão”, Thoreau conclui o capítulo sobre os feijões com seu símbolo de esperança por novas concepções no campo da ética, que nos permitam relembrar que “o sol olha nossas lavouras, as pradarias e as florestas sem fazer distinção”. Tendo em vista que seus grãos crescem também para as marmotas e outros seres, ele percebe não ser ele, afinal, o principal cultivador dos feijões, que lidam com “influências mais cordiais”, “que o regam e o fazem verdejar”. Apontando para o nosso próprio cultivo interior, fonte da mudança dos modos correntes de cultivo exterior (que afirmam ser o humano o senhor da terra — quando este, na verdade, por alienar-se de sua fonte, deixa de ser senhor de si mesmo), o autor apregoa, simbolicamente, o exercício de novos plantios e a geração de novos frutos: “A espiga de trigo (em latim spica, do arcaico speca, de spe, esperança) não devia ser a única esperança do lavrador; o caroço ou grão (granum, de gerendo, gerar), não é a única coisa que ele gera”107. No semear de sua mensagem, o lago que dá nome ao livro ocupa um espaço simbólico central. O nome Walden, segundo a tradição local conhecida por Thoreau, provém de um mito ameríndio. Contava-se que quando indígenas de outrora estavam fazendo um ritual em uma colina na parte superior daquelas terras, o morro se afundou repentinamente, “e apenas uma velha índia chamada Walden escapou, e por isso o lago recebeu seu nome”108. O Lago Walden, que foi medido e posto em um mapa por nosso poeta-naturalista, é constituído por “uma água límpida e verde-escura, com oitocentos metros de extensão e dois mil e oitocentos metros de circunferência, e ocupa cerca de vinte e cinco hectares; uma fonte perene no meio dos bosques de pinheiros e carvalhos”; e, conforme as medições do autor, tem 32,6 metros de profundidade109. Ao modo dos naturalistas, no nono capítulo, “The Lakes” [“Os Lagos”], Thoreau tece uma longa descrição dos aspectos físicos de Walden e de outros lagos das cercanias, onde discorre sobre a coloração de suas águas conforme o ponto de observação e a temperatura, suas margens e as vegetações que as rodeiam, apresentando aquela que parece ter 106 THOREAU, 2019, p. 160-161. 107 ibid., p. 162. 108 ibid., p. 177. 109 ibid., p. 171 e 273. 187 sido a primeira história natural de um lago110. Como registra o autor, Walden é ligado indiretamente com o Lago de Flints, localizado mais acima, e ligado diretamente com o rio Concord, localizado mais abaixo111. Por suas águas transitavam variadas espécies de peixes: percas, fanecas, gobiões, bremas, enguias e lúcios. Rãs, tartarugas, mexilhões, martas, ratos- almiscarados, patos, gansos, andorinhas-do-rio, batuíras e gaviões-pescadores também partilhavam, junto a Thoreau, das águas de Walden112. Ao longo da narrativa sobre as fontes lacustres da região, Walden ganha uma nuance simbólica. Nos termos do autor, ele é “puro e profundo, como um símbolo”113. Personificando o lago, e, como os gregos, dando forma humana à Natureza e suas teofanias114, ele faz de Walden um símbolo natural de sua realidade espiritual. Assim, a profundidade do lago torna-se indicativa da profundidade da própria existência humana. “Um lago é o traço mais belo e expressivo da paisagem”, medita ele. “É o olho da terra; fitando dentro dele, o observador mede a profundidade de sua própria Natureza. As árvores fluviais perto da margem são os finos cílios que a franjeiam, e as colinas e os despenhadeiros arborizados ao redor são os sobrecílios em relevo”115. O degelo do lago na primavera é também aproximado da imagem de uma pessoa a despertar, simbolizando um modo de ser no mundo que, ao ser aproximado do modo humano de ser, aponta para uma unidade que a ambos engloba. Quando Walden começou a descongelar na primavera, “ele ficou se espreguiçando e bocejando como um homem ao acordar, num alvoroço cada vez maior [...]. Tirou uma pequena sesta após o meio-dia, e voltou a estalar ao final da tarde”. Observando a sensibilidade de Walden às influências da Natureza, ele conclui que também o lago obedece a uma lei, que é por ele cumprida “com a mesma segurança com que os brotos crescem na primavera”. Ao contrário de pretender domesticar a paisagem, o intuito de Thoreau ao aproximar os demais seres da expressão humana é sugerir que somos todos parte de uma congregação maior, uma terra que “está viva e coberta de papilas”; uma Natureza que é “mãe da humanidade”116. 110 BUELL, op. cit., p. 475. 111 THOREAU, 2019, p. 188. 112 ibid., p. 178-180. 113 ibid., p. 273. 114 Vale lembrar aqui, junto a Walter Otto, que a personificação do divino, que foi tratada por alguns filósofos antigos e teólogos cristãos como idolatria, representa, na verdade, sob a perspectiva religiosa grega, o apogeu da teofania no mundo. “Estimam necessário pensar o divino como, em si mesmo, livre de toda corporeidade”, escreve Otto, “mas não terá o divino de fazer-se humano quando quer revelar-se aos homens? Na verdade, não se trata de superstição; dá-se antes o contrário: aparecer o divino ao homem mostrando-lhe um rosto humano é o sinal da revelação mais autêntica” (OTTO, 2006, p. 44). 115 THOREAU, 2019, p. 181. 116 ibid., p. 286 e 292. 188 Ao modo dos românticos, Thoreau vê na Natureza, tal qual incorporada na particularidade de Walden, o olho do céu na terra, um espelho da alma e sua busca religiosa pela restauração de uma condição primeva de união com seu manancial: “Talvez não exista na face da Terra nada tão límpido, tão puro e, ao mesmo tempo, tão vasto quanto um lago. Água celeste”. “É um espelho que a pedra não quebra”, continua ele, “cujo mercúrio nunca se gasta, cujo dourado a Natureza restaura continuamente; nenhuma chuva, nenhuma poeira pode empanar sua superfície sempre fresca — espelho de onde some toda impureza, varrida e espanada pela escova enevoada do sol [...]”117. O profeta, como o autor havia expressado em A Week, nutre uma devoção pelo céu e pela terra, e (re)atravessa a ponte que os conecta. Sua mensagem poética professa uma intercomunicação de correspondência entre o natural e o espiritual, simbolizada nas imagens da terra e do céu. Esse também é, afinal, o ensinamento alumiado por Thoreau a partir de sua relação com as ondulações daquelas águas autóctones: De Deus e do Céu vou me acercar Tendo em Walden modelo exemplar. Sou a margem que o rodeia E a brisa que por ele passeia [...]118. A ligação entre a terra e o céu é o que podemos ler nas escrituras que os grifos sagrados de Walden entoam, de modo que o próprio lago emerge como uma representação do poeta- profeta119, um mediador entre o espiritual e o natural: “O Walden ora é azul, ora é verde, ainda que pelo mesmo ângulo de visão. Estando entre a terra e o céu, ele partilha da cor de ambos”120. “Um campo de água revela o espírito que está no ar”, escreve o autor mais adiante. “Do alto recebe continuamente nova vida e novo movimento. É, em sua natureza, o intermediário entre o céu e a terra”121. O lago de Concord torna-se, assim, representação e presentificação de um tempo pré-lapsariano, da era de ouro, na medida em que sugere à imaginação a existência de uma condição originária de “pureza” onde todos os seres ainda estavam “ligados” à Natureza: “Talvez o Lago Walden já existisse naquela manhã primaveril quando Adão e Eva foram 117 ibid., p. 183. 118 ibid., p. 187. 119 Lydia Willsky vê o Lago Walden como uma “metaphor for the poet-prophet”. Em seu argumento, ela lembra a colocação de Richard Schneider sobre o papel poético-profético do lago: “the seer and the pond were poets in their ability to capture the relationship between subject and object and between heaven and earth, and both could reveal the new and beautiful truth it contained. Like God, Nature and humanity were creators and revealers of truth” (WILLSKY, op. cit., p. 640). 120 THOREAU, 2019, p. 172. 121 ibid., p. 183. 189 expulsos do Paraíso, e já então se dissolvesse numa branda chuva de primavera [...], e se cobrisse de miríades de patos e gansos, que nunca tinham ouvido falar da queda [...]”122. Como todos os exercícios religiosos de Thoreau e seus símbolos, Walden e seu simbolismo poético é contraposto ao modo de ser da civilização contemporânea. Se, por um lado, o Lago Walden comporta águas límpidas que pressupõem a irrupção de novas eras primaveris, por outro lado, o Lago de Flints representa a decadência da relação moderna com a economia mais ampla da Natureza. Enquanto o primeiro é muito puro para ter valor mercantil123, o último expressa a devastação da paisagem causada pelas mãos humanas, esquecidas do valor sagrado do mundo e interessadas apenas no dinheiro e nos luxos materiais advindos dos “recursos naturais”. No prognóstico thoreauviano, como temos dito, o definhamento de nossa relação com o cosmo é expresso em nosso emprego da linguagem, que é despida de seu gênio poético e seu serviço a fins superiores. Assim, se Walden é nomeado a partir de um conto indígena que encena os poderes misteriosos e incontroláveis da terra, o Lago de Flints demonstra ter como referencial a ideia moderna de que o ser humano é “dono” da Natureza, sinônimo do desrespeito pelo valor intrínseco de todas as vidas e da desdivinização das linguagens naturais (a nossa própria incluída). Lago de Flints! Tal é a pobreza de nossa nomenclatura124. Que direito tinha o agricultor sujo e obtuso, cuja terra chegava até essa água celestial, de margens que desnudou impiedosamente, de dar seu nome a ela? Um Flint sovina, que preferia a superfície reluzente de um dólar ou de um luzidio centavo, onde podia mirar sua cara despudorada; o qual considerava como invasores até os patos selvagens que pousavam ali [...]. Não vou lá para ver nem para ouvir quem nunca viu o lago, quem nunca se banhou nele, quem nunca o amou, quem nunca o protegeu, quem nunca o elogiou, quem nunca agradeceu a Deus por tê-lo feito. [...]. Não respeito a labuta, a lavoura onde tudo tem seu preço, de quem é capaz de levar a paisagem, de levar seu Deus ao mercado, se isso lhe render alguma coisa; que vai ao mercado como se este fosse seu deus; em cujas terras nada cresce em liberdade, cujos campos não geram colheitas, cujas campinas não dão flores, cujas árvores não se carregam de frutas, e sim de dólares [...]125. Walden, por sua vez, é articulado a partir da linguagem mitopoética das escrituras sagradas das nações. Através do contato com esse olho espiritual que paira sobre a terra, 122 ibid., p. 174-175. 123 ibid., p. 192. 124 Diferente seria, diz Thoreau, se ao lago fosse dado um nome heroico: “se é para dar nomes humanos aos mais belos traços da paisagem, que sejam apenas os dos homens mais nobres e dignos. Que nossos lagos recebam nomes autênticos como, pelo menos, o Mar de Ícaro, onde ‘na orla ainda ressoa’ uma ‘valorosa ação’” (ibid., p. 190). 125 ibid., p. 189-190, grifos do autor. 190 Thoreau confirma sua concepção de que “a natureza é una e contínua em toda a parte”126, e revela suas entranhas sagradas em qualquer lugar em que haja abertura para uma visão espiritual da Natureza. Nos lúcios de Walden, ele encontrava uma expressão particular do encantamento universal da Natureza; eles eram detentores de uma “rara beleza, como se fossem peixes fabulosos, tão estranhos às ruas e mesmo às matas, estranhos como a Arábia para nossa vida em Concord”. Na particularidade que caracterizava o maravilhamento nele produzido por esses peixes, Thoreau mirava um fundamento universal: “São, sem dúvida, o Walden em sua inteireza; são em si pequenos Waldens do reino animal, da seita dos waldenses”127. Na aproximação atenta do lago e seus seres, relembrando os românticos, o autor vislumbrava a correspondência entre as leis naturais e as leis morais. Naquelas águas, ele encontrava expressões simbólicas da profundidade e, também, da superficialidade da conduta humana: Se conhecêssemos todas as leis da Natureza, bastaria apenas um fato ou a descrição de um único fenômeno concreto para inferir daí todos os resultados particulares. [...]. O que observei em relação ao lago é igualmente verdadeiro em relação à ética. É a lei da média. Essa regra dos dois diâmetros não só nos guia em direção ao sol no sistema e ao coração no homem, como também traça linhas no sentido do comprimento e da largura no conjunto de comportamentos diários e ondulações da vida de um homem, penetrando em suas baías e enseadas, e o ponto de intersecção entre elas será a altitude ou a profundidade de seu caráter. Talvez baste apenas sabermos como se inclinam suas margens e terrenos ou circunstâncias adjacentes, para inferirmos sua profundidade e seu fundo oculto. Se ele estiver cercado de circunstâncias montanhosas, numa margem como a de Aquiles, cujos picos projetam sombras e se refletem em seu seio, elas hão de sugerir uma profundidade correspondente dentro dele. Já uma margem baixa e lisa demonstra que, sob este aspecto, ele é raso. [...]. É verdade que somos navegadores tão medíocres que nossos pensamentos, em sua maioria, ficam ao largo, numa costa desabrigada, em contato apenas com as curvas mais abertas das baías da poesia, ou rumam para a entrada dos portos públicos e atracam nas docas secas da ciência, onde se reaparelham meramente para este mundo, e nenhuma corrente natural vem individualizá-los128. Mais adiante, em “The Pond in the Winter” [“O Lago no Inverno”], as espiritualidades hindu e grega ilustram essa propensão para a detecção do espiritual no natural. De modo similar à visão que se revela aos hindus, nas flutuações do rio Ganges, e, outrossim, de forma parecida com as concepções míticas das ilhas das Hespérides e de Atlântida, conforme concebidas pelos gregos, o lago de Concord comunica ao seu observador um semblante hierático. Ao relato de sua leitura do Bhagavad-Gītā, o autor emaranha sua percepção, no próprio Lago Walden, da 126 Writings, I, p. 372. No original: “nature is one and continuous everywhere”. 127 THOREAU, 2019, p. 270. 128 ibid., p. 276-277. 191 mesma sacralidade retratada no texto sagrado hindu, um cenário que também o faz lembrar dos cenários encantados da mitologia grega. Sob essa ótica, nas profundidades fluviais do lago de sua terra natal são vislumbradas dimensões universais, reguladoras dos vínculos existentes entre a totalidade do mundo natural e seu fundamento divino. Pouso o livro e vou à minha fonte em busca de água, e eis que ali encontro o servo dos brâmanes, o sacerdote de Brahma, Vishnu e Indra129, que continua sentado em seu templo no Ganges lendo os Vedas, ou habita ao pé de uma árvore com sua côdea e bilha de água. Encontro seu servo, que veio buscar água para seu mestre, e nossos baldes como que se roçam na mesma fonte. A água pura do Walden se mescla à água sagrada do Ganges. Às lufadas dos ventos favoráveis, ela avança pelas ilhas fabulosas de Atlântida e das Hespérides130, faz o périplo de Hanno e, flutuando por Ternate e Tidor e pela foz do Golfo Pérsico, dissolve-se nas tempestades tropicais dos mares índicos e chega a portos que mesmo Alexandre conheceu apenas de nome131. A transição entre o desfalecimento do inverno e a vivacidade da primavera é o tema que alinhava os capítulos finais da obra thoreauviana. O simbolismo do tempo primaveril, entendido como anúncio de uma nova era, é uma constante no romantismo. Lembremos, a título de ilustração, os versos de Shelley em sua Ode to the West Wind (1820): Leva meus pensamentos mortos pelo mundo, Quais folhas murchas, e haverá um renascimento! E, pela força encantatória destes versos, Espalha a minha voz por entre a humanidade, Como cinzas e chipas na lareira acesa! Para a terra que dorme, sê, com estes lábios, Oh! a trombeta de uma profecia! Vento, Se chega o inverno, estará longe a primavera?132 129 Na mitologia hindu, Brahma, divindade da criação, e Vishnu, divindade da conservação, junto a Shiva, divindade da destruição, compõem a trindade que engloba as faces triádicas da manifestação divina no mundo (Trimūrti). Indra, por sua vez, o rei dos deuses (devas), é a divindade védica que reina no Céu (svarga) e rege seus fenômenos. 130 Hespérides são as “Ninfas do Poente” que encarnam a transição entre o dia e a noite. São moradoras do Jardim das Hespérides, localizado, na mitologia grega, no Extremo Ocidente, e protegido por um dragão. Esse jardim é famoso por suas maçãs de ouro, roubadas por Héracles — parte de seus “doze trabalhos”. Atlântida, por sua vez, é uma ilha mítica mencionada por Platão em seus diálogos Timeu e Crítias, caracterizada por suas abundantes riquezas. Conforme a lenda, os atlantes foram destruídos após sua tentativa de dominar o globo (GRIMAL, op. cit., p. 226 e 54). 131 THOREAU, 2019, p. 283. Alteramos a tradução de “Brama” para “Brahma”. 132 SHELLEY, P. B. Ode ao Vento Oeste e outros poemas. Organização e tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. 2. ed. São Paulo: Hedra, 2009, p. 47. 192 Na verdade, antes de ambientar os anúncios poético-proféticos dos românticos, o símbolo arquetípico da primavera e sua expressão do constante renascimento do cosmo presentifica-se nas tradições religiosas de diversos povos ocidentais e orientais. A ênfase na época do florescimento ocupava um lugar central nas cosmovisões das sociedades agrárias antigas, que atribuíam às árvores e às plantas, de modo geral, uma tonalidade hierofântica, demonstração da centralidade do ritmo sazonal nas experiências religiosas primevas. Nos termos de Mircea Eliade (1907–1986), “[a] primavera é uma ressurreição de toda a vida e, consequentemente, da vida humana. Neste ato cósmico, todas as forças da criação retornam ao seu vigor primitivo. A vida é totalmente reconstituída”, e, assim, “tudo recomeça; em suma, repete-se o ato primevo da criação do cosmos, pois toda regeneração é um novo nascimento, um retorno àquele momento mítico em que apareceu pela primeira vez uma forma que deveria ser constantemente regenerada”133. O símbolo mitopoético da primavera é, em síntese, uma indicação da periódica renovação do universo, da imperiosidade do renascimento de todas as coisas e, portanto, da recriação do mundo134. A paisagem torna-se uma hierofania, incorporando e expressando o sagrado, como salienta o estudioso das religiões romeno, “na medida em que significa outra coisa que não ela mesma. Nenhuma árvore ou planta é sagrada simplesmente como árvore ou planta; assim se tornam porque compartilham de uma realidade transcendente, assim se tornam porque significam essa realidade transcendente”135. Também para Thoreau os fenômenos primaveris, ainda que possuam sim um valor intrínseco, são indicações de uma realidade transcendente que, por englobar todos os reinos cósmicos, vai além deles próprios, mas que se caracteriza pela interconexão entre todas as coisas do mundo imanente, um “ligamento” que é continuamente reinstaurado. Concorde com o arquétipo ancestral da primavera e, de forma mais ampla, com a relevância do ritmo cíclico das estações para a orientação da existência humana em todas as suas dimensões, Thoreau apreende a primavera em sua condição simbólica e orgânica de 133 ELIADE, Mircea. Patterns in Comparative Religion. Traduzido por Rosemary Sheed. London/New York: Sheed & Ward, 1958, p. 309, grifos do autor. Na tradução consultada: “Spring is a resurrection of all life, and consequently of human life. In that cosmic act, all the forces of creation return to their first vigour. Life is wholly reconstituted; everything begins afresh; in short, the primeval act of the creation of the cosmos is repeated, for every regeneration is a new birth, a return to that mythical moment when for the first time a form appeared that was to be constantly regenerated”. 134 “Every idea of renewal, of beginning again, of restoring what once was, at whatever level it appears”, escreve Eliade (1958, p. 413), “can be traced back to the notion of ‘birth’ and that, in its turn, to the notion of ‘the creation of the cosmos’”. 135 ELIADE, 1958, p. 324, grifos do autor. Na tradução consultada: “in so far as it signifies something other than itself. No tree or plant is ever sacred simply as a tree or plant; they become so because they share in a transcendent reality, they become so because they signify that transcendent reality”. 193 renascimento; de um tempo mítico de recriação do mundo, de restauração de suas potencialidades originárias. No penúltimo capítulo de Walden, “Spring” [“Primavera”], o despontar da estação do renascimento assinala a perene gênese cósmica, reveladora da existência de poderes sagrados a habitar o mundo. Esse agenciamento divino de todas as coisas é estampado na renovação dos demais seres da Natureza, eles próprios entoadores de símbolos de esperança e louvores que compõem as notas escriturísticas do tempo presente. O primeiro pardal da primavera! O ano começando mais esperançoso do que nunca! Os débeis trinados argênteos do azulão, do pardal cantador e do melro- de-asa-vermelha, que se ouviam acima dos campos parcialmente nus e úmidos, como se os últimos flocos do inverno retinissem ao cair! Nessa hora, o que são histórias, cronologias, tradições e todas as revelações escritas? Os regatos entoam hinos e cânticos à primavera136. A primavera é a materialização de um tempo originário, reencenação da criação cósmica: “a chegada da primavera é como a criação do Cosmo a partir do Caos e a materialização da Idade de Ouro”137. A estação do renascimento de todas as coisas também aqui anuncia, portanto, a reinauguração da condição existencial humana. Se com a Aurora é simbolizada a busca pelo despertar individual, com a primavera é simbolizada a esperança pela renovação da sociedade em sua totalidade138. “Uma única chuva branda aviva o verdor do capim”, escreve o autor. “Assim também nossas perspectivas brilham à chegada de novos pensamentos”139. No tempo do renascimento, a poesia da terra canta a infância da vida, pois mesmo sendo a mais ancestral, a Natureza renasce continuamente, proclamando a conclusão do estado de crise marcado pelo desconforto do inverno140: Eis o gelo se afastando do solo; eis a Primavera. O degelo precede a primavera verde e florida, tal como a mitologia precede a poesia. Não conheço nada que purgue melhor os gases e as indigestões do inverno. Ele me convence que a Terra ainda está envolta em fraldas, e estende dedinhos de bebê para todos os 136 THOREAU, 2019, p. 294, grifos acrescentados. 137 ibid., p. 297. 138 “If he [Thoreau] uses dawn to signify capacities for renewal in (human) nature, he uses spring as a metaphor to embody culture by making form giving and shape shifting part of nature” (SHULMAN, op. cit., p. 142, grifo do autor). 139 THOREAU, 2019, p. 297. 140 “A passagem do inverno tempestuoso para o tempo ameno e sereno, das horas arrastadas e escuras para as flexíveis e brilhantes, é uma crise memorável anunciada por todas as coisas” (ibid., p. 295). A transição do inverno para a primavera simboliza, nesse sentido, a passagem da escuridão para a iluminação, a conversão da “indigestão” invernal de nossas concepções para a fruição primaveril. O que aqui é operado em uma dimensão coletiva, aparece no símbolo da manhã em termos individuais: a conversão da “noite escura da alma”, como denominou a tradição ocidental a partir de São João da Cruz, para o amanhecer de novas concepções espirituais. 194 lados. Novos cachos nascem da mais calva fronte. Não existe nada inorgânico141. A primavera, por conseguinte, torna-se símbolo da esperança de novas eras, tempos em que não nos enxerguemos exclusivamente sob a perspectiva afirmadora de nossa separação da fonte divina e da bem-aventurança de um outro mundo, mas em que a inocência da visão prevaleça. Parece-nos, enfim, que com o termo “inocência” Thoreau quer nomear a coragem de enxergar a sacralidade em todas as coisas, ver que elas não estão fundamentalmente separadas de seu manancial, pois sua ligação com a fonte é continuamente renovada junto aos ciclos cósmicos. Para expressar essa ideia, ele transita entre as imagens da era de ouro grega, do despertar, da primavera, da inocência e da infância do mundo, sinalizadores que sempre aparecem conectados em seu pensamento142: Numa manhã agradável de primavera, os pecados de todos os homens são perdoados. [...]. Por meio de nossa inocência recuperada, percebemos a inocência de nossos vizinhos. Ontem você talvez conhecesse seu próximo como ladrão, bêbado e sensualista, e sentisse apenas piedade ou desprezo, e perdesse as esperanças no mundo; mas o sol brilha claro e quente nesta primeira manhã de primavera, recriando o mundo, e você encontra seu vizinho em alguma atividade serena, e vê como suas veias exaustas e devassas se dilatam numa calma alegria e abençoam o novo dia, sentem a inocência primaveril com a inocência da infância, e todas as suas faltas são esquecidas143. Na primavera, somos convidados a contemplar a manhã da vida, a (re)criação de todas as coisas. Este é um símbolo que quer ser incorporado, e transformado em saúde e vigor no viver, seja em nossa relação corpórea com o mundo, seja em nossas cosmovisões. Assim nos diz Thoreau cinco anos após a publicação de Walden: Meça sua saúde por sua simpatia com a manhã e a primavera. Se não houver em você sensibilidade para o despertar da natureza — se a perspectiva de uma caminhada matinal não banir o sono, se o gorjeio do primeiro pássaro azul não o emocionar — saiba que a manhã e a primavera de sua vida se passaram144. 141 ibid., p. 292. 142 “Enlightenment, awakening”, escreve Andrade (op. cit., p. 100), “together with ‘dawn,’ ‘morning,’ ‘childhood,’ ‘youth,’ ‘music,’ ‘Spring,’ and ‘Greece,’ those are some of Thoreau’s very particular thesaurus, his favorite code words for an inconceivable experience that lies at the very heart of his pedagogic process [...]”. 143 THOREAU, 2019, p. 297-298. 144 THOREAU, Henry David. Journal XI: July 2, 1858 — February 28, 1859. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 17, p. 455. 25 de fevereiro de 1859. No original: “Measure your health by your sympathy with morning and spring. If there is no response in you to the awakening of nature, — if the prospect of an 195 A inocência da primavera, que faz irromper o tempo primordial da infância do globo, noticia o despertar para a semelhança entre a miríade de fenômenos vitais, todos eles originados na “oficina” de um mesmo “Artista”. É o que pondera Thoreau a partir da imagem orgânica da rampa de areia e folhas formada por consequência do degelo de Walden. A partir do símbolo da rampa de areia, à qual se juntam diversas folhas secas, formadoras de um “produto híbrido”, “uma vegetação realmente grotesca”, “uma espécie de folhagem arquitetônica mais antiga”145, ele pinta uma estética do grotesco (do latim grotto; relativo a grutas e cavernas), na qual é revelada uma ética ecocêntrica. Com os hibridismos que o solo e sua vegetação assumem no decorrer das estações, o autor encena, nesse fenômeno particular, a universalidade do agenciamento divino na Natureza — que faz nascer, a partir de uma mesma cavidade, uma única “gruta”, a multiplicidade da criação. Assim, as formas e cores que a rampa arenosa transparece em seus desenhos (que são formados como que por um milagre) remetem igualmente aos traços do modo de ser da folha e ao modo de ser dos animais, nós próprios incluídos. Recorrendo à etimologia das palavras, Thoreau insere a formação humana a essas configurações orgânicas mais rústicas da Natureza. As folhas, assim como os órgãos dos animais, encontram seu protótipo no movimento da areia que desliza com a mudança de estação. Por isso, afirma o autor, o globo (λοβος, globus: lobo, globo) carrega, por toda parte, a forma escorregadia do lobo (λειβω, labor, lapsus) — um termo aplicado tanto ao fígado e aos pulmões quanto às folhas. A partir desse exercício observativo e imaginativo, nosso pensador argumenta a favor da origem de todas as formas de vida na arquitetura construída pela terra em suas respostas às leis naturais: O que torna admirável essa folhagem de areia é que ela passa a existir de súbito. Quando vejo num dos lados a rampa inerte [...], sinto-me atingido como se, num sentido bem peculiar, estivesse na oficina do Artista146 que criou o mundo e a mim — como se tivesse vindo ao local onde ele ainda estava a trabalhar, entretendo-se com essa rampa e, num excesso de energia, early morning walk does not banish sleep, if the warble of the first bluebird does not thrill you, — know that the morning and spring of your life are past”. 145 THOREAU, 2019, p. 289. 146 Tal passagem nos faz recordar das palavras de Novalis em Os Discípulos em Saїs: “Quem pertencer a tal raça e tiver esta fé, quem quiser participar neste desbravar da natureza, deverá frequentar o estúdio do artista, ouvir a insuspeitada poesia que se filtra por todas as coisas, nunca se mostrar cansado de contemplar a Natureza nem de manter com ela relações, em todo o lado deverá seguir-lhe os conselhos, não se furtar a penosas caminhadas, quando ela o chamar, mesmo que seja forçoso transpor lamaceiros; por certo encontrará tesouros indizíveis; no horizonte já surge a lanterna do mineiro. E quem saberá dizer em quantos celestiais segredos pode iniciá-lo uma maravilhosa habitante dos reinos subterrâneos?” (VOLOBUEF, Karin. Novalis e a natureza: uma leitura de Os Discípulos em Saїs, sob a ótica de Rousseau. Florianópolis: outra Travessia (UFSC), n. 7, p. 141-148, 2008, às páginas 144-145, grifos acrescentados). 196 espalhando por ela seus novos desenhos. Sinto-me como se estivesse mais próximo dos órgãos vitais do globo, pois este transbordamento de areia é uma espécie de massa foliácea tal como os órgãos vitais do corpo animal147. O simbolismo da primavera, em síntese, afasta a morte não em seu sentido material meramente, mas a morte simbólica do encantamento do mundo. O acontecer primaveril e seu renascimento, afinal, é a exteriorização empírica mais contundente da existência de um princípio vital imperecível que não envelhece e não desfalece jamais. “Não é necessária nenhuma prova mais sólida da imortalidade”, escreve Thoreau, lembrando-se da luminosidade dos bosques e seus salgueiros. “Onde estava, ó Morte, teu aguilhão? Onde estava, ó Túmulo, tua vitória então?”. Similarmente, expressando a transição da melancolia do inverno para a vivacidade da primavera, ele pondera: “Tal é o contraste entre o inverno e a primavera. O Walden estava morto e agora está vivo”148. Nos sons e movimentos das tartarugas e das rãs, precursoras da estação primaveril; nas “piruetas vocais” dos esquilos-vermelhos; nas sensações despertas pelas lâminas verdejantes do capim, um “símbolo da eterna juventude”; no canto do pardal; na “face nua do lago repleto de brilho e juventude, como se falasse da alegria dos peixes ali dentro”; na “cantiga suave e poderosa” do tordo; nos bosques de pinheiros e carvalhos verdosos; no grasnar dos gansos149; em suma, nas linguagens da Natureza em sua completude, Thoreau encontra o vigor celestial da terra e seu sempiterno renascimento e despertar, espiral da qual também somos partícipes. Todos esses símbolos, como pudemos perceber, são transcritos a partir de uma experiência de conhecimento sensitivo da Natureza, que é frequentemente expressa com o auxílio de imagens míticas. Com isso, Thoreau demonstra como a germinação da palavra e, em especial, da palavra poética, está ligada à nossa percepção corpórea do mundo natural, e que são os rumos dessa relação que encaminham a composição de nossas cosmovisões. Incorporando seu próprio uso poético-profético da linguagem e seu caráter simbólico para fins superiores, o autor de Walden deslinda seus “exercícios religiosos” e seus simbolismos a partir de um contexto maior de resgate ontológico e epistêmico da relação entre a dimensão espiritual e suas raízes naturais. Em sua própria elaboração da ideia de correspondência entre Natureza e espírito, nosso autor, em contraposição à cosmovisão desencantada da modernidade, que separou o céu da terra, emprega símbolos mitopoéticos que transmitem a interdependência entre o imanente e o transcendente, o natural e o espiritual, o exterior e o interior — uma linguagem 147 ibid., p. 290. 148 ibid., p. 300 e 295. 149 ibid., p. 293-296. 197 construída a partir de sua revisão do emprego dos sentidos como “germes divinos”, e cujo teor espiritual busca retomar o sacro ofício do bardo. Como buscamos transparecer ao longo de nossas reflexões no transcorrer deste capítulo, Henry Thoreau, a partir de sua herança romântica-transcendentalista, esposa um anseio poético- profético de transmitir, por intermédio da literatura, uma proposta de religar. Na expressão de sua captação das escrituras da Natureza no tempo presente, o resgate do vigor simbólico da linguagem, oriundo das próprias analogias que fornecem a Natureza, possui um espaço primordial. Em Walden, a correspondência simbólica entre Natureza e espírito é transparecida no decorrer de toda a narrativa, e é empregada, de forma singular, no sentido de apontar para uma lapidação da sensibilidade que reencaminhe para a valoração sagrada do mundo, para a devoção à terra e ao céu. Tal qual em A Week, encontramos em Walden a ênfase no vínculo entre o céu e a terra, símbolos do espiritual e do natural, assim como o entendimento da Natureza enquanto o mais poderoso bálsamo para nossas perspectivas adoecidas sobre o mundo e sobre nós mesmos, consequência do desligamento operado sobre a ligadura céu-terra (processo no qual tem sua parte tanto a cosmovisão religiosa dominante como as estruturas civilizacionais industriais). O poder do simbolismo que reúne o céu e a terra, apropriado não apenas por nosso autor, mas pelos românticos de modo geral, é indicado pela curiosa reaparição dessas imagens, ainda que com objetivos dos mais diversos, em diferentes tradições religiosas. Em Walden, Thoreau se recorda da expressão chinesa dessa relação a partir da corrente confuciana, conforme expressa em um dos chamados “Quatro Livros” chineses, Zhōngyōng: A Doutrina do Meio (16.1-3): “Quão vasta e profunda é a influência dos poderes sutis do Céu e da Terra!” “Tentamos percebê-los, e não os vemos; tentamos ouvi-los, e não os ouvimos; identificados com a essência das coisas, não podem ser separados delas.” “São a causa pela qual, em todo o universo, os homens purificam e santificam seus corações, e vestem suas roupas cerimoniais para oferecer sacrifícios e oblações a seus ancestrais. É um oceano de inteligências sutis. Estão por todas as partes, acima de nós, à nossa esquerda, à nossa direita; elas nos cercam por todos os lados.”150 Os agenciamentos misteriosos do céu e da terra na completude do mundo e suas gestações nos são similarmente transmitidos através das palavras sapienciais de Lao Zi (c. séc. VI a.e.c.) nas linhas iniciais do Dao de Jing: 150 ibid., p. 134. 198 O Dao que se pode falar não é o Dao Constante. O nome que se pode nomear não é o Nome Constante. O Vazio é o princípio do Céu e da Terra. A Existência é a mãe de todos os seres. [...]. Embora com nomes distintos, ambos se originam do mesmo princípio: mistério pleno de mistérios, portal de todos os prodígios151. Essas sugestões nos fazem recordar, no panorama asiático, da tradição do Ṛgveda, o primeiro testemunho poético-religioso da Índia. Em seu hino ao Céu e à Terra (I.160, 1-2), o sábio Dīrghatamas Aucathya assim canta: Pois estes dois, Céu e Terra, para todos benéficos, plenos de verdade, são aqueles que sustentam o poeta do reino etéreo [o Sol] [...]. Os dois grandiosos de vasta extensão, inesgotáveis, o pai e a mãe, que protegem os seres vivos — as duas metades do mundo, as mais vigorosas [...]152. Também na Grécia encontramos a expressão do laço familiar entre o céu e a terra153, como já apontamos a partir das reflexões thoreauvianas em A Week. Em sua Teogonia [Os Deuses primordiais, 126-128], Hesíodo, em seus versos de devoção, comemora os princípios do cosmo invocando a Terra (Gaia) e o Céu (Urano): Terra primeiro pariu igual a si mesma Céu constelado, para cercá-la toda ao redor e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre154. O estoico Cleantes de Assos (c. 330–230 a.e.c.), por sua vez, em seu Hino a Zeus, assim proclama a glória do poder supremo: 151 LAOZI. Dao de Jing: o livro do Tao. Tradução de Chiu Yi Chih. São Paulo: Mantra, 2017, p. 9. 152 The Rigveda: The Earliest Religious Poetry of India. Traduzido por Stephanie W. Jamison e Joel P. Brereton. Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 339, v. 1. Na tradução consultada: “Because these two, Heaven and Earth, beneficial to all, truthful, are those who uphold the poet of the airy realm [...]. / The two great ones of broad expanse, inexhaustible, the father and mother, protect living beings — / the two world-halves, the very boldest ones [...]”. 153 A ênfase na relação entre céu e terra na Grécia antiga devo ao meu orientador, Prof. Dr. Clodomir Barros de Andrade, que abordou esse tema repetidas vezes em suas aulas recentes da Graduação e da Pós-Graduação a partir de um fragmento órfico (“Sou filho da Terra e do Céu estrelado”). 154 HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 109. 199 Sem ti, nada se cumpre sobre a terra, Ó espírito divino; nem na sagrada esfera celeste [...]155. A vinculação arquetípica entre céu e terra é também recordada na tradição judaico- cristã. No Antigo Testamento, o poeta-profeta assim entoa seu cântico ao divino: “Entoai ao SENHOR a ação de graças, / tocai para o nosso Deus na cítara: / é ele que cobre os céus de nuvens, / que prepara a chuva para a terra / e faz brotar a erva sobre as montanhas [...]” (Salmo 147, versículos 7-8)156. Já no Novo Testamento, sob a égide do apóstolo Mateus (18:18-19), palavras de sabedoria e esperança são declamadas a partir do vislumbre da conexão entre o celeste e o terreno: Em verdade eu vo-lo declaro: tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu. Eu vos declaro ainda: se dois dentre vós, na terra, se puseram de acordo para pedir seja o que for, isto lhes será concedido por meu Pai que está nos céus157. Conforme enfatizamos aqui, a interpretação específica do poeta religioso de Concord desse simbolismo tem por intuito resgatar nossa pertença à dimensão terrena, correspondente ao nosso parentesco com o reino celeste. “O céu”, pondera o poeta-profeta norte-americano, “está sob nossos pés e sobre nossas cabeças”, pois a promessa espiritual do despertar que se pressente vir do alto se estampa nos recônditos da terra. “A pureza amada pelos homens”, lemos na conclusão do livro, “é como a neblina que envolve a terra, e não como o éter azul-celeste mais além”. “A Natureza não tem habitante humano que a aprecie”, reprova ele. Enquanto as pessoas sublimam um mundo celestial, destroem sua contraparte terrenal: “E falais dos céus! vós desgraçais a terra”158. Temática recorrente nos escritos de Thoreau, o retorno para a terra, em contraposição à ênfase exclusiva no céu, permanece aparecendo nos diários posteriores à publicação de Walden. “Os homens dão uma falsa importância aos fenômenos celestes em comparação com os terrestres”, escreve ele em 1856, “como se fosse mais respeitável e engrandecedor vigiar os vizinhos do que cuidar de nossos próprios assuntos. Os nós das estrelas não são os nós que devemos desatar”159. 155 REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga: Os Sistemas da Era Helenística. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994, v. 3, p. 311. 156 BÍBLIA, op. cit., p. 1160. 157 ibid., p. 1894. 158 THOREAU, 2019, p. 269, 307 e 193. 159 Writings, XVIII, p. 390. 16 de outubro de 1859. No original: “Men attach a false importance to celestial phenomena as compared with terrestrial, as if it were more respectable and elevating to watch your neighbors than to mind our own affairs. The nodes of the stars are not the knots we have to untie”. 200 Parece-nos que as palavras do poeta argentino Jorge Luis Borges (1899–1986) e sua indicação, no poema Llaneza, de que os frutos celestes da vida se fazem ouvir no reconhecimento de nossa pertença radicular à terra, soam convergentes, afinal, com o teor da mensagem apregoada por Thoreau: Isso é alcançar o mais alto, o que talvez nos dará o Céu: não admirações ou vitórias mas sermos simplesmente admitidos como parte de uma Realidade inegável, como as pedras e as árvores160. A apreciação thoreauviana do encantamento do mundo, em oposição ao desencantamento e à dessacralização dos fenômenos e seres que neste mundo habitam, emana de um ouvir atento à música da Natureza, cujas melodias refletem e ambientam uma busca espiritual individual. Essa cadência da orquestra natural destoa substancialmente da pressa desritmada dos modos de vida correntes na civilização moderna: “Por que havemos de ter uma pressa tão desesperada em conseguir sucesso, e em empreendimentos tão desesperados?”, pergunta-se o autor de Walden na conclusão da obra. “Se um homem não mantém o passo com seus companheiros, talvez seja porque ouve um outro toque de tambor. Ele que acompanhe a música que ouve, por mais marcada ou distante que seja”161. Tendo em vista que o poeta-profeta fala a linguagem dos símbolos, conforme captada pelos sentidos, como procuramos transparecer até agora, dedicar-nos-emos, doravante, à reflexão sobre a fonte dos sons desse “toque de tambor” que nosso poeta-profeta ouve e transmite simbolicamente em sua narrativa mitopoética, convidando à mudança de nosso passo — os hieróglifos musicais da Natureza e sua mousiké. 160 BORGES, Jorge Luis. Obra poética: 1923-1977. Buenos Aires: Emecé Editores, 1981, p. 56. No original: “Eso es alcanzar lo más alto, / lo que tal vez nos dará el Cielo: / no admiraciones ni victorias / sino sencillamente ser admitidos / como parte de una Realidad innegable, / como las piedras y los árboles”. 161 THOREAU, 2019, p. 307. 201 3. Hieróglifos musicais: a orquestra da Natureza1 Ouço o débil som de uma viola e vozes vindas do chalé vizinho, e penso comigo mesmo: “Acreditarei somente na Musa para todo o sempre”. Ela me garante que nenhum brilho que se apodera da alma serena é enganador. Ela me alerta sobre uma realidade e uma substância das quais o melhor que vejo nada mais é senão o fantasma e a sombra. Ó música, tu me falas de coisas que a memória não tem em conta; tuas notas são sussurradas para além dos ouvidos da memória. Esta é a planície mais nobre da terra, através da qual esses sons são transmitidos, a planície de Tróia ou de Elêusis. (Henry David Thoreau, Journals)2. A música é edificante, pois, de quando em quando, põe a alma para funcionar. A alma é o colecionador de elementos díspares (Mestre Eckhart), e seu trabalho nos enche de paz e amor. (John Cage, “Precursores da Música Moderna”)3. Ver e ouvir as vozes divinas na Natureza: como temos dito, é essa precisamente a atmosfera a partir da qual buscamos traçar nossa discussão sobre o pensamento religioso thoreauviano. Indo na contracorrente da tradição filosófica clássica no que diz respeito à afirmação de que Deus, sendo condição de possibilidade de todo o mundo material, não pode ser experimentado pela sensibilidade, Thoreau posiciona a corporeidade como via precípua de acesso ao divino. Muito embora nosso autor tenha como fundamento de suas reflexões um panorama transcendente que fundamenta todo o vir a ser, suas considerações poético-filosóficas realçam a profundidade da ligação que reúne Natureza e espírito, imanência e transcendência, corpo e mente, pensar e viver. Como nos é indicado na passagem que traz a epígrafe, os ouvidos, em sua sensibilidade natural, são capazes de captar a vibração da convergência sonora das vozes cósmicas, e é por intermédio desta experiência concreta de incorporação sonora, justamente, que o ouvinte é alçado ao campo onde toca uma música “para além dos ouvidos da memória”. Longe de se referir a algo puramente abstrato, Thoreau aponta para a dimensão prática e imanente dessa música, cujo ritmo, melodia e harmonia encaminham a pessoa que a ouve à 1 A expressão “orquestra da Natureza” foi inspirada pelo título em português da obra de Bernie Krause The Great Animal Orchestra (2012): “A Grande Orquestra da Natureza: Descobrindo as Origens da Música no Mundo Selvagem”. 2 Writings, VII, p. 219. 20 de fevereiro de 1841. No original: “I hear the faint sound of a viol and voices from the neighboring cottage, and think to myself, ‘I will believe the Muse only for evermore’. It assures me that no gleam which comes over the serene soul is deceptive. It warns me of a reality and substance, of which the best that I see is but the phantom and shadow. O music, thou tellest me of things of which memory takes no heed; thy strains are whispered aside from memory’s ear. This is the noblest plain of earth, over which these sounds are borne, the plain of Troy or Eleusis”. 3 CAGE, John. Precursores da Música Moderna. In: ______. Silêncio. Tradução de Beatriz Bastos e Ismar Tirelli Neto. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019, p. 62-66, à página 62. Agradeço ao Prof. Dr. Eduardo Vicentini de Medeiros por apontar a relevância de Cage para esta parte do trabalho. 202 transformação, ao sendeiro da virtude, ao ver e ouvir que descobrem o encantamento do mundo. Em uma de suas epifanias, ele exclama: “Ah, se eu pudesse colocar em palavras essa música que ouço; aquela música capaz de trazer lágrimas aos olhos das estátuas de mármore! — à qual os próprios músculos dos homens são obedientes!”4. Como buscamos salientar até aqui, Thoreau não estava interessado em fornecer ao seu leitor uma construção filosófica sistemática, mas, antes, narrativas de seus experimentos pessoais de conhecimento de si através da Natureza (as quais, decerto, sugerem um fecundo conteúdo filosófico, especialmente no que diz respeito à indissociabilidade entre espiritualidade e corporeidade, ética e estética). Suas peregrinações meditativas, como temos procurado realçar, não se desvinculavam de suas perambulações físicas pelas matas de sua terra natal. Seus escritos poéticos e científicos, resultados de seu estudo da Natureza interior e exterior, noticiam que o fundamento transcendente do mundo é indicado não apenas na ampliação dos processos intelectivos, mas na abertura da própria sensibilidade corpórea — a transcendência é vista e ouvida. Em uma perspectiva categoricamente fenomenológica, o autor concordiano nos apresenta uma poética religiosa do ver e do ouvir. Ainda assim, sendo um filho do legado filosófico pós-kantiano (e, principalmente, de tradições espirituais ancestrais que já haviam indicado algo de similar ao que diz Kant), o “poeta-naturalista” norte-americano reconhece que a essência das coisas em si mesmas não pode ser desbravada. A despeito disso, Thoreau preconizava a busca constante pelos meios de conhecermos mais profundamente a nós mesmos, o fundamento divino do mundo e a Natureza por ele permeada, fosse por meio da poesia, da música ou do estudo empírico dos naturalistas. O destaque do ver e do ouvir, como mencionamos ao início, remete ao cenário do romantismo. Esse realce, como pudemos perceber até agora, ganha cores e sons concretos na prosa thoreauviana: Thoreau reúne suas reflexões espirituais e seu conhecimento sensitivo/empírico da Natureza num amalgamento bem-sucedido que não encontramos em outros autores aqui referidos. Embora seja evidente a distinção de nosso autor perante seus predecessores românticos no que concerne sua atenção à biota autóctone (razão pela qual o termo de Channing “poeta-naturalista” nos tem soado tão adequado), seu quadro intelectual/espiritual é fortemente marcado pelas tonalidades desse movimento. Com essa afirmação queremos novamente ressaltar a centralidade da teoria da correspondência simbólica entre Natureza e espírito, princípio capilar da religiosidade do pensador norte-americano. 4 Writings, X, p. 368. 28 de setembro de 1852. No original: “Ah, if I could put into words that music that I hear; that music which can bring tears to the eyes of marble statues! — to which the very muscles of men are obedient!”. 203 As linguagens do livro e da orquestra da Natureza, como aqui salientadas, trazem à baila símbolos que comunicam algo (ainda que não de forma direta e objetiva) acerca do eterno, entrelaçando a interioridade e a exterioridade, a unidade e a multiplicidade. Pretexta o autor que as imagens e sonoridades vistas e ouvidas em seu contexto espaço-temporal embriagavam seu corpo com formas e sons que proviam, na verdade, dos recônditos da alma. “Todas as visões e sons são vistos e ouvidos tanto no tempo quanto na eternidade”, declara o pensador em uma anotação pessoal. “E quando a eternidade de qualquer visão ou som atinge o olho ou o ouvido — eles são intoxicados com prazer”5. Referindo-se, em outra ocasião, às matas de sua terra natal, ele escreve, de forma similar: “Todos os seus sons e visões [da Natureza] são elixir para meu espírito. Eles possuem uma saúde divina. Deus nunca esteve melhor. Cada som é inspirador e repleto da mesma firmeza misteriosa, desde o ranger dos galhos em janeiro até o suave murmúrio do vento em julho”6. Corporeidade e espiritualidade, portanto, aqui não se dissociam: tal qual as imagens mitopoéticas vistas na imanência do mundo, a música que ouvimos na terra religa-nos ao céu. Priorizamos até agora a centralidade do ver no pensamento de Henry D. Thoreau, ênfase convergente com a perspectiva romântica de ler o livro simbólico da Natureza. O poeta-profeta thoreauviano, assim já apontamos, é um visionário: na multiplicidade dos fenômenos da terra, ele enxerga a unidade de seu manancial. Como elucidaremos doravante, essa unidade das linguagens cósmicas que é visionada é também ouvida, e o poeta-profeta, na verdade, antes de ser um vidente, um leitor do livro da Natureza, é um ouvinte das sinfonias tocadas pela orquestra da terra, é clariaudiente7. Ainda que, de fato, a visão e a imagem ocupem uma posição medular na construção linguística de nossa civilização, o som não é secundário em importância. São- nos aqui relevantes as palavras do compositor canadense Raymond Murray Schafer (1933– 2021): “Deus falou primeiro e viu que era bom depois. Entre os criadores, o som sempre precede a visão, assim como entre os criados a audição precede a visão. Foi assim com as primeiras 5 HODDER, 2001, p. 77. No original: “All sights and sounds are seen and heard both in time and eternity. And when the eternity of any sight or sound strikes the eye or ear — they are intoxicated with delight”. 6 Writings, VII, p. 295. 15 de dezembro de 1841. No original: “All their sounds and sights are elixir to my spirit. They possess a divine health. God is not more well. Every sound is inspiriting and fraught with the same mysterious assurance, from the creaking of the boughs in January to the soft sough of the wind in July”. 7 Temos em mente aqui o conceito de “clariaudiência” do compositor Murray Schafer. Frente ao recrudescimento da poluição sonora na civilização industrial, Schafer nos apresenta a perspectiva de uma “limpeza de ouvidos”, cujo intuito central seria ensinar “o ouvinte a respeitar o silêncio”, tarefa “especialmente importante em uma sociedade ocupada e nervosa” (SCHAFER, op. cit., p. 291). No sentido aqui empregado, portanto, o termo clariaudiência remete à abertura para a escuta reflexiva, para a sensibilidade auditiva, embora também possamos atribuir a ele um sentido espiritual quando de sua aplicação no pensamento thoreauviano. 204 criaturas na terra e ainda é com o bebê recém-nascido”8. Assim como o ouvir precede o ver no campo da fisicalidade — da Natureza criada (a natura naturata) —, também no campo da inventividade — da Natureza criadora (a natura naturans) —, o som antecede a visão. Afinal, é por serem capazes de silenciar-se para ouvir que o poeta, o profeta, o artista e o místico tornam-se videntes, visionários. Tal como as imagens mitopoéticas, também os sons musicais possuem na literatura thoreauviana o estatuto de símbolo sagrado — apresentam-se na condição de hieróglifos. O som, enquanto um dado material, prenuncia simbolicamente fatos espirituais. “É porque estou familiarizado com os elementos que o som da chuva me é tão tranquilizante”, medita Thoreau. “O som penetra em meu espírito da mesma forma que a água penetra na terra, lembrando-me da estação em que não haverá mais neve e gelo [...]”9. Para nosso poeta-naturalista, os sons remetem a mente humana ao território poético/imaginativo do simbólico, a morada intelectual do sagrado. Na passagem exemplificada, a percepção sensível da sonoridade da chuva se transforma em anúncio do vicejar da primavera da vida, tanto em seu sentido factual quanto em seu sentido existencial. Os hieróglifos musicais que compõem as paisagens sonoras thoreauvianas aqui ecoadas devem ser compreendidos, então, enquanto condutores da relação entre Natureza e espírito. Anunciando uma epistemologia da correspondência entre os humanos e a totalidade sagrada do cosmo (uma correspondência que não se desenvolve metafisicamente, como no caso de Emerson e de outros românticos, mas desde uma perspectiva fenomenológica), os símbolos sonoros thoreauvianos, para além de configurarem proposições intelectuais, comunicam uma experiência espiritual que envolve a integralidade do corpo e dos sentidos. Ouvindo atentamente a miríade de vozes do mundo, atestamos, sensitiva e poeticamente, nossa unidade com a “grande criatura” que abarca todas as criações, e que por meio de todas as coisas se comunica conosco: Ouço o grasnar baixinho de um corvo muito, muito distante, ecoando de algum lado invisível da mata, como se amortecido pelo vapor primaveril que o sol está extraindo do solo. Mistura-se com o leve murmúrio do vilarejo e com o som das crianças brincando, enquanto um riacho deságua suavemente no outro 8 KRAUSE, Bernie. Wild Soundscapes: Discovering the voice of the natural world. New Haven/London: Yale University Press, 2016, p. 17. No original: “God spoke first and saw that it was good second. Among the creators, sounding always precedes seeing, just as among the created hearing precedes vision. It was that way with the first creatures on earth and still is with the new-born babe”. 9 Writings, XIII, p. 186. 15 de fevereiro de 1855. No original: “It is because I am allied to the elements that the sound of the rain is thus soothing to me. The sound soaks into my spirit, as the water into the earth, reminding me of the season when snow and ice will be no more […]”. 205 lado, e o selvagem e o doméstico tornam-se um só. Que som delicioso! Não é meramente um corvo chamando por um corvo, pois ele também fala comigo. Eu sou parte de uma grande criatura com ele [...]10. ⚜ 10 ibid., p. 112-113, grifos acrescentados. 11 de janeiro de 1855. No original: “I hear faintly the cawing of a crow far, far away, echoing from some unseen wood-side, as if deadened by the springlike vapor which the sun is drawing from the ground. It mingles with the slight murmur of the village, the sound of children at play, as one stream empties gently into another, and the wild and tame are one. What a delicious sound! It is not merely crow calling to crow, for it speaks to me too. I am part of one great creature with him […]”. 206 3.1. Mousiké: as escalas divinas da “melodia original” Eu velejei no North River ontem à noite com minha flauta, e minha música soava como um riacho tilintante que serpenteava junto ao rio, e pendia de nota em nota como um riacho de pedra em pedra. Eu não ouvi as melodias logo depois de terem soado da flauta, mas antes de serem sopradas nela, pois a melodia original precede o som tanto quanto o eco vem em seguida, e o resto é privilégio das rochas, árvores e animais. A música não premeditada é a verdadeira escala que mede a corrente de nossos pensamentos, a contracorrente do fluxo de nossa vida. (Henry David Thoreau, Journals)1. Anos antes da célebre alusão ao “tambor distante” em Walden, Thoreau já havia entrelaçado simbolicamente a música às suas reflexões espirituais no ensaio de juventude The Service [O Ofício], um de seus primeiros escritos, publicado apenas postumamente2, mas com passagens reaproveitadas em A Week on the Concord and Merrimack Rivers. “A vida de um homem”, escreve ele na segunda seção do texto, “What music shall we have?” [“Que música deveríamos ter?”], “deveria ser uma marcha3 majestosa ao som de uma música inaudível; e, se 1 Writings, VII, p. 271-271, grifos acrescentados. 18 de agosto de 1841. No original: “I sailed on the North River last night with my flute, and my music was a tinkling stream which meandered with the river, and fell from note to note as a brook from rock to rock. I did not hear the strains after they had issued from the flute, but before they were breathed into it, for the original strain precedes the sound by as much as the echo follows after, and the rest is the perquisite of the rocks and trees and beasts. Unpremeditated music is the true gauge which measures the current of our thoughts, the very undertow of our life’s stream”. 2 Thoreau tentou publicar esse ensaio na revista The Dial, que foi recusado por Margaret Fuller e, ao fim, pelo que parece, também por Emerson. Conta a tradição, aliás, que Thoreau e Fuller nutriam uma rixa pessoal. “When as editor of The Dial”, comenta Walter Harding (1965, p. 68), “she [Margaret Fuller] considered the poems that Emerson prodded Thoreau to submit, she almost invariably rejected them or insisted on major revisions. When, in turn, Emerson asked Thoreau to read the manuscript of her Summer on the Lakes, he found nothing of merit in it, though later readers have suspected it inspired the form of his own first book, A Week on the Concord and Merrimack Rivers”. 3 Thoreau associa a música suprema com a marcha bélica em diversos momentos, como veremos em outras citações. É nítida a admiração do autor pelas metáforas de guerra, indicação de sua crença na existência de uma regência musical a orquestrar a organização cósmica, cuja música se faz ouvir também nos cenários de batalha da Natureza. Há uma passagem interessante em seus diários na qual ele alude à ligação simbólica entre o campo de batalha, onde “não há espaço para a pretensão ou para a cerimônia excessiva”, e a sinceridade (em contraste com as “máscaras” das salas de estar): “After all, the field of battle possesses many advantages over the drawing-room. There at least is no room for pretension or excessive ceremony, no shaking of hands or rubbing of noses, which make one doubt your sincerity, but hearty as well as hard hand-play. It at least exhibits one of the faces of humanity, the former only a mask” (Writings, VII, p. 38. 14 de março de 1838). Como bem diz Hodder (2011, p. 91-92), “In light of this fascination with such imagery of war and heroism, it comes as no surprise that Thoreau’s favorite books — the Iliad, the Bhagavad Gita, Ossian — are basically stories of war”, e devemos ter em mente que “Thoreau conceived of the warrior’s life essentially in moral and religious terms, and the religious life, conversely, in heroic and military terms”. Aliás, o próprio título do ensaio supracitado, The Service, já denota essa relação, tendo em vista que as palavras “serviço”/“ofício”, no inglês e no português, podem ser empregadas para fazer referência tanto ao “serviço/ofício militar” quanto ao “serviço/ofício religioso”. 207 para seus companheiros essa música pode parecer irregular e desarmônica, ele estará caminhando rumo a um compasso mais vívido, que apenas seu ouvido mais apurado pode detectar”4. “Música”, nesta acepção, é a expressão simbólica de uma linguagem melódica que fundamenta o mundo, ouvida pelo poeta que carrega o emblema do sagrado, o que tornar-se-á claro na medida em que prossigamos em nossa meditação. Para além da sensibilidade aos sons naturais (que são decerto primordiais para nosso autor, como discutiremos mais adiante), o “som de uma música inaudível” apregoa a totalidade ontológica da harmonia cósmica; a íntima relação entre interioridade e exterioridade, a espiritualidade humana e a Natureza. O mundo acena para nós e a todo instante se comunica, em comemoração, conosco. O poeta-profeta, aquele que busca apurar seus olhos e seus ouvidos, capta no discurso cósmico a unidade divina que subjaz toda locução particular, e lega ao mundo, em retorno, seu testemunho daquilo que foi ouvido e visto. A fala poética principia, então, no próprio mundo, na Natureza. O poeta, atentando-se para essa música distante que é a fala hieroglífica de todas as coisas — imperceptível para a maioria (com exceção daqueles que se atentaram para ouvir a voz daquilo que geralmente é tachado como “irregular” e “desarmônico”) —, não apenas transmite aquilo que é ouvido, mas, antes, busca seguir os comandos dessa linguagem primordial que a todo o universo dá o expressar, movimento no qual está envolvido um chamado para o aprimoramento dos sentidos corpóreos. Esta lapidação da sensibilidade de cunho espiritual se mostra, enfim, enquanto uma reforma linguística, pois diz respeito aos modos com os quais conversamos com o mundo, e, por conseguinte, aos modos com os quais nos entendemos a nós mesmos e a Natureza. Para Thoreau, assim como para os gregos de outrora, a música é a exteriorização linguística por excelência da gloriosa e virtuosa ordenação do mundo. É o que ele nos indica nesse mesmo ensaio: Há tanta música no mundo quanto há virtude. Em um mundo de paz e de amor, a música seria a linguagem universal, e os homens se cumprimentariam nos campos com os tons que um Beethoven agora profere em raros intervalos à distância. Todas as coisas obedecem à música como obedecem à virtude. A música é a arauta da virtude. É a voz de Deus. Nela se movimentam as forças centrípetas e centrífugas. O universo carecia apenas de ouvir uma melodia divina para que cada estrela pendesse no lugar que lhe é próprio e assumisse sua verdadeira esfericidade. [...]. Quando a ouvimos, somos tão sábios que não precisamos saber. Todos os sons, e, sobretudo, o silêncio, tornam-se flauta e 4 THOREAU, Henry David. The Service. Editado por F. B. Sanborn. Boston: Charles E. Goodspeed, 1902, p. 15. No original: “A man’s life should be a stately march to an unheard music; and when to his fellows it may seem irregular and inharmonious, he will be stepping to a livelier measure, which only his nicer ear can detect”. 208 tambor para nós. O menor rangido aguça todos os nossos sentidos, e emite uma luz trêmula, como a aurora boreal, sobre as coisas5. Os sons naturais, ecos dessa melodia divina que se faz ouvir à distância, lembram-nos que participamos de uma única obra vasta e poliédrica que vibra em interconectividade, sendo essa, precisamente, a visão e a audição da virtude. A música mitopoética do mundo é para Thoreau a “voz de Deus”; escutando-a, voltamo-nos para nossa “verdadeira esfericidade”, para a harmonia que rege as esferas superiores e permeia todas as coisas. Essa é uma compreensão que remonta à comunidade filosófica-espiritual dos pitagóricos e que foi ecoada no decorrer de toda a história intelectual ocidental. Como assinala a repercussão do Sócrates de Platão na célebre passagem do diálogo Fédon (61a), a filosofia era naquele cenário compreendida como a mais majestosa música entre todas (μεγίστη μουσική)6. Aludindo, em The Service, à filosofia platônica conforme relatada por Plutarco, nosso autor escreve: “Platão pensa que os deuses não deram aos homens a música, a ciência da melodia e da harmonia, para mero deleite ou para agradar o ouvido”, cita Thoreau, “mas para que as partes discordantes das circulações, do belo tecido da alma e daquelas que vagueiam pelo corpo [...] possam ser gentilmente recordadas e engenhosamente envolvidas em seu fundamento e conformação originais”7. Thoreau também havia tido contato com a tradução de Thomas Taylor (1758–1835) da Vida Pitagórica, escrita pelo filósofo neoplatônico Jâmblico (c. 242–325)8, cuja leitura reverberou profundamente em suas reflexões9. Remetendo-se a essa tradição em A Week, ele transcreve uma passagem dessa obra que expõe a concepção de música/harmonia das esferas e sua divina descendência. 5 ibid., p. 12-13. No original: “There is as much music in the world as virtue. In a world of peace and love music would be the universal language, and men greet each other in the fields in such accents as a Beethoven now utters at rare intervals from a distance. All things obey music as they obey virtue. It is the herald of virtue. It is God’s voice. In it are the centripetal and centrifugal forces. The universe needed only to hear a divine melody, that every star might fall into its proper place, and assume its true sphericity. [...]. When we listen to it we are so wise that we need not to know. All sounds, and more than all, silence, do fife and drum for us. The least creaking doth whet all our senses, and emit a tremulous light, like the aurora borealis, over things”. 6 OTTO, Walter. Las Musas y el origen divino del canto y del habla. Tradução de Hugo F. Balzá. Madrid: Ediciones Siruela, 2005, p. 37. 7 THOREAU, 1902, p. 13. No original: “Plato thinks the gods never gave men music, the science of melody and harmony, for mere delectation or to tickle the ear; but that the discordant parts of the circulations and beauteous fabric of the soul, and that of it that roves about the body [...] might be sweetly recalled and artfully wound up to their former consent and agreement”. Segundo o editor, Thoreau provavelmente cita aqui uma versão antiga das Morais de Plutarco (ibid., p. 30). Essa passagem aparece também em A Week. Cf. Writings, I, p. 183-184. 8 SATTELMEYER, op. cit., p. 210. 9 Essa obra é mencionada pela primeira vez em seus diários em 28 de março de 1842 (HODDER, 2001, p. 86 e 319, nota 17). 209 De acordo com Jâmblico, “Pitágoras não alcançou uma coisa desse tipo para si por meio de instrumentos ou da voz, mas, recrutando uma divindade inefável e infalível, e que é difícil de apreender, ele estendeu seus ouvidos e fixou seu intelecto nas sublimes sinfonias do mundo, apenas ele ouvindo e entendendo, como parece, a harmonia e consonância universal das esferas e das estrelas que se movem através delas, e que produzem uma melodia mais intensa e mais perfeita do que qualquer melodia executada pelos sons dos mortais”10. A famosa personalidade de Samos, conta-nos o pensador assírio em sua Vida Pitagórica, defendia que “o cuidado exercido sobre os homens começa pela percepção sensível”, fazendo-se “primordial a educação artística recebida através de certas melodias e ritmos” (15, 64). Acreditava-se, em seu círculo soteriológico, que por intermédio da beleza das melodias e ritmos musicais “eram produzidas as curas de atitudes e paixões humanas, e eram restituídas as harmonias originais das potências da alma”. A partir de combinações de sons diatônicos, cromáticos e harmônicos, Pitágoras conduzia seus discípulos à virtude “como se se tratasse de uma combinação de remédios salvadores”. O filósofo e líder espiritual da era pré- socrática presumia que “a música contribuía de maneira determinante à saúde”, de modo que “ele costumava usar conscientemente essa purificação, porque também falava de cura através da música”. Seus seguidores, igualmente, “utilizavam a música como terapia” (25, 110)11, uma forma de purificação da exterioridade e da interioridade. A música, conforme o relato de Jâmblico, ocupava naquele círculo espiritual o papel axial de terapeuta (do grego θεραπων, “atendente, servo; acompanhante”12), atuando como auxiliar/acompanhante do corpo e da alma na busca por uma vida divina, virtuosa. Dito de forma simples, a música é um remédio: sendo remediadora, ela religa o humano ao princípio que tudo unifica. No cenário pitagórico, como podemos perceber, a música é compreendida em sua capacidade de (re)condução do indivíduo ao compasso da ordem cósmica. Atentando-se às 10 Writings, I, p. 184-185. No original: “According to Jamblichus, ‘Pythagoras did not procure for himself a thing of this kind through instruments or the voice, but employing a certain ineffable divinity, and which it is difficult to apprehend, he extended his ears and fixed his intellect in the sublime symphonies of the world, he alone hearing and understanding, as it appears, the universal harmony and consonance of the spheres, and the stars that are moved through them, and which produce a fuller and more intense melody than anything effected by mortal sounds’”. 11 JÁMBLICO. Vida Pitagórica. Protréptico. Introduções, tradução e notas de Miguel Periago Lorente. Madrid: Editorial Gredos, 2003, p. 60 e 87. Na tradução consultada: “el cuidado que se ejerce sobre los hombres se inicia a través de la percepción sensible”; “primordial la educación artística recibida a través de ciertas melodías y ritmos”; “se producían las curaciones de las actitudes y pasiones humanas, y se restituían las armonías originales de las potencias del alma”; “como si se tratara de una combinación de remedios salvadores”; “la música contribuía de manera determinante a la salud”; “solía servirse concienzudamente de tal purificación, porque también hablaba de curación a través de la música”; “utilizaban la música como terapia”. 12 BEEKES, Robert. Etymological Dictionary of Greek. Leiden/Boston: Brill, 2010, v. 1, p. 541. 210 “sublimes sinfonias do mundo”, como cita Thoreau, o mestre tornava-se apto a ouvir a “harmonia e consonância universal das esferas”. Pitágoras, conforme o relato de Jâmblico, “aplicava seus ouvidos e ajustava sua mente às sublimes sinfonias do universo”, à “harmonia que produz uma espécie de melodia muito mais profusa e abundante que as humanas, por seu movimento e sua órbita [...]” (15, 65). Inserindo essa compreensão à pedagogia de sua comunidade, o filósofo “exortava a celebrar com cânticos todos os dias os poderes superiores. Também prestava atenção às vozes, profecias e invocações divinas, em geral a todos os sinais que se manifestavam espontaneamente” (28, 149)13. O sábio da Ásia Menor, como deduzimos a partir dessa narrativa, foi lembrado pela tradição filosófica como um ouvinte atento da harmonia advinda de esferas além, mas também passível de percepção nas condições espaço- temporais deste mundo, na medida em que se faz articular na “música das esferas”. Como explica Lia Tomás em Ouvir o lógos: música e filosofia, enquanto a “harmonia das esferas” pitagórica, sendo transcendente, não pode ser ouvida, a “música das esferas” aparece enquanto manifestação sonora dessa harmonia, em sons perceptíveis pelos ouvidos. Assim sendo, a harmonia das esferas é uma música metafísica, captada pela alma, ao passo que a música das esferas é concreta, percebida pelos sentidos corpóreos. A música cósmica é compreendida, portanto, enquanto expressão particular da harmonia universal que fundamenta o mundo. “Assim, a harmonia das esferas é silenciosa”, aclara Tomás, “mas a música das esferas é audível, o que demonstra, em última instância, o duplo aspecto do conceito grego de cosmos [as ideias de ordem do universo e de universo como ordem]”, conceitualização “que também nos remete aos dois aspectos do universo musical pitagórico: o científico [a matemática da teoria musical] e o poético [relacionado ao divino]”14. Subsiste aí uma íntima relação entre a harmonia (metafísica) e a música (material), na qual está envolvida uma perspectiva de educação para a vida em seus diversos aspectos. Nesse sentido, “a relação mútua entre a música e a harmonia, aliada a um caráter de fundo pedagógico do éthos, se irradia por todas as atividades educacionais, por apresentar-se como um poderoso instrumento de efetivação do ideal de paideia grega”15. Também em Thoreau o exercício de escuta atenta da música cósmica 13 JÁMBLICO, op. cit., p. 61 e 112. Na tradução consultada: “aplicaba sus oídos y ajustaba su mente a las sublimes sinfonías del universo”; “armonía que produce una especie de melodía mucho más profusa y abundante que las humanas, a causa del movimiento y de su órbita [...]”; “exhortaba a celebrar con cánticos cada día a las potencias superiores. Prestaba atención también a las voces, profecías e invocaciones divinas, en general a todos los signos que se manifestaban espontáneamente”. 14 TOMÁS, Lia. Ouvir o lógos: música e filosofia. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 42. Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Clodomir Barros de Andrade, pela recomendação deste livro. 15 ibid., p. 47. 211 tem como pano de fundo uma paideia16, uma proposta, como temos dito, de educação da sensibilidade para a captação do divino no aqui e agora deste mundo. Em The Service, valendo-se do vocabulário e da cosmovisão pitagórica, nosso autor, em sua elaboração singular dessa ideia, aponta para a existência de uma música percebida pelos sentidos corpóreos (a música das esferas) e de uma música percebida pela alma (a harmonia das esferas). A música de que nos fala Thoreau, portanto, assim como entre os pitagóricos, aparece em sua condição terapêutica, de assistência do indivíduo em sua integralidade. A relação entre música e saúde, que aparecerá mais adiante, ocupa aqui um espaço notável. Sugerindo que a harmonia originária da relação corpo-alma, fisicalidade-espiritualidade passa por um desenvolvimento prévio da habilidade auditiva, ele assim escreve: Para a alma sensitiva, o Universo tem um compasso fixo, que é também o seu próprio compasso, e, como ele, o que está expresso na regularidade de seu pulso, é inseparável de um corpo sadio, de modo que sua saúde depende da regularidade de seu ritmo. Em todos os sons a alma reconhece seu próprio ritmo, e procura expressar sua simpatia por meio de um movimento correspondente de seus membros. Quando o corpo marcha no compasso da alma, então há a verdadeira coragem e a força invencível17. A música da qual fala Thoreau é aquela capaz de conduzir seu ouvinte a uma saúde beatífica, ao vigor do corpo e da alma, unidos por uma única consonância. É a marcha do corpo no compasso da alma que lhe propicia a coragem18, o heroísmo e a verdadeira sensibilidade. Essa ideia de fundo pitagórico é repercutida em diversas ocasiões: A música é a cristalização do som. Há algo no efeito de uma voz harmoniosa na disposição da vizinhança que é análogo à lei dos cristais; ela se centraliza 16 É o que também já defendeu Andrade (op. cit.) com o emprego do termo “pedagogia” para caracterizar o pensamento thoreauviano e suas matrizes espirituais. 17 THOREAU, 1902, p. 14. No original: “To the sensitive soul the Universe has her own fixed measure, which is its measure also, and as this, expressed in the regularity of its pulse, is inseparable from a healthy body, so is its healthiness dependent on the regularity of its rythm. In all sounds the soul recognizes its own rythm, and seeks to express its sympathy by a correspondent movement of the limbs. When the body marches to the measure of the soul, then is true courage and invincible strength”. 18 A coragem é um atributo por excelência do herói, como nos indicam, à título de exemplificação, diversas passagens da Odisseia. Telêmaco, filho de Odisseu, quando se encontra com Nestor, o responde “já mais corajoso: pois Atena lhe insuflara coragem no coração” (iii, 76). Quando chega às terras de Alcino, Odisseu ouve sons de mulheres, e, receoso, imagina em qual lugar ele havia chegado, mas então afirma com determinação: “coragem: eu próprio farei a experiência de ver” (vi, 126). É também à coragem que a deusa Atena inspira Odisseu quando ele alcança o solo dos feácios: “Entra; e que nada receie o teu coração. / Pois um homem corajoso sai-se melhor em todas as coisas, / mesmo quando a uma terra chega como estrangeiro” (vii, 50-52). Quando o herói aporta, enfim, em Ítaca, pensando em ver seu filho, é igualmente nos termos da coragem que a deusa protetora lhe aconselha: “Tem coragem, não deixes que tais coisas te preocupem” (xiii, 362) (HOMERO, op. cit., p. 151, 216, 225 e 345). 212 e soa como a publicação da lei das coisas. Se a lei do universo fosse promulgada de forma audível, nenhum legislador mortal suspeitaria, pois seria uma melodia mais bela do que seus ouvidos jamais prestaram atenção. Seria música das esferas19. Nos escritos de Thoreau, como nota Hodder, ressoam também as formulações do poeta e sacerdote gaulês George Herbert (1593–1633)20, do platonista de Cambridge Ralph Cudworth e, em especial, do médico e escritor inglês Sir Thomas Browne (1605–1682)21. Em seu diário, o pensador transcendentalista copia um trecho da obra Religio Medici (1642), de autoria de Browne, no qual o autor fala da música como um hieróglifo, um símbolo sagrado que, ao nos arrebatar, separa-nos de nossas armaduras para então nos devolver à divina unidade de todas as coisas — e nos permite, enfim, ouvir a unificação das melodias interiores e exteriores: Há algo na [música] da divindade para além daquilo que os ouvidos descobrem: é uma lição sombria e hieroglífica de todo o mundo e das criaturas de Deus — uma tal melodia a alcançar o ouvido, assim como o mundo inteiro, bem compreendida, propiciaria o entendimento. Em resumo, trata-se de um ajuste sensato daquela harmonia que soa intelectualmente aos ouvidos de Deus. [Ela desata os ligamentos de minha estrutura, despedaça-me, dilata-me para fora de mim mesmo e, aos poucos, penso eu, leva-me ao céu]22. Para Thoreau, assim como para Pitágoras, Platão, Browne e Wordsworth, pontua Hodder, “os sons da natureza eram ressonantes com as cognições de uma vida superior”23. Sendo orquestrada por um princípio supremo, a música, quando experienciada pelo corpo e pelo espírito, faz convergir as leis morais e as leis da Natureza, rompendo as fronteiras que distinguem toda dualidade, e devolvendo, assim, o eu ao todo. “Nada é tão verdadeiramente ligado e obediente à lei como a música”, argumenta o pensador na linha de Browne; “contudo, 19 Writings, VII, p. 195. 5 de fevereiro de 1841. No original: “Music is the crystallization of sound. There is something in the effect of a harmonious voice upon the disposition of its neighborhood analogous to the law of crystals; it centralizes itself and sounds like the published law of things. If the law of the universe were to be audibly promulgated, no mortal lawgiver would suspect it, for it would be a finer melody than his ears ever attended to. It would be sphere music”. 20 Não se sabe ao certo como Thoreau estabeleceu contato com a obra de Herbert. Cf. SATTELMEYER, op. cit., p. 199. 21 Aparentemente, o contato de Thoreau com Browne se deu por intermédio da biblioteca pessoal de Emerson (SATTELMEYER, op. cit., p. 140). 22 HODDER, 2001, p. 88. No original: “There is something in [music] of divinity more than the ears discovers: it is an hieroglyphical and shadowed lesson of the whole world, and creatures of God, — such a melody to the ear, as the whole world, well understood, would afford the understanding. In brief, it is a sensible fit of that harmony which intellectually sounds in the ears of God. [It unties the ligaments of my frame, takes me to pieces, dilates me out of myself, and by degrees methinks resolves me into heaven]”. 23 ibid., p. 89. No original: “the sounds of nature were resonant with the cognitions of higher life”. 213 nada rompe de forma tão segura todos os vínculos triviais e estreitos”24. Já em 1857, ligando a música, igualmente, ao extravasamento de todas as fronteiras e divisões (e, portanto, à experiência simultaneamente corpórea e intelectual de unidade), ele alega que, quando ouvimos as vibrações da música, “[a]lcançamos uma sabedoria que ultrapassa o entendimento25. Os continentes estáveis ondulam. O que é rígido e fixo torna-se fluido”. “Quando eu ouço música, não temo perigo algum”, continua Thoreau, citando Ellery Channing. “Torno-me invulnerável, não vejo inimigos. Sou relacionado aos primeiros e aos últimos tempos”26. “A música”, aqui compreendida enquanto o emblemar do divino no mundo, de acordo com a formulação de A Week, “é o som das leis universais promulgadas. É o único tom seguro”27. É essa melodia divina que, segundo nosso autor, dá o tom de todo o cantar significativo, muito embora ela não seja captável pelo entendimento (o âmbito das particularidades), mas tão-somente pela imaginação (o campo da síntese da multiplicidade em uma unidade de sentido). A música das esferas, compreendida enquanto melodia que promulga a lei que rege todo o cosmo (mas que, no panorama da crítica à sociedade contemporânea, difere da lei dos legisladores), está presente em todas as partes e em todas as coisas. Ela está, como sugere Thoreau em Walden, no bailado que o envolvia em seu trabalho manual no campo de feijão, cujos movimentos ligavam a terra (a Natureza) ao céu (o espírito), conferindo àquela particularidade espaço-temporal um sentido universal, e reinserindo-a, portanto, à totalidade de todas as coisas. Ao fim, o agricultor pode dizer que sua ação era apenas mais uma no interior de um grande sistema orgânico, cujas safras são imensuráveis: “Quando minha enxada batia contra as pedras”, narra o autor, “aquela música ressoava até a mata e o céu, e era um acompanhamento de meu trabalho que dava uma safra instantânea e imensurável. Não era mais feijão que eu carpia, e nem era eu que carpia feijão [...]”28. Essa música que liga as matas ao céu pode ser ouvida em qualquer fenômeno, desde que nele seja captada a conexão entre o particular e o universal, a imanência do aqui e agora e a transcendência que é fundamento de todo vir a ser. Há uma passagem muito interessante de 24 Writings, XII, p. 100. 5 de fevereiro de 1854. No original: “Nothing is so truly bounded and obedient to law as music, yet nothing so surely breaks all petty and narrow bonds”. 25 Seguindo as definições de Coleridge, podemos dizer que a “sabedoria que ultrapassa o entendimento”, conforme as palavras de Thoreau, é aquela que nos lança ao reino da imaginação. 26 Writings, XV, p. 218, grifo do autor. 13 de janeiro de 1857. No original: “We attain to a wisdom that passeth understanding. The stable continents undulate. The hard and fixed becomes fluid”; “When I hear music I fear no danger, I am invulnerable, I see no foe. I am related to the earliest times and to the latest”. 27 Writings, I, p. 184. No original: “Music is the sound of the universal laws promulgated. It is the only assured tone”. 28 THOREAU, 2019, p. 155. 214 seus diários do tempo anterior à publicação de sua obra-prima que reitera ser seu objetivo poético o encontro da unidade na particularidade, experiência existencial que permite reconhecer no simples zumbido de um mosquito a plenitude cósmica da música das esferas. Nisso consiste, diz Thoreau, a real capacidade de apreciar um fenômeno. Que lazer infinito requer, como o de uma vida inteira, para apreciar um único fenômeno! Você deve acampar ao lado dele como que para toda uma vida, uma vez tendo alcançado sua terra prometida, e se entregar totalmente a ele. O fenômeno deve representar o mundo inteiro para você, e ser simbólico de todas as coisas. [...]. A menos que o zumbido de um mosquito seja música das esferas, e a música das esferas seja o zumbido de um mosquito, eles nada são para mim. Não são as comunicações que servem à história — que constituem a ciência — mas a própria grande história, que nos anima e nos satisfaz29. Como o mestre de Samos, conforme retratado em seus versos de ouro (28), Thoreau entrevia uma Natureza divina que é sempre a mesma: Tu saberás, se o Céu assim quiser, que a natureza, Semelhante em todas as coisas é a mesma em todo lugar [...]30. Pitágoras era um devoto das Musas, matriarcas divinas de toda expressão cósmica que canta e encanta o lustre do existir. Encarnando o princípio de toda linguagem, as Musas amadrinham todos os devotos de suas artes, sejam eles poetas, filósofos, guerreiros ou estadistas: todos são herdeiros do canto das Musas, da mousiké (cuja etimologia provavelmente remete ao termo month-ya, que se aproxima de manthanein, “aprender”, e a partir do qual se chega a mousa, “o que deseja instruir ou que fixa o espírito sobre uma ideia ou sobre uma arte”31). O termo “música”, nesse contexto originário, denota, portanto, um sentido mais amplo do que aquele que atribuímos habitualmente à palavra. Mousiké é tudo aquilo que é abarcado pelos domínios das Musas, as filhas da Memória que cantam a glória originária do cosmo. Por conseguinte, na acepção mais arcaica da palavra “música” são referidas todas as formas de expressão que, por sua grandiosidade simbólica, auxiliam na perpetuação da glória divina do 29 Writings, X, p. 433-434. 28 de dezembro de 1852. No original: “How much, what infinite, leisure it requires, as of a lifetime, to appreciate a single phenomenon! You must camp down beside it as for life, having reached your land of promise, and give yourself wholly to it. It must stand for the whole world to you, symbolical of all things. [...]. Unless the humming of a gnat is as the music of the spheres, and the music of the spheres is as the humming of a gnat, they are naught to me. It is not communications to serve for a history, — which are science, — but the great story itself, that cheers and satisfies us”. 30 FABRE D’OLIVET, Antoine. Os versos dourados de Pitágoras. Tradução e introdução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2017, p. 27. 31 Definição de Chantraine, citada por Tomás (op. cit., p. 40). 215 mundo. Os poetas e profetas32, nesta cosmovisão mítica, são porta-vozes das Musas. Todas as artes, na verdade, compreendidas nesse sentido amplo do termo, devem a elas sua origem. Para os gregos, não há canto, dança, fala, anseio intelectual e educação cultural de qualquer espécie sem as Musas. Em suma, sem as filhas da Memória, não há o proferir que caracteriza o ser no mundo. Por meio dessas figuras divinas, ilustra-se a concepção mítica nelas presumida de que a linguagem é a origem de tudo o que tem relevância para os seres humanos, de tudo aquilo que nasce ansiando pela eternidade, dando fundamento ao ser. Importa-nos aqui realçar que, no contexto da era pré-socrática, como enfatiza Lia Tomás, a linguagem era compreendida como sentido, remetendo não à nossa interpretação (o significado) dela, mas àquilo que se presentifica diante de nós. “O sentido resulta daquilo que não depende do que nós achamos que ele seja, é um existente que insiste em sua presença e não se sujeita ao que possamos pensar sobre ele”, diz a compositora. “A mousiké, portanto, anuncia- se como uma realidade entre os gregos do mundo arcaico, cujo primeiro papel era envolver e abalar radicalmente o homem, por caminhos indeterminados”. Disso se segue que o destino final da música divinamente apresentada ao humano não é a elucubração, o escrutínio objetivo. “Daí, também, a frase de Heráclito: ouvir o lógos, não para entendê-lo, mas apenas para ouvi- lo e escolher um dos caminhos que aprofundassem a própria audição”33. A autora faz aí uma referência ao seguinte fragmento de Heráclito: “Dando ouvido, não a mim, mas ao Lógos, é avisado concordar em que todas as coisas são uma” (Frag. 50, Hipólito, Refutação de todas as heresias, IX, 9, 1)34. Essa concepção da aurora da filosofia grega segundo a qual o cosmo se faz expressar em uma linguagem ordenada que a tudo unifica, o Lógos, remonta, em seus traços fundamentais, à concepção mítica das Musas, ordenadoras de toda dicção cósmica, sendo esta última a perspectiva que nos interessa mais propriamente desenvolver aqui, tendo em vista suas profundas repercussões no pensamento thoreauviano. Como aponta Walter Otto em sua obra devotada às Musas, as artes dessas divindades ocupam um papel fulcral na cosmovisão espiritual da Grécia antiga. De acordo com Homero e Hesíodo, estas deusas são as únicas entre todas as divindades que, como Zeus, são chamadas de “Olímpicas” (’Ολύμπιάδες Μούσαι: Ilíada, ii, 491; Teogonia, 25, 52, 966, 1022), tamanha 32 Como indica Gregory Nagy, antes da consolidação da distinção entre a noção de aoidos (o poeta) e o conceito de mantis/kērux (o profeta), a Grécia vivenciou uma época anterior que via no poeta e no profeta a expressão de uma mesma figura, e os termos mantis e kērux designavam um mesmo poeta- profeta (NAGY, Gregory. Ancient Greek Poetry, Prophecy, and Concepts of Theory. In: KUGEL, James L. (ed.). Poetry and prophecy: The Beginnings of a Literary Tradition. Ithaca/London: Cornell University Press, 1990, p. 56-64, à página 56). 33 TOMÁS, op. cit., p. 49-50. 34 ibid., p. 58. 216 sua relevância entre as potestades do panteão grego35. Píndaro, em seu Hino a Zeus, conforme transmitido pelo retórico grego Públio Élio Aristides (c. 117–180), conta que o pai dos deuses, depois de reorganizar o mundo e seus domínios, perguntou às demais divindades se a nova ordenação cósmica carecia ainda de algo para ser plena. Então, tendo contemplado pela primeira vez a nova ordem do cosmo, os deuses pediram a Zeus Pai que criasse as Musas, e que a elas fosse outorgada a função de cantar as glórias do cosmo e ressoar seu primor. Nos termos de Otto, assim é “pois a essência do ser não poderia tornar-se plena até que houvesse uma linguagem que a enunciasse. O ser e sua magnificência devem pronunciar-se, esta é a plenitude de seu ser”. A essência divinal dessas deidades, na verdade, já está manifesta na convocação da Musa, no singular, a deusa que propicia e inicia toda expressão linguística no mundo. “O canto e a fala”, como compreendidos por Otto a partir do sacro agenciamento das Musas, “são também ocupações divinas a serem realizadas originalmente e essencialmente apenas por uma divindade. Isso está unido ao espírito do canto e à sua profundidade divina, que nela, e somente nela, o ser se manifesta”36. Na Grécia arcaica de Hesíodo, diz-nos, por sua vez, Jaa Torrano, o aedo (i.e., o poeta-cantor) representa o máximo poder da tecnologia de comunicação. Toda a visão de mundo e consciência de sua própria história (sagrada e/ou exemplar) é, para este grupo social, conservada e transmitida pelo canto do poeta. É através da audição deste canto que o homem comum podia romper os restritos limites de suas possibilidades físicas de movimento e visão, transcender suas fronteiras geográficas e temporais, que de outro modo permaneceriam infranqueáveis, e entrar em contato e contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do canto se tornam audíveis, visíveis e presentes. O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas)37. 35 OTTO, 2005, p. 27. Otto nos lembra também que, muito embora as Musas, como as Ninfas, habitem em terrenos montanhosos próximos de fontes aquosas, elas se situam em montes que, no liame do horizonte, parecem tocar o céu: o monte Olimpo e o monte Hélicon. A propósito, neste último estava localizada a Hipocrene (“Fonte do Cavalo”), manancial que, além de nutrir a terra, nutria também o entusiasmo dos poetas que lá buscavam se conectar com as Musas (ibid., p. 31). 36 ibid., p. 30. Na tradução consultada: “pues la esencia del ser no está concluida hasta tanto no haya una lengua que la enuncie. El ser y su magnificencia deben ser pronunciados, esto es la plenitud de su ser”; “El canto y el habla son también ocupaciones divinas para ser ejecutadas originaria y esencialmente sólo por una deidad. Esto está unido al espíritu del canto y a su divina profundidad que en él, y sólo en él, se manifesta el ser”. 37 TORRANO, Jaa. O mundo como função de Musas. In: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 12-101, à página 16, grifo acrescentado. 217 Gregory Nagy, por sua vez, realça a imperiosa interconexão entre o falar poético e a audição (da palavra divina) a partir de uma explanação do sentido atribuído ao termo kléos na Ilíada (ii, 485-496), cuja conotação originária está relacionada ao verbo ouvir. Vocês [Musas] são deusas: lá estão [quando as coisas acontecem] e de tudo sabem. Mas nós [cantores] de nada sabemos: apenas ouvimos a fama [kléos]38. A etimologia da palavra κλέος (kléos), portanto, em sua origem, aponta para “o ato de ouvir”. “A palavra veio a significar ‘fama’”, escreve Nagy, “porque fora apropriado pelo cantor em seu papel tradicional de intérprete individual para indicar que ele cantava acerca das ações de deuses e heróis”, de modo que é aquilo que escuta o poeta a mediação da perpetuação da fama dos feitos divinos e heroicos. “Já que o cantor começa sua apresentação pedindo para sua musa ‘lhe contar’ o tema”, continua o pesquisador, “sua composição está de fato sendo apresentada ao seu público como algo que ele ouve dos próprios guardiões de todos os domínios da realidade. As Musas falam com ele e têm a ipsissima verba da Era Heroica”39. À Musa clama Homero para que suas notas poéticas sejam transmitidas, e muitos poetas e compositores das mais diversas artes invocaram e permanecem invocando a(s) deusa(s) do canto originário a fim de ouvir as memórias de tudo aquilo que é valoroso à cultura de seu povo. Os poetas, portanto, antes de serem os declaradores dos primórdios, profetas e videntes originários, são os primeiros ouvintes, são clariaudientes. Como bem observa Walter Otto, “[o] poeta é também o ouvinte e por essa razão é o primeiro orador”, uma articulação entre fala, escuta e inspiração divina que encontramos também nos profetas bíblicos40. Sendo ouvida no pronunciamento das Musas, a palavra do poeta institui-se na condição de fala divina. É o canto das Musas, afinal, que dá vida e vigor divinos ao poeta (θεîος) e ao seu canto sagrado (θέσπις ἀοιδή)41. Tal compreensão, conforme sinalização já feita por Otto, é encontrada na literatura homérica da Odisseia (viii, 479-481): 38 NAGY, Gregory. Greek Mythology and Poetics. Ithaca/London: Cornell University Press, 1990, p. 26. Na tradução consultada: “You [Muses] are gods: you are there [when things happen] and you know everything. / But we [singers] know nothing: we just hear the kléos”. 39 ibidem, grifos do autor. No original: “the act of hearing”; “The word came to mean ‘fame’ because it had been appropriated by the singer in his traditional role as an individual performer to designate that he sang about the actions of gods and heroes”; “Since the singer starts his performance by asking his Muse to ‘tell him’ the subject, his composition is in fact being presented to his audience as something that he hears from the very custodians of all stages of reality. The Muses are speaking to him and they have the ipsissima verba of the Heroic Age”. 40 OTTO, 2005, p. 36. Na tradução consultada: “El poeta es también el oyente y por esta razón es el primer orador”. 41 ibid., p. 35. 218 Pois entre todos os homens que estão na terra, os aedos granjeiam honra e reverência: a eles ensinou a Musa o canto porque estima as tribos dos aedos42. Por isso, acreditava-se que, uma vez sendo constituído por palavras sagradas assopradas pelas Musas, o discurso poético nasce para a eternidade: estende-se ao longo de todas as eras, cantando perpetuamente as glórias do cosmo, os feitos dos deuses e dos heróis. O poeta ocupa um posto sagrado, então, por ser um porta-voz das Musas, as condutoras de todo cantar e de todo falar. Assim nos diz Otto: Onde quer que o canto venha à existência, o poeta humano, antes de levantar a voz, é um ouvinte; e, inclusive, é a própria deusa que canta em sua voz. E por esse motivo o canto e a palavra possuem um significado que só a verdadeira divindade pode possuir: é a manifestação do ser das coisas, esta manifestação que é de uma natureza tal que, sem o canto, a obra da criação não se realiza e o mundo não se plenifica43. No cenário espiritual da Grécia arcaica, aos poetas-profetas foi outorgado esse serviço de desvelamento dos deuses, de sua presença na Natureza e nas dinâmicas mundanas. Assim, Homero e Hesíodo convocaram as Musas para inspirar seus versos, e nelas reconhecem a proveniência de suas palavras. “Profeta (προφάτας) das Musas o denomina Píndaro [‘intérprete’] (Peán, 6, 6)”, rememora Otto. “‘Dê-me, Musa, teu oráculo, e eu serei teu intérprete!’, exclama Píndaro (fr. incert., 150, 1)”44. Também Platão, embora seja apontado pela tradição como aquele que expulsou os poetas de sua república ideal, além de ter sido ele próprio um grande poeta, legou sua interpretação da crença grega na inspiração divina das Musas. No Fedro (245a), o filósofo de Atenas sugere, pela boca de Sócrates, que aquele que se dispuser “às portas da poesia sem a loucura das Musas, como que convencido de ser um poeta unicamente pela arte, não chegará a termo, e a poesia composta por quem está no bom senso é ofuscada por aquela do tomado de loucura”45. Já no diálogo Íon (534b-e), lemos que “o poeta 42 HOMERO, op. cit., p. 253. 43 OTTO, 2005, p. 69. Na tradução consultada: “En todo lugar donde se canta, el cantor humano, antes de elevar su voz, es un oyente; incluso es la diosa misma la que canta en su voz. Y por ese motivo el canto y la palabra tienen un significado como sólo la verdadera divinidad puede tenerlo: es la manifestación del ser de las cosas, esta manifestación es de naturaleza tal que sin el canto no se llena la obra de creación y el mundo no estaría completo”. 44 ibid., p. 33. Na tradução consultada: “Profeta (προφάτας) de las Musas lo denomina Píndaro [‘intérprete’] (Peán, 6, 6) [...]. ‘¡Di, Musa, tu oráculo y yo seré tu intérprete!’, exclama Píndaro (fr. incert., 150, 1)”. 45 PLATÃO. Fedro. Tradução do grego, apresentação e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis; introdução de James H. Nichols Jr. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016, p. 97. 219 é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar até que se torne inspirado e fora de si [...]. Até conquistar tal coisa, todo homem é incapaz de poetar e proferir oráculos”. Afinal, “os poetas não são nada mais que intérpretes dos deuses, estando tomados, cada um, por aquele que o toma”46. Também Otto acena para essa tradição quando argumenta que o artista, de modo geral, aproxima-se da criança precisamente na medida em que se lança à criação que não tem por fim último a utilidade47, mas sim o criar por criar — um criar que é, na verdade, fruto da germinação da divindade em nosso interior: “O artista, como a criança, cria sem nenhum outro fim do que a criação”. “Sua realização”, continua ele, “recria as coisas em seu verdadeiro sentido. Daí a alegria na concepção e na execução, o prazer apaixonado da criança e o entusiasmo do artista, que quão maior for, mais deverá confessar que sua criação é, no fundo, uma revelação”48. A convicção de que os rebentos poéticos (e, de modo mais amplo, a engenhosidade artística) são revelados (isto é, apresentam-se, em seu sentido, ao artista) aclimatou as estações de muitos literatos ao longo da história ocidental. “A literatura jamais é coisa de um só sujeito”, diz Roberto Calasso em A Literatura e os Deuses. “Os atores são, pelo menos, três: a mão que escreve, a voz que fala, o deus que vigia e impõe”. “O seu aspecto”, continua ele em seu frenesi poético, “não é muito diferente: todos os três são jovens, com cabeleira abundante e serpentina. Facilmente poderiam ser tomados por aparições de uma mesma pessoa”49. Todas essas menções nos fazem lembrar de uma passagem dos diários de Thoreau que traz à baila a problemática quanto à origem de nossos pensamentos grandiosos, e a conclusão existencial do autor de que aquilo que nele brilha é reflexo do brilho dos deuses. “Se sou elogiado por algo que não sou, coloco na conta dos deuses”, lemos em seus escritos de 1841. “É necessário ter um olhar habilidoso para distinguir entre a face da moeda que é a deles e aquela que é a minha. Seja como for, não há perda de forma alguma, pois o que precisei ganhar 46 PLATÃO. Sobre a inspiração poética (Íon) & Sobre a mentira (Hípias Menor). Tradução do grego, introdução e notas de André Malta. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2007, p. 33 e 35. 47 Otto (2005, p. 71) faz questão de lembrar que também entre os demais seres da Natureza encontramos o canto originado pelo anseio primordial de expressão, um canto que não tem em vista nenhuma finalidade prática a não ser representar-se ao mundo: “Tales cantos se han señalado acertadamente como ‘autorrepresentaciones’. Brotan de la inherente necesidad del ser de dar expresión a su esencia. Pero la autorrepresentación exige una presencia para la cual se manifiesta. Esta presencia es el ambiente. [...]. La criatura que canta se representa por lo tanto en su mundo y para sí mismo. Al representarse así, se da cuenta del mundo y se alegra, lo llama y alegremente hace uso del mismo. [...]. El lenguaje de su propio ser es al mismo tiempo el lenguaje de la realidad cósmica. En el canto resuena un conocimiento vivo”. 48 OTTO, 2005, p. 78. Na tradução consultada: “El artista, como el niño, crea sin ningún otro fin que el la de creación. Su hacer recrea las cosas en su verdadero sentido. De ahí la alegría en la concepción y en la ejecución, el placer apasionado del ninõ y el entusiasmo del artista, que cuanto más grande sea tanto más debe confesar que su creación es, en el fondo, una revelación”. 49 CALASSO, op. cit., p. 136. 220 é igualmente deles”50. “A natureza”, escreve ele a partir desse mesmo ponto de vista em seu diário de 1852, “não é transmitida por aquele que age conscientemente como um observador, mas na plenitude da vida. Para a pessoa plena, ela se apressa em realizar sua transmissão”51. Em um outro fragmento, ele pondera: “É vã a tentativa de escrever sobre temas escolhidos. Devemos esperar até que eles tenham acendido uma chama em nossas mentes. [...]. A resolução fria dá à luz, nada gera. O tema que me busca, e não eu a ele. [...]. Obedeça, relate”52. As verdades da experiência, medita Thoreau, não são declaradas a partir de conceitos sofisticados, mas com a ajuda da esfera sublime das belas Graças e das melodias das Musas: “quando algum orador sortudo profere uma verdade de nossa experiência e não de nossa especulação”, diz-nos ele, “pensamos que ele deve ter tido a ajuda das nove Musas e das três Graças”53. Com isso ele parece querer nos dizer que os sinais hieroglíficos da Natureza ultrapassam o entendimento, sendo descortinados por meio das faculdades unificadoras da imaginação, via pela qual somos conduzidos a esferas superiores. O poeta, aqui reafirmamos, é compreendido em sua qualidade de profeta, de ser humano inspirado — entre terra e céu ele é pontífice. O poeta inspirado pelas Musas, ao ver e ouvir a realidade cósmica conforme cantada pelas filhas da Memória, torna-se instrumento por meio do qual o deus supremo, Zeus, faz-se conhecer ao poeta e ao ouvinte de sua canção. O falar poético tem na canção divina o seu manadeiro, origem da profusão de cantares que fazem expressar o vir a ser do mundo. Não apenas o poeta, então, ouve a fala divina e a transborda para além de suas fronteiras espaço-temporais, mas também o próprio ouvinte das melodias entoadas poeticamente, que, tal qual o aedo, descobre-se parte dessa unidade divina que a ele se revela pelo canto. Essa linguagem divina, como entendiam os gregos de outrora, presentifica aquilo que há de mais valioso na constituição individual e comunitária do ser humano: as narrativas que dão sentido à identidade de seu povo, e que transmitem o testemunho da existência gloriosa dos deuses. Lembra-nos Torrano que, nesse cenário, o sentido primordial da verdade — o conteúdo das revelações entoadas pelo canto das Musas — é o de não- 50 Writings, VII, p. 209. 9 de fevereiro de 1841. No original: “What I am praised for what I am not I put to the account of the gods. It needs a skillful eye to distinguish between their coin and my own. But however there can be no loss either way, for what need I have earned is equally theirs”. 51 Writings, X, p. 174. 2 de julho de 1852. No original: “Nature is reported not by him who goes forth consciously as an observer, but in the fullness of life. To such a one she rushes to make her report”. 52 Writings, IX, p. 253. 30 de janeiro de 1852. No original: “It is in vain to write on chosen themes. We must wait till they have kindled a flame in our minds. [...]. The cold resolve gives birth to, begets, nothing. The theme that seeks me, not I it. [...]. Obey, report”. 53 Writings, VII, p. 302-303. 29 de dezembro de 1841. No original: “when some lucky speaker utters a truth of our experience and not of our speculation, we think he must have had the nine Muses and the three Graces to help him”. 221 esquecimento (alétheia), assimilado enquanto “força numinosa de ocultação, de encobrimento”, e traduzido, a partir de Martin Heidegger, como “re-velação”, “des-ocultação”. Assim captado, o poeta é aquele que, imbuído pela potencialidade cósmica das Musas, retira do encobrimento aquilo que, por sua própria natureza, quer se fazer ver e ouvir (ainda que não completamente), pois é isto que dá plenitude e magnificência ao seu vir a ser. “O grande espírito de Zeus é a grande percepção (mégan nóon) da totalidade deste canto”, aclara Torrano. “Voz infatigável, suave, lirial e imperecível espalha-se aí onde tem a sua residência a Divindade e é a voz mesma esta residência, porque por esta voz é que se revela a glória divina, e a própria voz se revela glória divina”54. Daí se segue que na enunciação das Musas se faça presente a ordenação do próprio cosmo, o que já está assinalado no mito de origem dessas deusas. Não apenas se presentifica a prodigalidade da miríade de vozes a embalar poeticamente o mundo, mas sua própria continuidade, balizada na perpetuação da cosmofania sempiterna na qual todos tomamos a nossa devida parte. “O Mundo (Mundus = puro, con-sagrado) é o Canto das Musas”, continua Torrano, “as quais não são senão a teo-cosmo-fânica função do Cantar, explicitações do Ser de Zeus e da memória (e estes Zeus e Memória são explicitações do Ser inconcusso e primordial da Terra-Mãe, Fundamento de Tudo e de todos os mortais e Imortais)”, cumpridoras do “Canto Mundificante (teogônico = cosmogônico e con-sagrado) Ouvido por Si Mesmo Que O Canta”55. As Musas cantam, então, para que o próprio deus dos deuses ouça o cantar através de suas filhas expresso, regozijando-se em sua plenitude com o vigor vibrante do cosmo. Eis que o poeta, executor do pontificado entre a palavra revelatória das Musas e a audiência do cantar, “(con)funde-se” com o ser supremo que é causa última de toda a existência — e é nessa experiência fenomenológica de contiguidade entre a multiplicidade e a unidade, a imanência e a transcendência (ou, para dizermos nos termos dos transcendentalistas, entre a Natureza e o espírito) que se realiza a percepção do todo conforme este se apresenta na parte. “Ao reunir e con-fundir o Ouvinte e o Agente da Dicção numa unidade insolúvel [...], esta Fala Divina e Ontofânica [...]”, exprime Torrano, “faz com que os Ouvintes mortais e imortais coincidam e sejam o Mesmo numa só e mesma Percepção (= Espírito) que é simultaneamente o Percipiente e o Percebido, Percepção de uma Fala que é simultaneamente a fala e a coisa dita, o emissor e o destinatário”. “Nessa percepção, nesse mégas nóos”, conclui ele, “tudo é Um”56. 54 TORRANO, op. cit., p. 25 e 27. 55 ibid., p. 91 e 92. 56 ibid., p. 92. 222 As múltiplas expressões das artes das Musas aparecem, assim, como distintas formas de manifestação do Uno na diversidade do vir a ser do mundo. “Dança e música, pertencentes desde o princípio à linguagem”, como já havia formulado Otto, “nos permitem conhecer claramente o caráter fundamental de todo falar originário. É a autorrepresentação do homem no centro de seu mundo e o chegar ao manifestar-se desse mundo no Um”57. Indicam-nos os grandes escritores que aquilo que há de mais sublime em nós não é propriamente nosso, mas irradiação do ser supremo sobre nós. “Os despertos”, afinal, como bem diz Clodomir Andrade em seu tecimento acerca das reverberações da Grécia e do cantar sagrado das Musas no pensamento de Thoreau, “tornam-se instrumentos: harpas e flautas tocadas pelas mãos e lábios luminosos da Natureza”. Em uma tal concepção, na qual nosso “escriba da Natureza” também se insere, os seres humanos, em toda a sua engenhosidade e singularidade, nada mais são senão “dóceis instrumentos nas mãos ou lábios do Cosmo. Todos esses dons são a linguagem de cada uma das criaturas nessa sinfonia sem fim [...]”58. E assim se entendia Thoreau: como uma flauta, uma harpa ou um tambor manejado por um instrumentista superior. O escritor concordiano alude à inspiração das Musas e à linguagem originária pelas deusas entoadas em diversas ocasiões. Na epígrafe de A Week, por exemplo, ele invoca seu já falecido irmão John como sua “Musa”59, indicando, em sua eulogia, o sentido originário da mousiké, que se faz pronunciar onde quer que se diga algo de significativo e que se cante a beleza e a plenitude do cosmo em sua unidade. O poder linguístico às Musas atrelado, reconhecia Thoreau muito bem, é captado nas vozes das matas. Frente à constatação da devastação de suas terras nativas em prol do comércio e das atividades industriais, ele lamenta em Walden: “Minha Musa será perdoada se doravante silenciar. Como esperar que os pássaros cantem se seus bosques foram abatidos?”60. Em A Week, outrossim, ele se vale da imagem mítica dessas deidades para expressar sua crença de que o ofício poético deveria ser permeado pelas forças naturais, uma disposição raramente encontrada nos poetas. Este é mais um sinal da decadência do exercício poético ao longo do tempo (e, por consequência, da decadência de 57 OTTO, 2005, p. 75. Na tradução consultada: “Danza y música, pertenecientes desde el comienzo a la lengua permiten conocer claramente el carácter fundamental de todo hablar originario. Es la autorrepresentación del hombre en medio de su mundo y el llegar a manifestarse de ese mundo en Uno”. 58 ANDRADE, op. cit., p. 105 e 114. No original: “The awakened become instruments: harps and flutes played by Nature’s hands and lips of light”; “docile instruments in the hands or on the lips of the Cosmos. Those sounds are each creature’s language in this unending symphony [...]”. 59 “Where’er thou sail’st who sailed with me, / Though now thou climbest loftier mounts, / And fairer rivers dost ascend, / Be thou my Muse, my Brother” (Writings, I, p. 2). 60 THOREAU, 2019, p. 186. 223 nosso emprego da linguagem), esquecido de seu feitio profético e da frescura da inspiração que somente a Natureza pode ofertar: Vê-se que a música tem seu lugar no pensamento, mas dificilmente tem ainda seu lugar na linguagem. Quando a Musa nos alcança, esperamos que ela remodele a linguagem e nela imprima seu próprio ritmo. Até agora, o verso geme e trabalha com a sua carga, e não avança alegremente, cantando ao longo do caminho. A melhor ode pode ser parodiada; na verdade, ela própria é uma paródia, e tem um som pobre e trivial, como o de um homem pisando nos degraus de uma escada. Homero, Shakespeare, Milton, Marvell61 e Wordsworth são apenas o farfalhar de folhas e galhos estalando na floresta, e não há aqui ainda o som de nenhum pássaro. A Musa nunca levantou sua voz para cantar62. Os mais imponentes acordes da Musa são, na maior parte das vezes, sublimemente lamuriosos, e não um trinado tão livre quanto o da Natureza. O conteúdo que o sol brilha para celebrar de manhã até à noite não é cantado. A Musa alenta-se, e não é arrebatada, mas consolada63. Já a ligação simbólica das Musas com as cigarras64, cujo mito nos é narrado no Fedro de Platão65, aparece no ensaio de caráter mais científico aqui reportado Natural History of Massachusetts, onde, recordando os versos da Ode à Cigarra, atribuídos pela tradição ao poeta lírico Anacreonte (c. 582–485 a.e.c.), o autor apresenta os sons naturais como condutores da linha de ligação entre o instante presente e o tempo dos primeiros poetas da civilização ocidental, como possibilitadores da experiência do universal (“a eternidade”) no particular 61 Referência ao poeta e satirista inglês Andrew Marvell (1621–1678). 62 Writings, I, p. 327-328. No original: “One sees that music has its place in thought, but hardly as yet in language. When the Muse arrives, we wait for her to remould language, and impart to it her own rhythm. Hitherto the verse groans and labors with its load, and goes not forward blithely, singing by the way. The best ode may be parodied, indeed is itself a parody, and has a poor and trivial sound, like a man stepping on the rounds of a ladder. Homer and Shakespeare and Milton and Marvell and Wordsworth are but the rustling of leaves and crackling of twigs in the forest, and there is not yet the sound of any bird. The Muse has never lifted up her voice to sing”. 63 ibid., p. 393. No original: “The loftiest strains of the Muse are, for the most part, sublimely plaintive, and not a carol as free as Nature’s. The content which the sun shines to celebrate from morning to evening is unsung. The Muse solaces herself, and is not ravished but consoled”. 64 Schafer (op. cit., p. 62) assinala que também no taoísmo as cigarras possuem um simbolismo espiritual: “No taoísmo, as cigarras se associaram a hsien, a alma, e imagens de cigarras eram utilizadas quando se preparava um corpo para ser incinerado a fim de auxiliar a alma a se libertar dele após a morte”. 65 Assim nos diz Sócrates (Fedro, 259c): “Conta-se que outrora, antes de nascerem as Musas, as cigarras eram seres humanos. Nascidas as Musas e revelado assim o canto, alguns deles foram então de tal modo arrebatados por esse prazer a ponto de, cantando, descuidarem da comida e da bebida, vindo a falecer. Depois disso, deles nasceu a raça das cigarras, que recebeu das Musas este presente: nada de alimento necessitam desde o nascimento, mas cantam de imediato sem comida e sem bebida até o fim de seus dias, e depois disso para junto das Musas vão anunciar a cada uma por quem são honradas por aqui” (PLATÃO, 2016, p. 115). 224 (“miríade de sons”). A Natureza, escreve ele, “não possui interstícios; toda parte está plena de vida. Eu também exploro, com prazer, as fontes da miríade de sons que enchem o meio-dia de verão, e que parecem ser o próprio grão e a própria matéria da qual a eternidade é feita”. “Havia ouvidos para esses sons na Grécia há tempos atrás, como a ode de Anacreonte mostrará”66, continua o pensador antes de citar o poema que glorifica a cigarra, “profeta do verão” amada pelas Musas67. Ao final de Walden, é também o símbolo da cigarra que o autor invoca, remetendo-se ao longo preparo que antecede a emissão do canto inspirado pela melodia primeira da Natureza, proclamação aparentemente negligenciada por seus contemporâneos: “Se temos a sarna dos sete anos, ainda não vimos em Concord a cigarra dos dezessete anos”68. Orfeu, um herdeiro, segundo a tradição mitológica, da Musa Calíope e de Apolo, foi também recordado por Thoreau em diversos momentos, aparecendo junto à sua descrição do tamborilar da atmosfera circundante. O movimento das árvores provocado pelos ventos, escreve ele, “era tão musical quanto uma viola, uma viola da floresta, o que poderia ter sugerido esse instrumento a algum Orfeu perambulando pela floresta. [...]. Era mitológico, e um indígena poderia tê-lo remetido a um espírito ancestral”69. Sendo um herdeiro da mousiké, Orfeu é um ouvinte da “melodia original”, o canto glorioso das Musas. Assim nos diz o escritor norte- americano em A Week: “Orfeu não ouve as melodias ressoadas de sua lira, mas apenas aquelas que são nela sopradas, pois a melodia original precede o som, assim como o eco vem em seguida. O resto é privilégio das rochas, das árvores e dos animais”70. Como vimos na epígrafe que abre a presente seção, rascunho dessa passagem que foi reelaborada em seu primeiro livro, era assim que Thoreau também entendia seu exercício poético-profético, uma ocupação que, vista sob os prismas das Musas, é herdeira das melodias divinas que solfejam as glórias do mundo em sua unidade. Ao fim de Walden, é desse poder divino que ele se recorda como o provedor de honrarias ao pensador que busca desempenhar um serviço glorioso. “Finque o prego e dobre sua ponta com tal firmeza que você possa acordar de noite e pensar com satisfação 66 THOREAU, 2013b, p. 5-6. No original: “has no interstices; every part is full of life”; “I explore, too, with pleasure, the sources of the myriad sounds which crowd the summer noon, and which seem the very grain and stuff of which eternity is made”; “There were ears for these sounds in Greece long ago, as Anacreon’s ode will show”. 67 ibid., p. 6. No original: “[...] Sweet prophet of summer. / The Muses love thee [...]”. 68 THOREAU, 2019, p. 312. 69 Writings, XVIII, p. 128. 9 de abril de 1859. No original: “was as musical as a viol, a forest viol, which might have suggested that instrument to some Orpheus wandering in the wood. [...]. It was mythologic, and an Indian might have referred it to a departed spirit”. 70 Writings, I, p. 363. No original: “Orpheus does not hear the strains which issue from his lyre, but only those which are breathed into it; for the original strain precedes the sound, by as much as the echo follows after. The rest is the perquisite of the rocks and trees and beasts”. 225 em seu trabalho — um trabalho para o qual você não se envergonharia de invocar a Musa. Assim, e só assim, Deus o ajudará”, escreve Thoreau. Reconhecendo que a música singular de cada um é apenas mais uma melodia no conjunto orquestral do universo que a mousiké faz cantar, ele pondera logo em seguida: “Cada prego fincado deveria ser mais um rebite na máquina do universo, e você a dar andamento ao trabalho”71. É também neste contexto de compreensão do poeta como ouvinte do princípio uno do universo que a eulogia de Thoreau à música dos poetas arcaicos em A Week deve ser compreendida. Como narra o autor, em meio ao seu contato sensível com os fenômenos naturais, a ele fazia-se ouvir o tom da mesma canção outrora soprada nos ouvidos de Homero e dos poetas védicos. O que são os ouvidos? o que é o Tempo? o que é esta série particular de sons chamada melodia musical, uma tropa invisível e mágica que nunca varreu o orvalho de prado algum, que pode flutuar através dos séculos de Homero até mim, tendo sido ele familiarizado com o mesmo encanto aéreo e misterioso que agora também zune em meus ouvidos? Que bela comunicação de época em época, dos pensamentos mais belos e nobres, as aspirações dos homens antigos, mesmo aquelas que nunca foram comunicadas pela fala, é música! É a flor da linguagem, pensamento colorido e curvo, fluente e flexível, sua fonte de cristal tingida com os raios do sol, e seus murmúrios ondulantes refletindo o gramado e as nuvens. Uma melodia musical me faz lembrar de uma passagem dos Vedas, e a ela associo a ideia de distância infinita, bem como de beleza e de serenidade, pois são aos sentidos mais distantes de nós que se endereça a maior profundidade dentro de nós. Ela nos ensina repetidamente a confiar no mais remoto e no mais belo como o instinto mais divino, e faz de um sonho nossa única experiência real. Sentimos uma alegria melancólica ao ouvi-la, talvez porque nós que ouvimos não somos um com o que é ouvido. [...]. A tristeza é nossa. O poeta indiano Kālidāsa72, em Śakuntalā, diz: “Talvez a tristeza dos homens ao ver belas formas e ouvir músicas prazerosas surja de alguma tênue lembrança de alegrias passadas e dos vestígios de conexões de um estado de existência anterior”73. 71 THOREAU, 2019, p. 311. 72 Kālidāsa, que viveu, provavelmente, entre os séculos IV-VI, é considerado um dos mais eminentes poetas da língua sânscrita, sendo seu poema Śakuntalā um dos mais célebres. 73 Writings, I, p. 182-183. No original: “What are ears? what is Time? that this particular series of sounds called a strain of music, an invisible and fairy troop which never brushed the dew from any mead, can be wafted down through the centuries from Homer to me, and he have been conversant with that same aerial and mysterious charm which now so tingles my ears? What a fine communication from age to age, of the fairest and noblest thoughts, the aspirations of ancient men, even such as were never communicated by speech, is music! It is the flower of language, thought colored and curved, fluent and flexible, its crystal fountain tinged with the sun’s rays, and its purling ripples reflecting the grass and the clouds. A strain of music reminds me of a passage of the Vedas, and I associate with it the idea of infinite remoteness, as well as of beauty and serenity, for to the senses that is farthest from us which addresses the greatest depth within us. It teaches us again and again to trust the remotest and finest as the divinest instinct, and makes a dream our only real experience. We feel a sad cheer when we hear it, perchance because we that hear are not one with that which is heard. [...]. The sadness is ours. The Indian poet Calidas says in the Sacontala: ‘Perhaps the sadness of men on seeing beautiful forms and hearing 226 Thoreau não lê os símbolos poéticos de Homero apenas, mas os ouve nos encantos naturais, que “zunem” em seus ouvidos e lhe comunicam uma melodia musical que parece provir de uma dimensão para além das eras. Os “pensamentos mais belos e nobres” dos seres humanos vibram musicalmente, e é esta composição linguística, precisamente — a música, “a flor da linguagem” —, a mais primordial forma de expressão. Ouvimo-la no ressoar das vozes dos poetas-profetas de tradições espirituais ancestrais: em Homero, em Kālidāsa e nos Vedas. Embora seja captada em sua particularidade espaço-temporal e seja inicialmente percebida pelos ouvidos, a música de que fala Thoreau detém um sentido de transcendência: trata-se da harmonia da totalidade do cosmo — materializada na orquestra do mundo, na qual ressoam as vozes dos sábios e também as vozes dos sabiás. E se a melancolia intervém quando ouvimos essa música, diz o autor a partir do panorama sapiencial indiano, é porque não nos entendemos, afinal, enquanto parte da unidade suprema que permeia a pluralidade linguística reverberada em nossos ouvidos. Talvez seja porque lembramos “de um estado de existência anterior” no qual estávamos ligados (ou no qual percebíamos a nossa ligação) com essa unidade. A melancolia não intervém, todavia, em meio à percepção da unidade suprema na variedade do mundo, compreensão que nos remete aos belos versos do Īśa Upaniṣad (7): “Quando, para aquele que sabe, todos os seres tornaram-se verdadeiramente um com seu si-mesmo, então que ilusão e que tristeza pode haver para ele, que viu a unidade?”74. A melodia cantada que circunda um texto literário, conforme o vislumbre de Thoreau, harmoniza-se com o ritmo do manancial originário, reunindo os murmúrios da terra e do céu, “o gramado e as nuvens”. Apesar disso, ele lamenta que as tonalidades de poetas gregos como Orfeu, Lino e Museu estejam “morrendo para os ouvidos dos homens modernos”. “Eles não viveram em vão”, diz ele. “Podemos conversar com essas famas incorpóreas sem reservas ou distinções”75. Ainda assim, nosso autor demonstrava estar ciente de que seus relatos acerca do universo natural, mesmo que na mousiké apoiados, jamais seriam capazes de transmitir ao leitor sweet music arises from some faint remembrance of past joys, and the traces of connections in a former state of existence’”. 74 The Principal Upaniṣads, op. cit., p. 572. Na tradução consultada: “When, to one who knows, all beings have, verily, become one with his own self, then what delusion and what sorrow can be to him who has seen the oneness?”. Eis o comentário de Radhakrishnan sobre a não-dualidade entre o uno e o múltiplo: “When the unity is realised by the individual he becomes liberated from sorrow, which is the product of dualities. When the self of the perceiver becomes all things, there can be no source of disturbance or care. The vision of all existences in the Self and of the Self in all existences is the foundation of freedom and joy. The Īśa, the Lord is immanent in all that moves in this world. There is no opposition between the one and the many” (ibidem). 75 Writings, I, p. 238. No original: “dying away on the ears of us modern men”; “We can converse with these bodiless fames without reserve or personality”. 227 a completude de suas experiências — afinal, cabe a cada um percorrer seu próprio caminho de aproximação dos poderes cósmicos: Os habitantes da terra geralmente contemplam apenas o lado escuro e sombrio que está abaixo do pavimento do céu; somente quando visto sob um ângulo favorável no horizonte, de manhã ou à noite, que alguns traços franzinos do rico revestimento das nuvens são revelados. Mas minha musa falharia em transmitir uma impressão da suntuosa tapeçaria que me rodeava [...]76. O sentido primordial da “música”, entendida enquanto linguagem original que dá fundamento a todo cantar e ser no mundo, anuncia-se de forma ainda mais nítida no poema Inspiration [Inspiração]77, onde Henry Thoreau claramente atribui à linguagem divina (personificada tanto na figura das Musas quanto na imagem de Deus) o fundamento da fala poética e, em suma, de todo vir a ser pleno de sentido — que é precedido, por sua vez, por um ouvir “para além do alcance do som”; pela audição de uma “anciã e cristalina harmonia” que dá unidade ao “espetáculo das coisas”: Se com a cabeça ereta e clarificada eu canto, Ainda que as Musas me emprestem sua voz, De meu pobre amor por qualquer encanto, Nasce um verso débil e banal como sua foz. Mas se com o pescoço curvado eu tatear, Escutando atrás de mim meu regozijar, Com uma fé superior ao mero esperar, Mais ansioso para recuar do que avançar, Fazendo minha alma lá conspirar Na chama que meu coração banhou iluminado, Então o poema para sempre servirá — O tempo não ruirá o verso por Deus lavrado. Sempre o espetáculo das coisas em sua unidade Flutua diante de minha mente rememorado, E tal é o amor e reverência que trazem, Que esqueço que antes da visão fui privado. O não-visto e o não-ouvido fazem-se presentes, Um divino eletuário em advento, E eu, que havia sido sensual entrementes Torno-me sensível e, como Deus, atento. 76 ibid., p. 199. No original: “The inhabitants of earth behold commonly but the dark and shadowy under side of heaven’s pavement; it is only when seen at a favorable angle in the horizon, morning or evening, that some faint streaks of the rich lining of the clouds are revealed. But my muse would fail to convey an impression of the gorgeous tapestry by which I was surrounded [...]”. 77 Alguns versos deste poema estão também presentes em A Week. 228 Se antes eu tinha ouvidos apenas, passo a ouvir, Se antes eu tinha olhos apenas, passo a ver; Se antes eu tinha anos apenas, passo a existir, Se antes eu tinha a tradição apenas, passo a saber. Ouço para além da amplitude do som, Vejo para além do alcance da visão, Novas terras, céus e mares dão seu tom E em meu dia o sol empalidece o clarão. Uma anciã e cristalina harmonia Penetra minha alma com seu retumbar Como se vinda da suprema melodia De meu interior, para além do ressoar. [...] Minha memória irei educar Para conhecer a verdade universal, Recordando até o último suspirar A una e soberana juventude imortal78. Já no poema Mission [Missão] o ouvimos invocar o “mais remoto som” como o condutor de sua missão existencial de transmitir um arranjo próprio da sinfonia divina da Natureza: Busquei nos arredores por meu dom, Para saber por que a vida me foi dada: Atenderei ao mais remoto som, E direi o que proferiu Deus em sua fala79. 78 THOREAU, Henry David. Inspiration. In: ______. Excursions and Poems. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 5, p. 396-399. No original: “If with light head erect I sing, / Though all the Muses lend their force, / From my poor love of anything, / The verse is weak and shallow as its source. / But if with bended neck I grope, / Listening behind me for my twit, / With faith superior to hope, / More anxious to keep back than forward it, / Making my soul accomplice there / Unto the flame my heart bath lit, / Then will the verse forever wear, — / Time cannot bend the line which God hath writ. / Always the general show of things / Floats in review before my mind, / And such true love and reverence brings, / That sometimes I forget that I am blind. / But now there comes unsought, unseen, / Some clear divine electuary, / And I, who had but sensual been, / Grow sensible, and as God is, am wary. / I hearing get, who had but ears, / And sight, who had but eyes before; / I moments live, who lived but years, / And truth discern, who knew but learning’s lore. / I hear beyond the range of sound, / I see beyond the range of sight, / New earths and skies and seas around, / And in my day the sun doth pale his light. / A clear and ancient harmony / Pierces my soul through all its din, / As through its utmost melody, — / Farther behind than they, farther within. [...]. My memory I’ll educate / To know the one historic truth, / Remembering to the latest date / The only true and sole immortal youth”. 79 THOREAU, Henry David. Mission. In: ______. Excursions and Poems. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 5, p. 418. No original: “I’ve searched my faculties around, / To learn why life to me was lent: / I will attend the faintest sound, / And then declare to man what God hath meant”. 229 Poderíamos dizer que, de acordo com a formulação thoreauviana, a mousiké é “a flor da linguagem”, a “língua que todas as coisas e fatos falam sem metáforas, a única copiosa e modelar”, arquétipo linguístico que dá forma e tom a tudo que se imprime nas construções mitopoéticas. Assim como o sentido de ser das “artes das Musas” ultrapassam elas próprias (pois seu fundamento repousa na ordenação cósmica operada por Zeus, a unidade gloriosa do mundo), a música da Natureza aludida por Thoreau tem sua razão de ser num horizonte no qual “o sol empalidece seu clarão” (ou seja: no qual a presença de uma linguagem/melodia anterior ao intelecto do poeta é reconhecida). Ou, de acordo com a elaboração de Walden, a língua primeva do mundo tem sua razão de ser em raios que estão para além da esfera de visão daqueles a passar pelas “venezianas” que cobrem as janelas pelas quais costumamos olhar o mundo — já que, geralmente, pensamos que somos autores publicando nossas próprias ideias, e não instrumentos a imprimir o sentido último da linguagem/música primordial. Assim lemos nas linhas iniciais do capítulo “Sons”, de Walden: enquanto ficamos confinados aos livros, mesmo os mais seletos e clássicos, e lemos apenas as várias línguas escritas, que não passam de dialetos e regionalismos, corremos o perigo de esquecer a língua que todas as coisas e fatos falam sem metáforas, a única copiosa e modelar. Muito se publica, pouco se imprime. Os raios que entram pela veneziana não serão lembrados quando a veneziana for totalmente removida80. A linguagem original da Natureza, que é impressa a todo instante nos mais diversos recônditos da terra, não se limita, portanto, à língua escrita, à língua vernácula ou a qualquer outra expressão que se restrinja à fala humana; ela “está em todas as coisas e em todos os lugares”; é a fala cósmica que se faz imprimir em todas as coisas, tendo no manancial divino e transcendente da Natureza sua fonte de imantação. Assim como no cenário espiritual grego, é a percepção desta linguagem original de que nos fala Thoreau a proporcionadora da percepção poética da unidade na multiplicidade. É essa “linguagem realmente universal”, como escreve ele na passagem abaixo, o manancial de toda expressão particular tecida nos mantos cósmicos — uma compreensão que já não é mais lembrada em nossas “dissertações” modernas “sobre a linguagem”. Em todas as dissertações sobre a linguagem, os homens esquecem a linguagem que é, a linguagem realmente universal, o significado inexprimível que está em todas as coisas e em todos os lugares, de que fervilham as manhãs e as tardes. Como se a linguagem fosse especialmente a da língua em uso corrente. 80 THOREAU, 2019, p. 113, grifos acrescentados. 230 Com uma aprendizagem ou compreensão mais copiosa daquilo que se publica, as linguagens atuais e tudo o que elas expressam serão esquecidas81. A literatura, afinal, é apenas mais uma entoação dessa linguagem original, cujos principais herdeiros, no entender de Thoreau, são os antigos poetas dotados da insígnia do sagrado. “Que sentimento tão nobre há nos livros mais antigos — em Homero, Zendavesta ou Confúcio!”, escreve ele em agosto de 1838. “É uma música que flutuou até nós na brisa do tempo, pelos corredores de incontáveis eras. Por sua própria nobreza, torna-se próxima e audível para nós”82. “Um leve som ao entardecer”, declara o autor tempos depois, “me eleva por meio dos ouvidos e faz a vida parecer indescritivelmente serena e grandiosa. Pode estar em Urano ou na veneziana. É o som original perante o qual toda literatura é apenas o eco”83. É o que ele também nos sugere nesta bela passagem, na qual os livros são expressos como “apenas uma nova nota na floresta”: Os livros devem ser tratados como novos sons apenas. A maioria deles seria submetida a uma dura prova se o leitor assumisse a atitude de um ouvinte. Eles são apenas uma nova nota na floresta. Para o nosso pensamento sóbrio e solitário, a terra é uma natureza selvagem inexplorada. Uma selvageria como a do gaio e do rato-almiscarado reina sobre grande parte da natureza. A mariquita-de-coroa-ruiva e a tarambola são ouvidas no horizonte. Eis aí um novo livro de heróis [...]. Deixe-me aproximar meu ouvido e ouvir o som deste livro, para que eu possa saber se alguma inspiração ainda o infesta. [...]. Toda a natureza é a cada instante uma nova impressão84. Com tudo isso queremos dizer que a linguagem original — a fala divina que incita todo linguajar — transborda nas múltiplas linguagens da Natureza. A entonação primordial está por todas as partes: nas melodias ecoadas pelos poetas e seus heróis, pelo gaio, pelo rato- 81 Writings, VII, p. 386-387, grifo do autor. 1845. No original: “In all the dissertations on language, men forget the language that is, that is really universal, the inexpressible meaning that is in all things and everywhere, with which the morning and evening teem. As if language were especially of the tongue of course. With a more copious learning or understanding of what is published, the present languages, and all that they express, will be forgotten”. 82 ibid., p. 55. 22 de agosto de 1838. No original: “How thrilling a noble sentiment in the oldest books, — in Homer, the Zendavesta, or Confucius! It is a strain of music wafted down to us on the breeze of time, through the aisles of innumerable ages. By its very nobleness it is made near and audible to us”. 83 ibid., p. 265. 10-12 de julho de 1841. No original: “A slight sound at evening lifts me up by the ears, and makes life seem inexpressibly serene and grand. It may be in Uranus, or it may be in the shutter. It is the original sound of which all literature is but the echo”. 84 ibid., p. 260. 23 de maio de 1841. No original: “Books are to be attended to as new sounds merely. Most would be put to a sore trial if the reader should assume the attitude of a listener. They are but a new note in the forest. To our lonely, sober thought the earth is a wild unexplored. Wildness as of the jay and muskrat reigns over the great part of nature. The oven-bird and plover are heard in the horizon. Here is a new book of heroes [...]. Let me put my ear close, and hear the sound of this book, that I may know if any inspiration yet haunts it. [...]. All nature is a new impression every instant”. 231 almiscarado, pela mariquita-de-coroa-ruiva, pela tarambola e por todos os descendentes da terra. O que Thoreau está dizendo, ao seu próprio modo, é, em sua essência, aquilo que já apregoaram diversas tradições espirituais, a saber: o cosmo, em suas melodias e formas, conversa com os seres humanos, ligando as notações da realidade material aos retumbares da alma. É por meio da linguagem mítico-simbólica, afinal, que são revelados aos seres humanos sua coparticipação nos mistérios da realidade. Isto é verdadeiro para as vertentes sapienciais primitivas de modo geral, nas quais se sustenta que é por meio da audição dos misteriosos dizeres cósmicos que somos envolvidos no tempo mítico. É o que argumenta Mircea Eliade acerca das cosmovisões que tonalizaram a realidade dos primórdios: O homem das sociedades nas quais o mito é uma coisa vivente, vive num mundo “aberto”, embora “cifrado” e misterioso. O Mundo “fala” ao homem e, para compreender essa linguagem, basta-lhe conhecer os mitos e decifrar os símbolos. [...]. O Mundo não é mais uma massa opaca de objetos arbitrariamente reunidos, mas um Cosmo vivente, articulado e significativo. Em última análise, o Mundo se revela enquanto linguagem. Ele fala ao homem através de seu próprio modo de ser, de suas estruturas e ritmos. [...]. Ao falar de si mesmo, o Mundo reporta-se aos seus autores e protetores e conta a sua “história”. O homem não se encontra num mundo inerte e opaco e, por outro lado, ao decifrar a linguagem do Mundo, ele se confronta com o mistério. Pois a “Natureza” desvenda e camufla, simultaneamente, o “sobrenatural”, e é nisso que reside para o homem arcaico o mistério fundamental e irredutível do Mundo85. Também para Thoreau, afinal, “o Mundo se revela enquanto linguagem”, uma linguagem enigmática que plenifica de sentido as dinâmicas do cosmo; uma linguagem que se revela em seu “próprio modo de ser”, em “suas estruturas e ritmos”, e que se apresenta enquanto recondutora da íntima relação entre as leis que regem os ritmos da Natureza e aquelas que orquestram a interioridade e a busca espiritual humana. Os diversos seres da terra aparecem, assim, como emissários de uma linguagem superior, linguagem que comunica a originação de todo dizer em um único manancial sagrado. Onde quer que se cante, alega o autor, é a unidade do “grande desígnio do universo” que se faz expressar: Ouvi o que este pequeno passageiro tem a dizer, enquanto voa assim de árvore em árvore? [...]. Posso me perdoar se deixá-lo ir para Rupert’s Land antes de apreciá-lo? Deus não fez este mundo por brincadeira; não, nem com indiferença. Todos esses pardais migratórios trazem mensagens que dizem respeito à minha vida. [...]. Eu amo os pássaros e os animais porque eles são mitológicos em sua sinceridade. Vejo que o pardal pia, esvoaça e canta 85 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Tradução de Pola Civelli. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016, p. 125-126, grifos do autor. 232 satisfatoriamente ao grande desígnio do universo; se o homem não se comunica com ele, não entende sua linguagem, é porque ele não é um com a natureza. [...]. Que filósofo poderia estimar os diferentes valores de um pensamento lúcido e de um sonho?86 Quão estranhamente os sons festivos atingem os ouvidos dos campos cultivados à beira da floresta, enquanto o sol está se pondo no oeste. É um mundo que não conhecíamos antes. Ouvimos esses sons e não somos capazes de nenhum ato ou pensamento mesquinho. Nós pisamos no Olimpo e participamos dos concílios dos deuses87. Ouvindo a linguagem do “grande desígnio do universo”, “pisamos no Olimpo e participamos dos concílios dos deuses”, e, atentando-nos para essa música, ouvimos, nos diversos sons da Natureza, “mensagens” que nos dizem respeito diretamente, advertindo-nos sobre nossa unidade com a Natureza. Entendendo-nos, enfim, como participantes de um universo orquestrado, que se comunica conosco, adquirimos um novo ritmo. Esta é uma experiência espiritual e existencial, que lega ao ouvinte uma profunda mudança epistemológica. A audição da modulação original pressupõe, assim, uma reforma interior; uma reforma dos conceitos errôneos que detemos sobre nossa relação conosco mesmos, com o mundo e seu fundamento. Seguindo o ritmo da Natureza, sugere-nos Thoreau, um novo ritmo nos é dado. E quando seguimos esse ritmo, ele próprio o ritmo da “melodia originária”, percebemos a presença da unidade na multiplicidade. Eis aí o heroísmo e a coragem que a “língua materna”, grande útero de onde permanecem nascendo a poesia e a música, fornece ao seu ouvinte. O homem corajoso é o único patrono da música; ele a reconhece por sua língua materna88; uma linguagem mais melíflua e articulada do que as palavras, em 86 Writings, IX, p. 367-368, grifos acrescentados. 31 de março de 1852. No original: “Have I heard what this tiny passenger has to say, while it flits thus from tree to tree? [...]. Can I forgive myself if I let it go to Rupert’s Land before I have appreciated it? God did not make this world in jest; no, nor in indifference. These migrating sparrows all bear messages that concern my life. [...]. I love the birds and beasts because they are mythologically in earnest. I see that the sparrow cheeps and flits and sings adequately to the great design of the universe; that man does not communicate with it, understand its language, because he is not at one with nature. [...]. What philosopher can estimate the different values of a waking thought and a dream?”. 87 Writings, VII, p. 55. 26 de agosto de 1838. No original: “How strangely sounds of revelry strike the ear from over cultivated fields by the woodside, while the sun is declining in the west. It is a world we had not known before. We listen and are capable of no mean act or thought. We tread on Olympus and participate in the councils of the gods”. 88 Aqui nos lembramos da discussão de Otto (2005, p. 76-77) sobre o fundamento ôntico da linguagem poética (a “língua materna”) a partir de Hamann, que se contrapôs à filosofia da linguagem de Herder e sua pressuposição, em seu tratado acerca da origem da linguagem, quanto à possibilidade de nos colocarmos na posição dos primeiros seres humanos. Nos termos de Otto, segundo a perspectiva do pensamento herderiano, “se cree poder demostrar cómo el hombre todavía no pensante llegó a pensar, o, dicho más claramente, cómo el hombre llegó a ser desde una existencia prehumana a la humana”. No entanto, questiona Otto, como poderíamos, a partir de nossa situação atual, retornar à condição do 233 comparação com a qual o discurso é recente e temporário. É a sua própria voz. Sua linguagem deve ter o mesmo movimento majestoso e a mesma cadência que a filosofia atribui aos corpos celestes. O fluxo constante de seu pensamento constitui o tempo na música. O universo advém e o acompanha, que antes seguia de forma isolada e discordante. Assim são a poesia e a canção89. As Musas, afinal, “só se aproximam dos homens musicais, as Horas só daqueles que lhes seguem a marcha e a vigência no curso do ano, as Cárites só contemplam quem pode entrar- lhes na dança”. “Assim”, escreve o alemão Friedrich Georg Jünger (1898–1977), “em todos os tempos apenas o homem que vive de modo poético logrou encontrar caminho e ter acesso à divindade”90. Também deste modo pensava e vivia Thoreau. Já tendo discutido a aproximação de nosso autor da mousiké dos gregos, mencionaremos agora, de forma breve e sintética, a semelhança entre o pensamento thoreauviano e os painéis soteriológicos do hinduísmo no que diz respeito aos fundamentos divinos da linguagem, contextualização que também nos auxiliará na compreensão da relação entre o poeta e a audição dos dizeres supremos do mundo. Neste sendeiro espiritual nos é apresentada uma configuração própria do “poeta-profeta” como ouvinte. Assim como nas já mencionadas correntes espirituais ocidentais atreladas à concepção do poeta-profeta, na tradição védica, o ver e o ouvir são centrais na experiência do sagrado. Aliás, essa semelhança é atestada pela própria raiz humano primevo, ainda destituído de pensamento e linguagem, a fim de elucidarmos a origem da linguagem? “Así há pensado”, pontua o erudito, “el agudo Hamann en contraposición a Herder cuando escribió en su Aesthetica in nuce: ‘La poesía es la lengua materna del género humano; tal como la horticultura es más antigua que la tierra arada; la pintura, más antigua que la escritura; el canto, más antiguo que la declamación; las comparaciones, más antíguas que las conclusiones; el trueque, más antiguo que el comercio...’” (ibidem, grifos acrescentados). Embora tenha recebido influências indiretas do pensamento de Herder pela via do Transcendentalismo, Thoreau detinha uma posição similar à de Hamann, ainda que ele próprio não se colocasse na esteira dos alemães. Em A Week, distanciando-se do criticismo alemão, ele assim afirma: “Let us not, as the Germans advise, endeavor to go abroad and vex our bowels that we may be somebody else to explain him. If I am not I, who will be?” (Writings, I, p. 163). Para Thoreau, é o eu singular, que se afirma no tempo presente, que pode/deve descobrir algo acerca deste mistério da linguagem poética-simbólica do cosmo que desde os tempos arcaicos tem algo a expressar sobre o sentido fundamental do ser no mundo, e não um pretenso eu metafísico que presume se colocar no lugar do ser humano primitivo e pensar a partir das estruturas pré-linguísticas dessa posição. É isso também o que ele quer dizer quando começa Walden com a primeira pessoa, dando o tom contextual e pessoal de sua narrativa. A centralidade do “eu” singular na moralidade thoreauviana é o tema da pesquisa de Vicentini (op. cit.). 89 THOREAU, 1902, p. 11. No original: “The brave man is the sole patron of music; he recognizes it for his mother tongue; a more mellifluous and articulate language than words, in comparison with which, speech is recent and temporary. It is his voice. His language must have the same majestic movement and cadence that philosophy assigns to the heavenly bodies. The steady flux of his thought constitutes time in music. The universe falls in and keeps pace with it, which before proceeded singly and discordant. Hence are poetry and song”. 90 OTTO, 2006, p. 15. 234 linguística indo-europeia compartilhada por essas sociedades. Guy L. Beck, em Sonic Theology: Hinduism and Sacred Sound, elucida que O termo Veda denota “aquilo que é conhecido”, da raiz sânscrita vid, “conhecer”. Diz-se que os antigos poetas védicos, desde um nível muito elevado de intuição poética, “ouviram” ou “viram” o Veda original através de uma espécie de televisão interna. Curiosamente, essa raiz é cognata do latim vid, “ver”, como na palavra vídeo. Ainda que às vezes as metáforas visuais sejam apropriadas, os Vedas são mais frequentemente caracterizados como śruti, ou “aquilo que é ouvido”. Śruti como conceito apresenta tanto o caráter auditivo da verdade védica quanto sua natureza transcendente e revelada. Sendo aquilo que foi visto e ouvido pelas pessoas em contato mais próximo com a Realidade Suprema, o Veda “soou” como verdade eterna91. Também aos poetas-profetas da Índia antiga foi atribuído o ofício sagrado de ver e ouvir a linguagem divina. Ouvindo aquilo que diz o poder supremo, os mestres espirituais, a partir de sua experiência espiritual (percorrida na interioridade, ainda que em meio à comunidade), expandem sua visão da realidade, e podem então transmitir seus ensinamentos, repercutidos a partir de uma melodia sagrada da qual toda linguagem que dá sentido ao mundo deriva. A essa perspectiva de ver e ouvir o divino está atrelada a concepção mítica da deusa da linguagem, Vāc/Vāk, princípio transcendente da linguagem a fundamentar toda expressão que permeia o panorama mitopoético do Ṛgveda. O substantivo feminino vāc significa “fala, voz, conversa, linguagem (também a de animais), som (também o de objetos inanimados, como o das pedras usadas para compressão, o som de um tambor), uma palavra, um ditado, uma frase, uma sentença, uma afirmação e a fala personificada”. Conforme Beck, no contexto poético-religioso do Ṛgveda, o termo “vāc” alude: (i) à palavra revelada; (ii) ao discurso, em seu sentido mais amplo; (iii) ao simbolismo das vacas. “Os ṛṣis, ou poetas, que ‘ouviram’ os versos originais, são considerados responsáveis por revelar a natureza divina do discurso humano”92, escreve o pesquisador. É relevante observarmos aqui que também no contexto espiritual védico, o poeta, 91 BECK, Guy L. Sonic Theology: Hinduism and Sacred Sound. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1995, p. 23-24, grifo do autor. No original: “The term Veda denotes ‘that which is known,’ from the Sanskrit root vid, ‘to know.’ The ancient Vedic poets, from a very high level of poetic intuition, are said to have ‘heard’ or ‘seen’ the original Veda through a kind of internal television. Interestingly, this root is a cognate of the Latin vid, ‘to see,’ as in the word video. Although visual metaphors are sometimes appropriate, the Vedas are most often characterized as śruti, or ‘that which is heard.’ Śruti as a concept features both the auditory character of Vedic truth and its transcendent, revealed nature. Being that which was seen and heard by those in closest touch with Supreme Reality, the Veda ‘sounded forth’ as eternal truth”. 92 ibid., p. 25. No original: “speech, voice, talk, language (also of animals), sound (also of inanimate objects as of the stones used for pressing, of a drum), a word, saying, phrase, sentence, statement, and speech personified”; “The ṛṣis, or poets, who ‘heard’ the original verses are said to be responsible for revealing the divine nature of human speech”. 235 por excelência, é o profeta; ele é um participante da estrutura primordial da linguagem que envolve todos os seres da Natureza, ideia transluzida na relação entre os termos ṛṣi e śruti. De forma similar à relação testificada pelos gregos entre o poeta e as Musas, compreendia-se, na Índia antiga, que o caráter revelatório de Vāc é absorvido pelo poeta no êxtase de sua inspiração, mas não é por ele compreendido em sua essência (isto é, não é por ele desvelado inteiramente)93. No hino a Todos os Deuses (I. 164), de Dīrghatamas Aucathya, ouvimos o poeta assim clamar à linguagem originária: A sílaba do verso, sobre a qual todos os deuses se firmaram, está no mais alto dos céus — aquele que não conhece essa (sílaba), o que alcançará com seu verso? Apenas aqueles que a conhecem aqui se sentam conjuntamente. [...]. Alimente-se sempre de grama, ó, vaca inviolável [= Linguagem]! Daqui se aproximando, beba da água pura! (39-40)94. Não se reduzindo, portanto, às dicções humanas, “vāk referia-se a uma ‘linguagem’ subjacente da natureza na qual os sons das vacas, dos animais, dos pássaros, dos sapos, dos tambores e até mesmo de objetos inanimados participavam [...]”95. É o que nos indicam os versos supracitados, que identificam a expressividade da língua originária ao simbolismo ancestral da sacralidade das vacas entre os hindus. E é também o que lemos nos versos a Vāc de Nema Bhārgava (VIII. 100, 10-11): Os deuses deram à luz a deusa Linguagem. As feras de todas as formas a pronunciam. Alegrando, ordenhando refresco e nutrição para nós, que a Linguagem, a vaca leiteira, alcance-nos favoravelmente glorificada (11)96. 93 Assim comentam os tradutores da versão do Ṛgveda aqui empregada: “the poet does not understand his own inspiration (vs. 37), which is finally a gift of the gods or, more specifically, a gift of Agni. According to verses 39-42, this inspired Speech descends to the human realm like water in order to sustain life on earth” (The Rigveda, op. cit., p. 353). Aqui são referidos os versos de All Gods (Riddle Hymn) (I. 164), onde ouvimos o poeta assim declarar: “I do not understand what sort of thing I am here: though bound, I roam about in secret by my thinking” (vs. 37) (ibid., p. 358). 94 ibid., p. 358. Na tradução consultada: “The syllable of the verse, upon which all the gods have settled, is in the highest heaven — / he who does not know that (syllable), what will he accomplish by his verse? Only those who know it sit together here. / [...]. Feed on grass always, o inviolable cow [=Speech]! Coming here, drink pure water!”. 95 BECK, op. cit., p. 25. No original: “vāk referred to an underlying ‘language’ of nature in which the sounds of cows, animals, birds, frogs, drums, and even inanimate objects participated [...]”. 96 The Rigveda, op. cit., v. 2, p. 1210. Na tradução consultada: “The gods begat goddess Speech. The beasts of all forms speak her. / Gladdening, milking out refreshment and nourishment for us, let Speech, the milk-cow, come well praised to us”. 236 Na espiritualidade védica antiga, Vāc é então o princípio divino de todo falar e ouvir que na Natureza tem seu palco. Nessa fonte primeva bebiam os poetas-profetas descritos pelos hinos do Ṛgveda, dela dependendo para ver e ouvir o fundamento divino da realidade. Na verdade, toda “sua atividade sensorial, incluindo as formas pelas quais ele recebe inspiração, especialmente vendo e ouvindo, assim como sua vida, dela depende”. Nela repousando, o conteúdo dos discursos dos ṛṣis, cheios de simbolismos e mistérios, apresenta-se, em seu contexto, envolvido por um estatuto privilegiado. “O poeta é aquele que é ‘ouvido’ no mundo: seus produtos verbais têm status privilegiado, e ela [Vāc] faz dele um conduíte de sua própria mensagem”97. No famoso hino a Vāc do poeta Vāc Āmbhr̥ṇa (X.125), o divino princípio feminino da linguagem, em primeira pessoa, assim proclama: Através de mim ele se alimenta — quem quer que veja, quem quer que respire, quem quer que ouça o que é dito. Sem pensar nisso, eles vivem em mim. Ouça, ó tu que és ouvido [o poeta]: é coisa confiável o que lhe digo (4). [...] meu ventre está nas águas, no mar. Dali eu me espraio por todos os mundos, e toco a altura do céu. Tal como o vento, eu avento, alcançando todos os mundos, além do céu, além desta terra — de tal dimensão, em minha grandeza, eu vim à existência (7-8)98. Ao longo do desenvolvimento dos simbolismos referentes ao som divino primordial figurado por Vāc, origem de todo falar e de todo ouvir (e, em suma, de tudo aquilo que é significativo nas expressões linguísticas do mundo entre o céu e a terra), a deusa foi por sua grandiosidade identificada como companheira do artífice supremo. De acordo com Beck, “na época da literatura Brāhmaṇa, Vāk tornou-se a esposa, ou Śakti, do principal demiurgo masculino”, Prajāpati99. Como explica o pesquisador, está aí implicada a correlação entre 97 ibid., p. 1602 e 1603. Comentário dos tradutores. No original: “his sense activity, including the ways in which he receives inspiration, by seeing and hearing especially, as well as his life depends on her”; “The poet is the one who is ‘listened to’ in the world: his verbal products have a privileged status, and she [Vāc] makes him a conduit of her own message”. 98 ibid., p. 1603-1604. Na tradução consultada: “Through me he eats food — whoever sees, whoever breathes, whoever hears what is spoken. / Without thinking about it, they live on me. Listen, o you who are listened to: it’s a trustworthy thing I tell you. / [...] my womb is in the waters, in the sea. / Thence I spread forth across all worlds, and yonder heaven with its height I touch. / I, just like the wind, blow forth, grasping at all worlds, / beyond heaven, beyond this earth here — of such size in my greatness have I come into being”. 99 Prajāpati (cujo significado é “o senhor da progenitura”) é uma das divindades demiúrgicas na mitologia védica; as construções mitológicas posteriores atribuem a ele a condição de ancestral 237 discurso (representado por Vāc) e mente (representado por Prajāpati) que constitui o pilar fulcral do fenômeno da linguagem. “Vāk foi identificada com o conceito expansivo de Brahman (vāg vai brahman), o poder da fala no ritual védico”, escreve ele, “de modo que o significado mais antigo da palavra Brahman é ‘palavra sagrada’ ou ‘fórmula sagrada’ (Ṛgveda 10. 125), e, portanto, por extensão, o Veda como um todo”100. Entendemos, então, que, neste contexto religioso, o poder de Vāc permeia todas as formas de expressão daquelas que aqui chamamos de “linguagens da Natureza”. Os poetas-profetas dela dependem, mas também toda forma animal e elemental que neste mundo tem sua morada. Embora não mencione diretamente a deusa Vāc, Thoreau, que tinha uma familiaridade com os textos sagrados do Ṛgveda101, demonstra uma experiência similar ao dos poetas-profetas védicos quando, no capítulo “Sounds”, de Walden, descreve o troar uníssono dos sons das vacas e dos cantares poéticos, tratando todos eles como eclosões expressivas de um mesmo oceano linguístico primordial. Na verdade, mesmo que naquele determinado momento da narrativa não houvesse, afinal, a sonoridade dos poetas, o autor conclui que as serenatas dos menestréis e o mugido das vacas apresentavam-se a ele enquanto modalidades distintas do ecoar de uma mesma linguagem original do mundo, sinalizando ao ouvido atento que todo ressoar melódico tem sua origem em “uma mesma expressão vocal da Natureza”: Ao anoitecer, o mugido distante de alguma vaca no horizonte além das matas soava doce e melodioso, e no começo eu me confundia achando que eram as vozes de certos menestréis que me haviam feito algumas serenatas, e que podiam estar vagueando pelos morros e vales; mas logo me desenganei com a não desagradável descoberta, quando o som se prolongou na melodia comum e natural da vaca. Minha intenção não é satirizar, e sim expressar meu gosto pela cantoria daqueles rapazes, quando afirmo que tive a clara impressão de que ela se parecia muito com a melodia da vaca, e que ambas eram uma mesma expressão vocal da Natureza102. primordial de todas as coisas (WERNER, Karel. A Popular Dictionary of Hinduism. Surrey: Curzon, 1994, p. 81). 100 BECK, op. cit., p. 29. No original: “by the time of the Brāhmaṇa literature, Vāk has become the wifely spouse, or Śakti of the principal male demiurge”; “Vāk became identified with the evolving concept of Brahman (vāg vai brahman), the power of speech in the Vedic ritual, such that the earliest meaning of the word Brahman is ‘sacred word’ or ‘sacred formula’ (Ṛg-Veda 10. 125) and, thus, by extension the Veda in general”. 101 O Ṛgveda era um dos títulos que compunham a biblioteca pessoal de Thoreau (SATTELMEYER, op. cit., p. 285). Como lembra Versluis (op. cit., p. 95), em 1855 o autor foi presenteado, por seu amigo Thomas Cholmondeley, com uma coleção de textos sagrados hindus (traduzidos pelo orientalista H. H. Wilson). O compêndio incluía os seguintes textos: Ṛgveda-Saṃhitā; Māṇḍūkya Upaniṣad; Viṣṇu Purāṇa; Mānava-Dharmaśāstra; Sāṃkhya Kārikā; Bhagavad-Gītā; Śakuntalā; Bhāgavata Purāṇa e Nala Damayanti — lista que alguns disseram ser a maior coleção privada de textos orientais na América à época. 102 THOREAU, 2019, p. 124, grifos acrescentados. 238 Mencionamos sinteticamente aqui o princípio divino da linguagem na tradição védica conforme expresso na deusa Vāc e na ideia correlata de ṛṣi (termo que também pode ser aqui traduzido como “poeta-profeta”103, no sentido de um sábio que conhece — vê e ouve — a realidade última das coisas) a fim de apontarmos, ainda que de forma mosaica, a extensão das possibilidades que os princípios religiosos do pensamento de Thoreau, caracterizados por seu primor dialogal, oferecem ao estudo comparativo das cosmovisões religiosas do ocidente e do oriente. Sob o prisma de nossa discussão, o poeta-profeta, seja ele um ouvinte das Musas ou de Vāc, conduz seus dizeres a partir de sua experiência de comunhão com a linguagem mitopoética e melódica do mundo, em toda a Natureza e seus mistérios fazendo-se sinalizar. Nesta experiência, o poeta que busca pelo sagrado em seu interior e em seu exterior se apercebe partícipe do som primordial que ressoa igualmente nas vozes dos rios, dos pássaros, das vacas, dos poetas — e, enfim, nas melodias cósmicas que apresentam a relação ancestral entre o céu e a terra, a unidade e a multiplicidade, a Natureza e o espírito. É essa linguagem cósmica ouvida por nosso autor que incita seus propósitos poético-proféticos de desvelamento simbólico do vigor sagrado que neste mundo irrompe perenemente. Ecoando essas perspectivas, concentrar-nos-emos, doravante, em alguns daqueles que compreendemos serem os mais expressivos simbolismos sonoros tocados pela literatura thoreauviana. Estes, cabe-nos aqui lembrar, inserem-se no horizonte mais amplo de sua proposta poético-profética de educação dos sentidos para a descoberta do divino no aqui e agora do instante presente, cujo propósito capilar, repetimos, é a incorporação efetiva na existência humana da correspondência entre tudo aquilo que nossa civilização separou em dualidades: Natureza e espírito, exterioridade e interioridade, particularidade e universalidade, corporeidade e espiritualidade, imanência e transcendência, terra e céu. 103 A tradução comumente empregada para ṛṣi é “sábio”. 239 3.2. Paisagens sonoras A Natureza sempre possui uma certa sonoridade, como no zumbido dos insetos, no estrondo do gelo, no canto dos galos pela manhã e no latido dos cães à noite, indicações de seu estado sadio e sonoro. A voz de Deus não é senão um límpido soar de um sino. Eu bebo na fonte de uma saúde esplêndida e cordial no som. O efeito do menor tilintar no horizonte mede minha própria solidez. Agradeço a Deus pelo som; ele sempre me eleva, e me faz elevar. (Henry David Thoreau, Journals)1. Ele tem quase o significado de uma religião, esse conhecimento: que, tão logo se encontre a melodia do fundo, não se está mais perdido em suas palavras e impreciso nas decisões. Há uma despreocupada segurança na simples convicção de ser parte de uma melodia, ou seja, possuir por direito um espaço determinado e ter um determinado dever numa obra vasta, na qual o menor tem o mesmo valor que o maior. (Rainer Maria Rilke, A melodia das coisas)2. Como já vimos até aqui, frente à totalidade da sensibilidade corpórea, a percepção sonora é axial nas contemplações de Thoreau3, estando nela implicada um profundo teor religioso. O pano de fundo dessa exaltação dos sentidos é o aprimoramento desses que são denominados “germes divinos” para o contato simultaneamente corpóreo e espiritual com o eterno que se presentifica no aqui e agora deste mundo. A centralidade da sensibilidade no pensamento do “poeta-naturalista” de Concord a ouviremos, doravante, em alguns dos simbolismos de suas “paisagens sonoras”. Como elucidaremos em seguida, os símbolos musicais da literatura thoreauviana, tais quais os símbolos mitopoéticos, denotam um percurso pessoal e religioso de descoberta do divino que no corpo do poeta habita. O leitor de Thoreau percebe nitidamente que o autor era um grande apreciador da musicalidade da Natureza, e preferia ouvir as sinfonias dos pássaros, insetos, anfíbios, árvores e rios do que aquelas tocadas por refinados instrumentistas. Junto às sonoridades da terra, aprazia-lhe tocar sua flauta (que hoje encontra-se exposta no Concord Museum4), e por 1 Writings, VII, p. 226-227. 3 de março de 1841. No original: “Nature always possesses a certain sonorousness, as in the hum of insects, the booming of ice, the crowing of cocks in the morning, and the barking of dogs in the night, which indicates her sound state. God’s voice is but a clear bell sound. I drink in a wonderful health, a cordial, in sound. The effect of the slightest tinkling in the horizon measures my own soundness. I thank God for sound; it always mounts, and makes me mount”. 2 RILKE, Rainer Maria. A melodia das coisas. In: ______. A melodia das coisas: contos, ensaios, cartas. Organização e tradução de Claudia Cavalcanti. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011, p. 123-132, à página 131. 3 Em seu estudo sobre a presença da linguagem dos sentidos na literatura romântica, Kerry McSweeney (op. cit.) destaca a preponderância do ouvir frente aos demais sentidos na obra thoreauviana. 4 A flauta, na verdade, pertenceu primeiramente ao seu irmão John. Para uma breve descrição da coleção de pertences e objetos relativos ao legado de Thoreau no Concord Museum, cf. https://concordmuseum.org/wp-content/uploads/2017/11/Concord-Museum-Thoreau-Collection-.pdf. 240 intermédio desses sons conduzir suas meditações acerca do universo interior e dos reinos exteriores. A propósito, conforme Walter Harding, Thoreau nos legou observações acerca das notações melódicas dos pássaros que ainda são lembradas pelos ornitólogos como referenciais. Já no que diz respeito à música humana, embora os transcendentalistas de modo geral fossem ouvintes habituais de compositores como Bach, Beethoven e Mozart, frequentemente interpretados em concertos realizados nas cidades de Boston e Concord, Thoreau preferia ouvir, cantar e dançar baladas populares (como, por exemplo, “Tom Bowline”, “Canadian Boat Song” e “The Battle of Prague”). “Como disse Charles Ives”, cita o pesquisador, “Thoreau era um grande músico, não por tocar flauta, mas porque ele não precisava ir até Boston para ouvir ‘a Sinfonia’”5. Aliás, em sua pesquisa sobre as composições dedicadas ao pensador de Concord, foram listados mais de cento e sessenta títulos. Em suas palavras: É surpreendente ver quantos tipos e formas de música foram usadas para celebrar Thoreau — sonatas, cantatas, suítes orquestrais, música de câmara, oratórios, óperas; solos, quartetos, corais, coros; música clássica, romântica, jazz, rock e música experimental. Com o enfático individualismo de Thoreau, sua própria escuta de um “tambor diferente”, é altamente apropriado que ele tenha sido amplamente celebrado por alguns de nossos músicos experimentais mais notáveis, como Charles Ives e John Cage6. Como podemos perceber logo de início, o pensador transcendentalista não apenas legou singulares contribuições à estética no que diz respeito à sua sensibilidade para a percepção dos sons naturais como inspirou diversos compositores que lhe sucederam. Também nesse sentido Thoreau era um homem além de seu tempo. Sua concepção de música, como expõe Jannika Bock, é bastante distinta das formulações então correntes, aproximando-se mais à perspectiva contemporânea de um músico como John Cage (1912–1992), cuja estética musical traz à baila uma compreensão mais extensiva dos fenômenos sonoros. Percebendo a presença da música onde quer que haja um som natural, afirma Bock, Thoreau expõe uma ideia “democrática” de música. Acreditava ele que a orquestra cósmica se dispõe igualmente a todos — e de forma mais inspiradora, inclusive, do que os concertos humanos (reservados, afinal, àqueles que 5 HARDING, Walter. A Bibliography of Thoreau in Music. Studies in the American Renaissance, p. 291-315, 1992, à página 291. No original: “As Charles Ives has said, Thoreau was a great musician, not because he played the flute but because he did not have to go to Boston to hear ‘the Symphony’”. 6 ibid., p. 292. No original: “It is astonishing how many types and forms of music have been used to celebrate Thoreau — sonatas, cantatas, orchestral suites, chamber music, oratorios, operas; solos, quartets, choruses, choirs; classical, romantic, jazz, rock, and experimental music. With Thoreau’s own emphatic individualism, his own listening to a ‘different drummer,’ it is highly appropriate that he has been widely celebrated by some of our most noted experimental musicians such as Charles Ives and John Cage”. 241 podem pagar para ouvi-los)7. É justamente a esta sonoridade que o escritor direciona seus ouvidos, as melodias “universais” da Natureza: Uma pessoa não deixará de ouvir música por não frequentar os oratórios e as óperas. As melodias realmente inspiradoras são baratas e universais, e são tão audíveis para o filho do pobre quanto para o filho do rico. A audição das harmonias do universo não se familiariza com a dissipação. Meus vizinhos foram à paróquia para ouvir “Ned Kendall”8, o corneteiro, esta noite, mas eu subi até as colinas para ouvir meu corneteiro no horizonte. Posso renunciar às aparentes vantagens das cidades sem hesitação. Melodia celestial alguma passa despercebida ao ouvido que está preparado para ouvi-la, seja por falta de dinheiro ou de oportunidade9. Essa “melodia celestial” nos lembra que, a despeito das diferenças impostas às pessoas pela sociedade, somos todos iguais perante o ressoar dos comandos simbólicos do “corneteiro no horizonte”, junto de quem Thoreau buscava “marchar” ressonante. Lembra-nos, igualmente, que, apesar da autovalorização da cultura humana perante as demais economias da terra, as profusões vitais do cosmo permanecem repercutindo a harmonia do universo aos quatro ventos, estejam lá ou não ouvidos humanos que as ouçam. A música cósmica, disponível a todos em todas as partes, é para nosso autor como uma ponte que devolve o humano à condição originária de mais uma vibração sonora (com um timbre particular, certamente) na imensidão de uma grandiosa congregação. Sendo universal, essa “música das esferas”, expressão sonora da “harmonia das esferas”, convida a todos, sem distinção, à experiência da unidade. Para ouvir as linguagens da terra, sugere-nos ele, carece a nós modernos dar um passo atrás (estar “mais ansioso para recuar do que avançar”, como diz o poema Inspiration10). Carece-nos, literal e figurativamente, de pôr os pés na terra e sentir suas vibrações, em uma experiência profunda de escuta capaz de ressoar no corpo e na alma, transformando a percepção sensitiva e, por conseguinte, o caráter do ouvinte. No contexto de nossa reflexão, o envolvimento da plenitude do corpo na experiência existencial de audição das vozes da Natureza aparece como um símbolo 7 BOCK, Jannika. “There is Music in Every Sound”: Thoreau’s Modernist Understanding of Music. Copas, v. 7, n.p., 2006. 8 Edward “Ned” Kendall (1808–1861), que se apresentava junto a instrumentos de sopro militares, era um dos líderes da Boston Brass Band, grupo musical popular em Boston e em outras partes da Nova Inglaterra. 9 Writings, VIII, p. 379-380. 8 de agosto de 1851. No original: “One will lose no music by not attending the oratorios and operas. The really inspiring melodies are cheap and universal, and are as audible to the poor man’s son as to the rich man’s. Listening to the harmonies of the universe is not allied to dissipation. My neighbors have gone to the vestry to hear ‘Ned Kendal,’ the bugler, to-night, but I am come forth to the hills to hear my bugler in the horizon. I can forego the seeming advantages of cities without misgiving. No heavenly strain is lost to the ear that is fitted to hear it, for want of money or opportunity”. 10 Cf. p. 227. 242 da correspondência entre o espiritual e o natural, panorama romântico que tem nos norteado ao longo de nossa peregrinação junto a Thoreau. Jannika Bock destaca, oportunamente, (i) a predileção de Thoreau pela música natural e não premeditada dos sons e (ii) sua “abordagem multi-sensual da música”11 (ou seja: a percepção da música por meio da união dos sentidos — o que melhor se exemplifica, segundo a pesquisadora, na relação do autor com o fio telégrafo, sobre a qual nos ocuparemos adiante). O músico Jeff Titon, por sua vez, sustenta que o pensador concordiano torna patente em sua compreensão da música uma epistemologia “relacional e fenomenológica”, uma cosmovisão da “interdependência baseada na presença e na copresença”, posição essa formada “através da ressonância”. Enquanto pensamos em Emerson a partir do “globo ocular transparente” [transparent eyeball] de Nature12, diz Titon, podemos pensar em Thoreau junto à representação de “um corpo vibrante”13. Já Sherman Paul, que propôs uma interpretação do emprego thoreauviano do som imanente como elemento de correspondência com o transcendente, alega que, para além dos demais sentidos, o som e a audição constituíam mais do que um “veículo preferível para os insights de Thoreau”: “O som, igualmente, era um modo geral de descrever a plenitude de sua participação sensorial; ele o empregava para representar a atividade de todos os seus sentidos [...]”14. Aqui encontramos uma caracterização significativa da importância cardinal do corpo no pensamento deste autor que, conforme temos salientado até agora, buscava convidar o leitor a também se encaminhar, a partir de sua própria experiência espiritual, aos sendeiros de uma (re)educação dos sentidos, os “germes divinos” que no corpo habitam. Essas características significativas da relação de Thoreau com a música ficarão mais nítidas no decorrer de nossa discussão. Interessa-nos estabelecer desde já que, em sua abordagem fenomenológica do som, nosso autor não apenas celebrava o vigor dos sentidos quando direcionados ao conhecimento da Natureza, mas também construía sua própria literatura poética-profética e seus simbolismos — aqueles que nesta seção intitulamos “hieróglifos 11 BOCK, op. cit., n.p. No original: “multi-sensual approach to music”. 12 Cf. EMERSON, Nature, p. 10: “Standing on the bare ground, — my head bathed by the blithe air and uplifted into infinite space, — all mean egotism vanishes. I become a transparent eyeball; I am nothing; I see all; the currents of the Universal Being circulate through me; I am part or parcel of God”. 13 TITON, Jeff Todd. Thoreau’s ear. Sound Studies, Routledge, v. 1, n. 1, p. 144-154, 2015, à página 145. No original: “relational and phenomenological”; “interdependence based on the experience of presence and co-presence”; “through resonance”; “a vibrating body”. 14 PAUL, Sherman. The Wise Silence: Sound as the Agency of Correspondence in Thoreau. The New England Quarterly, v. 22, n. 4, p. 511-527, 1949, à página 513. No original: “preferable vehicle for Thoreau’s insights”; “Sound, too, was a general way of describing the wholeness of his sensory participation; he used it to represent the activity of all his senses [...]”. Seu exemplo aqui é a passagem dos diários de Thoreau onde este diz: “The sounds which I hear with the consent and coincidence of all senses, these are significant and musical; at least, they only are heard” (ibidem). 243 musicais”. Nesse sentido, compreende-se que o som é ao mesmo tempo um fenômeno sensorial e um material para representações simbólicas. Tendo em vista sua compreensão abrangente de música, que envolve a variedade dos cantares da terra (e não podemos esquecer aqui da identificação anterior com a mousiké grega: onde quer que se cante é a Musa que canta), o conceito de “paisagem sonora”, oriundo do campo da teoria musical, é de grande valia para a construção de uma reflexão acerca do caráter musical dos sons da Natureza no pensamento de Thoreau. Isso já foi indicado, por exemplo, por Ian Marshall, para quem podemos ler Walden como uma tentativa particular de distanciamento daquilo que Schafer chama de paisagens sonoras “lo-fi” (onde, devido ao tumulto, não conseguimos ouvir os sons distintamente) em prol de uma aproximação das paisagens sonoras “hi-fi” (onde é possível ouvir os sons particulares mais notadamente)15. O próprio Schafer já havia recordado do pensamento de Thoreau em seus estudos das paisagens sonoras, como mostraremos a seguir. Por isso, antes de abordarmos os símbolos sonoros thoreauvianos, traçaremos aqui uma exposição panorâmica dessa ideia, que mais adiante relacionaremos à teoria romântica da correspondência simbólica entre Natureza e espírito, nosso mote condutor. O termo “paisagem sonora” (soundscape) foi cunhado por R. Murray Schafer, compositor canadense que dedicou longos anos de sua vida ao estudo dos sons naturais e à conscientização em relação às profundas e preocupantes implicações da poluição sonora no mundo contemporâneo. Logo nas primeiras páginas de The tuning of the world [A afinação do mundo], Murray Schafer afirma ter por princípio a percepção do “mundo como uma composição musical macrocósmica”16. A música acontece, então, onde quer que haja manifestações sonoras — posição similar à de Thoreau. “A definição de música tem sofrido uma mudança radical nos últimos anos”, argumenta Schafer. “Numa das mais recentes, John Cage declarou: ‘Música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto — vejam Thoreau’”. Cage faz aí uma alusão à obra Walden, “onde o autor descobre uma inesgotável fonte de entretenimento nos sons e visões da natureza”. Neste panorama sonoro, escreve o compositor canadense, “todos os sons fazem parte de um campo contínuo de possibilidades, que pertence ao domínio compreensivo da música. Eis a nova orquestra: o universo sonoro!”17. 15 MARSHALL, Ian Steward. “Partly the Voice of the Wood”: Acoustic Ecology and the Soundscape of “Walden”. The Concord Saunterer, v. 24, p. 82-104, 2016, à página 83. 16 SCHAFER, op. cit., p. 19. 17 ibid., p. 19-20. 244 Em sua obra, Schafer nos apresenta duas concepções em torno do termo “música” que são ilustradas por mitos gregos: (i) a invenção do aulos pela deusa Atena, que se compadeceu do choro das irmãs de Medusa após tê-la decapitado, criando, em sua homenagem, um nomos — i.e., uma eulogia musical (Píndaro, Doze Odes Píticas); (ii) a invenção da lira pelo deus Hermes a partir de sua descoberta da sonoridade melódica da carapaça de uma tartaruga (Hino Homérico a Hermes). Se o aulos é o instrumento que caracteriza os rituais devotados ao deus Dioniso, diz Schafer, a lira traz as vibrações do deus Apolo. A primeira música nasce na interioridade humana, tendo palco nas tragédias e nos ditirambos. A segunda é uma música que vem de fora, ambientando a poesia lírica; nas palavras de Schafer, é um “som externo, enviado por Deus para nos lembrar a harmonia do universo”. Na “visão apolínea”, escreve o compositor, “a música é exata, serena, matemática, associada às visões transcendentais da Utopia e da Harmonia das Esferas. É também a anáhata18 dos teóricos hindus. É a base da especulação de Pitágoras e dos teóricos medievais [...]”19. As paisagens sonoras da Natureza, como aqui ventiladas, caracterizam-se pelas ressonâncias desta música exterior que nasce da harmonia transcendente das dinâmicas cósmicas, de tons apolíneos. Na medida em que falam conosco, poderíamos ainda dizer, repercutem também melodias interiores. Na verdade, indo além de Schafer, Thoreau sugere que a música do mundo e a música da alma são ontologicamente correspondentes: na variedade sonora da terra, a alma experiencia a unidade. Isso posto, fica claro que a música terrestre (percebida pelo corpo) e a música celeste (revelada pela alma) são indissociáveis. Os símbolos musicais thoreauvianos que mencionaremos adiante aparecem, assim, como expressões particulares e imanentes da “harmonia das esferas”, a música universal e transcendente da Natureza. E como ouvimos, afinal, essa ponte sonora? O que Thoreau nos indica é que há a necessidade de ocorrer um aperfeiçoamento moral para que se possa ouvir os dizeres da terra. A ideia de purificação dos sentidos é aqui crucial, conforme já dissemos no desdobramento de nossa trajetória. Inserindo-nos no mundo com a corporeidade, por intermédio dela moldamos nosso vir a ser ao longo da vida. A variedade de possibilidades sensoriais é especialmente eminente nos tempos atuais, em que é praticamente impossível se afugentar das numerosas ofertas, ruídos e movimentos da era do capitalismo e da informação que a nós se dispõem em 18 Eis a definição de Karel Werner (op. cit., p. 21): “‘unstruck’, i.e. silent; anāhata cakra: the spiritual centre in the subtle body opposite the central point of the chest, in the shape of a twelve-petalled lotus; anāhata śabda: the mystic sound Oṁ heard in the cakra when reached by Kuṇḍalinī in her upward movement”. 19 SCHAFER, op. cit., p. 21. 245 larga escala. Se recebemos estímulos de todas as partes, é necessário posicionar-se quanto ao que deve ser ouvido. E o que deve ser ouvido? É o caráter do ouvinte, preconiza Thoreau, que determina para qual vibração ele irá pender: a revelação do céu, da Natureza, ou a revelação profana, da civilização. “Existe a inspiração, aquela fala que chega aos ouvidos atentos vinda das cortes do céu”, discorre o autor em Life Without Principle. “E existe a revelação profana e gasta do botequim e do tribunal criminal. O mesmo ouvido está apto a receber as duas coisas. Só o caráter do ouvinte determina para qual das duas ele estará aberto e para qual estará fechado”20. Aqui está implicado o contraste entre o sagrado e o profano, a sensibilidade e a sensualidade, o ser parte da terra e o colocar-se acima dela. Voltaremos a esse tema ao longo de nossa meditação. Importa-nos agora realçar que as paisagens sonoras thoreauvianas nas quais está implicado um sentido sagrado são, em geral, aquelas dos demais seres da terra. Apesar disso, o pensador, decerto, também reconhece o sagrado nas expressões sonoras humanas. Afinal, onde quer que se fale e cante a glória do mundo, é o próprio fundamento divino do cosmo que se faz expressar. Contudo, no panorama de sua crítica à secularização da Natureza nos tempos modernos, o autor compreende que a cidade emite majoritariamente ruídos, discórdia com as leis cósmicas. Em sua origem, a interconexão entre os seres humanos e a Natureza por intermédio da música está ligada a cosmovisões míticas que relatam testemunhos da experiência de ouvir e conversar com a realidade por meio de seus sinais sagrados; testemunhos da experiência de encantamento do mundo (pois somente quando o mundo é permeado pelo divino é que podemos ouvi-lo; do contrário, nada ele nos mostrará realmente senão matéria inerte). Este encantamento, embora tenha fundamento em esferas transcendentes, faz-se reconhecer na materialidade sonora do mundo, sendo essa uma de suas vias de presentificação no vir a ser de todas as coisas. A propósito, devemos lembrar aqui que o título da obra de Schafer ora destacada tem sua inspiração em uma xilogravura do século XVII cuja herança da concepção pitagórica de “harmonia/música das esferas” é nítida. “Em Utriusque Cosmi Historia, de Robert Fludd, há uma ilustração intitulada ‘A afinação do mundo’”, elucida Schafer, “na qual a Terra forma o corpo de um instrumento sobre o qual as cordas são esticadas e afinadas pela mão divina. É preciso reencontrar o segredo dessa afinação”21. Nessa famosa obra, Robert Fludd (1574–1637) faz corresponder a música celeste à música terrestre, reconhecendo a “harmonia mútua da alma e do corpo”, uma perspectiva com a qual Thoreau parece perfeitamente afinado. “Maravilhoso 20 THOREAU, 2013b, p. 144. 21 SCHAFER, op. cit., p. 22. 246 é o amor e a comunhão entre a carne e a alma, o espírito da vida e o barro da terra [...]”, diz o médico inglês discípulo de Paracelso. Neste diapasão, é Deus “que dá fôlego à música humana ou toca a corda do monocórdio, ou é o princípio interno produzindo como se do centro os movimentos consonantes de todas as coisas e as atividades vitais no Macrocosmo”22. O microcosmo corresponde assim ao macrocosmo, pois entre eles há ligações que, na verdade, têm origem em um monocórdio: o divino a reger todas as coisas. Para além desse contexto, cabe também dizer que a divina descendência da música se faz ouvir nas concepções originárias do divino em diversas tradições culturais. Nos termos de Schafer, antes da Renascença e suas repercussões humanistas, período em que o Deus ocidental passou a ser representado por meio de imagens artísticas, em muitas partes do globo “ele era concebido como som ou vibração”, o que é especialmente nítido em tradições espirituais africanas23 e orientais. Em uma de suas exemplificações que vale a pena mencionar integralmente, assim lemos: Na religião de Zoroastro, o sacerdote Srosh (que representa o gênio da audição) se posta entre o homem e o panteão de deuses e ouve as mensagens divinas que ele transmite à humanidade. Samã é a palavra sufi para audição ou escuta. Os seguidores de Jalal-ud-din Rumi entravam em transe místico cantando e rodopiando em giros vagarosos. Sua dança é considerada por alguns pesquisadores como baseada na representação do sistema solar e evoca também a crença mística profundamente arraigada, em uma música extraterrestre, a Música das esferas, que algumas vezes a alma afinada é capaz de ouvir. Mas esses poderes de audição excepcionais, que denomino clariaudiência, não foram obtidos sem esforço. O poeta Sadi diz em um de seus poemas líricos: Eu não direi, irmãos, o que é o samã, Antes que saiba quem é o ouvinte. 22 GODWIN, Joscelyn. (ed.). The Harmony of the Spheres: A Sourcebook of the Pythagorean Tradition in Music. Rochester, Vermont: Inner Traditions International, 1993, p. 243 e 247. No original: “mutual harmony of soul and body”; “Marvelous is the love and fellowship of the flesh and the soul, of the spirit of life and the mud of the earth [...]”; “who gives breath to the human music or plays the monochord string, or is the internal principle producing as if from the center the consonant movements of all things and the vital activities in the Macrocosm”. Para Fludd, então, é o poder divino que “conecta os extremos”, o interior e o exterior, a harmonia do espírito (microcosmo) e as melodias do mundo (macrocosmo): “The string which by its vibration spreads through the accents and sounds of love is the limpid spirit which on account of its site and position naturally participates in both extremes and connects the extremes with one another” (ibid., p. 247). 23 Nessas sociedades, afirma J. C. Carothers, o ouvido é “o principal órgão de recepção” (SCHAFER, op. cit., p. 28). Para mim, que sou uma adepta da umbanda, é especialmente nítido que, neste contexto religioso, fundamentado na tradição espiritual africana de origem iorubá, é o som (especialmente dos atabaques, dos agogôs e dos pontos cantados) que nos possibilita o contato com o axé (força vital/espiritual) dos Orixás (forças sagradas da Natureza) e das entidades (espíritos ancestrais). Sem som, sem dança, sem canto, em suma, sem vibração, não há “religar”. 247 Antes da era escrita, na época dos profetas e épicos, o sentido da audição era mais vital que o da visão. A palavra de Deus, a história das tribos e todas as outras informações importantes eram ouvidas, e não vistas24. A insígnia sagrada da música está por toda parte. Guy L. Beck, partindo do postulado de que a “experiência sônica da religião” é “um meio para transformar vidas humanas”, bem como “um locus para uma hermenêutica autêntica”25, alega que “[e]ntre a miríade de elementos ou experiências numinosas, o som (nomeadamente, o som sagrado) caracteriza ou representa mais plenamente o caráter inefável e irredutível do divino”. Afinal, como observou Walter Ong: “O mistério do som não é o único mistério entre os sentidos. Há um mistério infinito, de outro tipo, também na visão, e outro mistério no toque, assim como no paladar e no olfato. Mas o mistério do som é aquele que ... é o mais fecundo de compreensão e unidade, o mais pessoalmente humano e, nesse sentido, o mais próximo do divino”. Rudolf Otto chegou a associar o som diretamente com o numinoso, pois “é evidente que também o sentimento numinoso, em sua primeira explosão na consciência, deve ter encontrado sons para sua expressão”26. O som, cujas ondas mecânicas são propagadas pelo ar, carrega consigo um simbolismo poderoso que se faz deslindar na simultânea consistência material e sutileza imaterial do fenômeno sonoro: sentimos suas vibrações, mas não podemos tocá-las. Assim também ocorre com o divino e a experiência religiosa. As compreensões espirituais aqui esboçadas, embora inseridas em contextos espaço-temporais bastante distintos, carregam consigo uma característica comum. Aproximar-se do divino (dizem-nos não apenas os povos antigos, mas diversas tradições vivas entre nós) é ouvir seus pronunciamentos, tais quais impressos nos ensinamentos sagrados, nas melodias da terra, das águas, dos ventos, do céu. Evidentemente, o caráter daquilo que é ouvido varia conforme a tradição espiritual em questão, o que não nos cabe aqui discutir. Importa-nos apenas realçar a centralidade da escuta (tanto num sentido material quanto num sentido transcendente) no legado espiritual da humanidade — tema que, 24 ibid., p. 27-28. 25 BECK, op. cit., p. 9-10. No original: “sonic experience of religion”; “a means for transforming human lives”; “a locus for an authentic hermeneutic”. 26 ibid., p. 5. No original: “Among the myriad elements or numinous experience, sound (namely, sacred sound) most fully characterizes or represents the ineffable and irreducible character of the divine, as noted by Walter Ong: ‘The mystery of sound is not the only mystery among the senses. There is a boundless mystery, of another short, in vision, too, and further mystery in touch, as well as in taste and smell. But the mystery of sound is the one which… is the most productive of understanding and unity, the most personally human, and in this sense closest to the divine.’ Rudolf Otto had even associated sound directly with the numinous, for ‘it is evident that the numinous feeling also, in its first outbreak in consciousness, must have found sounds for its expression’”. 248 logicamente, não é nosso escopo aprofundar ao longo de nosso desenvolvimento, mas que deve ser mencionado para que tenhamos uma melhor dimensão da veia religiosa de Thoreau. Isso se justifica na medida em que, ao conferir aos ouvidos o estatuto de via condutora do sagrado, nosso autor se alinha a heranças ancestrais que têm na dinâmica cósmica o horizonte de seu culto, e nas quais a atenção para a escuta ocupa um papel primordial. É isso também o que já está expresso na própria ideia de “poeta-profeta” que nos guiou até aqui: antes de um proclamador, o poeta visionário é um ouvinte da linguagem originária, expressa musicalmente. Thoreau, em sua singularidade enquanto “poeta-naturalista”, assim como pressentia a harmonia transcendente do mundo, era um ouvinte atento das paisagens sonoras elementares, nelas reconhecendo o princípio de toda linguagem. Essa é uma concepção que atualmente encontra seu desenvolvimento no campo dos estudos acústicos de matriz ecológica. Em Wild Soundscapes, o músico e ecologista contemporâneo Bernie Krause, representante fundador da “soundscape ecology”, elucida a origem sonora da própria linguagem humana, lembrando-nos, junto ao fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty (1908–1961), que a linguagem do mundo, na qual todos nós participamos, expressa, desde seus primórdios, “a própria voz das árvores, das ondas e das florestas”27. Segundo Krause, as paisagens sonoras naturais forneceram não apenas as raízes da linguagem, mas também a fundação da música; muito antes de começarmos a adorar o poder dos pictogramas e dos petróglifos, os animais em nossos ambientes desérticos e florestais nos ensinaram a dançar e a cantar enquanto imitávamos e sombreávamos seus movimentos e vozes graciosos28. Seguindo o caminho aberto por Schafer, Krause, que também se recorda de Thoreau em suas pesquisas musicais29, pondera que “as biofonias” por ele investigadas “são composições. O fato de nós humanos não termos a ver com sua criação não faz delas algo de inferior”30. Eis aí novamente uma ideia que muito se assemelha às percepções musicais de Thoreau, que viveu em uma época, vale lembrar, em que não havia ainda equipamentos avançados para o registro dos sons da Natureza, e no qual as ameaças generalizadas aos seres silvestres não eram tão 27 KRAUSE, 2016, p. 63. No original: “the very voice of the trees, the waves, and the forests”. 28 ibid., p. 23. No original: “natural soundscapes furnished not only the roots of language but the foundation of music as well; long before we began to worship the power of pictographs and petroglyphs, the animals in our desert and forest environments taught us to dance and sing as we mimicked and shadowed their graceful movements and voices”. 29 Em “The Art of Hearing and Recording”, quinto capítulo do livro Wild Soundscapes, Krause traz em sua epígrafe uma citação de Thoreau: “God asks nothing of the highest soul but attention” (ibid., p. 69). 30 ibid., p. 102, grifo do autor. No original: “the biophonies [...] are compositions. That we humans didn’t have much to do with their creation doesn’t make them less so”. 249 gritantes quanto nos dias de hoje. Krause e Thoreau também convergem em sua concepção comum quanto à materialização poética da terra. “O som natural é uma forma de narrativa poética”, atesta Krause. “É somente por meio de nossas observações cuidadosas que começamos a perceber os enormes mistérios de um mundo vital que atualmente precisamos decifrar”. Afinal, longe de “elementos díspares e ruído caótico”, frente aos sons emanados pelos biomas naturais percebemos estar lidando com “uma declaração coesa do ambiente vivo”31. Em Voices of the Wild, ele explica com mais vagar a relação entre os sons naturais e as cosmovisões míticas dos primeiros agrupamentos humanos (e, portanto, suas composições linguísticas primordiais). Durante o Pleistoceno, quando os humanos povoaram pela primeira vez os habitats africanos, adicionamos nossa gama de vozes ao mix biofônico. Como mímicos habilidosos, primeiro aprendemos a emular os complexos rugidos, grunhidos, ritmos, melodias e harmonias que experimentamos em nossos respectivos habitats. [...]. As paisagens sonoras das florestas e das planícies sinalizavam onde havia (ou não) comida. Elas proviam a necessária voz do divino, que, por sua vez, transmitia respostas a questões ontológicas que de outra forma tínhamos pouca capacidade para resolver. Elas nos inspiraram a organizar o som em padrões complexos, refletindo aqueles ouvidos em ambientes naturais, o que culminou nas primeiras expressões da música e da dança e, provavelmente, até mesmo da linguagem. Elas nos nutriram com pulsos e ciclos de texturas sônicas tranquilizadoras que nos acalmavam e nos devolviam ao nosso centro — que confirmaram nosso lugar no mundo animado32. Assim como Schafer e Krause, também nosso autor, como já observamos, reconheceu a presença primordial do entrelaçamento poesia-mitologia-música. Mais do que isso, na melodia cósmica Thoreau acreditava encontrar a transmissão de uma mensagem simbólica que nos diz dos primórdios e do tempo presente. A música, para ele, estava em todas as partes: 31 ibid., p. 184, grifos acrescentados. No original: “Natural sound is a form of narrative poetry. It is only through our close observations that we begin to sense the enormous mysteries of a world of life we now need to decipher”; “disparate elements and chaotic noise”; “a cohesive statement of the living environment”. 32 KRAUSE, Bernie. Voices of the Wild: animal songs, human din, and the call to save natural soundscapes. New Haven & London: Yale University Press, 2015, p. 23-24. No original: “During the Pleistocene, when humans first populated African habitats, we added our range of voices to the biophonic mix. As skillful mimics, we first learned to emulate the complex roars, grunts, rhythms, melodies, and harmonies that we experienced in our respective habitats. [...]. The soundscapes of the forests and plains signaled where food was (or wasn’t). They provided a necessary voice of the divine that, in turn, delivered answers to ontological questions we otherwise had little capacity to solve. They inspired us to organize sound into complex patterns, reflecting those heard in natural settings, which culminated in the first expressions of music and dance, and probably even language. They nurtured us with pulses and cycles of reassuring sonic textures that calmed and centered us — that confirmed our place in the living world”. 250 dentro e fora, nas “paisagens sonoras” da terra e do céu, repercutindo hieróglifos que algo têm a nos dizer sobre nossa razão de ser no mundo, sobre nossa interconexão originária com todas as coisas e reinos da Natureza. Cabe-nos rememorar que o próprio termo latino sonus33, além de sinalizar a presença de um som ou ruído, denota também a verbalização da palavra. A compreensão humana do som, portanto, se abarcada desde seu aspecto etimológico, aponta, do mesmo modo, para uma íntima relação entre a sonoridade e o discurso. As “paisagens sonoras” compõem os primórdios de todas as linguagens da Natureza, nas quais nossas diversas vozes culturais também se fazem notar. A atenção de Thoreau aos sons naturais, pontes de ligação entre o ser humano e seu fundamento, é indicativa de sua familiaridade com os chamados “sons fundamentais”34 das paisagens sonoras arcaicas. Segundo Schafer, nas paisagens sonoras, de modo geral, os sons fundamentais são aqueles “criados por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais”. Esses sons, como bem pontua o compositor, muitas vezes carregam consigo um “significado arquetípico”. Em suas palavras, esses tipos sonoros “podem ter-se imprimido tão profundamente nas pessoas que os ouvem que a vida sem eles seria sentida como um claro empobrecimento”. Em primeiro plano de destaque, o das paisagens sonoras dos primórdios, Schafer reverbera as “vozes do mar”, as “vozes do vento” e as vozes da “terra miraculosa”, quando ela era habitada por deuses. Todas essas vozes naturais — aquelas que aqui denominamos, desde o princípio, linguagens da Natureza — foram captadas por Thoreau nas paisagens sonoras de sua própria terra natal contemporânea. Não por acaso, Schafer menciona o autor de Concord ao ponderar sobre o sentido das falas fluviais: “Os rios do mundo falam suas próprias linguagens. O calmo murmúrio do Rio Merrimack, ‘rodopiando, sorvendo e deslizando para baixo, beijando a areia à sua passagem’, era um sonífero para Thoreau”35. Mais do que um sonífero, todavia, os murmúrios fluviais eram para ele verdadeiros “despertadores”, instrumentos do despertar para aquilo que verdadeiramente importa. “Você poderia atravessar o riacho sobre suas rochas em qualquer parte, e seu murmúrio constante acalmaria as paixões 33 Sonus: “A sound, noise”; “Articulated sound, speech, utterance”; “Distinctive quality of voice or utterance, pronunciation, accent, etc.” (GLARE, op. cit., p. 1976). 34 “Som fundamental é [...] a nota que identifica a escala ou tonalidade de determinada composição. É a âncora ou som básico, e, embora o material possa modular à sua volta, obscurecendo a sua importância, é em referência a esse ponto que tudo o mais assume o seu significado especial” (SCHAFER, op. cit., p. 26, grifos do autor). 35 ibid., p. 38. 251 da humanidade para sempre”36, escreve Thoreau em “Tuesday” [“Terça-feira”], quinto capítulo de A Week. Os sons primordiais, carregados de significados simbólicos, ecoam em diversas partes dos escritos thoreauvianos. Na verdade, como já dissemos anteriormente, a própria literatura era para ele mais um som entre as manifestações sonoras da terra. Na composição de sua própria melodia, ele buscou reverberar as vozes da miríade de seres daquela que ele entendia ser sua mãe e seu pai primordiais. “Ao sol e ao cantar dos galos sinto uma santidade sem limites, que me faz bendizer a Deus e a mim mesmo”37, declara o adorador da Aurora. A sonoridade que anuncia o despertar da primavera, diz-nos ele em outra ocasião, “é em parte uma expressão de felicidade, uma ode que se canta e cuja carga enche o ar. Isso me faz recordar da crescente genialidade da natureza”38. O grilo, por seu turno, com sua “melodia muito bela e poética para uma cantora tão pequenina”, canta a “canção da terra”39. “O solo é sonoro, como madeira seca, e até os sons rurais comuns são melodiosos, e o tilintar do gelo nas árvores é doce e líquido”, declara o autor em A Winter Walk. “O céu afastado e retesado parece sulcado como os corredores de uma catedral, e o ar polido cintila como se nele houvesse cristais de gelo flutuando”40. Assim como nos mostra, por bulevares sonoros, sua familiaridade conosco, pelas vibrações dos sons naturais a Mãe terra também comunica a onipresença de suas entranhas selvagens e tectônicas — pois assim como faz nascer a aurora, ela é também dotada de uma “agitação crepuscular” “solene e misteriosa”: Uma lúgubre luz de bronze no leste proclama a aproximação do dia, enquanto a paisagem do oeste é obscura e espectral, e revestida de uma luz sombria do Tártaro, como os reinos umbrosos. São apenas sons infernais que você ouve — o canto de galos, o latido de cães, o corte de madeira, o mugido de vacas, todos parecem vir do celeiro de Plutão e além do Estige — não por qualquer melancolia que eles sugerem, mas sua agitação crepuscular é muito solene e misteriosa para a terra. As pegadas recentes da raposa ou da lontra no campo 36 Writings, I, p. 213. No original: “You could anywhere run across the stream on the rocks, and its constant murmuring would quiet the passions of mankind forever”. 37 Writings, VII, p. 202. 7 de fevereiro de 1841. No original: “In the sunshine and the crowing of cocks I feel an illimitable holiness, which makes me bless God and myself”. 38 Writings, XVIII, p. 147-148. 17 de abril de 1859. No original: “it is in part an expression of happiness, an ode that is sung and whose burden fills the air. It reminds me of the increased genialness of nature”. 39 Cf. Writings, VIII, p. 93. 11 de novembro de 1850: “This afternoon I heard a single cricket singing, chirruping, in a bank, the only one I have heard for a long time, like a squirrel or a little bird, clear and shrill, — as I fancied, like an evening robin, singing in this evening of the year. A very fine and poetical strain for such a little singer. [...]. It is a remarkable note. The earth-song”. 40 THOREAU, 2013a, p. 29-30. No original: “The ground is sonorous, like seasoned wood, and even the ordinary rural sounds are melodious, and the jingling of the ice on the trees is sweet and liquid”; “The withdrawn and tense sky seems groined like the aisles of a cathedral, and the polished air sparkles as if there were crystals of ice floating in it”. 252 nos lembram que cada hora da noite é repleta de acontecimentos, e que a natureza primeva ainda está trabalhando e fazendo rastros na neve41. Os sons humanos mais melodiosos (que fazem parte, igualmente, da grande orquestra da terra) não foram, todavia, esquecidos nas expressões poéticas thoreauvianas. Vejamos alguns exemplos de seus diários da década de 1850, todos eles relatos de sua audição de músicas distantes42, vibrações emanadas de longe que se fundem com a atmosfera: Até o ranger de uma carroça em uma noite gélida contém uma música que o alia à mais pura e elevada melodia da musa43. Quão doce e encorajador é ouvir o som de alguma música artificial do meio da floresta ou do alto de uma colina à noite, trazida pela brisa de alguma fazenda distante — a voz humana ou uma flauta! Aí está uma civilização que se pode tolerar, que vale a pena manter. Eu poderia viajar ao redor do mundo ouvindo as melodias da música44. Todo som é música neste momento. O ranger de algum barco distante que um homem está lançando na margem do rio rochoso — embora não haja aqui homem nem casa habitada, nem mesmo campo cultivado à vista — é ouvido com tal nitidez que escuto com prazer, como se fosse música45. Já um homem tocando clarinete à distância soa a Thoreau como um símbolo de Apolo (poesia e música sagradas) servindo aos rebanhos do rei Admeto (sociedade), e a música 41 ibid., p. 28. No original: “A lurid brazen light in the east proclaims the approach of day, while the western landscape is dim and spectral still, and clothed in a sombre Tartarean light, like the shadowy realms. They are infernal sounds only that you hear, — the crowing of cocks, the barking of dogs, the chopping of wood, the lowing of kine, all seem to come from Pluto’s barn-yard and beyond the Styx; — not for any melancholy they suggest, but their twilight bustle is too solemn and mysterious for earth. The recent tracks of the fox or otter, in the yard, remind us that each hour of the night is crowded with events, and the primeval nature is still working and making tracks in the snow”. 42 Hodder (2001, p. 80) assinala que a ênfase de Thoreau nos sons distantes “may well have owed much to his early reading of Wordsworth, who also made much in his poetry of the ‘sweet’ impressions of far- off sounds”. 43 Writings, X, p. 473. 21 de janeiro de 1853. No original: “Even the creaking of a wagon in a frosty night has music in it which allies it to the highest and purest strain of the muse”. 44 Writings, VIII, p. 259. 14 de junho de 1851. No original: “How sweet and encouraging it is to hear the sound of some artificial music from the midst of woods or from the top of a hill at night, borne on the breeze from some distant farmhouse, — the human voice or a flute! That is a civilization one can endure, worth having. I could go about the world listening for the strains of music”. 45 ibid., p. 436. 31 de agosto de 1851. No original: “Every sound is music now. The grating of some distant boat which a man is launching on the rocky bottom, — though here is no man nor inhabited house, nor even cultivated field, in sight, — this is heard with such distinctness that I listen with pleasure as if it was [sic] music”. 253 mostra-se assim como a “mais admirável realização do homem”46. Para Thoreau, como podemos deduzir de tudo o que dissemos até agora, a percepção sensitiva dos sons está diretamente relacionada à reflexão acerca das questões mais relevantes da existência humana. Essa interconexão entre música e espiritualidade é especialmente nítida nas passagens que se seguem. “Nossas mentes deveriam ecoar pelo menos tantas vezes quanto uma Mammoth Cave para cada som musical. O som deveria despertar reflexões em nós”47, escreve ele em 1852. “A Natureza não faz nenhum barulho”, declara o jovem Henry em outra ocasião. Ao que continua: “A tempestade uivante, a folha farfalhante e a chuva tamborilante não são uma perturbação; há uma harmonia essencial e inexplorada nelas. Por que é que o pensamento flui com uma corrente tão profunda e cintilante quando o som de uma música distante atinge o ouvido?”48. A música da Natureza incita a reflexão sobre as questões indeléveis da vida justamente por carregar em si um potencial simbólico axial que lhe é inerente. Como já indicou Sherman Paul em seu estudo do som como agente da correspondência no pensamento thoreauviano, a música, para Thoreau, faz corresponder sujeito e objeto, espírito e Natureza. De acordo com o pesquisador, o escritor de Concord acreditava que a sonoridade natural restaurava sua saúde e seu vigor, apresentando- se como um verdadeiro “influxo” do sagrado49. Isso é nítido, por exemplo, em uma declaração como esta: “Eu, cuja vida ontem era tão inconstante e superficial, de repente recupero meu estado espiritual, minha espiritualidade, por meio da audição”50. Assim como empregava a música para exprimir simbolicamente seus estados de êxtase, nosso autor também volvia a ela para confessar seus momentos de fragilidade e suas sensações momentâneas de falta de unidade com a harmonia do mundo. Certa feita, ele relata um sonho em que seu corpo soava como um instrumento musical atendendo ao chamado da melodia distante de um outro instrumento. Em seu estado onírico, relembra-se ele, “pensei que eu fosse um instrumento musical do qual eu ouvia uma melodia se extinguir — uma corneta, um clarinete, ou uma flauta. Meu corpo era o órgão e o canal da melodia, como a flauta é o canal 46 Cf. Writings, X, p. 114. 18 de junho de 1852: “I hear a man playing a clarionet far off. Apollo tending the flocks of King Admetus. How cultivated, how sweet and glorious, is music! [...]. It is perhaps the most admirable accomplishment of man”. 47 ibid., p. 144. 25 de junho de 1852. No original: “Our minds should echo at least as many times as a Mammoth Cave to every musical sound. It should awaken reflections in us”. 48 Writings, VII, p. 12. 18 de novembro de 1837. No original: “Nature makes no noise. The howling storm, the rustling leaf, the pattering rain are no disturbance, there is an essential and unexplored harmony in them. Why is it that thought flows with so deep and sparkling a current when the sound of distant music strikes the ear?”. 49 “they [sounds] are the source of inspiration, of divine influx” (PAUL, 1949, p. 515). 50 ibidem. No original: “I, whose life was but yesterday so desultory and shallow, suddenly recover my spirits, my spirituality, through hearing”. 254 da música que é respirada através dela”. “Minha carne ainda soava e vibrava com a melodia”, descreve o autor, “e os meus nervos eram as cordas da lira”. Lamentando, enfim, por não ser seu corpo em estado de vigília um “instrumento musical” tal qual quando em sonho, ele assim continua: “Ouvi o último acorde ou prelúdio, ao acordar, tocado no meu corpo como instrumento. Assim eu sabia que eu havia sido e poderia ser novamente, e meu arrependimento surgiu da consciência de quão pouco parecido com um instrumento musical meu corpo era agora”51. O mundo e suas criaturas, diz Thoreau, quando ouvidos desde um estado de saúde dos sentidos (i.e., quando estes são devidamente tratados como “germes divinos”), soam como instrumentos musicais. Alguns meses antes dessa passagem, ele assim havia exclamado: “Acordei ao som de uma música que ninguém ao meu redor ouvia. A quem devo agradecer por isso? O luxo da sabedoria! o luxo da virtude! [...]. Sinto meu Criador me abençoando. Para o homem são, o mundo é um instrumento musical. O próprio toque oferece um prazer primoroso”52. O sagrado, como podemos perceber, é expresso por Thoreau a partir de vibrações sonoras que entrelaçam a materialidade do mundo e a sublimidade espiritual. Sendo empregadas para expressar o “sagrado” que na Natureza circula, as paisagens sonoras thoreauvianas são também utilizadas para representar o “profano”, aparecendo em diversos fragmentos como um símbolo de sua crítica à civilização contemporânea. As melodias reveladoras da presença do divino no momento presente — melodias estas que vêm de longe —, são assim contrapostas por Thoreau ao barulho ruidoso da sociedade, cujas vaniloquências, pensava ele, não nos permitem ouvir a cadência de nossos propósitos individuais mais elevados. Costuma-se dizer que a melodia pode ser ouvida em maior distância do que o ruído [...]. Acho que há verdade nisso e que, portanto, esses acordes do piano que me alcançam aqui no meu sótão me comovem muito mais do que os sons que eu ouviria se estivesse lá embaixo na sala, porque são uma melodia muito mais pura e divina. Aqueles que se sentam mais distantes do mundo ruidoso e movimentado não precisam se esforçar para distinguir o que é melodioso e musical, pois é somente isto que pode alcançá-los [...]53. 51 Writings, IX, p. 81-82. 26 de outubro de 1851. No original: “methought I was a musical instrument from which I heard a strain die out, — a bugle, or a clarionet, or a flute. My body was the organ and channel of melody, as a flute is of the music that is breathed through it. My flesh sounded and vibrated still to the strain, and my nerves were the chords of the lyre”; “I heard the last strain or flourish, as I woke, played on my body as the instrument. Such I knew I had been and might be again, and my regret arose from the consciousness how little like a musical instrument my body was now”. 52 Writings, VIII, p. 269. 22 de junho de 1851. No original: “I awoke into a music which no one about me heard. Whom shall I thank for it? The luxury of wisdom! the luxury of virtue! [...]. I feel my Maker blessing me. To the sane man the world is a musical instrument. The very touch affords an exquisite pleasure”. 53 Writings, IX, p. 125-126. 20 de novembro de 1851. No original: “It is often said that melody can be heard farther than noise [...]. I think there is truth in this, and that accordingly those strains of the piano 255 Profano é também o desespero, a lamentação e a debilidade que não conversa com o vigor do mundo (o oposto de heroísmo e inocência). Profana é a dessacralização da vida corpórea e material que Thoreau enxerga em determinadas interpretações contemporâneas do horizonte religioso judaico-cristão — que separaram, em seu entender, a glória do divino e a alegria selvagem da Natureza. “Os galos cantam uma melodia da qual nunca nos cansamos”, pretexta o autor certa feita. “Alguns há que se deleitam com a melodia dos pássaros e o chilrear dos grilos — sim, até com o piar das rãs. Sons tão delicados como esses são em sua maior parte ouvidos para além do choro, lamento e ranger de dentes que tanto profanam o Sabbath entre nós”54. A propósito, os sinos das igrejas, cujo badalar esteve outrora associado ao simbolismo das forças espirituais centrífugas e centrípetas55, ecoavam aos ouvidos do pensador um som melódico que lhe dizia coisas mais sublimes do que as pregações das igrejas: “O toque do sino da igreja é um som muito mais melodioso do que qualquer outro que é ouvido dentro da igreja. Todos os grandes valores são, portanto, públicos, e ondulam como o som pela atmosfera”56. Profanação tamanha, pensava ele, é também o descaso da civilização moderna para com a ancestralidade do ofício poético-profético, uma civilização que vestiu os antolhos dos negócios e tapou os ouvidos para as vozes da Natureza. Mencionando o pardal-americano, um dos pássaros mais comuns da Nova Inglaterra, cujo canto “é ouvido nos campos e pastos” (e que, ainda assim, soa despercebido), o autor o compara ao “canto do poeta, inaudível para a maioria dos homens, cujos ouvidos estão tapados com os negócios [...]”57. Empregando os which reach me here in my attic stir me so much more than the sounds which I should hear if I were below in the parlor, because they are so much purer and diviner melody. They who sit farthest off from the noisy and bustling world are not at pains to distinguish what is sweet and musical, for that alone can reach them [...]”. Thoreau provavelmente faz aqui referência à música tocada por sua irmã Helen, que era professora de piano. Há uma passagem do ano anterior na qual ele menciona também a melodia da flauta de seu irmão John, que o alcançou de longe: “I have heard my brother playing on his flute at evening half a mile off through the houses of the village, every note with perfect distinctness. It seemed a more beautiful communication with me than the sending up of a rocket would have been” (Writings, VIII, p. 12. 1850). 54 Writings, VII, p. 58. 2 de setembro de 1838. No original: “The cocks chant a strain of which we never tire. Some there are who find pleasure in the melody of birds and chirping of crickets, — aye, even the peeping of frogs. Such faint sounds as these are for the most part heard above the weeping and wailing and gnashing of teeth which so unhallow the Sabbath among us”. 55 “O sino da igreja, originalmente, manteve tanto a função centrípeta quanto a centrífuga, pois foi projetado ao mesmo tempo para afastar os maus espíritos e atrair os ouvidos de Deus e a atenção dos fiéis” (SCHAFER, op. cit., p. 246). 56 Writings, VII, p. 309. 2 de janeiro de 1842. No original: “The ringing of the church bell is a much more melodious sound than any that is heard within the church. All great values are thus public, and undulate like sound through the atmosphere”. 57 Cf. Writings, VIII, p. 308. 16 de julho de 1851: “The song sparrow, the most familiar and New England bird, is heard in fields and pastures [...] — the usually unseen songster usually unheard like the cricket, it is so common, — like the poet’s song, unheard by most men, whose ears are stopped with business [...]”. 256 símbolos sonoros do retinir do sino da igreja (mais aprazível aos ouvidos de nosso autor do que os sons das pregações), do ressoar do canto do pardal-americano (que, como o poeta, não é notado no mundo contemporâneo), do chilrear dos grilos ou do piar das rãs, Thoreau parece ter por intuito traçar uma contraposição à melancolia e ao desespero que ele enxerga em seus conterrâneos, ignorantes da alegria da Natureza. Longe do manancial originário, eles disseminam seu “choro, lamento e ranger de dentes”; ao contrário de louvarem a sacralidade do dia presente, o profanam com tristeza e lamentação — quando, na verdade, tudo o que há, em seu entender, é sacralidade e saúde, mesmo nas dinâmicas aparentemente mais sombrias e selvagens da terra. Antes que avancemos na exposição de alguns dos simbolismos sonoros de Thoreau em A Week e em Walden, façamos aqui uma breve recapitulação. Já elucidamos que uma das principais heranças de seu contexto intelectual romântico se faz ver no propósito poético- escriturístico de registrar suas próprias alusões aos símbolos espirituais expressos na profusão de vozes da terra. Assim como os símbolos mitológicos, os símbolos musicais da literatura thoreauviana têm em vista a educação da sensibilidade para a detecção da teofania do mundo, tal qual manifesta no transcurso do tempo presente. Na verdade, aqueles que aqui denominamos “hieróglifos mitopoéticos” e “hieróglifos musicais” estão profundamente entrelaçados. Como já expusemos sucintamente acima a partir dos estudos acústicos de Bernie Krause e Murray Schafer, há indicações significativas de que as paisagens sonoras naturais ocuparam um lugar nuclear na construção das expressões artísticas humanas dos primórdios, e, provavelmente, na própria constituição da linguagem arcaica — e, portanto, das formas poéticas da mitologia. Por outro lado, também já dissemos que, em termos da concepção espiritual de Thoreau, que decerto absorveu muito do que há de essencial na cosmovisão religiosa da antiga Grécia, o poeta é um ouvinte: a arte do canto e da fala, como admitimos junto a Walter Otto, é indicativa da plenitude do poder supremo do cosmo, o qual, através da mousiké, das artes das Musas, glorifica e garante sentido a todo dizer que se queira parte do grande hino de louvor ao milagre da existência do mundo, a todo som que é eco da expressão primeira dessa ordenação cósmica, chamada, no contexto religioso grego, de Zeus Pai. Na convergência das pontes sonoras que reúnem a melodia terrena e a melodia celestial, compreendemos que, no pensamento thoreauviano, os ouvidos e a música por eles captadas (seja em termos imanentes ou transcendentes) constituem uma via central de percepção do sentido supremo das coisas — sentido este que, como está posto desde o início, reverbera a corda umbilical que reúne o ser humano à Natureza e ao ser supremo que de todo movimento mundano é origem. 257 O poeta, então, ouve a fala que vem de cima conforme se traduz cá embaixo, e em sua composição literária transmite os dizeres musicais do céu e da terra. Daí dizermos, por conseguinte, que o poeta, em seu estatuto sagrado-profético, ouve a melodia celeste nas melodias terrenas, para, através destas últimas, emitir seu cântico devotado à onipresença da primeira, que em tudo se faz pronunciar. Isso significa que as paisagens sonoras da Natureza, conforme as reverberações nelas percebidas por Thoreau, denotam uma linguagem originária — aquela que aqui já identificamos, em sua similaridade no que concerne sua divina descendência, com a mousiké dos gregos, bem como com a concepção da divindade védica Vāk e a ideia de ṛṣi, o poeta que vê e ouve o fundamento último do mundo. Assim como se vale das narrativas míticas e das imagens fornecidas pelos numerosos seres por ele observados, Thoreau emprega os sons musicais da Natureza por ele absorvidos para transmitir ao leitor sua mensagem poético-profética de interconexão entre todas as coisas: i.e., a presença da unidade a orbitar as esferas de todas as particularidades que compõem a diversidade do mundo. O divino e suas vocalizações — a verdade, a virtude, a beleza, o heroísmo, a saúde — circuita pelas mais distintas expressões vitais. Que se faça expressar com o mesmo esplendor infinito nas particularidades que distinguem os seres é justamente sua grandeza. Para Thoreau, quem ouviu a unidade da voz divina na multiplicidade do tilintar das matas, sem pretender limitar o sagrado a uma única face ou voz, alcançou aquilo que há de mais elevado a ser conquistado na experiência humana. Os frutos de sua própria prática de escuta o autor registra simbolicamente. Tanto em A Week quanto em Walden, as menções às melodias dos diversos seres com os quais o autor cruzava caminho ao longo de suas excursões estão presentes do início ao fim, e vários são os momentos em que ele alude aos sons para delinear, a partir da proximidade com os fenômenos naturais, suas percepções espirituais. Daí se segue que os sons se mostram enquanto um importante pilar (senão o mais essencial) de sua proposta de (re)educação da sensibilidade para o experienciar do divino no aqui e agora do mundo. Tracemos, pois, junto aos relatos de Thoreau, um breve percurso sonoro pelas matas da Nova Inglaterra tais quais figuradas em sua excursão pelos rios Concord e Merrimack. A conclusão de “Saturday” [“Sábado”], segundo capítulo do livro, é crucial aqui para nós, na medida em que é dedicada ao relato acerca das melodias ouvidas ao longo da viagem. O som mais memorável e frequente daquele verão, segundo sua exposição, era o dos uivos dos cachorros, indicações musicais que levavam seu pensamento para além daquela singularidade espaço-temporal, explanadas em suas tão adoradas onomatopeias: “auu-auu-auu-auu — au — au — u — u”, latiam os cães melodiosamente. Aquele som, pensava ele, era o protótipo de 258 nossas próprias expressões, o que nos remete à já mencionada proeminência das paisagens sonoras elementares nos primórdios das construções linguísticas da humanidade. Um cão perseguindo um animal na mata faz o “poeta-naturalista” atrelar os padrões sonoros aí produzidos à origem dos instrumentos de sopro e, em suma, às diversas expressões humanas que nascem no intuito de serem ouvidas. “Esta corneta natural por longas eras ressoou nas matas do mundo antigo antes que a trompa fosse inventada”, escreve Thoreau em referência aos sons caninos. “Os próprios cães que taciturnamente uivam à lua [bay the moon]58 desde as fazendas nestas noites excitam mais heroísmo em nossos peitos do que todas as exortações civis ou sermões bélicos de nossa época”59. À noite, narra ele em sua excursão, cessavam, nas proximidades das matas nativas, os sons humanos, e as vozes negligenciadas da Natureza se apresentavam mais limpidamente; “nenhuma respiração humana era ouvida, apenas o suspiro do vento”. Demonstrando sua enorme sensibilidade e acuracidade para a detecção dos movimentos dos animais, ele informa ter ouvido “raposas passando sobre as folhas mortas e tocando a grama orvalhada”, e também “um rato-almiscarado remexendo as batatas e os melões em nosso barco”. “De vez em quando, o canto de um pardal sonhador ou o lamento sufocado de uma coruja nos fazia serenata”, conta- nos ainda; “mas depois de cada som que se aproximava e que rompia a calada da noite, cada estalar dos galhos e farfalhar entre as folhas, havia uma pausa repentina, e um silêncio mais profundo e mais consciente”60. Aqui, assim como em vários outros lugares, Thoreau presta seu testemunho à onipresença e grandiosidade do “estado sadio e sonoro” da Natureza, origem de quaisquer expressões (que, afinal, apenas acrescentam “retoques” à linguagem original: a música do cosmo). Todos esses sons, o canto dos galos, o latido dos cães e o zumbido dos insetos ao meio-dia são a evidência da saúde, do estado sadio e sonoro da natureza. 58 Referência aos versos de Shakespeare: “I had rather be a dog, and bay the moon, / Than such a Roman” (Julius Caesar, ato 4, cena 3). 59 Writings, I, p. 40. No original: “wow-wow-wow-wow — wo — wo — w — w”; “This natural bugle long resounded in the woods of the ancient world before the horn was invented. The very dogs that sullenly bay the moon from farm-yards in these nights excite more heroism in our breasts than all the civil exhortations or war sermons of the age”. 60 ibid., p. 39. No original: “no human breathing was heard, only the breathing of the wind”; “foxes stepping about over the dead leaves, and brushing the dewy grass”; “a musquash fumbling among the potatoes and melons in our boat”; “At intervals we were serenaded by the song of a dreaming sparrow or the throttled cry of an owl; but after each sound which near at hand broke the stillness of the night, each crackling of the twigs, or rustling among the leaves, there was a sudden pause, and deeper and more conscious silence”. 259 Tal é a inesgotável beleza e precisão da linguagem, a arte mais perfeita do mundo; o cinzel de mil anos apenas faz-lhe retoques61. Como bem observa Alan Hodder, Thoreau usa aqui o termo “sound” em seu duplo sentido, empregando-o para fazer referência tanto aos sons melódicos dos seres e fenômenos quanto à perene saúde e ao vigor do cosmo. “Thoreau”, argumenta Hodder, “torna explícita a conexão mais profunda que ele sente entre a vida ‘sadia’ e o ‘som’ sadio. Seu jogo com os sentidos adjetivo e substantivo da palavra serve para identificar a saúde com o dossel do som natural”62. Essa saúde do cosmo, como temos sublinhado, é para nosso autor uma indicação reveladora da presença do divino no desenrolar dos eventos mais corriqueiros do mundo natural. Essa relação entre o som e a saúde (corpórea e espiritual) é frequente nas meditações de Thoreau, e remonta, como já vimos, aos preceitos da escola pitagórica. “A música fará o mais nervoso acorde vibrar saudavelmente”63, pondera o pensador em seu diário de 1841. “A música”, formula ele pouco tempo depois, “é o som da circulação dos veios da natureza. É o fluxo que funde a natureza. Os homens dançam diante dela, os vidros ressoam e vibram, e os campos parecem ondular. O ouvido saudável a ouve sempre, seja mais de perto ou mais distante”64. Já no capítulo “Tuesday”, somos informados que nas terras de Plum Island ele ouvia somente a música do “som incessante da maré, e o pio triste dos pilritos-das-praias”65. Os pombos, em seu trânsito migratório rumo ao sul (viajantes mais primorosos do que ele e seu irmão John, diz-nos o escritor), eram também ouvidos ao longo do caminho66. Adiante, em “Wednesday” [“Quarta-feira”], no já mencionado poema The Inward Morning [A Manhã Interior]67, Thoreau indica que, em sua experiência espiritual de escuta, as melodias de fora se familiarizam com as melodias de dentro. Por intermédio das pontes sonoras da terra, somos 61 ibid., p. 40-41, grifo do autor. No original: “All these sounds, the crowing of cocks, the baying of dogs, and the hum of insects at noon, are the evidence of nature’s health or sound state. Such is the never failing beauty and accuracy of language, the most perfect art in the world; the chisel of a thousand years retouches it”. 62 HODDER, 2001, p. 76. No original: “Thoreau makes explicit the deeper connection he senses between ‘sound’ health and healthy ‘sound’. His play on the adjectival and substantive meanings of the word serves to identify health with the canopy of natural sound”. 63 Writings, VII, p. 192. 4 de fevereiro de 1841. No original: “Music will make the most nervous chord vibrate healthily”. 64 ibid., p. 251. 24 de abril de 1841. No original: “Music is the sound of the circulation in nature’s veins. It is the flux which melts nature. Men dance to it, glasses ring and vibrate, and the fields seem to undulate. The healthy ear always hears it, nearer or more remote”. 65 Writings, I, p. 211. No original: “ceaseless sound of the surf, and the dreary peep of the beach-birds”. 66 ibid., p. 235. 67 Cf. p. 175, nota 70. 260 recordados de nossa relação com o céu, e ouvimos a continuidade ressonante entre a esfera anímica e o universo material: No íntimo da alma ouvi Estas alegres notícias matinais, No limiar da mente vi Excelsos matizes orientais, Como quando no crepúsculo da aurora, Ao despertar dos primeiros pássaros, São ouvidos dentro da mata silenciosa, O quebrantar dos pequenos galhos […]68. Em “Sunday”, tomamos conhecimento daquilo que cantaram em seus ouvidos aqueles que ele denomina os “emissários e relatores” das revoluções da Natureza: Acredite que os tordos cantavam, E que os sinos das flores ressoavam, Que as ervas seus perfumes exalavam, E as feras o sentido disso captavam [...]69. Thoreau era um grande amante dos pássaros, cujas melodias, a propósito, têm encantado a humanidade desde os primórdios. Na verdade, como já disse Schafer, “nenhum som da natureza tem estado ligado tão afetivamente à imaginação humana quanto as vocalizações dos pássaros”70. E não poderia ser diferente, já que estes seres cheios de beleza (quando os humanos não lhe tomam cruelmente a liberdade) são representativos da conexão primitiva entre o celeste e o terrestre. Em uma passagem de seu diário datada de 1852, lemos um dos tributos do pensador de Concord às notações poéticas dos pássaros de sua terra natal: Alguns pássaros são poetas e cantam durante todo o verão. Eles são os verdadeiros cantores. [...]. Estamos mais interessados naqueles pássaros que cantam por amor à música e não por seus companheiros; que meditam seus acordes e se encantam [amuse] com seu cantar; os pássaros, os acordes, de sentimento mais profundo [...]. O tordo-americano, a juruviara-boreal, o sabiá, o tordo-dos-bosques etc., etc. [...]. O tordo por si só proclama a riqueza e o vigor imortais que há na floresta. Eis aqui um pássaro em cujo canto a história é contada, embora a Natureza tenha esperado que a ciência da estética a revelasse ao homem. Sempre que um homem o ouve, ele é jovem, e a Natureza 68 ibid., p. 313-314. No original: “I’ve heard within my inmost soul / Such cheerful morning news, / In the horizon of my mind / Have seen such orient hues, / As in the twilight of the dawn, / When the first birds awake, / Are heard within some silent wood, / Where they the small twigs break [...]”. 69 ibid., p. 46. No original: “emissaries and reporters”; “Believe the thrushes sung, / And that the flower- bells rung, / That herbs exhaled their scent, / And beasts knew what was meant [...]”. 70 SCHAFER, op. cit., p. 53. 261 é descoberta em sua primavera. Onde quer que ele o ouça, é um mundo novo e um país livre, e as portas do céu não estão fechadas para ele. […] [E]ste pássaro nunca deixa de me falar de um éter mais puro que aquele que respiro, da beleza e vigor imortais. Ele aprofunda o significado de todas as coisas vistas à luz de sua tensão melódica. Ele canta para fazer com que os homens tenham uma visão mais elevada e verdadeira das coisas. Ele canta para reformar as instituições dos homens; para aliviar o escravo na fazenda e o prisioneiro em seu calabouço, o escravo na casa de luxo e o prisioneiro de seus próprios pensamentos inferiores71. O canto do tordo aparece a Thoreau como um transmissor de mensagens grandiosas, como um indicador do caráter da reforma que carecia à sociedade de sua época: a familiarização e aproximação entre o “eu” e o “não-eu”, o “sujeito” e o “objeto” — operação orquestrada por uma lei diversa daquela ditada pelos costumes de então. A melodia do tordo acena à imaginação humana, campo da operação unificadora da poesia. Revelando-se ao imaginar poético enquanto um símbolo do poder imortal que circula nas matas, o tordo figura enquanto anúncio do “alívio”, da libertação de crenças limitantes que fazem com que o ser humano escravize o outro ao mesmo tempo em que aprisiona a si mesmo em sua própria mesquinhez. Eis aí uma bela articulação entre a apreciação estética dos fenômenos (e, no caso, dos sons) naturais e a reflexão moral voltada para o aprofundamento de uma conduta ética na comunidade maior que envolve toda a terra. Enquanto a sociedade ressoa dominação e inferioridade de visão, as aves dos céus, em sua ampla visão, falam da “beleza e vigor imortais” que irrompem no tempo presente. Como um verdadeiro artista e filho das Musas, o tordo canta por cantar; canta para conversar com a glória do mundo e ecoar o (en)canto que fundamenta o cosmo. Este pássaro, em especial, dizia a Thoreau sobre a sua própria essência singular: “Há um doce mundo selvagem que se estende junto à melodia do tordo-dos-bosques — os ricos intervalos que margeiam o fluxo de sua 71 Writings, X, p. 190-191, grifo do autor. 5 de julho de 1852. No original: “Some birds are poets and sing all summer. They are the true singers. […]. We are most interested in those birds who sing for the love of the music and not of their mates; who meditate their strains, and amuse themselves with singing; the birds, the strains, of deeper sentiment […]. The robin, the red-eye, the veery, the wood thrush, etc., etc. […]. The thrush alone declares the immortal wealth and vigor that is in the forest. Here is a bird in whose strain the story is told, though Nature waited for the science of aesthetics to discover it to man. Whenever a man hears it, he is young, and Nature is in her spring. Wherever he hears it, it is a new world and a free country, and the gates of heaven are not shut against him. […] this bird never fails to speak to me out of an ether purer than that I breathe, of immortal beauty and vigor. He deepens the significance of all things seen in the light of his strain. He sings to make men take higher and truer views of things. He sings to amend their institutions; to relieve the slave on the plantation and the prisoner in his dungeon, the slave in the house of luxury and the prisoner of his own low thoughts”. 262 canção — mais plenamente afável à minha natureza do que qualquer outro”72. O tordo- americano “canta continuamente da pura alegria e melodia da alma”73, e sua música figura como um símbolo natural do espiritual. Em um dia chuvoso, nas proximidades do Punkatasset Hill, um dos locais mais altos da cidade de Concord, é também essa espécie que ele ouve cantar alegremente, apesar do tempo fechado — uma grande lição para os moribundos e desesperados que não têm a confiança e a perseverança dos seres da terra. “Ele canta com poder, como um pássaro de grande fé que vê o esplendor do futuro através da sombra do presente, para reanimar a raça humana, como aquele a quem muitos talentos foram dados e que os aperfeiçoará”, diz- nos. “São sons que fazem um moribundo viver. Eles não cantam seu desespero. É uma melodia pura e imortal”74. O tordo aparece assim como um símbolo musical da lapidação espiritual e da atenção ao momento presente que falta ao ser humano moderno. Suas melodias remontam à era em que se reconhecia a morada do sagrado no cosmo. Afinal, também os indígenas, nos tempos em que suas terras não haviam ainda sido brutalmente colonizadas pelo homem branco, imagina Thoreau, devem ter ouvido essa mesma canção. O tordo-americano “cantava assim quando não havia ouvido civilizado para ouvi-lo, uma melodia pura da floresta, como o tordo-dos-bosques. Todas as coisas genuínas mantêm esse tom selvagem, que nenhuma cultura verdadeira substitui”75. Jogando aqui com os termos coloniais “civilizado” e “selvagem”, o pensador, em um tom decolonial, recorda seu leitor da verdadeira origem da cultura: nada mais que os tons silvícolas da Natureza, que desde os primórdios têm ambientado as linguagens que conferem ao mundo humano um sentido de existência e permanência. Os sons da Natureza, conforme sua absorção na literatura thoreauviana, não se endereçam ao ouvido apenas. Suas vibrações arrebatam as entranhas de todo o corpo, este formidável sistema orgânico que jamais se dissocia dos valores espirituais que junto dele caminham. Com isso queremos dizer que, de acordo com nosso “poeta-naturalista”, a orquestra da terra ecoa a harmonia do céu, vibração uníssona para o ouvido daquele que busca conduzir 72 Writings, VIII, p. 19. 1850. No original: “There is a sweet wild world which lies along the strain of the wood thrush — the rich intervales which border the stream of its song — more thoroughly genial to my nature than any other”. 73 Writings, IX, p. 409. 13 de abril de 1852. No original: “sings continuously out of pure joy and melody of soul”. 74 ibid., p. 450. 21 de abril de 1852. No original: “It sings with power, like a bird of great faith that sees the bright future through the dark present, to reassure the race of man, like one to whom many talents were given and who will improve its talents. They are sounds to make a dying man live. They sing not their despair. It is a pure, immortal melody”. 75 ibid., p. 451. 21 de abril de 1852. No original: “sang thus when there was no civilized ear to hear him, a pure forest melody even like the wood thrush. Every genuine thing retains this wild tone, which no true culture displaces”. 263 harmonicamente o bailado do corpo e da alma. O tordo fala do vigor e da fertilidade imanente das matas, assim como profere algo de sublime e transcendente. Seu ritmo, invariavelmente afinado aos ritmos da Natureza, não conhece a debilidade do homem. Nada sabe o tordo da decadência humana dissimulada na escravidão e na destruição da terra; nada sabe o tordo sobre o que é tornar-se prisioneiro de si mesmo e separado de seu centro — o tordo canta a beleza e a verdade do mundo. Eis aí mais uma ressonância musical da teoria da correspondência simbólica entre Natureza e espírito no pensamento de Thoreau. Voltemos às paisagens sonoras de A Week. No capítulo “Monday”, lemos que os sons emitidos pelas florestas contam a história da juventude da Natureza, tempo em que a ancestralidade sagrada da terra se mesclava sem obstáculos àquela dos povos ameríndios, emissores de sonoridades vindas do Grande Espírito, mas socialmente abafadas pela repercussão do sino do Deus do homem branco. Nesta passagem, o autor pontua que ele nutre maior familiaridade com o eco das matas — que, em sua imaginação (faculdade que, como já estabelecemos, reúne em uma unidade simbólica de sentido a multiplicidade do mundo) ressoa tal qual o dedilhar da lira de Orfeu: Veja, não está aqui a natureza em estado de decadência, não estão as fazendas todas esgotadas, e não se tornou a igreja pálida e atormentada pela idade? Se você quiser saber da juventude da Natureza, pergunte àquelas velhas rochas cinzentas no pasto. Lá há um sino que por vezes soa até as matas de Concord; eu já o ouvi — ai, ouço-o agora. Não é de se admirar que tal som tenha perturbado o indígena sonhador e o intimidado em suas atividades, quando os primeiros sinos vibraram nas árvores e soaram pela floresta para além das plantações do homem branco; mas hoje gosto mais do eco entre estes penhascos e matas. Não se trata de uma débil imitação, mas sim do som original, como se algum Orfeu rural tocasse novamente a melodia para mostrar como ela deveria soar76. São os sons da plêiade de seres da terra que falam a ele da existência de uma Natureza para além das concepções que geralmente temos dela, seja pela ótica dos cientistas ou pelo prisma dos poetas. As paisagens sonoras do cosmo, como nos sugere Thoreau, é que dão o tom da fala plena de sentido, do dizer poético-profético. No canto das aves selvagens ele distinguia o eco de um “Orfeu rural” a entoar sua lira no horizonte, e buscava nessas paisagens sonoras 76 Writings, I, p. 49-50. No original: “See, is not nature here gone to decay, farms all run out, meeting- house grown gray and racked with age? If you would know of its early youth, ask those old gray rocks in the pasture. It has a bell that sounds sometimes as far as Concord woods; I have heard that, — ay, hear it now. No wonder that such a sound startled the dreaming Indian, and frightened his game, when the first bells were swung on trees, and sounded through the forest beyond the plantations of the white man; but to-day I like best the echo amid these cliffs and woods. It is no feeble imitation, but rather its original, or as if some rural Orpheus played over the strain again to show how it should sound”. 264 primordiais inspiração para a transmissão de sua própria mensagem poética. “Depois de passar vários dias sentado em meu quarto, lendo os poetas, saí cedo em uma manhã de neblina e ouvi o brado de uma coruja em uma floresta vizinha como se vindo de uma natureza para além do comum, inexplorada pela ciência ou pela literatura”77, relata-nos. “Se paro para escutar”, observa ele mais adiante, “ouço o coaxar de sapos, que é mais antigo do que o lodo do Egito, e o distante tamborilar de uma perdiz em um tronco, como se se tratasse da pulsação da brisa do verão”. Quando os pés descalços tocam o chão e ampliamos a extensão de nossa sensibilidade, esmaece a tênue linha que separa passado, presente e futuro. Imersos na Natureza e nos entendendo a nós mesmos enquanto mais uma parte de uma imensa congregação cósmica, somos devolvidos à nossa ancestralidade: um campo cheio de húmus, solo sobre o qual foram nutridos os ancestrais primordiais e no qual são gestadas novas gerações. “Estou agora sentado em um toco cujos anéis contam séculos de crescimento. Se eu olhar ao redor, vejo que o solo é composto de restos de tocos, ancestrais deste. A terra está coberta de húmus”78. Essa ancestralidade simbiótica, podemos de tudo isso depreender, comunica-se mais energicamente por meio do som. Também em “Monday” — um capítulo que, não por acaso, mescla reflexões acerca das facetas míticas e musicais da Natureza —, o autor faz menção à melodia, harmonia e ritmo das vozes ecoadas pelos ventos. A harpa eólica, que também assume a expressividade da “harpa telégrafa”, era um de seus símbolos sonoros favoritos. A riqueza desses simbolismos se faz ver tanto na referência a Éolo79, o deus grego responsável por comandar os ventos, quanto no próprio sentido do instrumento referido, o telégrafo. A telegrafia, como sabemos, é uma técnica que permite a difusão de mensagens codificadas a longas distâncias. O telégrafo elétrico, configurado por um sistema de transmissão de informações através de correntes elétricas, foi criado em 1837 pelo inventor norte-americano Samuel Morse (1791–1872). Esse sistema operava pela reprodução de códigos simbólicos (relativos ao “código Morse”), os quais, uma vez transmitidos de torre em torre, alcançavam sua decodificação no lugar ao qual se destinava à comunicação. 77 ibid., p. 56. No original: “After sitting in my chamber many days, reading the poets, I have been out early on a foggy morning and heard the cry of an owl in a neighboring wood as from a nature behind the common, unexplored by science or by literature”. 78 ibid., p. 160. No original: “If I listen, I hear the peep of frogs which is older than the slime of Egypt, and the distant drumming of a partridge on a log, as if it were the pulsebeat of the summer air”; “I sit now on a stump whose rings number centuries of growth. If I look around I see that the soil is composed of the remains of just such stumps, ancestors to this. The earth is covered with mould”. 79 O nome Éolo é atribuído a diversos personagens na mitologia grega. Na Odisseia, Éolo é o “senhor dos ventos” que recebe Odisseu e seus companheiros na ilha de Eólia (GRIMAL, op. cit., p. 139). 265 Essa representação alcançou os tímpanos de muitos poetas. O caráter fabuloso do vento, recorda Schafer, “encontra seu instrumento na harpa eólia, cujos sons persistentes e esquivos foram tão carinhosamente vistos pelos românticos. Novalis escreveu: ‘A Natureza é uma harpa eólia, um instrumento musical cujos sons vêm do pinçar das cordas mais agudas dentro de nós”80. Semelhantemente, Ralph Emerson, em The Harp, louva a sabedoria proclamada pela harpa eólica81. Já Coleridge, no poema The Aeolian Harp, assim saúda os poderes dos ventos: E se toda a natureza animada For tão-somente Harpas orgânicas de formas diversas, Vibrando em pensamento, quando nelas passa, Plástico e vasto, um vento do intelecto, A um tempo a Alma de cada qual e o Deus de tudo?82 Também a lira apolínea foi repetidamente ressoada nos painéis do romantismo. Em A Migração, Hölderlin assim modula: e as florestas Tudo ressoavam, cada lira Em uníssono Ao suave toque do céu83. Mencionando o telégrafo junto à harpa eólica, este último um símbolo amplamente empregado na literatura ocidental84, Thoreau acena para o sentido transcendente de uma repercussão que se faz ouvir no campo da imanência. As vibrações das cordas do telégrafo ecoam mensagens não programadas pela linguagem humana (e que, ao fim, justamente por ultrapassá-la, a ela confere seu devido sentido). Este era, afinal, o uso superior daquele equipamento provindo da engenhosidade humana: a captação de códigos ecoados para além de nossa deliberação, mas endereçados diretamente a nossas faculdades sensitivas e deliberativas. 80 SCHAFER, op. cit., p. 243. 81 “Aeolian Harp, / How strangely wise thy strain!”. Cf. EMERSON, Ralph Waldo. The Harp. In: ______. Poems. The complete works of Ralph Waldo Emerson, with a biographical introduction and notes by Edward Waldo Emerson, 12v. Boston/New York: Houghton, and Mifflin Company, 1903- 1904, v. 9, p. 237-241, à página 238. 82 COLERIDGE, S. T. A Balada do Velho Marinheiro. Tradução e notas de Alípio Correia de Franca Neto. Cotia: Ateliê Cultural, 2005, p. 33. 83 FERBER, Michael. A Dictionary of Literary Symbols. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 8. Na tradução consultada: “and the forests / All rustled, every lyre / In unison / At heaven’s gentle touch”. 84 Sobre o simbolismo da harpa eólica, cf. FERBER, op. cit., p. 7-9. 266 Narrando um de seus encontros com o poder sônico das cordas da harpa eólica, ele estrutura seu ponto de vista nos termos seguintes: Viajando a pé muito cedo numa manhã rumo ao leste, a cerca de trinta quilômetros daqui, da taverna de Caleb Harriman em Hampstead até Haverhill, quando cheguei à ferrovia em Plaistow, ouvi a alguma distância uma música quase imperceptível no ar, como se fosse uma harpa eólica, que eu imediatamente pensei provir da corda do telégrafo vibrando no vento matinal que acabava de despertar [...]. Era a harpa telégrafa cantando sua mensagem pelo país, uma mensagem enviada não pelos homens, mas pelos deuses. Possivelmente, tal qual a estátua de Mêmnon85, ressoe apenas pela manhã, quando os primeiros raios do sol incidem sobre ela. Era como uma lira primordial ou uma concha ouvida à beira-mar — aquela corda vibrante elevada no ar acima das margens da terra. Assim, todas as coisas têm seus usos superiores e inferiores. Ouvi uma notícia mais justa do que aquelas que os jornais já publicaram. Comunicava coisas dignas de se ouvir, e dignas de transmissão pelo fluido elétrico; não falava do preço do algodão e da farinha, mas sinalizava o custo do próprio mundo e de coisas que não têm preço, da verdade absoluta e da beleza86. No ecoar das cordas da harpa dedilhada pelos ventos, somos capazes de ouvir o ecoar de tudo aquilo que há de sublime no mundo: a manhã da vida, sua eterna juventude, vigor, beleza e eternidade. Mesmo que se trate de um equipamento construído pelos humanos, repetimos, sua sublimidade vai além das intenções de seu empreendimento. Graças à mediação do telégrafo, exprime Thoreau, é possível ouvir mensagens “superiores” enviadas pelos deuses que se contrastam com os usos “inferiores” da civilização. Devidamente ouvidos, os sons nos devolvem à conversa primordial entre todas as coisas, à comunicação entre a Natureza e o 85 A ligação entre a harpa eólica e a harpa de Mêmnon aqui mencionada por Thoreau foi bastante repercutida na literatura europeia. Acerca desse tema, Ferber (op. cit., p. 9) escreve: “Kircher noted that several sounds may be produced by one string, suggesting that the string is to the wind as a prism to light, breaking up a unified motion or essence into its component parts. William Jones developed the theory that ‘the Eolian harp may be considered as an air-prism.’ That idea may account for the connection between the aeolian harp and the ‘Harp of Memnon,’ which was thought to be concealed within a colossal statue of an Egyptian pharaoh and would sound when the first ray of sunlight struck it each morning”. 86 Writings, I, p. 185. No original: “Traveling on foot very early one morning due east from here about twenty miles, from Caleb Harriman’s tavern in Hampstead toward Haverhill, when I reached the railroad in Plaistow, I heard at some distance a faint music in the air like an aeolian harp, which I immediately suspected to proceed from the cord of the telegraph vibrating in the just awakening morning wind [...]. It was the telegraph harp singing its message through the country, its message sent not by men, but by gods. Perchance, like the statue of Memnon, it resounds only in the morning, when the first rays of the sun fall on it. It was like the first lyre or shell heard on the seashore, — that vibrating cord high in the air over the shores of earth. So have all things their higher and their lower uses. I heard a fairer news than the journals ever print. It told of things worthy to hear, and worthy of the electric fluid to carry the news of, not of the price of cotton and flour, but it hinted at the price of the world itself and of things which are priceless, of absolute truth and beauty”. 267 espírito, à consonância entre a música macrocósmica e a música do microcosmo. Assim canta o caminhante nos últimos versos do poema Rumors from an Aeolian Harp [Rumores de uma Harpa Eólica]: E sempre, se atento auscultar, Poderá talvez ouvir seu sino ecoar, E o passo de nobres almas a caminhar, Seus pensamentos com o céu a conversar87. Na melodia das forças eólicas, Thoreau ouvia o anúncio da virtuosidade e da beleza do mundo, os pronunciamentos dos sábios da terra em sua relação com o céu. Sua fascinação com a música da harpa, tal qual ressoada pelos poderes do vento, levou-o a construir o seu próprio instrumento, atualmente exposto no Concord Museum88. Nota-se que suas menções ao harpista dos ventos sempre aparecem atreladas à percepção da unidade entre todos os espaços e temporalidades, uma unidade que se faz descobrir na universalidade da Natureza, manancial que a todos sustém, sempre incitando encantamento e assombro naqueles que se atentam para ouvir. “Enquanto a neve cai, a harpa telégrafa ressoa através dos campos”, escreve o autor. “Como se o telégrafo se aproximasse tanto de um atributo da divindade que a música naturalmente o acompanhasse”89. A harpa ressoava em seus ouvidos, enfim, a imperiosidade de uma reforma interior, condição necessária, na experiência religiosa de Thoreau, para a contemplação dos mistérios do céu conforme refletidos na terra. Insere-se nessa perspectiva de reforma individual uma ética das virtudes que não se desliga do anseio pela percepção sensível da beleza da Natureza. Assim lemos em uma passagem de 1852: “A constante indagação que a natureza nos apresenta é: ‘Você é virtuoso? Então você poderá me contemplar’. Beleza, fragrância, música, doçura e alegria de todos os tipos são para os virtuosos. Foi isso que eu pensei quando ouvi a harpa telégrafa hoje”90. Postura imprescindível da vida virtuosa, neste panorama, é a capacidade de ver, ouvir e experienciar a unidade na particularidade. Nesta dinâmica religiosa, é salientada a conexão entre os sentidos corpóreos e o sagrado. Para Thoreau, afinal, como temos realçado desde o 87 ibid., p. 184. No original: “And ever, if you hearken well, / You still may hear its vesper bell, / And tread of high-souled men go by, / Their thoughts conversing with the sky”. 88 HARDING, 1992, p. 291. 89 Writings, IX, p. 205. 18 de janeiro de 1852. No original: “While the snow is falling, the telegraph harp is resounding across the fields. As if the telegraph approached so near an attribute of divinity that music naturally attended it”. 90 Writings, X, p. 80. 4 de junho de 1852. No original: “The constant inquiry which nature puts is: ‘Are you virtuous? Then you can behold me.’ Beauty, fragrance, music, sweetness, and joy of all kinds are for the virtuous. That I thought when I heard the telegraph harp to-day”. 268 começo, o encantamento do mundo, que permite em tudo perceber o embrião de um princípio supremo, não jaz em um tempo remoto, mas é irradiado no aqui e agora do tempo presente. A música, assim como a poesia, é a voz que canta a infância do cosmo — não apenas aquela que foi soprada nos tons da Grécia e de outras civilizações antigas, mas a que desponta nos acordes propagados neste mesmo instante. Um espírito varre a corda da harpa do telégrafo, e os acordes da música se prolongam interminavelmente como o próprio fio. Não temos necessidade de remeter a origem da música e da poesia à Grécia neste momento. [...]. O mundo é jovem e a música é sua voz infantil. Não me desespero em um mundo onde você só precisa esticar um fio comum de árvore em árvore para ouvir as melodias extraídas a partir dele pelas brisas da Nova Inglaterra, que fazem a Grécia e toda a antiguidade parecerem pobres em melodia91. “As vibrações daquela corda seguramente recordarão o ser humano de tudo o que há de mais glorioso em sua experiência”, preconiza ele em outra ocasião. “O distante é trazido à sua proximidade através da audição. Ele ainda habita o corpo, sua alma não está plenamente arrebatada, mas notícias de outras esferas além daquela em que ele habita o alcançam. É evidente que sua vida não vai além desse nível”92. A música distante e não planejada do telégrafo, portanto, além de um símbolo da comunhão de todos os sentidos corpóreos na experiência fenomenológica de escuta, é também um símbolo da harmonia entre o microcosmo individual e o macrocosmo que lhe antecede. Está aí em questão uma experiência espiritual na qual o distante (i.e., transcendente) torna-se próximo (i.e., imanente), uma experiência que, uma vez pautada na perspectiva de unidade, arrebata o corpo e a alma. A música, como sugere Thoreau a partir desse fragmento, possibilita-nos o mais alto nível de conhecimento do sagrado que a nós é possível alçar: a percepção da proximidade daquilo que é também distante. Por isso ele diz, apropriadamente, que nossa vida “não vai além desse nível”93. A absorção, com todos os poros corpóreos, da orquestra do universo, é para nosso autor o estopim da experiência 91 Writings, IX, p. 174-175. 3 de janeiro de 1852. No original: “A spirit sweeps the string of the telegraph harp, and strains of music are drawn out endlessly like the wire itself. We have no need to refer music and poetry to Greece for an origin now. [...]. The world is young, and music is its infant voice. I do not despair of such a world where you have only to stretch an ordinary wire from tree to tree to hear such strains drawn from it by New England breezes as make Greece and all antiquity seem poor in melody”. 92 ibid., p. 236. 26 de janeiro de 1852. No original: “The vibrations of that string will surely remind a man of all that is most glorious in his experience [...]. The distant is brought near to him through hearing. He abides in the body still, his soul is not quite ravished away, but news from other spheres than he lives in reaches him. It is evident that his life does not pass on that level”. 93 Reservamos o tema dos limites do conhecimento e da expressão do divino para o final de nossa discussão. 269 espiritual de ligação entre todos os tempos e todos os lugares, entre o distante e o próximo, a alma e o corpo, a música de outras “esferas” e a sonoridade deste mundo: o espírito e a Natureza. Experienciar, enfim, a presença do todo na parte é o que nos permite, de acordo com Thoreau, ouvir a unicidade da harpa que vibra na miríade de vozes da Natureza. “Toda música”, conclui ele, “é, enfim, uma música tocada pela harpa, como se a atmosfera estivesse repleta de cordas vibrando ao som dessa música”94. Eis aqui a mesma ideia manifesta nas expressões do divino ressoar das Musas: onde quer que ouçamos atentamente o que há para ser ouvido, lá ouviremos o retumbar da mousiké, a voz primordial do cosmo. Ao fim, o próprio mundo, diz- nos Thoreau, é uma grande harpa para aqueles que expandiram suas percepções e reconduziram seus sentidos para a vibração da “melodia imortal” (i.e., para a percepção da unidade do sagrado na diversidade do mundo): Há sempre uma bela música vinda da harpa eólica a ser ouvida no ar. Eu ouço agora, por assim dizer, o brando som de trompas distantes nas côncavas mansões do ar superior, um som para tornar todos os homens que o ouvem divinamente insanos [...]. Que harpa grandiosa é este mundo para os ouvidos lapidados! O ouvido ocupado pensa que além do grilo nenhum som pode ser ouvido, mas há uma melodia imortal que pode ser ouvida de manhã, ao meio- dia e à noite, pelos ouvidos capazes de prestar atenção, e de vez em quando este ou aquele homem ouve, uma vez tendo ouvidos que foram feitos para a música95. Se a Natureza é uma harpa, também a alma humana, que nela está refletida, como nos sugere a teoria da correspondência simbólica entre Natureza e espírito, ressoa como o dedilhar deste instrumento. Lembrando Plutarco, para quem a alma é um instrumento tocado pelo divino96, Thoreau afirma, semelhantemente, que a alma do ser humano é mais uma harpa no conjunto musical do poder supremo que a tudo dá voz. 94 Writings, IX, p. 68. 12 de outubro de 1851. No original: “All music is a harp music at length, as if the atmosphere were full of strings vibrating to this music”. 95 Writings, VIII, p. 330. 21 de julho de 1851. No original: “There is always a kind of fine eolian harp music to be heard in the air. I hear now, as it were, the mellow sound of distant horns in the hollow mansions of the upper air, a sound to make all men divinely insane that hear it […]. To ears that are expanded what a harp this world is! The occupied ear thinks that beyond the cricket no sound can be heard, but there is an immortal melody that may be heard morning, noon, and night, by ears that can attend, and from time to time this man or that hears it, having ears that were made for music”. 96 Assim lemos em The Oracles at Delphi No Longer Given in Verse (404c): “the soul is created to be the instrument of God, and the virtue of an instrument is to conform as exactly as possible to the purpose of the agent that employs it by using all the powers which Nature has bestowed upon it [...]”. Cf. PLUTARCH. Moralia. Volume V: Isis and Osiris. The E at Delphi. The Oracles at Delphi No Longer Given in Verse. The Obsolescence of Oracles. Tradução de Frank Cole Babbitt. Cambridge/London: Harvard University Press, 1999, p. 313. 270 A alma humana é uma harpa silenciosa no coro de Deus, cujas cordas precisam apenas ser tocadas pelo sopro divino para rimar com as harmonias da criação. Cada batida do coração está no tempo perfeito da música do grilo [...]97. A alma humana é tocada precisamente como este fio, que agora vibra morosa e suavemente, de modo que o transeunte mal pode ouvi-lo, e logo o som aumenta e vibra com uma tal intensidade, como se fosse fender o fio, tanto quanto a elasticidade e a tensão do fio permitem, e de repente ele evapora e silencia, e embora a brisa continue a soprar sobre ele, nenhuma melodia surge, e o viajante presta atenção em vão98. Essas colocações indicam que Thoreau vê o ser humano como uma “harpa” tocada por poderes que escapam os limites de seu encordoamento. Embora o som que dela ressoa lhe seja próprio, suas cordas são dedilhadas por algo que lhe ultrapassa, mas que, ao mesmo tempo, lhe é imprescindível, pois dá razão de ser à sua existência. Afinal, a harpa só cumpre sua finalidade última quando é tocada pelo harpista. A partir de tudo o que já dissemos, podemos inferir que, seguindo essa linha de pensamento marcadamente religioso, o autor deslinda um processo educativo individual de abertura do corpo à percepção sensitiva de mensagens que se acredita serem a todo instante transmitidas pelos portentos naturais do universo. Como pontua o pensador em outra ocasião, é a experiência de convergência dos sentidos com o pensamento (a percepção com o “ser inteiro”, com “o consentimento e coincidência” de todos os sentidos) o viático para percepção das linguagens primevas do cosmo, a poesia e a música: Quaisquer coisas que eu perceba com meu ser inteiro, essas irei registrar, e será poesia. Os sons que ouço com o consentimento e coincidência de todos os meus sentidos são expressivos e musicais [...]. Dentro de um ou dois dias a primeira mensagem será transportada ou transmitida pelo telégrafo magnético através desta cidade, assim como um pensamento percorre o espaço, e nenhum cidadão do município deve estar ciente disso. A atmosfera está cheia de telégrafos igualmente inobservados. Não estamos confinados aos fios99 de Morse, de House ou de Bain100. 97 Writings, VII, p. 53. 10 de agosto de 1838. No original: “The human soul is a silent harp in God’s quire, whose strings need only to be swept by the divine breath to chime in with the harmonies of creation. Every pulse-beat is in exact time with the cricket’s chant [...]”. 98 Writings, VIII, p. 497. 12 de setembro de 1851. No original: “A human soul is played on even as this wire, which now vibrates slowly and gently so that the passer can hardly hear it, and anon the sound swells and vibrates with such intensity as if it would rend the wire, as far as the elasticity and tension of the wire permits, and now it dies away and is silent, and though the breeze continues to sweep over it, no strain comes from it, and the traveler hearkens in vain”. 99 Thoreau faz aqui referência aos inventores (i) Samuel Morse, já citado; (ii) Royal Earl House (1814– 1895), norte-americano responsável por criar o primeiro telégrafo de impressão; (iii) Alexander Bain (1810–1877), escocês que propôs aperfeiçoamentos aos modelos de telégrafo anteriores. 100 Writings, VIII, p. 442. 2 de setembro de 1851. No original: “Whatever things I perceive with my entire man, those let me record, and it will be poetry. The sounds which I hear with the consent and coincidence of all my senses, these are significant and musical [...]. In a day or two the first message will be conveyed or transmitted over the magnetic telegraph through this town, as a thought traverses 271 A harpa eólica do telégrafo, conforme atinada por Thoreau, uma vez inspirada pelos movimentos não premeditados e incontroláveis da Natureza selvagem, devolve o ouvinte ao tempo mítico do encantamento do mundo, remetendo-o aos deuses, aos bardos e heróis de outrora. Referindo-se à harpa dos ventos propiciada (mas não intencionada) por esta invenção humana, ele assim escreve: Ela me embriaga. Orfeu ainda está vivo. Toda poesia e mitologia revivem. Os espíritos de todos os bardos varrem suas cordas. [...]. É a música mais gloriosa que já ouvi. Todos aqueles bardos revivem e florescem novamente naqueles cinco minutos em Deep Cut. [...]. Não sei ao certo, mas são minhas próprias cordas que estremecem tão divinamente. [...]. A música latente da terra encontrou aqui um respiradouro. Música Eólica. [...]. Não sei, mas isso me fará ler os poetas gregos. Assim, como sempre, os melhores usos das coisas são os acidentais. O Sr. Morse não inventou essa música101. [M]as, por fim, quando algum zéfiro indistinguível sopra, quando sucedem as condições que não são detectadas facilmente, ela se eleva repentina e inesperadamente em melodia, como se um deus a tivesse tocado, e afortunado é o caminhante que tiver a chance de estar ao alcance para ouvir. O mesmo acontece com as liras dos bardos, e na maioria das vezes é apenas um murmúrio fraco e ineficaz que delas provém, o que o leva a esperar a melodia que não se ouve. [...]. Sinto-me enormemente enriquecido por este telégrafo102. Também ouvimos a ressonância entre o ecoar dos fios do telégrafo, a multiplicidade de sons vindos das matas e as cosmovisões primordiais da antiga Grécia em outras construções narrativas do autor em seus diários. Na passagem seguinte, ele relata que as vozes altissonantes das matas lhe faziam pensar em uma nova Musa a se manifestar, pronunciando novos oráculos ao caminhante do tempo presente e pincelando o cenário mitológico da contemporaneidade — permeado, assim como todas as eras, pelas vias mágicas de comunicação entre o espírito space, and no citizen of the town shall be aware of it. The atmosphere is full of telegraphs equally unobserved. We are not confined to Morse’s or House’s or Bain’s line”. 101 Writings, IX, p. 220. 23 de janeiro de 1852. No original: “It intoxicates me. Orpheus is still alive. All poetry and mythology revive. The spirits of all bards sweep the strings. [...]. It is the most glorious music I ever heard. All those bards revive and flourish again in that five minutes in the Deep Cut. [...]. I know not but it is my own chords that tremble so divinely. [...]. The latent music of the earth had found here a vent. Music Aeolian. [...]. I do not know but this will make me read the Greek poets. Thus, as ever, the finest uses of things are the accidental. Mr. Morse did not invent this music”. 102 ibid., p. 247-248. 29 de janeiro de 1852. No original: “but at length, when some undistinguishable zephyr blows, when the conditions not easy to be detected arrive, it suddenly and unexpectedly rises into melody, as if a god had touched it, and fortunate is the walker who chances to be within hearing. So is it with the lyres of bards, and for the most part it is only a feeble and ineffectual hum that comes from them, which leads you to expect the melody you do not hear. [...]. I feel greatly enriched by this telegraph”. 272 humano e a Natureza. Ao ouvir as reverberações daquela corda, sentindo que “cada poro da mata estava cheio de música”, era como se cada fibra fosse afetada e temperada ou cronometrada, rearranjada de acordo com uma nova e mais harmoniosa lei. Cada aumento de volume e mudança ou inflexão de tom permeava e parecia proceder da madeira, da árvore ou da mata divina, como se sua própria substância fosse transmutada. [...]. Como esta árvore selvagem da floresta, despojada de sua casca e aqui estabelecida, alegra-se em transmitir esta música! Quando nenhuma música sai do fio [do telégrafo], ao aproximar meu ouvido eu ouço o murmúrio das entranhas da madeira — a árvore oracular adquirindo, acumulando, a fúria profética. A madeira retumbante! quanto os antigos teriam feito com isso! Ter uma harpa em tão grande escala, circundando a própria terra e tocada pelos ventos de todas as latitudes e longitudes, e essa harpa era, por assim dizer, a bênção manifesta do céu sobre alguma obra do homem! Não deveríamos adicionar uma décima musa às nove imortais? E que a invenção assim honrada e distinguida divinamente — na qual a Musa condescendeu em sorrir — é este o meio mágico de comunicação para a humanidade! Ler que os antigos estendiam um fio ao redor da terra, prendendo-o às árvores da floresta, por meio do qual enviavam mensagens por alguém chamado Eletricidade, pai do Raio e do Magnetismo, mais veloz que Mercúrio, os severos comandos de guerra e as notícias de paz, e que os ventos faziam vibrar este fio de modo que emitia uma música eólica e semelhante a uma harpa em todas as terras por onde passava, como que para expressar a satisfação dos deuses nesta invenção103. A harpa eólica/telégrafa ressoa, então, como mais uma reverberação da “melodia original”, pois também para ela “a Musa condescendeu em sorrir”. Como já havia destacado Sherman Paul, o tordo e a harpa eólica compõem imagens sonoras fundamentais nos escritos thoreauvianos104, o que se deduz a partir de uma passagem como a que se segue. 103 ibid., p. 11-12. 22 de setembro de 1851. No original: “every pore of the wood was filled with music”; “as if every fibre was affected and being seasoned or timed, rearranged according to a new and more harmonious law. Every swell and change or inflection of tone pervaded and seemed to proceed from the wood, the divine tree or wood, as if its very substance was transmuted. [...]. How this wild tree from the forest, stripped of its bark and set up here, rejoices to transmit this music! When no music proceeds from the wire, on applying my ear I hear the hum within the entrails of the wood, — the oracular tree acquiring, accumulating, the prophetic fury. The resounding wood! how much the ancients would have made of it! To have a harp on so great a scale, girdling the very earth, and played on by the winds of every latitude and longitude, and that harp were, as it were, the manifest blessing of heaven on a work of man’s! Shall we not add a tenth Muse to the immortal nine? And that the invention thus divinely honored and distinguished — on which the Muse has condescended to smile — is this magic medium of communication for mankind! To read that the ancients stretched a wire round the earth, attaching it to the trees of the forest, by which they sent messages by one named Electricity, father of Lightning and Magnetism, swifter far than Mercury, the stern commands of war and news of peace, and that the winds caused this wire to vibrate so that it emitted a harp-like and aeolian music in all the lands through which it passed, as if to express the satisfaction of the gods in this invention”. 104 PAUL, 1949, p. 519-520. 273 As notas do tordo-dos-bosques e o som de um acorde vibrante me afetam como muitos sons outrora o fizeram, e de um modo tal que quase todos os sons deveriam me afetar. As melodias da harpa eólia e do tordo-dos-bosques são as mais verdadeiras e sublimes pregadoras que sei ainda restarem sobre esta terra. Não conheço missionários para nós, pagãos, comparáveis a eles. [...]. Aquele que tem ouvidos, ouça. O contato do som com um ouvido humano cuja audição é pura e íntegra é coincidente com o êxtase105. A harpa, o telégrafo, o tordo, e, em suma, as paisagens sonoras da Natureza soavam ao autor como os mais genuínos pregadores para os “pagãos” que, como ele, buscavam contemplar a sacralidade da terra e ouvir a “melodia original” que em toda parte se canta a si mesma. Nas melodias naturais ele encontrava, afinal, um grande “laboratório” movimentado por inúmeros “artesãos” criadores, semelhantes a nós: “Era agradável deitar com nossas cabeças bem rentes à grama, e ouvir o laboratório tilintante e sempre movimentado que ali estava. Milhares de pequenos artesãos em suas bigornas ao longo de toda a noite”106. Igualmente central na literatura thoreauviana é o símbolo do tambor, cuja menção em Walden já destacamos anteriormente107. Esse simbolismo da percussão aparece também de forma muito significativa em A Week, onde a música figura enquanto ligadura que interconecta terra e céu, tempo e eternidade, as paisagens sonoras imanentes e a glória perpétua e transcendente do cosmo. Ouçamos as impressões de Thoreau em seu primeiro livro sobre o tambor ouvido à distância. Tarde da noite, enquanto adormecíamos às margens do Merrimack, ouvimos algum aprendiz batendo um tambor incessantemente, em preparação para uma convocação nacional, como fomos informados, e pensamos no verso — “Quando o tambor batia na calada da noite”108. Poderíamos ter garantido a ele que sua batida seria respondida e que as forças seriam reunidas. Não temas, tu, percussionista da noite; também nós estaremos lá. E ainda assim ele tamborilou no silêncio e na escuridão. Este som errante vindo de uma esfera distante chegava aos nossos ouvidos de tempos em tempos, longínquo, doce e significativo, e nós o ouvíamos com 105 Writings, XII, p. 39. 31 de dezembro de 1853. No original: “The notes of the wood thrush and the sound of a vibrating chord, these affect me as many sounds once did often, and as almost all should. The strains of the aeolian harp and of the wood thrush are the truest and loftiest preachers that I know now left on this earth. I know of no missionaries to us heathen comparable to them. [...]. He that hath ears, let him hear. The contact of sound with a human ear whose hearing is pure and unimpaired is coincident with an ecstasy”. 106 Writings, I, p. 180-181. No original: “It was pleasant to lie with our heads so low in the grass, and hear what a tinkling ever-busy laboratory it was. A thousand little artisans on their anvils all night long”. 107 Cf. p. 200. 108 O verso aqui referido é parte do poema Hohenlinden, do poeta escocês Thomas Campbell (1777– 1844). 274 uma percepção tão livre de preconceitos como se fosse a primeira vez que ouvíssemos algo de fato. [...]. Esses simples sons nos relacionavam com as estrelas. Sim, havia uma lógica neles tão convincente que as percepções reunidas da humanidade jamais poderiam me fazer duvidar de suas conclusões. Detenho meu pensamento habitual, como se o arado tivesse de repente aprofundado seu sulco na crosta do mundo. Como posso eu continuar, quem acabou de passar por cima de uma claraboia sem fundo no pântano da minha vida? De repente, o velho Tempo piscou para mim, — Ah, você me conhece, seu malandro — e alcançaram-me notícias de que ISTO estava bem. Este universo ancestral se encontra em um estado de saúde tão capital que penso sem titubeios que ele nunca padecerá. Curem-se, doutores; por Deus eu vivo109. É especialmente nítido nesse trecho que a percepção de Thoreau na presença da música, como já havia pontuado Sherman Paul, é “mística”. “O som”, afirma o pesquisador, “torna-se um restaurador do espiritual, garantindo uma saúde que é produto do real e que é necessária para a conquista do real”110. A experiência religiosa aqui narrada junto ao percussionista da noite, como a descreve, por sua vez, Alan Hodder, distancia-se do padrão religioso de outros pensadores românticos e transcendentalistas. “A substância da revelação do narrador às margens do rio é um ‘ISTO’ imanente e transcendente, e não uma divindade pessoal como tal”, argumenta o pesquisador. “Ao descrever sua experiência, Thoreau expurgou-a completamente dos últimos vestígios da mitologia bíblica: essa realidade divina não é nem ele nem ela, acima ou além, passado ou futuro, mas está sempiternamente presente aqui e agora”111. A nosso ver, esse relato das impressões do autor junto ao som distante de um percussionista, cujo anúncio é a saúde perene do cosmo e suas manifestações vitais — uma saúde garantida para além do 109 ibid., p. 181, grifo do autor. No original: “Far in the night, as we were falling asleep on the bank of the Merrimack, we heard some tyro beating a drum incessantly, in preparation for a country muster, as we learned, and we thought of the line, — / ‘When the drum beat at dead of night’. / We could have assured him that his beat would be answered, and the forces be mustered. Fear not, thou drummer of the night; we too will be there. And still he drummed on in the silence and the dark. This stray sound from a far-off sphere came to our ears from time to time, far, sweet, and significant, and we listened with such an unprejudiced sense as if for the first time we heard at all. [...]. These simple sounds related us to the stars. Ay, there was a logic in them so convincing that the combined sense of mankind could never make me doubt their conclusions. I stop my habitual thinking, as if the plow had suddenly run deeper in its furrow through the crust of the world. How can I go on, who have just stepped over such a bottomless skylight in the bog of my life? Suddenly old Time winked at me, — Ah, you know me, you rogue, — and news had come that IT was well. That ancient universe is in such capital health, I think undoubtedly it will never die. Heal yourselves, doctors; by God I live”. 110 PAUL, 1949, p. 515 e 516. No original: “mystical”; “Sound becomes a restorative of the spiritual, guaranteeing a health that is product of and necessary to the achievement of the real”. 111 HODDER, 2011, p. 97. No original: “The substance of the narrator’s revelation on the riverbank is an immanent and transcendent ‘IT,’ not a personal deity as such. In depicting his experience, Thoreau thoroughly purges it of the last traces of biblical mythology: this divine reality is neither he nor she, above or beyond, past nor future, but is now timelessly here”. 275 tempo (isto é, pela eternidade) —, é mais um símbolo significativo da íntima ligação, no pensamento religioso de Thoreau, entre Natureza e espírito, sensibilidade e sacralidade. No panorama de nossa discussão, devemos aqui observar que, indo além de seus predecessores, nosso autor radicaliza a proposição transcendentalista segundo a qual o divino permeia o vir a ser do mundo material. Como podemos deduzir a partir da passagem supracitada, pensava o escritor norte-americano que as próprias coisas, em sua condição mesma de coisa, anunciam o caráter transcendente do mundo. Compreende-se, assim, que os mais simples sons, ao naturalmente percorrerem suas ondas vibratórias pela atmosfera, anunciam um ordenamento transcendente que todas as construções lógicas da humanidade reunidas jamais seriam capazes de escrutinar. A glória do milagre que é a vida em suas dinâmicas naturais simplesmente jorra diante de nós: através da experiência fenomenológica da música, o divino irrompe no tempo presente, extravasando a saúde do cosmo e de todas as coisas. Identificando o poder ancestral que a tudo dá vida com o pronome impessoal “ISTO”, o pensador de Concord, para além de uma correspondência que se faça pronunciar pela dualidade, fala em favor da existência de uma unidade radical entre o eu e o isto, o sujeito e o objeto, o espírito e a Natureza, a transcendência e a imanência, a eternidade e a temporalidade. As percussões distantes do tambor noturno comunicam aos seus ouvintes que o sagrado é descoberto no aqui e agora do tempo presente, nas mais simples sensações sonoras. No entender do autor, aí reside a cura para as nossas doenças dos olhos e dos ouvidos, os quais, em suas perturbações sensuais, são incapazes de ver e ouvir as expressões do poder supremo do universo nas faces do velho Tempo. Viver pelo divino não consiste, portanto, em maldizer o mundo e seus fenômenos, mas neles reconhecer o vigor imperecível que movimenta tudo aquilo que a civilização ocidental dividiu na dualidade sujeito/objeto. Concorde à narrativa thoreauviana, é a música o portal de entrada para essa experiência religiosa e poética de unidade. Não por acaso, A Week começa e finaliza nos sons naturais. Na abertura de “Friday”, último capítulo do livro, Thoreau atrela novamente as paisagens sonoras telúricas à saúde do indivíduo em sua integralidade, mencionando o murmurar dos rios como um remédio para a degeneração e o desespero, enfermidades que separam as dinâmicas anímicas das movimentações da Natureza. “O vento na mata ressoava como uma cascata incessante colidindo e rugindo em meio às pedras”, escreve ele, “e chegamos a sentir-nos encorajados pela atividade invulgar dos elementos. Aquele que ouve o murmurar dos rios nestes dias degenerados não se 276 desesperará completamente”112. “Ouvimos o suspiro do primeiro vento outonal [...]. Em todas as florestas, as folhas estavam amadurecendo rapidamente rumo à queda; pois seus veios cheios e seu brilho vivo marcam a folha madura e não a folha serrada dos poetas”, continua o autor. “Já se ouvia o gado mugir desenfreadamente nos pastos e ao longo das estradas, correndo incansavelmente para lá e para cá, como se em apreensão com o ressecamento da grama e a aproximação do inverno. Nossos pensamentos também começaram a sussurrar”. Aqui, igualmente, Thoreau faz corresponder os sussurros interiores do pensamento e as sonoridades exteriores da estação. As folhas das árvores se espalhavam com os ventos, exalando o frescor da terra e irradiando “o solo sob o sopro do vento de outubro”, quando “os espíritos vivos em sua seiva pareciam subir tão alto quanto qualquer rapaz da roça livre naquele dia; e conduziam meus pensamentos para as florestas sussurrantes, onde as árvores se preparam para a campanha de inverno”. Neste ínterim, o “murmúrio do gado nas ruas soa como uma sinfonia rouca ou um contrabaixo ao som do farfalhar das folhas”113. Em meio ao ressoar da terra e das pessoas que nela então habitavam, bem como do ecoar em si mesmo do espírito poético, o autor finaliza o livro com uma nota sobre o silêncio, que comentaremos em nossa conclusão. Em Walden, igualmente, obra que aqui tratamos enquanto materialização do propósito escriturístico de Thoreau, à percepção dos sons é conferida uma ênfase substancial ao longo de seu testemunho pessoal da divina presença na Natureza. A abertura para a orquestra cósmica ocupa um lugar primordial em sua proposta de reeducação da sensibilidade, o que se comprova pela presença de uma seção inteira dedicada ao tema. Um dos momentos centrais do capítulo “Sons” é a narrativa da passagem do trem pela Ferrovia Fitchburg, localizada a quinhentos metros, aproximadamente, do espaço onde Thoreau havia construído sua morada. Nessa obra, como já indicou Ian Marshall, a biofonia (sons naturais) e a antropofonia (sons humanos) das redondezas são mescladas ao longo da narrativa114. Em seu registro, o canto das aves se mistura 112 Writings, I, p. 356. No original: “The wind in the woods sounded like an incessant waterfall dashing and roaring amid rocks, and we even felt encouraged by the unusual activity of the element. He who hears the rippling of rivers in these degenerate days will not utterly despair”. 113 ibid., p. 357-358. No original: “We heard the sigh of the first autumnal wind [...]. In all woods the leaves were fast ripening for their fall; for their full veins and lively gloss mark the ripe leaf and not the sered one of the poets”; “Already the cattle were heard to low wildly in the pastures and along the highways, restlessly running to and fro, as if in apprehension of the withering of the grass and of the approach of winter. Our thoughts, too, began to rustle”; “the ground under the breath of the October wind, the lively spirits in their sap seem to mount as high as any plow-boy’s let loose that day; and they lead my thoughts away to the rustling woods, where the trees are preparing for their winter campaign”; “The low of cattle in the streets sounds like a hoarse symphony or running bass to the rustling of the leaves”. 114 Os termos “antropofonia” e “biofonia” são nomenclaturas forjadas por Bernie Krause, cuja relação com a literatura thoreauviana é trabalhada por Marshall (op. cit.). 277 com os brados do trem, sinal de que o autor, embora um crítico da sociedade moderna, entendia que as vozes humanas são também notações entoadas pela grande orquestra. É o que somos levados a pensar a partir de seu relato dos sons reverberados nas proximidades do Lago Walden: Quando sento à minha janela nesta tarde de verão, há gaviões planando em círculo sobre minha clareira; a revoada de pombos selvagens, voando aos pares e trios na diagonal de minha vista ou se empoleirando irrequietos nos ramos do pinheiro branco atrás de minha casa, empresta voz ao ar; uma águia- pescadora faz ondular a superfície vítrea do lago e sobe com um peixe; uma marta sai furtiva do brejo na frente de casa e pega uma rã na margem; o juncal se inclina sob o peso dos papa-arrozes adejando daqui para ali; e na última meia hora ouço o estrépito dos vagões de trem, ora morrendo na distância, ora revivendo como o ruflar de uma perdiz, levando passageiros de Boston para o campo115. Em uma tentativa de enxergar nas atividades ferroviárias um filete de encantamento do mundo, Thoreau ensaia atribuir ao fenômeno da emergência dos trens e das ferrovias um caráter mítico e fabuloso, o que se faz expressar nas denominações “semideus viageiro”, “cavalo de ferro”, “cavalo alado” e “dragão flamejante”. Para tanto, ele elabora uma descrição da circulação das locomotivas tecendo referências simbólicas às demais vozes da Natureza: o apito do trem é como o grito de um gavião, seu movimento é como o de um cometa, seus ruídos são como os do trovão. O que poderiam dizer os poetas modernos sobre esse engenho humano? É o que se pergunta o poeta de Concord quando faz menção à “nova Mitologia”: O silvo da locomotiva penetra minhas matas no inverno e no verão, soando como o grito de um gavião planando sobre o terreiro de algum agricultor, informando-me que muitos impacientes negociantes urbanos estão entrando no perímetro da cidade ou que intrépidos comerciantes rurais estão vindo do lado contrário. Quando se reúnem sob o mesmo horizonte, dão seu grito de alerta para que o outro saia do caminho, num apito que às vezes ressoa pela extensão de dois povoados. Olhe a comida chegando, campo! Suas rações, camponeses! E não existe ninguém que seja tão independente em seu sítio que possa recusá-las. [...]. Quando encontro a locomotiva com seu séquito de vagões partindo num movimento planetário — ou melhor, feito um cometa, [...] com sua nuvem de vapor como um estandarte ondeando atrás de si guirlandas douradas e prateadas, como aquelas nuvens felpudas que tantas vezes vejo lá no alto do céu desdobrando-se à luz — como se este semideus viageiro, este propulsor de nuvens fosse em breve tomar o céu crepuscular como libré de seu séquito; quando ouço o cavalo de ferro fazendo ecoarem os montes com seu resfolego de trovão, abalando a terra com suas patas, soltando fogo e fumaça pelas ventas (que espécie de cavalo alado ou dragão flamejante introduzirão na nova Mitologia, não sei dizer), é como se agora a terra tivesse uma raça digna de habitá-la116. 115 THOREAU, 2019, p. 116. 116 ibid., p. 117-118. 278 Ao fim e ao cabo, o autor reconhece que a civilização industrial é substancialmente dependente daquilo que o trem proporciona: seu deslocamento de pessoas e mercadorias. Por isso mesmo, a história da locomotiva compõe uma nova cena na “mitologia” da humanidade, mostrando-se na condição de um símbolo central da vida moderna, que nos sinaliza algo de fundamental sobre a existência nesta era e os modos com os quais se conversa com o mundo. No entanto, poderíamos dizer que é essa nova tecnologia que nos faz dignos de vivermos uma boa vida sobre a terra? Afinal, a opulência do trem chega a nos fazer pensar que, mediante aos avanços tecnológicos dos tempos atuais, “é como se agora a terra tivesse uma raça digna de habitá-la”. Embora pretenda conferir aos mecanismos e movimentos da linha ferroviária um traço de encantamento (o que se prova pela personificação do trem, um método de aproximação), neles Thoreau não encontra o heroísmo e a inocência da Natureza. “Se a nuvem que paira sobre a locomotiva fosse a transpiração de feitos heroicos, ou benéfica como a nuvem que paira sobre os campos do agricultor”, alega ele, “os elementos e a própria Natureza acompanhariam alegremente os homens em suas erranças e lhe fariam escolta”117. E assim o escritor prossegue seu raciocínio por detrás das roupagens da imaginação: O cavalariço do cavalo de ferro levantou cedo nesta manhã de inverno, à luz das estrelas entre as montanhas, para alimentar e arrear seu corcel. O fogo também foi avivado logo cedo, para lhe acender o calor vital e colocá-lo em movimento. Se a atividade fosse tão inocente como é matutina! [...]. Ou quiçá, de noite, ouço-o em seu estábulo bufando a energia supérflua do dia, para acalmar seus nervos e resfriar o fígado e a cabeça, e ferrando num leve cochilo durante algumas horas. Se a atividade fosse tão heroica e imponente como é prolongada e incessante!118 Em sua resenha crítica Paradise (to be) Regained [Paraíso (a ser) Reconquistado] (1843), Thoreau já havia argumentado que não é a reforma tecnológica a impulsionadora da reforma moral, e tampouco a garantidora de uma vida verdadeiramente frutífera neste mundo. John Adolphus Etzler (1791–1846), em sua obra The Paradise within the Reach of all Men, without Labor, by Powers of Nature and Machinery (1833), objeto da resenha crítica em questão, defendia um argumento a favor da possibilidade de transformar a terra em um paraíso por meio das tecnologias modernas. Posicionando-se em um ângulo de visão diametralmente oposto ao do engenheiro alemão, nosso autor assim declara: “A fé, na verdade, é toda a reforma 117 ibid., p. 118. 118 ibid., p. 118-119. 279 necessária; é em si mesma uma reforma”119. Se Etzler pensava que a sociedade poderia dominar o universo natural e fazer do mundo um paraíso pelo poder das máquinas, o pensador de Concord, enxergando a Natureza, tal qual ela se apresenta, como a verdadeira panaceia para o corpo e para a alma, assim argumentava: Não há dúvida de que os simples poderes da natureza, apropriadamente dirigidos pelo homem, a tornariam uma fonte de saúde e um paraíso [...]. Nossas panaceias curam apenas poucos males, nossos hospitais gerais são privados e exclusivos. Devemos estabelecer outra Higeia do que aquela que é agora adorada120. Pensava Thoreau que, tal como filhos ingratos que esquecem da mãe que lhes gestou, criou e proveu com nutrientes e morada, a grande maioria de seus contemporâneos tratava a Natureza com desrespeito. Sua opinião, perfeitamente apropriada para a chamada era do Antropoceno, era de que, dentre os diversos reinos da Natureza selvagem, “o homem é o animal mais feroz e mais cruel”. Quão mesquinha e grosseiramente tratamos a natureza! Não poderíamos ter um trabalho menos brutal? O que mais essas belas invenções sugerem — o magnetismo, o daguerreótipo e a eletricidade? Não podemos fazer mais do que cortar e desbastar a floresta? — não podemos auxiliar em sua economia interior, na circulação da seiva? Hoje em dia trabalhamos de maneira superficial e violenta. Não suspeitamos o quanto poderia ser feito para melhorar nossa relação com a natureza animada; que bondade e cortesia primorosa pode nesta relação haver121. Paralelamente a essa crítica à pretensão de tornar a vida um paraíso por meio da dominação da Natureza pelas invenções humanas, conforme desenvolvida no início da carreira intelectual de Thoreau, em Walden o trem é descrito como a maquinaria que dá o ritmo das empreitadas citadinas, prometendo uma vida paradisíaca. A repercussão de seus ruídos mata 119 THOREAU, Henry David. Paradise (to be) Regained. In: ______. Cape Cod and Miscellanies. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 4, p. 280-305, à página 300. No original: “Faith, indeed, is all the reform that is needed; it is itself a reform”. 120 ibid., p. 282. No original: “No doubt the simple powers of nature, properly directed by man, would make it healthy and a paradise [...]. Our panaceas cure but few ails, our general hospitals are private and exclusive. We must set up another Hygeia than is now worshiped”. 121 ibid., p. 284. No original: “man is the fiercest and cruelest animal”; “How meanly and grossly do we deal with nature! Could we not have a less gross labor? What else do these fine inventions suggest, — magnetism, the daguerreotype, electricity? Can we not do more than cut and trim the forest? — can we not assist in its interior economy, in the circulation of the sap? Now we work superficially and violently. We do not suspect how much might be done to improve our relation to animated nature even; what kindness and refined courtesy there might be”. 280 adentro figura como um símbolo da vida vivida em multidão e barulho, um agente obstrutor do fluir do aperfeiçoamento de nosso gênio interior. Em determinado momento de seu percurso, escreve o autor, a locomotiva se detém “em alguma brilhante estação na vila ou na cidade, onde se reúne uma multidão sociável e ruidosa, no momento seguinte detendo-se no Pântano Sinistro, assustando corujas e raposas”122. Ao longo dos dias, conta-nos Thoreau, “ouço o som abafado do sino da locomotiva atravessando a barreira de vapor de suas respirações geladas, que anuncia que os vagões estão chegando [...]”123. A passagem que encerra suas ponderações acerca do trem é, a nosso ver, a mais significativa. Apesar de sua tentativa de atribuir alguma grandeza mitológica ao acontecimento ferroviário, sua impressão, ao contrário, é a decadência da vida pastoril no mundo do trem. Aos pastores e agricultores, diz-nos o autor, carece o enraizamento da vida no solo e o usufruto da verdadeira prosperidade da terra: E ouçam! Aí vem o vagão de gado trazendo o gado de um milhar de morros, redis, estábulos e currais ao ar livre, os boiadeiros com suas varas, e os pastorzinhos no meio de seus rebanhos, só faltando os pastos, e rodopiando como folhas que os ventos de setembro sopram nas montanhas. O ar se enche com os balidos dos bezerros e das ovelhas, e o tropel dos bois, como se fosse um vale pastoril que estivesse passando. Quando o velho carneiro-guia agita o cincerro, as montanhas realmente saltam como carneiros, e as colinas como carneirinhos. E no meio, também, uma carga de tocadores de gado, agora iguais ao gado tocado, finda sua profissão, mas ainda afetando-se a suas varas inúteis como insígnia do ofício. Mas e seus cães, onde estão? [...]. Não vão presenciar o desfecho. A profissão deles também se acabou. Sua fidelidade e sagacidade agora não bastam. Vão se esgueirar de volta para seus canis, em desgraça, ou talvez retornem à vida selvagem e fundem uma liga com o lobo e a raposa. Assim a vida pastoril de vocês passou e foi embora, num tropel rodopiante. Mas o sino toca, e tenho de sair dos trilhos e deixar os vagões passarem [...]. Não vou embaçar meus olhos nem estragar meus ouvidos com a fumaça, o vapor e o assobio124. O cão, como sabemos, figura entre nós enquanto um símbolo ancestral da amizade e da lealdade. Quando Thoreau diz que os cães já não acompanham mais os pastores, ele parece 122 THOREAU, 2019, p. 119. 123 ibid., p. 120, grifos do autor. Devemos notar, todavia, que, apesar de enxergar uma atmosfera carregada a pairar sobre o trem — a exploração do ser humano e dos demais seres da terra — nela o autor também encontra certo prazer, especialmente no que diz respeito ao aguçamento de seu olfato. “Sinto-me renovado e dilatado quando o trem de carga passa por mim num estrépito, e sinto o cheiro de todo o caminho [...]” (ibidem). Daí torna-se nítido que, apesar de suas críticas às dinâmicas civilizacionais de seu tempo, estas também ocupam um espaço em sua transmissão poética das linguagens da Natureza. “Essa carga de velas de lona rasgadas é mais legível e interessante agora do que convertida em papel e livros impressos”, pretexta o autor. “Quem escreveria com tanta vividez a história dos temporais que eles enfrentaram quando se fizeram em trapos? São as primeiras provas de um livro que não precisam de nenhuma revisão” (ibid., p. 120-121). 124 ibid., p. 122-123, grifos acrescentados. 281 estar querendo indicar que, tal como citado anteriormente, a Natureza não faz escolta ao homem moderno em suas atividades alheias à inocência e à beneficência da terra. Por mais que forneçam, indubitavelmente, suas vantagens à civilização, perante os mecanismos do trem, sua fumaça, vapor e assobio, ficamos, ao fim e ao cabo, com os olhos embaçados e os ouvidos doloridos. Em contraste com os ruídos da locomotiva, ouvimos o ressoar da harpa no horizonte contemplado desde as águas límpidas do Lago Walden. Aqui, novamente, percebemos o sibilar da consonância entre o divino, o natural e o cultural. O badalar dos sinos das igrejas, ouvido à distância, funde-se com a superfície da floresta, misturando-se com o farfalhar dos pinheiros — mais uma entonação da harpa eólica, ou, como ele cá denomina, a “lira universal”. Assim lemos: Às vezes, nos domingos, eu ouvia os sinos, o sino de Lincoln, Acton, Bedford ou Concord, quando o vento era favorável, uma melodia tênue, suave e como que natural, que valia a pena trazer para esse ermo. A uma certa distância além das matas, esse som adquire uma certa vibração, como se as agulhas dos pinheiros no horizonte fossem as cordas de uma harpa tangida por ele. Todos os sons ouvidos à máxima distância possível produzem um único efeito, uma vibração da lira universal, tal como a atmosfera, ao tingir de azul uma cordilheira longínqua, torna-a interessante ao nosso olhar. Neste caso, vinha- me uma melodia que fora dedilhada pelo ar e se convertera em cada folha e em cada agulha da mata, aquela porção de som que os elementos tinham acolhido, modulado e ecoado de vale em vale. O eco, em certa medida, é um som original, e aí reside sua magia e seu encanto. Não era uma simples repetição do que valia a pena repetir das badaladas do sino, mas, em parte, era a voz da própria mata; as mesmas notas e palavras triviais cantadas por uma ninfa dos bosques125. Desde tempos remotos, o eco possui um rico simbolismo. Na mitologia grega, como já mencionamos anteriormente, Eco é a ninfa que, acompanhada por Pan, imita os sons das matas, fazendo ecoar uma voz que aos antigos soou misteriosa e divina. Nas meditações thoreauvianas, o eco é também compreendido enquanto a capacidade da Natureza de devolver ao ouvinte um toque de sublimidade, ainda que mediante a emissão de sons “profanos”. “Parece que a Natureza por muito tempo gentilmente ignorou a profanação do homem”, afirma ele em seu diário. “A madeira ainda ecoa gentilmente os golpes do machado, e quando os golpes são poucos e raros, eles adicionam um novo charme a uma caminhada. Todos os elementos se esforçam para naturalizar o som”126. Essa imagem sonora representa, igualmente, o poder da 125 ibid., p. 124, grifos acrescentados. 126 Writings, VII, p. 299, grifo do autor. 25 de dezembro de 1841. No original: “It does seem as if Nature did for a long time gently overlook the prophanity of man. The wood still kindly echoes the strokes of 282 Natureza de fazer perpetuar, como que de uma forma profética, as reverberações de um fundamento que lhe antecede. Nos termos do autor, os ecos das paisagens sonoras da terra são como que emissários dos “oráculos” da Natureza: Qual a importância de qualquer som se a Natureza não o ecoar? Ele não prevalece. Desvanece assim que é pronunciado. [...]. Seria uma missão encantadora, reconfortante e animadora percorrer o país em busca deles — regiões que enunciam, falam, vocalizam, oraculares, retumbantes, sonoras, profundas, proféticas; regiões para se fundar um oráculo, lugares para oráculos, para os ouvidos sagrados da Natureza127. O eco aventa, enfim, a presença de uma língua original da Natureza que a todas as vocalizações reúne — a unidade suprema de uma linguagem transparecida pelas diversas particularidades sonoras. Para nosso autor, na experiência de escuta atenta do ecoar das vozes da mata, ouve-se as multiplicidades sônicas vibrarem em uma unidade consonante. A esse respeito, auxilia-nos aqui o paralelo entre a percepção de Thoreau e a reflexão do transcendentalista Christopher Pearse Cranch (1813–1892), para quem, por meio das diferentes modulações provenientes da voz suprema, é enunciada a unidade divina a partir da qual as múltiplas modulações são ecoadas: e quando, enfim, a voz clama no deserto, a voz que é designada pela Providência de Deus para ser a grande intérprete das verdades ocultas, [...] então a luz irrompe: — das colinas ao redor — dos espaços devastados da sociedade — através dos mares — de linguagem em linguagem, os ecos daquela voz reverberam. E esses ecos não são, felizmente, sem sentido, respostas ou repetições estéreis, mas são transformados em novas modulações, em ricas variações como as de alguma melodia da montanha, e constantemente se tornando mais ricas e variadas, à medida que se espalham circulando ao redor do mundo128. the axe, and when the strokes are few and seldom, they add a new charm to a walk. All the elements strive to naturalize the sound”. 127 Writings, VIII, p. 82. Setembro de 1850. No original: “Of what significance is any sound if Nature does not echo it? It does not prevail. It dies away as soon as uttered. [...]. It would be a pleasant, a soothing and cheerful mission to go about the country in search of them, — articulating, speaking, vocal, oracular, resounding, sonorous, hollow, prophetic places; places wherein to found an oracle, sites for oracles, sacred ears of Nature”. 128 MILLER, op. cit., p. 300-301. No original: “and when at length the voice comes crying in the wilderness, the voice which is appointed in God’s Providence to be the great interpreter of hidden truths, [...] then does the light break forth: — from the hills around — from the waste places of society — from across wide seas — from language to language, the echoes of that voice reverberate. And these echoes are not, most happily, unmeaning, barren responses or repetitions, but are turned into new modulations, into rich variations as of some mountain melody, and constantly growing richer and more varied, as they spread circling round the world”. 283 Voltemos ao texto de Walden. O capítulo “Sons” se encerra com os símbolos sonoros propiciados pelos noitibós, pelas corujas e pelas rãs, cujas paisagens sonoras acenam à imaginação do poeta, que delas extrai uma mensagem espiritual. O leitor deve aqui se atentar para o fértil simbolismo que esses exemplos específicos detêm: todos eles são sons típicos da noite, entoados ao lume do luar. No cenário simbólico de nossa civilização, a lua geralmente alude àquilo que não é visto às claras, de imediato; diz-nos algo acerca das profundezas não desveladas à luz solar. O trem, por outro lado, ecoa principalmente no clarão do dia, e seu simbolismo, conforme a leitura aqui proposta, remete àquilo que está explícito e que se faz abertamente audível aos olhos e ouvidos das pessoas (embora com a fumaça e ruídos próprios de um “semideus”, como o chama Thoreau). Por meio dessas paisagens sonoras da noite e seus simbolismos, Thoreau transmite sua mensagem poético-profética da unidade entre todas as coisas, contrastando-a com a ocupação de seus contemporâneos com os sinais da locomotiva e seus anúncios, displicentes para com a Natureza oculta, que pede para ser de alguma forma decifrada. Ao contrário de embaçarem os olhos e obstruírem os ouvidos, esses animais noturnos aqui destacados, também eles partícipes do sagrado, informam-nos da nossa condição originária de mais um agrupamento de filhos da Natureza. Os noitibós entoavam suas “vésperas”129; as corujas lamentavam as sombras em “nênias”130 e “hinos”; as rãs-touro cantavam seu “cânone”. Como o autor já havia dito em A Week, também as demais comunidades da terra, afinal, buscam liberdade para louvar a Deus ao seu próprio modo131. Ouçamos, mais de perto, os cânticos desses seres conforme versados por Thoreau. Os noitibós, já mencionados em nossa discussão anterior sobre Walden, “metodicamente às sete e meia da noite, depois de passar o trem vespertino”, “entoavam suas vésperas” precisamente “cinco minutos depois do horário em que o sol se punha, todas as noites”. O escritor ouvia esses pássaros cantando de lugares distintos das matas, “quiçá algum com um compasso de atraso em relação ao outro [...]”. “Cantavam a intervalos a noite toda”, narra o ouvinte, “e logo antes do amanhecer continuavam tão musicais como sempre”132. A ênfase aqui é no ritmo dos noitibós — mais musical, como podemos deduzir, do que aquele do trem; aliás, suas paisagens sonoras se presentificam justamente “depois de passar o trem”. Seu ritmo é conduzido pelo ritmo do sol, que dita o movimento de todas as coisas sobre a terra — e não pelo ritmo do comércio que dita as dinâmicas civilizacionais, como a locomotiva. 129 A “véspera”, no catolicismo, consiste num momento litúrgico realizado no período vespertino. 130 “Nênia”, entre os romanos, era uma elegia fúnebre oferecida à deusa homônima. 131 Cf. Writings, I, p. 52: “The bristling burdock, the sweet-scented catnip, and the humble yarrow planted themselves along his woodland road, they, too, seeking ‘freedom to worship God’ in their way”. 132 THOREAU, 2019, p. 124 e 125. 284 No silêncio de outros pássaros, o autor ouvia as movimentações sonoras das corujas. No ocidente, como sabemos, essa ave simboliza a sabedoria, o que remete, em boa medida, à cosmovisão grega, para a qual a coruja representa o domínio divinal da deusa Atena, bem como o legado intelectual da cidade de Atenas. No entanto, a esse animal está associado também o lamento, o que indica a própria raiz etimológica da palavra inglesa “owl”, derivada do latim ululare133, termo que “significa ‘lamento’ ou ‘uivo de luto’”, tendo em vista que “o grito da coruja soa lúgubre para a maioria dos ouvidos”134. Em Walden, na construção de seu simbolismo da coruja, Thoreau segue o sentido originário da palavra, apresentando esse animal como um símbolo do lamento da Natureza. Na medida em que corresponde à realidade espiritual humana, a coruja aparece como o símbolo de nossas melancolias e de nossas sombras. Nesses paralelismos simbólicos construídos a partir das paisagens sonoras presentes nas terras do lago autóctone, Thoreau expressa simultaneamente a multiplicidade (“variedade”) e a unidade (“morada comum”) da Natureza, através da qual conhecemos mais profundamente a nós mesmos e ao nosso fundamento. Uma vez representante de nossos pesares e nebulosidades, o chilrear das corujas figura, na descrição do autor, junto ao reino dos mortos de Hades/Plutão, ao lamento fúnebre e às carpideiras, convocadas a prantear por alguma tragédia das moradas telúricas e seus arrebatamentos selvagens. Assim são reverberados os gritos da rasga-mortalha (cujo canto lúgubre, inclusive, é bem conhecido entre nós brasileiros como agouro do padecimento): Quando outros pássaros estão quietos, as corujas rasga-mortalha assumem a toada, como carpideiras entoando seu antigo ulular. Têm um grito lúgubre realmente benjonsoniano. Sábias bruxas da meia-noite! Não é o honesto e direto quiquiriqui dos poetas, mas, sem brincadeira, uma cantilena fúnebre extremamente solene, a mútua consolação de amantes suicidas lembrando as dores e os prazeres do amor celeste nos bosques infernais. Mesmo assim gosto de ouvir seus lamentos, os doloridos responsos, trinados de uma ponta a outra da mata; lembrando-me por vezes a melodia e as aves canoras; como se fosse o lado triste e sombrio da música, os pesares e suspiros que querem ser cantados. São os espíritos e alentos, os desalentos e augúrios melancólicos, de almas decaídas que outrora, em forma humana, andavam à noite pelo mundo e praticavam os feitos das trevas, agora expiando seus pecados com suas nênias e hinos plangentes no cenário de suas transgressões. Eles me dão uma nova percepção da variedade e da capacidade daquela natureza que é nossa morada comum. Uh-u-u-u-u nunca tivesse eu nasci-i-i-i-do!, suspira uma do lado de cá do lago [...]135. 133 Thoreau estava consciente dessa raiz etimológica: “I hear the booting of an owl, nocturnus ululatus, whose haunts he is laying waste” (Writings, IX, p. 275. 3 de fevereiro de 1852). 134 FERBER, op. cit., p. 147. No original: “means ‘lament’ or ‘howl in mourning’”; “the cry of the owl sounds mournful to most ears”. 135 THOREAU, 2019, p. 125, grifos do autor. 285 O mocho-orelhudo, espécie de coruja amplamente espalhada pelo globo, era também ouvido pelo caminhante de Concord. Essa, na verdade, é uma ave afamada: no Antigo Testamento (Levítico, 11:12-19) ela é listada como um dos animais impuros que são proibidos ao consumo. Para Thoreau, se o canto do mocho pode parecer melancólico quando ouvido de perto, à distância seu tom adorável ecoa mais vividamente. Eu também ouvia a uivante serenata do mocho-orelhudo. De perto você imagina que é o som mais melancólico na Natureza, como se ela quisesse criar um estereótipo e dar lugar permanente em seu coro aos gemidos agonizantes de um ser humano [...]. Mas agora um outro responde, lá de longe na mata, numa toada que se torna realmente melodiosa por causa da distância — Uu uu uu, uue uu; e na verdade, de modo geral, ela sugeria apenas associações agradáveis, fosse ouvida de dia ou de noite, no verão ou no inverno136. Esse contraste entre a proximidade e a distância não parece ser em vão. Ouvindo a voz do mocho-orelhudo com nossas perspectivas já incrustadas (“de perto”), ela pode soar melancólica e sombria; quiçá impura. No entanto, quando adotamos “uma ampla margem” para a nossa vida137 e nos distanciamos das concepções já estabelecidas pelos painéis sapienciais preponderantes, talvez sejamos capazes de ouvir uma outra mensagem entoada por seu linguajar. Alegra-me que existam corujas. Elas que soltem uivos idiotas e maníacos em lugar dos homens. É um som admiravelmente talhado para os pântanos e as matas sombrias que nenhum dia ilumina, sugerindo uma natureza vasta e rudimentar que os homens não reconhecem. Elas representam as sombras densas e os pensamentos insatisfeitos que todos temos. Durante o dia inteiro o sol brilhou na superfície de algum pântano selvagem, onde o único abeto vermelho se ergue com barbas-de-velho pendendo dos galhos, e acima pequenos gaviões voam em círculos, e o chapim cicia entre as coníferas, e a perdiz e o coelho se esquivam por sob elas; mas agora desponta um dia mais lúgubre e condizente, e uma outra raça de criaturas desperta para exprimir ali o sentido da Natureza138. Em meio ao ressoar das carroças passando pelas pontes, dos latidos dos cães e do mugir das vacas, ouvia-se, igualmente, o coaxar das rãs. Recontando sua experiência como ouvinte desses anfíbios, o “poeta-naturalista”, usufruindo de uma linguagem simbólica, relata-nos que toda a margem do lago ressoava com a trompa das rãs-touro, os robustos espíritos de antigos ébrios e foliões, ainda impenitentes, tentando cantar um 136 ibid., p. 125-126, grifos do autor. 137 ibid., p. 113. 138 ibid., p. 126. 286 cânone em suas escuras águas estígias — que as ninfas do Walden me perdoem a comparação, pois, se ali não existem mais plantas aquáticas, as rãs ainda existem —, que bem gostariam de manter as alegres regras de seus antigos banquetes, embora suas vozes tenham se enlouquecido e adquirido solene gravidade, num falso arremedo de jovialidade, e o vinho tenha perdido o sabor, tornando-se um simples álcool que lhe dilata a pança, e não é o suave inebriamento que vem afogar as lembranças do passado, e sim mera saturação, encharcamento e inchamento. A mais graduada, com o papo numa folha em formato de coração, servindo de guardanapo para a baba que lhe escorre das fendas da boca, aqui na margem do norte, engole um enorme trago da água antes desdenhada, e passa adiante a taça com a exclamação tr-r-r-oonc, tr-r- r-oonc, tr-r-r-oonc!, e imediatamente sobrevoa o lago a repetição da mesma senha [...]; e quando esse ritual percorre todo o circuito das margens, o mestre de cerimônias exclama com satisfação tr-r-r-oonc! [...], até que o sol vem dissipar a névoa matinal, e apenas a matriarca continua ali, sem entrar no lago, de vez em quando urrando troonc, em vão, e parando à espera de uma resposta139. Na literatura clássica ocidental, conforme pontua Michael Ferber, as rãs geralmente foram empregadas como um símbolo para denotar inferioridade e jocosidade. No Antigo Testamento (Êx. 8:1-15), a infestação de rãs é uma das pragas lançadas aos egípcios por Moisés. Para João de Patmos, o profeta apocalíptico, as rãs representam espíritos impuros e demoníacos (Ap. 16:13-14)140. As rãs, diz a deusa Atena na Batracomiomaquia, “não são criaturas equilibradas”, pois atrapalharam seu sono com o “barulho”141. Os poetas latinos Horácio e Juvenal referem-se a esses animais como fontes de veneno (Epodos 5.18; Sátiras 1.69-72), padrão simbólico repetido por Shakespeare em Macbeth (4.1.6-9). John Milton, por sua vez, atrela esses anfíbios ao demônio e à tentação de Eva (Paraíso Perdido 4.800), exprimindo a concepção medieval em torno das rãs e dos sapos, compreendidos como “símbolos do diabo ou de vários pecados, especialmente gula e avareza”142. Visivelmente, esse protótipo de inferioridade e sensualidade é repetido por Thoreau em sua descrição simbólica da cerimônia das rãs. Nos rascunhos de seus diários, ele assim escreve: Deitado com a janela aberta, nestas noites quentes e até abafadas, ouço de vez em quando o trompete sonoramente musical das rãs-touro, de alguma margem distante do rio, como se o mundo estivesse entregue a elas. […]. Quando se acorda assim na calada da noite e se ouve esta trombeta sonora de longe no 139 ibid., p. 127, grifos do autor. 140 FERBER, op. cit., p. 83. 141 PSEUDO-HOMERO. Batracomiomaquia: A Guerra das Rãs e dos Ratos. Introdução e tradução de Rodolfo Pais Nunes Lopes. Coimbra: Fluir Perene, 2008, p. 56. 142 FERBER, op. cit., p. 83. No original: “symbols of the devil or of several sins, especially gluttony and avarice”. 287 horizonte, você não precisa ir a Dante para ter uma ideia das regiões infernais143. Similarmente, em Walden, as rãs soam como espíritos de “ébrios e foliões”, tais quais humanos embriagados; cantoras que têm seu palco nas águas do Estige, famoso rio do Hades na mitologia grega. Por fazer referência à rã-touro, uma espécie nativa da própria América do Norte, somos levados a indagar se, quando menciona a decadência de seus banquetes pela ausência de plantas aquáticas, Thoreau não está aí forjando um símbolo da civilização norte- americana na modernidade144, cujos integrantes, em seu entender, ceifam a raiz de seus (con)decorados em prol do progresso, mas acabam se tornando mais roucos e sombrios em sua linguagem e em seu interior, tendo em vista que enchem cada vez mais sua “pança” com alimentos que não nutrem, rendendo apenas flatulências e má-digestão. Nada mais apropriado do que fazermos aqui uma breve digressão a fim de traçarmos um paralelo entre o simbolismo thoreauviano cá desenhado e a renomada comédia As Rãs, de Aristófanes (c. 450–388 a.e.c.), obra aludida diretamente por Thoreau em seus diários145. A peça As Rãs (405 a.e.c.) foi elaborada em um período conturbado da política grega, que se sucedeu em decorrência da Guerra do Peloponeso (431-404 a.e.c.), contexto marcado pelo anseio por restauração da grandiosidade ateniense146, o que se faz ver nitidamente no texto do comediante em questão. O mote da encenação é a missão heroica, imputada ao deus Dioniso por ele próprio (aqui decadente e fantasiado com os adereços de Hércules), de resgatar do Hades Eurípedes, seu poeta trágico predileto. Devemos notar que, à época da escrita da obra, poucos anos haviam se passado desde a morte dos famosos poetas trágicos que deram glória à cultura grega. O desejo do deus do teatro, por conseguinte, é reconquistar, assim podemos dizer, a honraria de seu próprio patronato. Quem poderia a divindade da tragédia e do vinho louvar com suas bênçãos após a morte de Ésquilo, Eurípides e Sófocles? “Sinto falta de um poeta de talento”, confessa Dioniso, em seus trajes jocosos, a Hércules. “É que uns já não existem, e os 143 Writings, X, p. 124-125. 20 de junho de 1852. No original: “Lying with my window open, these warm, even sultry nights, I hear the sonorously musical trump of the bullfrogs from time to time, from some distant shore of the river, as if the world were given up to them. […]. When you wake thus at midnight and hear this sonorous trump from far in the horizon, you need not go to Dante for an idea of the infernal regions”. 144 As garrulices de seus contemporâneos, a propósito, são certa vez comparadas aos chilros dos anfíbios: “I see men like frogs; their peeping I partially understand” (Writings, XV, p. 145. 1 de dezembro de 1856). 145 Cf. Writings, XIX, p. 195. 15 de março de 1860: “Am surprised to hear from the pool behind Lee’s Cliff the croaking of the wood-frog. [...]. Their note is somewhat in harmony with the rustling of the now drier leaves. It is more like the note of the classical frog as described by Aristophanes, etc”. 146 Cf. a introdução à tradução da obra aqui empregada. 288 que existem não prestam” (70)147. Faz-se mister perceber que Aristófanes provoca aí uma grande troça com o deus do teatro, que se mostra nitidamente alquebrado — uma expressão, talvez, para o declínio que o poeta enxergava na sociedade de seu tempo. Isso se faz ver no memorável coro das rãs-cisnes, anfíbios que, embora consagrem seu canto a Dioniso, nem mesmo reconhecem o deus quando de sua travessia no barco de Caronte, o barqueiro que conduz as almas para o mundo dos mortos. Eis aí mais uma manifestação da decadência da poesia nos tempos posteriores ao triunvirato da arte trágica. Neste contexto, deve-se notar, igualmente, que o coro das rãs é ouvido somente no momento em que o viajante começa a manejar os remos do barco. Dioniso, todavia, sem saber remar e não podendo acompanhar o ritmo das rãs desde o princípio, com elas se enerva e, ao fim, é visto apenas como mais uma alma a atravessar o submundo. Assim chiam as rãs: Brekekekex, coax, coax! Brekekekex, coax, coax! Filhas lacustres das nascentes, entoemos, ao som da flauta, o clamor dos nossos hinos, a doçura do nosso canto, coax, coax, que em honra de Dioniso Niseu, filho de Zeus, lá nos pântanos, nós cantamos, quando, na euforia do festim, nas sagradas Marmitas, avança, para o meu santuário, o povo em multidão. Brekekekex, coax, coax! (205-215)148. Zombando de seus ruídos, Dioniso não é por elas louvado — ao contrário, as rãs, que nem mesmo reconhecem o deus orgiástico149, recordam em seus cânticos do poder das Musas, de Pã e de Apolo. DIONISO Ora um raio que vos parta, mais ao vosso coax! Não sabem outra coisa senão o coax! RÃS (redobrando de intensidade no coaxar) E com muita honra, ouviste, ó tu que metes o bedelho onde não és chamado! Por isso gozo da estima das Musas de belas liras, e de Pã de pés de cabra, que se delicia com o toque da flauta. Mais ainda, sou os encantos de Apolo, o citarista, graças ao canavial que sustento, nos pântanos, para a construção de sua lira. Brekekekex, coax, coax! (225-235)150. 147 ARISTÓFANES. As Rãs. Tradução, introdução e comentário de Maria de Fátima Silva. São Paulo: Annablume, 2014, p. 43. 148 ibid., p. 60. 149 O termo “orgia” (do grego όργιο) denotava, originalmente, rituais de mistérios relacionados, principalmente, ao deus Dioniso/Baco, bem como símbolos místicos (GLARE, op. cit., p. 1326). 150 ARISTÓFANES, op. cit., p. 61-62. 289 Crucial aqui é compreendermos que, no contexto da comédia de Aristófanes, a decadência da poesia corresponde ao declínio da civilização. A busca de Dioniso pelos poetas já falecidos representa, nesse sentido, a procura por resgatar a era de ouro de sua própria cultura. Afinal, como somos sugeridos diversas vezes ao longo da peça, são os poetas os verdadeiros educadores da sociedade na qual se inserem: Ora aí tens o tipo de assuntos com que se devem preocupar os poetas. Senão observa bem como, desde o princípio, os verdadeiramente bons se mostraram úteis. Orfeu ensinou-nos a celebrar os mistérios e a evitarmos os sacrifícios; Museu, a cura das doenças e os oráculos; Hesíodo, o trabalho da terra, as estações das colheitas e as tarefas agrícolas; e o divino Homero, onde foi ele buscar fama e glória senão às coisas úteis que ensinou [...]? (1030-1035)151. Thoreau parece querer dizer algo similar com sua descrição das cerimônias ritualísticas das rãs. Nos simbolismos que aparecem em sua obra-prima, somos remetidos ao ideal do vinho antes saboroso, ao Dioniso outrora reconhecido. Na alvorada da modernidade, porém, o vinho já não tem seu sabor original, transformou-se em líquido que “dilata a pança” e que já não mais presentifica “o suave inebriamento que vem afogar as lembranças do passado”, mas “mera saturação, encharcamento e inchamento”. Isto é: dilatamos a extensão de nossos domínios sobre a Natureza, mas não evoluímos no que diz respeito à profundidade de nosso conhecimento de seus agenciamentos (e, portanto, do conhecimento de nós mesmos). Os poetas, como já mencionamos anteriormente a partir das impressões de A Week, trancaram-se no comodismo de suas casas, de modo que já não podemos ouvir em seus dizeres o retumbar das vozes sagradas da Natureza152 (assim como as rãs-cisnes, que dão o ritmo da viagem ao mundo de lá, já não testificam a presença do deus por elas honrado desde os primórdios). Se o vinho do banquete genuinamente conduzido pelo deus era doce e incutia a embriaguez divina, sugere o poeta de Walden, o banquete que resta ao desfrute dos modernos aparenta uma jovialidade simulada, que não conhece, como outrora, a busca da sabedoria enquanto percurso de aperfeiçoamento da alma em comunhão com os poderes da Natureza. Sim, o vinho era saboroso naqueles tempos pois era fermentado pelos próprios deuses, cujas movimentações animavam a Natureza, a ela conferindo um elo umbilical com o ser humano, como canta Novalis em seus afamados Hinos à Noite (1800): Rios, árvores, flores e animais sentido humano possuíam. O vinho derramado por uma visível plenitude da juventude — um deus nos vinheiros — uma 151 ibid., p. 120-121. 152 Cf. p. 115. 290 deusa amorosa e maternal, ascendendo em plenos feixes dourados — a sagrada embriaguez do amor, um doce dever para a mais bela das deusas — A vida, como a primavera, ribombou através dos séculos, uma festa brilhante sem fim dos filhos do céu e dos habitantes da terra — todas as raças honravam, como crianças, a chama terna e incomparável como aquilo que há de mais superior no mundo (5)153. As rãs, todavia, para além do simbolismo do banquete aqui retratado, são também lembradas por Thoreau em Walden como precursoras da primavera154, e, portanto, como símbolo de uma nova resposta ao chamado da Natureza. A partir daí parece-nos cabível interpretar que as rãs, em sua ambiguidade fundamental, assim como são representativas dos mundos inferiores, são anunciadoras de um renascer de nossas concepções. “Thoreau vê as rãs”, argumenta Jane Bennett, “como mestras na arte de viver a plenitude do momento presente, uma habilidade que o peregrino deve trabalhar para desenvolver-se”155. Sob esse prisma, quando simboliza essas cerimônias religiosas das rãs, Thoreau nos faz recordar de um famoso hino do Ṛgveda, atribuído ao sábio védico Vasiṣṭha Maitrāvaruṇi, denominado, justamente, Rãs (VII. 103): Tendo permanecido imóveis por um ano, (como) brâmanes seguindo seus mandamentos, as rãs proferiram um discurso apressado por Parjanya156 (1). [...]. Quando cai a chuva sobre elas, que se encontram ansiosas e sedentas ao iniciar da estação chuvosa, dizendo “akhkhala” [/repetindo sílabas] como um filho para um pai (em aulas), uma delas se aproxima da outra que está falando (3). [...]. Uma vez que uma delas pronuncia o discurso da outra, como um aluno repete a fala de seu professor, 153 NOVALIS. Hymns to the Night. Traduzido por Dick Higgins. 3. ed. New York: McPherson & Company, 1988, p. 25. Na tradução consultada: “Rivers, trees, flowers and animals had human sense. The wine poured by a visible fullness of youth — a god in the grapes — a loving, maternal goddess, growing upwards in full golden sheaves — love’s sacred intoxication a sweet duty to the fairest of god ladies — Life, like spring, thundered down through the centuries, an endless bright feast of heaven’s children and earth’s inhabitants — all races honored, child-like, the tender, thousand-fold flame as the highest thing in the world”. 154 THOREAU, 2019, p. 296. 155 BENNETT, Jane. Thoreau’s Nature: Ethics, Politics, and the Wild. Lanham: Rowman and Littlefield, 2002, p. 57. No original: “Thoreau sees frogs as masters in the art of living in the fullness of the present moment, a skill that the sojourner must work to develop”. 156 Deus védico das chuvas e tempestades. No bramanismo, carrega o epíteto devarāja (“deus dos deuses”) (WERNER, op. cit., p. 79). 291 (então) toda uma parte delas fala como se estivesse em uníssono [...] (5)157. Ainda que haja toda uma discussão sobre ser a associação dos brâmanes às rãs fruto de ironia ou seriedade por parte do autor, reconhece-se que, uma vez detentoras de um simbolismo relacionado à fertilidade e à regeneração, as rãs são aqui abordadas paralelamente aos sacerdotes no sentido de indicar, simbolicamente, o renascimento propulsionado pelos exercícios religiosos da cultura em questão158. Como na imagem simbólica de Thoreau, as rãs são aqui representadas em uma cerimônia ritual, na condição de religiosos desempenhando seu ofício a fim de saudar a nova estação. Podemos ouvir tal hieróglifo musical também nesse sentido superior, no qual esses anfíbios denotam a renovação propiciada pelas águas primordiais que caem dos céus e abundam os lagos e pântanos que são sua morada. Testifica- se no simbolismo thoreauviano das rãs, por conseguinte, uma ambiguidade. Tal como esses animais das terras e das águas, o ser humano pode voltar-se ao estado de “saturação, encharcamento e inchamento” ou ao caminho das “alegres regras de seus antigos banquetes”159, onde o vinho tem sabor e os deuses do céu circulam pela terra. As rãs, como aqui entendemos, simbolizam os próprios seres humanos, que, assim como esses animais, são parte da terra e partícipes de sua potencialidade de regeneração — afinal, também a nós se dispõem as águas originais que banham o mar da vida. A Natureza, tal qual a matriarca das rãs, poderíamos pensar, não adentra o lago e não se junta inteiramente ao banquete degradado; urrando seu chamado, a ancestral de todos os seres aguarda por uma resposta que não é proclamada. Onde estarão os jovens poetas e amantes dos antigos banquetes? A matriarca de todas as coisas chama. *** 157 The Rigveda, op. cit., v. 2, p. 1013. Na tradução consultada: “Having lain still for a year, (like) brahmins following their commandment, / the frogs have spoken forth a speech quickened by Parjanya. […]. / When it has rained on them, who are yearning and thirsting, when the rainy season has come, / saying “akhkhala” [/repeating syllables] like a son to a father (at lessons), one goes up close to the other who is speaking. [...]. / Once one of them speaks the speech of the other, like a pupil that of his teacher, / (then) a whole section of them speaks as if in unison […]”. 158 Assim comentam os tradutores da edição do Ṛgveda aqui empregada na introdução ao hino: “Although there has been much debate about whether this hymn satirizes priests by comparing them to frogs or instead is to be taken with deadly seriousness, the truth no doubt lies somewhere in between. The poet obviously took great delight in his skill at matching frog behavior with ritual behavior and is unlikely to have been unaware of the potentially comic aspects of the comparison; however, the explosive fertility of the frogs provides a model for similar increase in the human sphere, and therefore the comparison has a serious purpose” (ibid., p. 1012). 159 Cf. p. 286. 292 Buscamos mostrar aqui que o andarilho norte-americano, a partir de sua experiência sensitiva, criava, imaginativamente, símbolos indicadores da correspondência ontológica entre Natureza e espírito, painel de sua busca religiosa pela unidade com a canção suprema do universo. Nos simbolismos de suas paisagens sonoras, nosso autor conduz um casamento equidoso entre a razão e o entendimento, o poder imaginativo e os “germes” da sensibilidade, a espiritualidade e a corporeidade. Ouvir a voz sutil da transcendência nas linguagens da imanência — eis aí o ritual de iniciação e também o galardão do poeta-profeta, um ouvinte das vozes sagradas entoadas pelas memórias gloriosas do universo. E em que sentido, deveríamos ainda perguntar, a melodia propagada pelas vibrações da terra ecoa na (re)educação da sensibilidade para ver e ouvir (e, em suma, experienciar com a plenitude do corpo) a presentificação do sagrado no aqui e agora do momento presente? Ao final do tópico “Leis Superiores”, de Walden, Thoreau nos dá uma pista sobre a correlação entre a música e a perspectiva de educação da sensibilidade que ele havia aventado em A Week. Se vocês querem evitar a impureza e todos os pecados, trabalhem com empenho, mesmo que seja limpando um estábulo160. A natureza é difícil de vencer, mas deve ser vencida. [...]. Todo homem é o construtor de um templo, chamado corpo, dedicado ao deus que ele cultua [...]. Somos todos escultores e pintores, e nosso material é nossa própria carne, nosso sangue e nossos ossos. Toda nobreza logo começa a refinar os traços de um homem; toda mesquinharia ou sensualidade, a embrutecê-los161. É nítido aqui o paralelo com a citação de Novalis presente em On Heroes, Hero- Worship, & the Heroic in History, de Carlyle, passagem na qual Thoreau provavelmente se inspirou para escrever a citação acima: “‘Não há senão um Templo no mundo’, diz Novalis, ‘e esse Templo é o Corpo do Homem. Nada há de mais sagrado do que essa Forma superior’”. “‘Curvar-se perante os homens’”, continua ele, “‘é uma reverência feita a esta Revelação na Carne. Nós tocamos o Céu quando colocamos nossas mãos em um corpo humano’”162. Caminhando por uma via semelhante, também a proposta thoreauviana de educação dos sentidos tem por finalidade o emprego do corpo como templo do sagrado. Parece-nos, nesse sentido, que a natureza que “deve ser vencida” (a natureza com “n” minúsculo) é a sensualidade, 160 Novamente aqui a referência ao mito de Apolo servindo aos rebanhos e limpando os estábulos do rei Admeto. O ofício poético, afinal, é também um exercício de purificação do corpo e da alma/mente. 161 THOREAU, 2019, p. 213. 162 CARLYLE, op. cit., p. 8-9. No original: “‘There is but one Temple in the world,’ says Novalis, ‘and that Temple is the Body of Man. Nothing is holier than this higher Form. Bending before men is a reverence done to this Revelation in the Flesh. We touch Heaven, when we lay our hands on a human body’”. Essa citação aparece também em Sartor Resartus (p. 162). Thoreau tinha familiaridade com ambas as obras de Carlyle. 293 “impureza” alheia ao sagrado que no corpo faz morada. Trata-se de vencer nossa tendência para o envergamento das potencialidades superiores da sensibilidade ao longo de nossa inserção no mundo, debilidade cá identificada com a ideia cristã de “pecado”: a queda do paraíso. Thoreau não parece fazer referência aqui à Natureza em seu sentido superior (a Natureza criadora/natura naturans), mas, antes, à vitória no processo de construção e criação a partir de nosso estado bruto, não lapidado (i.e., ainda não esculpido e pintado). Trabalhar em prol do refinamento simultâneo do corpo e da alma faz-se imprescindível nesta jornada espiritual que nosso autor, na reunião de panoramas soteriológicos diversos, presenteia a si mesmo. Aos modos de um puritano não declarado, Thoreau, como pode perceber qualquer pessoa que tenha lido apenas sua obra mais famosa, era avesso à “sensualidade”, fosse ela a poluição do corpo com os estímulos ilusórios da sociedade ou a degradação da mente com a preguiça intelectual. Ele era, contudo, um herdeiro do puritanismo que primava pela purificação dos sentidos e das faculdades intelectivas a fim de perceber através delas o divino na Natureza. “É importante notar”, alerta-nos Bennett, “que Thoreau faz uma nítida distinção entre sensualidade [...] e sensibilidade. Claramente, os sentidos ocupam um lugar importante em sua ética”. Citando Jeffrey Steele, a pesquisadora argumenta que “pode-se até dizer que os textos de Thoreau são concebidos como um meio capaz de formar e alterar a percepção, no qual a ‘formação do sentido’ ocupa um lugar central”. “Thoreau”, prossegue Bennett, “busca forjar uma nova sensibilidade, sempre atenta aos detalhes circundantes — mas a sensualidade é uma droga que embota os sentidos”163. Como já havia dito também Sherman Paul, na literatura thoreauviana os “sentidos se tornam canais para o sensível, não para o sensual, mas para a imaginação assim como para o intelecto”164. No panorama da discussão aqui traçada, poderíamos dizer que a sensibilidade é o emprego sagrado da Natureza e de nós mesmos, e que a sensualidade, por sua vez, é o uso profano. A lapidação da sensibilidade descobre a unidade entre a Natureza e o espírito, apresentada simbolicamente à imaginação quando da aproximação corpórea dos ciclos da Natureza. A sensualidade, por sua vez, não absorve a plenitude que aos nossos sentidos e intelecto são ofertadas, mas separa o corpo e a alma do todo. 163 BENNETT, op. cit., p. 38. No original: “It is important to note that Thoreau makes a sharp distinction between sensuality [...] and sensibility. Clearly, the senses hold an esteemed place within his ethic; it can even be said that Thoreau’s texts are designed as ‘a medium capable of forming and altering perception, in which the ‘formation of the sense’ chiefly takes place’. Thoreau seeks to forge a new sensibility, one ever alert to the details of one’s surroundings — but sensuality is a drug that dulls the senses”. Seu exemplo aqui é a passagem de “Reading”, em Walden, onde o autor afirma que a sensualidade intelectual é a preguiça mental. 164 PAUL, 1949, p. 512. No original: “senses became channels for the sensible not the sensuous, for the imagination as well as the intellect”. 294 A partir daí, como já demonstramos no decorrer de nosso percurso, o autor estabelece uma profunda interconexão entre espiritualidade e corporeidade, entendendo a sensibilidade, a fisicalidade do corpo, como porta de entrada da percepção do divino no aqui e agora do tempo presente. Seu intuito é traçar uma crítica às futilidades da civilização americana contemporânea, esquecida da divindade interior; instigadora da profanação da Natureza em prol do acúmulo de dólares nos bolsos e da degradação do templo de nosso próprio corpo pelo trabalho e pelas ofertas sensuais que nos fazem esquecer de nossa real essência, e que não auxiliam no aperfeiçoamento da sensibilidade (mas, antes, torna-a refém da sensualidade que não entende o corpo como um templo onde operam leis superiores). Busca-se riqueza material, superficialidades e sensualidades, mas a verdadeira riqueza que a natureza criada proporciona para a alma jaz esquecida. “Amiúde somos lembrados de que, fosse-nos concedida a riqueza de Creso”, escreve Thoreau na conclusão de Walden, “nossos objetivos ainda deveriam ser os mesmos, e nossos meios essencialmente os mesmos”. “A riqueza supérflua”, afinal, “só pode comprar supérfluos. Não é preciso dinheiro para comprar o necessário à alma”165. “Mais do que o amor, do que o dinheiro, do que a fama, deem-me a verdade”, clama ele adiante. Pontuando o desvão entre a luxuosidade sensual que cobre o corpo e o encalço sapiencial pela verdade e pela sinceridade (a busca poética pelo vinho dos deuses que na simplicidade da Natureza transborda), ele assim continua: Sentei a uma mesa onde havia ricos pratos, vinho em abundância e serviço obsequioso, mas não havia sinceridade nem verdade; e saí com fome daquela mesa pouco hospitaleira. [...]. Falaram-me sobre a idade do vinho e a fama da safra; mas eu pensava num vinho mais velho, mais novo e mais puro, de uma safra mais gloriosa, que eles não tinham e não poderiam comprar. O estilo, a casa, os jardins, o “entretenimento” nada são para mim166. Para além desse contexto espaço-temporal (uma exigência, aliás, do fazer e ser poético), podemos também compreender, conforme sinalizam continuamente as histórias dos místicos, dos santos e dos poetas-profetas entre o ocidente e o oriente, que onde quer que tenha existido o ser humano, houve a necessidade de optar entre a sensualidade e a sensibilidade, entre aquilo que socialmente convencionou-se denominar “luxo” e a verdadeira riqueza, que está para além de convenções. Diz-nos o sábio libanês Khalil Gibran (1883–1931) num de seus fragmentos: Aquele que vive em meio às agitações da cidade nada sabe sobre a vida dos aldeões da montanha. Somos arrastados para a corrente da existência urbana, 165 THOREAU, 2019, p. 310. 166 ibid., p. 312. 295 até que esquecemos os ritmos tranquilos da vida simples no campo: colher no outono, descansar no inverno, imitando a natureza em todos os seus ciclos. Somos mais ricos do que os aldeões em prata ou ouro, mas eles são mais ricos em espírito (TM-ST-53)167. Dito isso, torna-se evidente para nós que os símbolos thoreauvianos, sejam eles mitopoéticos ou musicais, têm em vista a recondução da sensibilidade à infância e à inocência da vida, reconhecida nos gregos e em outras culturas antigas, que com a Natureza conversavam e dela ouviam mensagens vindas do alto — comunicadoras da simplicidade da riqueza do espírito, para usarmos os termos de Gibran, e não do luxo da prata e do ouro. Longe de legar ao corpo um lugar secundário, Thoreau o eleva a uma plena correspondência com o espírito e os sentidos mais sutis do ser humano. O corpo é o templo de nossos ideais e de tudo aquilo que atribuímos aos reinos celestes; é a superfície que absorve os estímulos de encantamento propiciados pela terra. Na sensibilidade corpórea principia a bem-aventurança da redenção (do latim redimere: obter novamente em troca de determinado valor; cumprir uma promessa168), percurso que nos ressarce o real sentido e valor de nossos “germes divinos”. Para nos redimirmos e alcançarmos a cura dos sentidos, é necessário doarmos em troca um valor que não vem de fora, mas das profundezas de dentro. Este é o sentido primordial da redenção. Afinal, como somos levados a pensar junto a Thoreau, não é possível tornar-se um devoto da Natureza sem cumprir devidamente seus votos de autoaperfeiçoamento: “os dons do Céu”, de fato, como diz ele próprio, “nunca são totalmente gratuitos”169. Na passagem de Walden seguinte à supracitada, o autor apresenta a imagem de um trabalhador do campo que ouve a música distante de uma flauta, cujo “som se harmonizava com seu estado de espírito”170. Na medida em que as notas do instrumento se mesclavam com os pensamentos do roceiro, cansado de um dia árduo de labuta, seu pensamento se elevava. Por meio de seu corpo, ele pressentia o anúncio da redenção — uma mensagem, na verdade, vinda 167 GIBRAN, Kahlil. The Treasured Writings of Kahlil Gibran. Editado e traduzido por Andrew Dib Sherfan, Anthony R. Ferris e Martin L. Wolf. Philosophical Library/Open Road, 2011, n. p. No original: “He who lives amid the excitements of the city know nothing of the life of the mountain villagers. We are swept into the current of urban existence, until we forget the peaceful rhythms of simple country life, reap in autumn, rest in winter, imitating nature in all her cycles. We are wealthier than the villagers in silver or gold, but they are richer in spirit”. 168 Alguns dos sentidos possíveis de redimō: “To buy back (something previously disposed of); to buy as a replacement”; “to recover (something lost, etc.) by purchase”; “To purchase with the intention of acquiring control, buy up”; “To make good, pay the cost of; to fulfil (a promise)” (GLARE, op. cit., p. 1753). 169 “the gifts of Heaven are never quite gratuitous. The constant abrasion and decay of our lives makes the soil of our future growth” (Writings, I, p. 375). 170 THOREAU, 2019, p. 213. 296 de sua própria interioridade. Ainda que continuasse pensando no trabalho e nos afazeres seguintes, seu corpo, através das vibrações sonoras desse instrumento ancestral, experienciava uma transformação de natureza transcendente: uma “descamação”, uma troca de pele, uma redenção pela arte — e, mais especificamente, pela música do cosmo, vinda de outras esferas, do fundamento que rege as artes das Musas: Era apenas a descamação de sua pele, que estava se soltando continuamente. Mas as notas da flauta lhe chegavam aos ouvidos vindas de uma outra esfera, diferente de onde ele trabalhava, e sugeriam trabalho para faculdades adormecidas dentro dele. Brandamente afastaram a rua, a cidade, o estado onde ele vivia. Uma voz lhe disse: Por que você fica aqui e vive esta vida mesquinha e cansativa, quando lhe é possível uma existência gloriosa? Estas mesmas estrelas cintilam em outros campos. — Mas como sair desta condição e realmente migrar para lá? A única ideia que lhe ocorreu foi praticar alguma nova austeridade, deixar a mente lhe entrar no corpo e redimi-lo, e tratar a si mesmo com respeito sempre maior171. A prática de “austeridades” que permitam o polimento da sensibilidade é a via disciplinar que, no pensamento religioso thoreauviano, conduz a essa relação de aprofundamento do respeito próprio. A versão thoreauviana da self-reliance emersoniana dispõe, assim, de “exercícios religiosos” que aventam o bailado harmônico do corpo e da alma. A caminhada junto às terras, o velejo junto aos rios, a observação e estudo atento das movimentações naturais, a leitura dos poetas-profetas, a escrita que principia na invocação das Musas — todos esses são exercícios redentores. É este autoaprimoramento a batalha que deve ser ganha, a natureza que deve ser vencida, expressões das quais se vale Thoreau para representar simbolicamente a vitória pessoal em sua própria tarefa constante de “descamação da pele”. Marchando ao ritmo da Natureza, o indivíduo é conduzido à luta essencial da vida: não aquela que lhe impõe a sociedade com costumes que refletem concepções parciais, mas aquela que o encaminha para os sendeiros simultaneamente sombrios e luminosos do conhecimento de si mesmo enquanto mais um fruto particular da unidade reunida pela mãe terra e pelo pai céu. Os hieróglifos musicais aqui trazidos à baila aparecem, então, junto aos hieróglifos mitopoéticos, como símbolos não apenas da ligação entre Natureza e espírito, mas da possibilidade de sua reconciliação no aqui e agora deste mundo. Este também é, no fim das contas, um caminho de “austeridade”, sendeiro de sacrifícios aos deuses trilhado junto a “exercícios religiosos” que (re)conduzem o corpo e a alma ao compasso superior que a todo 171 ibid., p. 214. 297 som dá o tom. O oposto disso, como nos sugere o escritor de Concord, é o desespero frente à vida e a busca por redenção em um mundo que não este. “Será que o mundo está chegando ao fim? Pergunte aos cabozes”, diz Thoreau em seu diário de 1852. “Enquanto os peixes desovarem, glória e honra para as pessoas de sangue-frio que se desesperam! Enquanto as ideias forem expressas, enquanto a fricção criar fulgor, enquanto os telégrafos vibrantes produzirem música com suas harpas, não precisamos de redentores”172. Os sons da terra, repercutindo o “som original”, convidam-nos à libertação de nossas concepções limitadas. Eis aí mais um indicativo de que a apreciação estética da Natureza, para Thoreau, está diretamente relacionada a um desenvolvimento ético. Com isso queremos dizer que, no horizonte da correspondência simbólica entre Natureza e espírito, a condução da sensibilidade à percepção do sagrado em todas as coisas requer, necessariamente, um aperfeiçoamento moral que leve o humano a compreender-se como mais uma parte de um éthos que se estende às múltiplas comunidades da terra: esta é a verdadeira riqueza, o mais impressionante milagre, e a única salvação possível para o desespero e a lamentação daqueles que estão alienados do paraíso terreno e que se agarram às engenhosidades humanas. Esta dinâmica que não é apenas epistemológica, mas existencial, é a verdadeira redenção: trata-se da libertação operada por meio de uma experiência linguística de conversar com os simbolismos do mundo; da libertação da dualidade que separa o espírito e a Natureza, uma libertação que começa no aprofundamento da sensibilidade. Os hieróglifos musicais, afinal, são símbolos libertadores: anunciam um sendeiro soteriológico de afinação do corpo e da alma em sua relação ancestral com a materialidade da mãe terra e com a sublimidade do pai céu, em uma unidade harmônica que não se faz explicar, mas tão-somente vivenciar e transmitir poeticamente. Por intermédio das paisagens sonoras imanentes e seus simbolismos — a língua vernácula do cosmo —, (re)conectamo-nos à nossa ancestralidade originária, que faz corresponder Natureza e espírito. Como diz o “poeta-naturalista”, “os acentos da verdade certamente serão ouvidos na terra como no céu”173, pois para todos, indistintamente, eles se disponibilizam, em qualquer tempo e em qualquer lugar. Junto ao retumbar de um “tambor distante” (diferente do 172 Writings, IX, p. 417-418. 15 de abril de 1852. No original: “Is the world coming to an end? Ask the chubs. As long as fishes spawn, glory and honor to the cold-blooded who despair! As long as ideas are expressed, as long as friction makes bright, as long as vibrating wires make music of harps, we do not want redeemers”. 173 Writings, I, p. 102. No original: “the accents of truth are as sure to be heard at last on earth as in heaven”. 298 “tintinnabulum” de seus contemporâneos174), Thoreau, buscando seguir esse compasso, se recorda de que é nesta vida e neste mundo, tais quais revelados nos milagres da Natureza, que se deve buscar ouvir a glória musical do universo. Tendo no vigor da Natureza a expressão da necessidade de se viver no momento presente, talvez nosso autor estivesse querendo dizer algo de semelhante àquilo que cantou o poeta e filósofo persa Omar Khayyām (1048–1131), quando, em sua obra poética Rubáiyát, ele brinda ao brilho daquilo que nos é ofertado no aqui e agora deste mundo: Dizem que há uma vida infinda, de esplendores, de deleite e de glórias, Que o Destino concede a seus eleitos; E eu penso: “O vinho só, nos deixa satisfeitos… Quero o sossego e não…promessas ilusórias; Oh! Como é doce ouvir (bem longe…) O rufo dos tambores!...” (LXXXV)175. 174 “Muitas vezes, em meu descanso no meio do dia, chega a meus ouvidos um indistinto tintinnabulum lá de fora. É o barulho de meus contemporâneos. Meus vizinhos me contam suas aventuras com damas e cavalheiros famosos, as personalidades que encontraram à mesa de jantar; mas essas coisas me interessam tanto quanto o conteúdo do Daily Times” (THOREAU, 2019, p. 310, grifo do autor). 175 KHAYYĀM, Omar. Rubáiyát. Tradução de J. B. Mello e Souza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2013, p. 111. 299 3.3. “Prelúdio de uma nota” Sempre tive consciência dos sons da natureza que meus ouvidos nunca podiam ouvir — que eu captava apenas o prelúdio de uma nota. Ela sempre recua conforme eu avanço. Lá atrás, bem longe, estão ela e seu significado. Não serão essa fé e essa expectativa ouvidas por si mesmas? Nunca vi até o fim, nem ouvi até o fim; mas a melhor parte não foi vista nem ouvida. Sou como uma pena flutuando na atmosfera; por todos os lados há uma profundidade insondável. (Henry David Thoreau, Journals)1. Ensinou-nos Schafer que uma reflexão sobre os sons deve sempre terminar com uma meditação acerca do silêncio2. Na sociedade contemporânea, todavia, repudia-se o silenciar, que, “para o homem ocidental, equivale à interrupção da comunicação. Se alguém não tem nada para dizer, o outro falará. Daí a garrulice da vida moderna, que se estende a toda sorte de algaravia”. “Quando não há som”, no entanto, “a audição fica mais alerta”, diz-nos o compositor. “É a mesma ideia expressa por Rilke em suas Elegias de Duíno, quando ele fala [...] [‘A notícia ininterrupta de silêncio se constrói’]. O silêncio, na verdade, é notícia para os que possuem clariaudiência”3. Também para Thoreau, o silêncio está vinculado ao despertar da audição, à “clariaudiência”, que, para além das vibrações sonoras exteriores, permite à pessoa atenta ouvir notícias que não provêm dos sons e dos discursos (ou seja: da exterioridade), mas, antes, da própria interioridade do ouvinte. Como já demonstrou John Cage, o silêncio exterior não existe. Afinal, mesmo se inseridos em um ambiente projetado para obstruir a vibração de quaisquer ondas sonoras, como é o caso de uma câmara anecoica, percebemos que os movimentos interiores de nossos corpos permanecem soando e ecoando em nossos ouvidos, prova de que os sons (que, para Cage, são sinônimo de música) estão por todas as partes, e de que não podemos simplesmente eliminá- los. “NÃO HÁ NADA COMO O SILÊNCIO”, atesta o músico norte-americano. “ENTRAI EM UMA CÂMARA ANECOICA E ESCUTAI VOSSO SISTEMA NERVOSO 1 Writings, VII, p. 321, grifos acrescentados. 21 de fevereiro de 1842. No original: “I was always conscious of sounds in nature which my ears could never hear, — that I caught but the prelude to a strain. She always retreats as I advance. Away behind and behind is she and her meaning. Will not this faith and expectation make to itself ears at length? I never saw to the end, nor heard to the end; but the best part was unseen and unheard. I am like a feather floating in the atmosphere; on every side is depth unfathomable”. 2 SCHAFER, op. cit., p. 29. A preocupação de Schafer volta-se primordialmente às consequências da poluição sonora na sociedade moderna. Ainda assim, é nítido ao longo de sua discussão que à sua investigação acerca das paisagens sonoras desde os primórdios até o séc. XX é atribuído um “caráter lírico” (ibid., p. 30). 3 ibid., p. 354 e 358. 300 FUNCIONANDO E VOSSO SANGUE CIRCULANDO”4. Thoreau, outrossim, estava ciente de que o verdadeiro silêncio, na verdade, é um silêncio interior. O encontro com o silêncio, portanto, como cá referido, não denota o estar num lugar desprovido de sons. Antes, o que está aqui em questão é uma experiência existencial que se desdobra na interioridade. Volvendo-se ao sentido primordial do silêncio no encerramento de suas meditações junto ao curso dos rios da Nova Inglaterra em A Week5, o escritor assim nos diz: À medida que a melhor sociedade se aproxima cada vez mais da solidão, o mais excelente discurso finalmente cai no silêncio. O silêncio é audível para todos os homens, em todos os momentos e em todos os lugares. O silêncio vem a ser quando ouvimos o interior, e o som quando ouvimos o exterior. [...]. Todos os sons são seus servos e fornecedores [...]. Eles são tão familiares com o Silêncio que nada mais são senão bolhas em sua superfície, que imediatamente estouram [...]; uma débil expressão do Silêncio [...]. Na medida em que o fazem, e que são engrandecedores e intensificadores do Silêncio, os sons são harmonia, e a mais pura melodia6. Para nosso autor, o Silêncio, aqui transcrito com “S” maiúsculo, é o fruto da audição atenta do interior. A lapidação de nossa sensibilidade, uma vez harmônica com a batalha em prol do aprimoramento espiritual — temática que nos ocupou até aqui —, assim como nos possibilita ouvir a orquestra da Natureza (os sons exteriores que circulam pela terra), permite- nos, igualmente, a audição das movimentações interiores (as mensagens do silêncio). Na verdade, como lemos na passagem acima, todos os sons cósmicos nada mais são senão “servos e fornecedores” do Silêncio que por detrás de todas as coisas está. Consideradas em sua relação com a harmonia silenciosa do cosmo, as vibrações sonoras do mundo são “bolhas em sua superfície”. Tal silenciamento que a orquestra da Natureza nos oferta a todo instante é passível 4 CAGE, John. Composição como processo. In: ______. Silêncio. Tradução de Beatriz Bastos e Ismar Tirelli Neto. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019, p. 18-56, à página 51, grifos no original. 5 Em abril de 1838, Thoreau proferiu, no Concord Lyceum, sua primeira palestra, denominada “Society”. Tendo em vista as repercussões positivas de seu discurso, ele logo começou a pensar em uma próxima preleção, nomeada “Sound and Silence”. O projeto, todavia, não saiu do papel naquela época, e alguns de seus trechos foram reaproveitados em A Week (HARDING, 1965, p. 72-73). Segundo Seybold (op. cit., p. 32), esse ensaio foi fruto da experiência do autor “with Homer, with nature, and within himself”. O rascunho dessas passagens, intitulado “Some scraps from an essay on ‘Sound and Silence’ written in the latter half of this month, December, 1838”, está registrado no primeiro volume dos diários de Thoreau. Cf. Writings, VII, p. 64-69. 6 Writings, I, p. 418. No original: “As the truest society approaches always nearer to solitude, so the most excellent speech finally falls into Silence. Silence is audible to all men, at all times and in all places. She is when we hear outwardly, sound when we hear outwardly. [...]. All sounds are her servants, and purveyors [...]. They are so far akin to Silence that they are but bubbles on her surface, which straightway burst [...]; a faint utterance of Silence [...]. In proportion as they do this, and are heighteners and intensifiers of the Silence, they are harmony and purest melody”. 301 de experimentação para todas as pessoas “em todos os momentos e em todos os lugares”. Sob a ótica thoreauviana, devemos educar nossa sensibilidade para que ouçamos as comunicações que vêm de fora assim como aquelas que vêm de dentro. Compreende-se, portanto, que o propósito de Thoreau ao estudar o universo natural e suas paisagens sonoras era, ao fim, ouvir o que suas próprias dimensões anímicas tinham a dizer. Na íntima relação entre o som e o silêncio, tal qual aqui elaborada, encontramos, mais uma vez, a expressão de sua formulação singular da correspondência entre Natureza e espírito, exterioridade e interioridade, imanência e transcendência. Como podemos depreender da passagem supracitada, assim como é no exercício do silêncio que as grandes revelações são operadas, é também através dele que o conteúdo da mensagem poética-profética é transmitido. Por isso, diz ele, quando a sociedade se aproxima da solidão (i.e., quando cada indivíduo se aproxima cada vez mais de seu próprio universo interior, em oposição aos ditames circunstanciais da civilização), “o mais excelente discurso finalmente cai no silêncio”. Silenciando as amarras de nossas preconcepções (os preceitos advindos unicamente da tradição), ouvimos os oráculos que a Natureza profere dentro de nós, e, assim, tornamo-nos capazes de repercutir o “estrondo infinito” que somente a experiência de silenciamento, “o refúgio universal”, o “bálsamo para todos os nossos desgostos”, pode nos proporcionar. O silêncio é o refúgio universal, a consequência de todos os discursos monótonos e todos os atos tolos, um bálsamo para todos os nossos desgostos [...]. O orador abandona sua individualidade e é mais eloquente quando mais silencioso. Ele ouve enquanto fala e é um ouvinte junto com sua audiência. Quem não ouviu atentamente ao seu estrondo infinito? O silêncio é a trombeta que expressa a Verdade, o único oráculo, o verdadeiro Delfos e Dodona, que reis e cortesãos fariam bem em consultar, não sendo impedidos por uma resposta ambígua. Pois através do Silêncio todas as revelações foram feitas e, na mesma proporção em que os homens consultaram seu oráculo interior, eles obtiveram uma visão clara e sua época foi marcada como uma era iluminada7. Ao mesmo tempo em que pressupõe o aprofundamento da interioridade, o silêncio, conforme o entendimento de Thoreau, leva o discursador ao abandono de sua individualidade. 7 ibid., p. 418-419. No original: “Silence is the universal refuge, the sequel to all dull discourses and all foolish acts, a balm to our every chagrin [...]. The orator puts off his individuality, and is then most eloquent when most silent. He listens while he speaks, and is a hearer along with his audience. Who has not hearkened to her infinite din? She is Truth’s speaking-trumpet, the sole oracle, the true Delphi and Dodona, which kings and courtiers would do well to consult, nor will they be balked by an ambiguous answer. For through her all revelations have been made, and just in proportion as men have consulted her oracle within, they have obtained a clear insight, and their age has been marked as an enlightened one”. 302 É por meio dessa prática de aquietação de nossos conceitos preconcebidos, sugere-nos o autor, que recebemos as nossas revelações, sendo-nos concedida a oportunidade de vivenciar o tempo mítico — que, como já vimos e ouvimos ao longo de nossa trajetória, é descoberto para além das conjunções espaço-temporais. No calar de nossas perspectivas limitantes acerca do mundo exterior e do universo interior, tornamo-nos capazes de ouvir a “trombeta que expressa a Verdade, o único oráculo, o verdadeiro Delfos e Dodona”. Na experiência individual de silenciamento são entoadas as revelações concernentes àquilo que mais nos importa na vida — o provento primordial de todas as artes que nutrem uma divina ascendência: a poesia, a mitologia, a música. Os “tempos tagarelas e barulhentos”, todavia, não deixam para a posteridade os rastros de suas sonoridades, pois desconhecem os frutos germinados pelo silêncio. A materialização do tempo mítico, por seu turno, seja ela travestida das roupagens das civilizações ocidentais, orientais, ou quaisquer que sejam, propagam perpetuamente suas ressonâncias, bastando que silenciemos para ouvir suas repercussões em nosso próprio interior. Na exposição dessa ideia no encerramento de seu primeiro livro, o pensador se vale do cenário mitopoético da antiga Grécia. Em suas palavras, “a era grega ou silenciosa e melodiosa está sempre soando e ressoando nos ouvidos dos homens”8. No entanto, de nada vale a nossa tentativa de interpretar o silêncio, afirma Thoreau, com sua típica ironia, na sequência de seu raciocínio — afinal, a experiência do silenciar não pode ser traduzida na língua vernácula9. Na contemplação do fundamento de toda criatura e de todo princípio criativo, o silenciamento se impõe, e percebemos, doravante, a insuficiência de nossa linguagem. Com isso o filósofo das matas quer nos dizer que a experiência espiritual de iluminação dos nossos oráculos interiores não pode ser plenamente desvendada pelas convenções linguísticas com as quais estamos habituados. Por mais que, para nosso autor, o mais elevado propósito do ser humano consista no desvendamento dos mistérios simbólicos que o mundo escreve e canta diante de seus olhos e ouvidos, ele conclui que, ao fim e ao cabo, as diversas cláusulas de nossas linguagens (seja a dos naturalistas ou a dos poetas-profetas) são caracterizadas por suas limitações intrínsecas. Faz-se necessário, destarte, que nos calemos para ouvir aquilo que nem mesmo nossas formas linguísticas ancestrais são capazes de desbravar em sua inteireza. 8 ibid., p. 418. No original: “garrulous and noisy eras”; “the Grecian or silent and melodious era is ever sounding and resounding in the ears of men”. 9 “It were vain for me to endeavor to interpret the Silence. She cannot be done into English” (ibid., p. 420). 303 Na sociedade contemporânea, imersa em poluições sonoras de toda sorte, sejam elas exteriores (decorrentes dos processos infindáveis de industrialização e mecanização do mundo), sejam elas interiores (oriundas de nossas próprias verborragias mentais, cada vez mais fomentadas por ditames sociais dos mais variados), torna-se cada vez mais complicado ouvir o que o silêncio tem a nos dizer. Concorde àquilo que apregoa Thoreau, isso significa que a oportunidade de ouvirmos as revelações de nossos oráculos interiores se mostra dificultada frente às tagarelices da civilização. “À medida que o silêncio vai sendo expulso do mundo”, diz-nos, a esse propósito, Schafer, “os grandes mitos também se vão. Isso significa que se torna mais difícil apreciar os edas e as sagas e grande parte do que constitui o centro da literatura e da arte russa, escandinava e esquimó”10. De forma semelhante ao que propôs o compositor canadense, nas movimentações sonoras da Natureza, Thoreau procurava ouvir a presentificação do tempo mítico — um vir a ser que, na verdade, é silenciosamente pronunciado. Com esse aparente paradoxo, o peregrino concordiano traça sua indicação de que as reverberações sagradas que neste mundo vibram não podem ser expressas diretamente. Seu melhor modo de anunciar essa ideia é dizendo que o silêncio nos comunica mensagens: por seu intermédio, ouvimos o indizível. “Devo ouvir o sussurro de uma miríade de vozes”, escreve ele em seu diário. “Se não há Diana à noite, de que valeria? Eu ouço a deusa Diana. O silêncio toca; é musical e me emociona. Uma noite em que o silêncio era audível. Eu ouço o indizível”11. A relação entre a meditação silenciosa e a absorção sonora transfigurada pelo “poeta- naturalista” norte-americano nos permite trazer à baila os padrões tonais fundamentais da tradição sapiencial indiana. Aliás, Thoreau registrou seu apreço pelo silêncio dos hindus e seus exercícios meditativos junto à sonoridade do Oṁ, neles enxergando um símbolo do encontro interior com o divino. Em A Week, o autor (que chegou a afirmar que ele próprio se considerava, por vezes, um yogi que com o ser supremo cultiva a união12), junto às suas considerações acerca dos mitos e escrituras sagradas da humanidade, assim pontua: 10 SCHAFER, op. cit., p. 42. 11 Writings, X, p. 471-472. 21 de janeiro de 1853. No original: “I must hear the whispering of a myriad voices. […]. If there’s no Diana in the night, what is it worth? I hark the goddess Diana. The silence rings; it is musical and thrills me. A night in which the silence was audible. I hear the unspeakable”. 12 Em 1849, numa carta a Harrison Blake, Thoreau escreveu: “Depend upon it that rude and careless as I am, I would fain practice the yoga faithfully. To some extent, and at rare intervals, even I am a yogin” (DAVIS, Richard H. Henry David Thoreau, yogi. Common Knowledge, Duke University Press, v. 24, n. 1, p. 56-89, 2017, à página 56). Embora Thoreau, como Emerson, tenha nutrido um acentuado interesse pelas religiosidades hindus que não encontrava equiparação na Nova Inglaterra da época, não podemos dizer que ele foi, de fato, um yogi, haja vista que sua visão religiosa foi, indubitavelmente, permeada pelos princípios religiosos unitaristas de sua conjunção histórica (VERSLUIS, op. cit., p. 79). 304 Por tantos anos e eras dos deuses aqueles sábios orientais sentaram-se contemplando Brahman, proferindo em silêncio o místico “Oṁ”, sendo absorvidos na essência do Ser Supremo, nunca saindo de si mesmos, mas retornando cada vez mais profundamente para o interior [...]13. O proferir “em silêncio o místico ‘Oṁ’” acena tanto para o alicerce último do mundo exterior quanto para o fundamento supremo do mundo interior. Como recorda Beck, no Chāndogya Upaniṣad (2.23.2-3) a sílaba Oṁ é identificada com o manancial sagrado a partir do qual toda linguagem é gerada: “Assim como as folhas são ligadas por uma haste, toda fala é articulada pelo Oṁ. Verdadeiramente, Oṁ é o mundo inteiro”. Já no Taittirīya Upaniṣad (1.8), assim lemos: “Oṁ é Brahman. Oṁ é o mundo inteiro”. No Kaṭha Upaniṣad (2.15-17), por sua vez, esse simbolismo aparece atrelado à salvação da alma, ao encontro com o princípio sagrado transcendente no aqui e agora deste mundo14. Na medida em que se manifesta de forma triádica (a-u-m), remete, igualmente, à tripla dimensão da realidade (geração, duração e destruição), e, portanto, à “unidade transcendental da Trimūrti”15. Não sendo nosso intuito explicitar minuciosamente a complexa teia de preceitos religiosos correlatos à supremacia linguístico- sonora do Oṁ na tradição hindu, importa-nos aqui destacar sua interdependência com a crença na possibilidade de encontro com a unidade do divino no próprio mundo, conjunção operadora de uma transformação cognitiva que a meditação junto ao silêncio do som sagrado propicia. Dito de forma sumária, isso significa que a educação da sensibilidade junto à sílaba suprema ocupa um lugar central na busca pelo fundamento transcendente que permeia a materialidade imanente. Essa é uma perspectiva especialmente nítida na filosofia não-dual da escola Advaita Vedānta16, perante a qual o pensamento thoreauviano apresenta profundas semelhanças. De 13 Writings, I, p. 141. No original: “So many years and ages of the gods those Eastern sages sat contemplating Brahm, uttering in silence the mystic ‘Om,’ being absorbed into the essence of the Supreme Being, never going out of themselves, but subsiding farther and deeper within [...]”. 14 BECK, op. cit., p. 38. No original: “As leaves are held together by a spike, so all speech is held together by Oṁ. Verily, Oṁ is the world-all”; “Oṁ is Brahman. Oṁ is the whole world”. 15 WERNER, op. cit., p. 77. No original: “transcendental unity of the Trimūrti”. 16 Em linhas gerais, conforme Karl Potter, esse sistema filosófico-religioso, em sua pedagogia soteriológica, tem por propósito indicar o caminho para a libertação (mokṣa) do ciclo de reencarnações (saṃsāra), de modo a fomentar uma transformação cognitiva que permita o iniciado reconhecer sua verdadeira natureza originária (ātman), livre do sofrimento causado pela ignorância sobre si mesmo e sua relação com o mundo (avidyā). Compreende-se que a ignorância se origina no estabelecimento de distinções aparentes (bheda) que não existem de fato, mas, antes, encobrem a natureza originária da realidade. O objetivo de sua pedagogia espiritual, consiste, nesse sentido, na apresentação das rotas que viabilizam o verdadeiro conhecimento (vidyā), que eclode a partir do reconhecimento do caráter ilusório de todas as distinções que separam o sujeito e o objeto, o todo e a parte. Assim, ao se recordar dos fundamentos constitutivos de seu si-mesmo, que é pura consciência, a pessoa discerne sua igualdade com Brahman, o princípio supremo de toda a manifestação vital, a única realidade (sat). A escola 305 acordo com esse sendeiro espiritual, muito embora façamos referência à realidade nos termos de suas aparentes particularidades e dualidades (parâmetro necessário para o norteamento no mundo da multiplicidade), tudo aquilo que se movimenta sobre a terra possui uma única origem e um só fundamento: Brahman. Estabelece-se, nesse sentido, que o mundo, com todos os seus seres e movimentações, é pela unicidade da Consciência Suprema constituído. Isso significa dizer que o divino em tudo vibra. Está aqui envolvida a percepção de que o ser supremo que a todo vir a ser confere seu devido sentido não é encontrado em um além-mundo ou em um além- tempo, mas, antes, revela-se, em toda a sua potência, no instante presente, no aqui e agora deste mundo e desta vida. Se a pessoa não é capaz de perceber essa interrelação entre todas as coisas, é porque ela se esqueceu de sua natureza originária, de sua imersão na unidade que é Brahman — unidade esta que se faz manifestar, em sua maior culminância, na sonoridade silenciosa do Oṁ, sílaba primordial que, reverberando a partir de dentro, mostra o mundo em sua conformidade com a semântica suprema que dá sentido a todas as coisas. A audição de nossa modulação original pressupõe, assim, uma reforma interior, uma ressignificação dos conceitos errôneos que são sustentados sobre quem se é, em verdade, o si- mesmo. Trata-se de uma redescoberta, uma reestruturação epistêmica que permite à pessoa que se lança nos sendeiros espirituais de retorno à sua própria essencialidade e potencialidade o (re)conhecimento da identidade entre Ātman e Brahman, entre o espírito e o fundamento supremo do universo, unidade primária que se faz ouvir em todos os tempos e em todos os lugares. Esse é um dos pressupostos fundamentais do conhecimento ofertado pelos Upaniṣads, que pressupõem, de acordo com Dilip Loundo, que a realização da unicidade/união fundamental, ao invés de se consubstanciar numa experiência de um mundo transcendente [...] aponta para um evento de compreensibilidade, aqui e agora, do fundamento ontológico e condição de possibilidade de todo o aparecer fenomênico, de toda a experiência possível, passada, presente e futura17. Nesta direção, o verdadeiro conhecimento consiste em uma visão da natureza originária da realidade, conhecimento responsável por dissipar a ignorância que causa a separação entre Advaita Vedānta postula, dessa maneira, uma concepção não-dual da existência que aponta para a unidade radicular de todas as coisas com a Consciência Suprema. Essas concepções estão atreladas a uma série de implicações práticas inerentes a essa pedagogia soteriológica, cuja discussão ultrapassa os propósitos da temática aqui proposta. Cf. POTTER, Karl H. The Encyclopedia of Indian Philosophies. Volume III: Advaita Vedānta up to Śaṃkara and His Pupils. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers Private Limited, 1981, p. 6-7. 17 LOUNDO, Dilip. Os Upaniṣads e o projeto soteriológico da escola Vedānta. Paralellus, Recife, v. 12, n. 29, p. 167-180, jan./abr. 2021, à página 172, grifos do autor. 306 o sujeito e o objeto, o todo (a unidade) e a parte (a multiplicidade), o si-mesmo, o restante do mundo e seu princípio sustentador (ou, nos termos dos transcendentalistas, a humanidade, a Natureza e a divindade) — divisão essa que se apresenta como a causa da obliteração do real sentido da existência humana e da relação do sujeito com o mundo. O próprio termo Upaniṣad, aliás, é indicativo da proposição de uma pedagogia que seja capaz de dissipar a ignorância e levar à percepção da realidade tal como ela é — não-dual e enraizada em Brahman, o fundamento de todo o vir a ser —, de modo a aniquilar o sofrimento oriundo da carência de dissociação entre o real e o irreal18. Em sua aproximação dos textos sapienciais hindus, empregados conjuntamente com outros sistemas sapienciais na formulação de sua concepção da unidade entre a esfera divina, a totalidade do universo natural e o mundo humano, o pensamento religioso de Thoreau, em sua proposta de (re)união entre Natureza e espírito, terra e céu, imanência e transcendência, exterioridade e interioridade, particularidade e universalidade, e, enfim, entre som e silêncio, conflui com essa postura fundamental da epistemologia não-dualista que norteia o Advaita Vedānta. Faz-se mister realçar, contudo, que, embora se pressuponha, nesse cenário espiritual, que é o dever do espírito humano a busca constante pelo conhecimento de seu fundamento — a única via possível para a libertação do sofrimento de se ver separado de algo que se acredita ser o outro —, também se reconhece que a unidade suprema que reúne as particularidades não pode ser inteiramente desbravada. Nos termos do filósofo indiano Sarvepalli Radhakrishnan (1888–1975), a soteriologia vedantina, ao mesmo tempo em que afirma a imperiosidade de em tudo enxergar a unidade divina de Brahman, sublinha a exigência de levar em consideração que o entendimento humano não é capaz de captar a plenitude do princípio espiritual que regula o cosmo e suas dinâmicas naturais. Ainda assim, isso não quer dizer que o conhecimento humano sobre o mundo interior e o universo exterior não tenha seu devido valor ou que possamos passar sem ele. De acordo com a tradição Vedānta, isso significa que Nosso intelecto é constituído de tal forma que só pode apreender a realidade parte por parte. Só podemos ver as coisas de maneira fragmentária. Brahman é infinitamente maior do que aquilo que nossas vidas finitas podem expressar. A realidade é o todo; a consciência finita é limitada e, portanto, não pode compreender o todo. A realidade pode ser conhecida por nós apenas de forma vaga como que através de um vidro, mas nunca podemos vê-la face a face. O objeto de nosso conhecimento é limitado, finito e apenas parcial. Ele não é tão real quanto o todo. Isso não significa que nosso conhecimento seja falso. Não 18 “The word ‘upaniṣad’ is derived from the root sad meaning to split up (viśaraṇa), go (gati) or loosen (avasādana) plus prefixes. As a result an Upaniṣad is something that splits up or destroys the avidyā that binds us, or something that goes to Brahman” (POTTER, op. cit., p. 280). 307 conhecemos Brahman totalmente, mas o conhecemos parcialmente. [...]. A realidade não é completamente desconhecida nem completamente conhecida. A realidade em sua totalidade não pode ser apreendida pelo entendimento discursivo, que distingue, separa e relaciona. A unidade final para a qual o pensamento visa está para além de todos os conceitos19. Neste painel epistemológico, é assimilada a sapiência segundo a qual quaisquer buscas na materialidade do mundo devem ser pautadas pelo emblema daquilo que é, na verdade, imortal, mas que estas não podem deixar de ter em conta que o fundamento supremo de todas as coisas não pode ser inteiramente desvelado. Eis aí uma visão que cai muito bem a Thoreau, para quem, mediante a contemplação e a audição da “profundidade insondável” do mundo, como lemos na epígrafe deste tópico, ouvimos apenas “o prelúdio de uma nota”. Como já procuramos demonstrar até aqui, sugestões da correspondência entre a Natureza (a multiplicidade) e o espírito (a unidade) o autor encontrava por todas as partes. Assim como estava presente entre os gregos e os hindus, transluzia-se também em poetas persas como Ḥāfeẓ (c. 1325–1389) e Saʿdī, ambos nativos de Shīrāz, Irã. Conforme a elaboração que encontramos na conclusão de A Week, a íntima conexão entre os ritmos naturais do cosmo e a peregrinação espiritual rumo ao eterno se manifesta em todos os tempos e em todos os lugares. Por conseguinte, em sua própria jornada em proximidade à Natureza de sua terra natal, o “poeta- naturalista” encontrava profundas semelhanças com a busca dos grandes sábios pelo poder que, transcendendo o mundo material, plenifica de sentido as imantações dos dizeres sazonais, fazendo de nós instrumentos cumpridores de finalidades superiores: “Ontem, ao amanhecer”, diz Ḥāfeẓ, “Deus me livrou de toda aflição mundana; e, em meio à escuridão da noite, presenteou-me com o rio da imortalidade”. Na vida de Saʿdī, escrita por Dowlat Shah, ocorre esta frase: “A águia da alma imaterial do Sheik Saʿdī sacudiu de sua plumagem a poeira de seu corpo”. Assim, absortos em pensamentos, estávamos remando de volta para casa para encontrar algum trabalho outonal a ser feito, e auxiliar na revolução cíclica das estações. Talvez a Natureza condescendesse em fazer uso de nós sem o nosso conhecimento, como quando ajudamos a dispersar suas sementes em 19 RADHAKRISHNAN, S. The Vedanta Philosophy and the Doctrine of Maya. The International Journal of Ethics, v. 24, n. 4, p. 431-451, jul. 1914, à página 442. No original: “Our intellect is so constituted that it can grasp reality only piece by piece. We can see things only in a fragmentary way. Brahman is infinitely more than what our finite lives can express. Reality is the whole; the finite consciousness is limited, and cannot therefore grasp the whole. Reality can be known by us only dimly as through a glass, but we can never see it face to face. The object of our knowledge is limited, finite, and only partial. It is not as real as the whole. This does not mean that our knowledge is false. We do not know Brahman fully, but we know it partially. [...]. Reality is neither completely unknown nor completely known. Reality in its wholeness cannot be grasped by the discursive understanding, which distinguishes, separates, and relates. The final unity at which thought aims is beyond all concepts”. 308 nossas caminhadas, carregando carrapichos e berbigões em nossas roupas de campo em campo20. Essa reflexão o autor conclui com um poema de sua autoria, cujos primeiros versos resumem muito bem sua tentativa singular de articular a correlação simbólica entre Natureza e espírito: Todas as coisas são descobertas Neste solo que é a terra, Espírito e materialidade Nela têm sua ancestralidade21. O silêncio, ouvido a partir de suas vibrações religiosas, consiste, então, na via condutora da percepção quanto à unidade ancestral entre “espírito e materialidade”, uma descoberta operada ao largo deste “solo que é a terra”. O “rio da imortalidade”, conforme a expressão do velejar de Thoreau, é revelado no aqui e agora deste mundo, onde somos convidados a nos (re)unirmos à totalidade das dinâmicas cósmicas, condição imprescindível para a audição de seus pronunciamentos nas mais simples sonoridades terrenais. A esse propósito, auxiliam-nos os versos místicos de Ḥāfeẓ em Uma Banda Selvagem e Sagrada, cuja indicação da audição do “tambor ancestral” da terra — a condutora da dança silenciosa ao ritmo do grande poder —, em muito se assemelha às perspectivas espirituais aventadas por Thoreau: E se seus pés sempre móveis estão Sobre este tambor ancestral, a terra, Ó! Não deixe que seus preciosos movimentos Não rendam frutos. Permita que seus passos dancem silenciosamente Ao ritmo do Nome do Amado! Ouço a voz De cada uma das criaturas e plantas, Cada mundo e galáxia solar — cantando o Nome do Amado! [...]. 20 Writings, I, p. 415. No original: “‘Yesterday, at dawn,’ says Hafiz, ‘God delivered me from all worldly affliction; and amidst the gloom of night presented me with the water of immortality’. In the life of Sadi by Dowlat Shah occurs this sentence: ‘The eagle of the immaterial soul of Shaikh Sadi shook from his plumage the dust of his body.’ Thus thoughtfully we were rowing homeward to find some autumnal work to do, and help on the revolution of the seasons. Perhaps Nature would condescend to make use of us even without our knowledge, as when we help to scatter her seeds in our walks, and carry burs and cockles on our clothes from field to field”. 21 ibidem. No original: “All things are current found / On earthly ground, / Spirits and elements / Have their descents”. 309 Pois com a constante recordação de Deus, Todo o seu corpo se tornará Uma Sublime e Selvagem Banda Sagrada!22 O silêncio, entendido enquanto uma postura existencial de abandono das nossas estruturas e armaduras preestabelecidas pela sociedade, apresenta-se, assim, enquanto via possibilitadora do livre desfrute de uma caminhada pelos sendeiros que nos ofertam os cantares misteriosos das linguagens da Natureza. Em Walking, essa perspectiva é ilustrada por um dizer bíblico23: “Se você está pronto para abandonar pai e mãe, irmão e irmã, esposa, filhos, amigos, e jamais tornar a vê-los — se pagou suas dívidas, redigiu seu testamento, pôs seus assuntos em ordem e é um homem livre, então está pronto para uma caminhada”24. Em A Week, pressupondo, similarmente, o abandono dos fardos sociais determinados pelas condições espaço-temporais enquanto condição de possibilidade para os ganhos verdadeiramente proveitosos neste mundo, ele pondera que “o trabalhador verdadeiramente eficiente não sobrecarregará seu dia com trabalho, mas peregrinará rumo à sua tarefa, cercado por uma ampla auréola de sossego e lazer, e então fará apenas o que mais gosta. Ele anseia apenas os grãos frutíferos do tempo”25. Sob o prisma thoreauviano, o empreendedor que maior intimidade e entusiasmo nutre para com seu serviço peregrina, em seu itinerário, para além dos limites do tempo. Para Thoreau, o verdadeiro trabalho, como podemos inferir a partir de tudo o que foi dito até aqui, é aquele do aperfeiçoamento individual, um refinamento pautado na visão e audição da unidade na particularidade, da vinculação medular entre Natureza e espírito. É também esse o teor da mensagem que o autor nos passa no famoso simbolismo do artista de Kouroo26 presente em Walden, pincelado pelas tonalidades espirituais indianas. 22 HAFIZ. A Wild, Holy Band. In: ______. I heard God laughing: poems of hope and joy. Renderings of Hafiz by Daniel Ladinsky. Tradução de Daniel Ladinsky. New York: Penguin Books, 2006, p. 72. Na tradução consultada: “And if your feet are ever mobile / Upon this ancient drum, the earth, / O do not let your precious movements / Come to naught. / Let your steps dance silently / To the rhythm of the Beloved’s Name! / I hear the voice / Of every creature and plant, / Every world and sun galaxy — singing the Beloved’s Name! / [...] For with constant remembrance of God, / One’s whole body will become / A Wonderful and Wild / Holy Band!”. 23 Cf. Mt. 19:29 e Lc. 14:26. 24 THOREAU, 2013a, p. 82. 25 Writings, I, p. 110. No original: “the truly efficient laborer will not crowd his day with work, but will saunter to his task, surrounded by a wide halo of ease and leisure, and then do but what he loves best. He is anxious only about the fruitful kernels of time”. 26 Conforme Davis (op. cit., p. 81), Thoreau faz aqui uma referência à cidade indiana Kurukshetra, terra natal da tribo dos Kurus. A guerra entre os Kurus e os Pāṇḍavas é a temática que ambienta o cenário do Bhagavad-Gītā, parte do épico indiano Mahābhārata. “Thoreau, a great reader of Indian works”, comenta o pesquisador, “projects himself here into the role of an Indian storyteller. As Arthur Christy 310 Havia um artista na cidade de Kouroo que estava disposto a alcançar a perfeição. Um dia ocorreu-lhe a ideia de fazer um bastão. Tendo considerado que o tempo é um ingrediente num trabalho imperfeito, mas que num trabalho perfeito o tempo não entra, ele disse a si mesmo: Será perfeito em todos os aspectos, mesmo que eu não faça mais nada em minha vida. [...]. Sua perseguição de um único fim, sua resolução e sua elevada devoção o dotaram, sem que soubesse, da eterna juventude. Como ele não fazia nenhuma concessão ao Tempo, o Tempo se mantinha fora de seu caminho, e apenas suspirava à distância, por não conseguir vencê-lo27. A procura existencial por aquilo que ultrapassa o tempo dota o buscador de uma “eterna juventude”, pois é nos meandros do imperecível que é traçado seu caminhar. À pessoa que atende, com toda a sua devoção, ao chamado da busca por enriquecimento da alma, é garantida a imortalidade no aqui e agora do mundo presente. Para aquele que tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, a determinação espaço-temporal não se mostra como um impeditivo para esse alcance espiritual. Entregue à sua missão de (re)criação do mundo — que é, por excelência, o ofício do poeta-profeta, como já discutimos —, o artista que consagra sua obra ao poder supremo que é razão de ser de todo obrar encontra aquilo que o tempo, em suas ruínas, desconhece. Na continuação dessa passagem que ilustra seu próprio anseio poético-profético, Thoreau assim escreve: Mas por que estou mencionando essas coisas? Quando ele deu o toque final em seu trabalho, este subitamente se dilatou diante dos olhos do artista atônito e se transformou na mais bela de todas as criações de Brahma. Ele tinha criado um novo sistema ao fazer um bastão, um mundo de proporções justas e perfeitas onde, embora as antigas cidades e dinastias tivessem desaparecido, novas e mais gloriosas haviam se sucedido. E então o artista viu, pelo monte de aparas ainda recentes a seus pés, que, para ele e seu trabalho, o decurso anterior do tempo tinha sido uma ilusão, e que não decorrera tempo maior do que o necessário para que apenas uma centelha do cérebro de Brahma caísse e inflamasse a madeira do cérebro de um mortal28. Apesar disso, em sua investida sensitiva de ver e ouvir as cores e melodias divinas do cosmo, o pensador de Concord se dá conta de que, a despeito das tentativas humanas de captar o sentido último das coisas, como afirma a epígrafe, “a melhor parte não foi vista nem ouvida”, e somos incapazes de explicar todas as dinâmicas do universo. “O universo”, diz-nos ele de forma similar em outra ocasião, “não irá esperar para ser explicado. Quem quer que tente seriamente uma teoria sobre ele está atrás de sua era. Seu sim não reservou nenhum não para o observed long ago, the parable should be seen as an allegory for Thoreau’s own aspirations for his life work, enhanced with the wondrous qualities of myth” (ibidem). 27 THOREAU, 2019, p. 308. 28 ibid., p. 308-309. 311 amanhã”29. Com isso, Thoreau quer nos dizer que a fonte inesgotável do canto que harmoniza o mundo não se desvela inteiramente. O silêncio, assim compreendido, encontra seu paralelo com o reconhecimento de nossa ignorância perante os mistérios do céu e da terra; com a descoberta de que, por mais laboriosa e constante que seja a nossa busca, somos incapazes de desbravar inteiramente a unidade de todas as coisas — afinal, imersos estamos no mundo das particularidades. É nesse sentido, precisamente, que em Walking Thoreau alega que, “no que diz respeito ao conhecimento, somos todos filhos do nevoeiro”: A ignorância de um homem às vezes é não apenas útil, mas bela, enquanto seu assim chamado conhecimento é frequentemente pior que inútil, além de ser feio. [...]. O mais alto a que podemos ascender não é o Conhecimento, mas a Simpatia com a Inteligência. Não creio que esse conhecimento mais elevado represente algo mais definitivo do que uma nova e grandiosa surpresa diante da súbita revelação da insuficiência de tudo o que chamávamos Conhecimento até então — uma descoberta de que há mais coisas no céu e na terra do que sonhava a nossa filosofia30. É a dissipação do nevoeiro pelo sol. O homem não é capaz de saber em qualquer sentido superior a esse, assim como não pode olhar, serena e impunemente, direto para o sol: “Você não compreenderá nada tão bem quanto uma coisa particular”, dizem os Oráculos Caldeus. [...]. Vivamos livres, filhos do nevoeiro — pois, no que diz respeito ao conhecimento, somos todos filhos do nevoeiro. O homem que toma a liberdade de viver é superior a todas as leis, graças à sua relação com o legislador-mor. “O dever ativo”, diz o Vishnu Purana31, “não é o que nos escraviza; o conhecimento é o que nos liberta: todos os demais deveres são bons apenas para nos aborrecer; todos os demais conhecimentos não passam da esperteza de um artista”32. Assim como são silenciosos os passos da primavera33, silenciosos são nossos movimentos em direção ao sagrado, pois se revelam impassíveis de uma elucubração que se pretenda finalista34 — posto que, embora a divindade seja até certo ponto conhecida, levantamos apenas uma ponta de seu véu35. Silenciando-nos, ouvimos seus oráculos conforme 29 Writings, VII, p. 133-134. 20 de abril de 1840. No original: “The universe will not wait to be explained. Whoever seriously attempts a theory of it is already behind his age. His yea has reserved no nay for the morrow”. 30 Referência a Shakespeare: “There are more things in heaven and earth, Horatio, / Than are dreamt of in your philosophy” (Hamlet, ato 1, cena 5). 31 O Viṣṇu Purāṇa, devotado ao deus Viṣṇu, é um texto central no conjunto dos Mahāpurāṇas, escritos dedicados à exposição mitológica das divindades hindus. 32 THOREAU, 2013a, p. 216. 33 “How silent are the footsteps of Spring” (Writings, XIV, p. 232. 30 de março de 1856). 34 É o que também ocorre com a nossa própria obra individual, a obra que resulta da arte de nosso ser, tão misteriosa quanto os mistérios que orquestram o mundo: “I cannot tell you what I am, more than a ray of the summer’s sun. What I am I am, and say not. Being is the great explainer” (Writings, VII, p. 222. 26 de fevereiro de 1841). 35 Cf. p. 77. 312 revelados em nosso interior. Contudo, ao proferi-los, damo-nos conta de que o ponto nevrálgico de nosso contato com os enigmas do cosmo permanece intocado pelo discurso, evidência das limitações intrínsecas às nossas formas linguísticas. Nessa jornada, o buscador, assim como reconhece que não pode “olhar, serena e impunemente, direto para o sol”, não pode ouvir todas as variações da grande orquestra, e muito menos reproduzi-la por inteiro. Eis que o silêncio se impõe, descortinando, diante de nós e de nossa pretensão de conhecer todas as coisas, o estágio culminante de nosso entendimento: a “Simpatia com a Inteligência”, que não nos escraviza com a hýbris, mas, antes, traz-nos libertação da presunção de dominação de um conhecimento terminante acerca da Natureza e do espírito. A postura de silenciamento revela-se, desse modo, enquanto baliza do princípio e do desenredo da fala poética-profética. Como procuramos mostrar ao longo de nosso percurso, amalgamando diversas tradições culturais, Thoreau nos sugere que é somente nos dedicando a ver e a ouvir as linguagens da Natureza que podemos experienciar o sagrado no mundo. Sob o prisma do autor norte- americano, o fruto colhido pelo estudioso das gramáticas silvícolas cifra-se na experiência — uma experiência que envolve o corpo e a alma — de perceber-se parte de uma grande congregação, onde reina a beleza da diversidade emanada do ser supremo. Trata-se de uma experiência existencial de não apenas ouvir as vozes pronunciadas pelo livro e pela orquestra da Natureza, mas de ouvir o silêncio — o silenciar de nossas certezas apressadas e preconceitos insuficientes, os responsáveis por separarem a Natureza do espírito, a exterioridade da interioridade, o múltiplo do uno, o imanente do transcendente, o particular do universal (em suma, as dualidades que rompem os laços entre a terra e o céu). 313 4. Conclusão Ao longo de nossa jornada junto à composição literária de Henry David Thoreau, buscamos, em um primeiro plano, demonstrar sua pertença ao panorama intelectual do Transcendentalismo, movimento norte-americano constituído a partir de vínculos estreitos com o romantismo europeu. Como argumentamos no decorrer de nossas reflexões, tal herança no pensamento thoreauviano se faz perceber (i) na centralidade conferida ao estudo comparativo das religiões e (ii) no entrelaçamento entre o autoconhecimento e o estudo empírico do mundo natural, viático intelectual e espiritual fundado na compreensão quanto à existência de uma correspondência linguístico-simbólica entre Natureza e espírito, cujos sinais urgem por desvelamento — o mote condutor de nossa dissertação. Ao mesmo tempo, procuramos pontuar o destaque de nosso autor, perante seus antecessores, no campo das investigações científicas contemporâneas, razão pela qual enfatizamos, durante todo o texto, a pertinência do título “poeta-naturalista” a ele conferido por seu amigo de caminhada William Ellery Channing. Em segundo lugar, foi nosso intuito apresentar a contextualização histórica do conceito de “poeta-profeta”, ideia elaborada pelos românticos que repercutiu de forma singular nas meditações de Thoreau. Como pudemos perceber ao longo de nossa discussão, o pensador de Concord, seguindo, nesse aspecto, outros intelectuais transcendentalistas, vislumbrava a possibilidade de se conceber novas escrituras religiosas direcionadas ao tempo presente, tendo em vista sua constatação de que o divino, em sua relação medular com as dinâmicas humanas e as múltiplas movimentações cósmicas, faz-se ver e ouvir em quaisquer tempos e lugares. Entendendo, portanto, que todos os seres humanos, independentemente de sua condição espaço- temporal, são capazes de reverberar revelações acerca do sagrado tais quais aquelas traçadas pelos antigos poetas e profetas, também ele próprio, enxergando-se como um “escriba”1 da Natureza, lançou-se na tarefa existencial de legar à sua época e à posteridade escritos religiosos que pudessem transparecer o parentesco entre Natureza e espírito — correlação que, não se resumindo a um entendimento dual do mundo, antes aponta para uma unidade intrínseca a todas as coisas. A partir dessa estruturação temática, fomos guiados pela proposta de uma leitura hermenêutica de alguns dos símbolos sagrados aventados pelos escritos de Thoreau, ambientados pelo cenário mais amplo daquelas que, seguindo a linhagem romântica, aqui denominamos “linguagens da Natureza”: as locuções mitopoéticas e musicais entoadas, no 1 Cf. p. 15. 314 momento presente, pela miríade de manifestações vitais. Trazendo à baila não apenas seus veios românticos, mas também sua aproximação de tradições espirituais ancestrais, buscamos deslindar, de forma poética, a presença, em suas meditações, da conexão entre Natureza (terra/o mundo material) e espírito (céu/o universo espiritual), assim como da relação entre seus pares correlatos: imanência e transcendência, multiplicidade e unidade, exterioridade e interioridade, particularidade e universalidade. Baseados nesse tecimento, preconizamos que a senda rumo ao aprofundamento da religiosidade individual proposta pelo pensador norte-americano é indissociável da apreciação de uma (re)educação da sensibilidade, cujo horizonte é a descoberta do divino no aqui e agora deste mundo e desta vida (ou, dito em outros termos, a descoberta do céu na terra). De acordo com a argumentação aqui traçada, pudemos concluir que, no pensamento de Thoreau, a lapidação intelectual e espiritual caminha lado a lado com o aprimoramento dos sentidos corpóreos — afinal, é tão-somente nessa convergência que, conforme a interpretação aqui apresentada, tornamo-nos capazes de ver e ouvir, no livro e na orquestra da Natureza, os hieróglifos mitopoéticos e musicais que o fundamento celestial, nos dizeres terrenais, a todo instante nos comunica. No desfecho de nossas considerações, tivemos por objetivo indicar que, para Thoreau, uma vez constituídos por disposições limitadas frente à grandiosidade dos mistérios que compõem o universo, os seres humanos são necessariamente incapazes de desvelar plenamente a unidade transcendente que por detrás da multiplicidade imanente está. Todavia, ainda que a nós, enquanto criaturas, não nos seja permitido compreender os fluxos cósmicos tal qual o criador superior os compreende, a busca por conhecimento deve ser sempiterna. Assim, ao mesmo tempo em que devemos estar cientes de nossa infinita ignorância, carecemos, igualmente, de seguirmos incessantes na caminhada por purificação de nossos olhos e ouvidos junto ao anseio por decifrar os enigmas estampados e cantados pelas linguagens da Natureza. Afinados nesse tom, concluímos, enfim, nossa peregrinação junto ao andarilho da Nova Inglaterra, tornando nossas suas próprias aspirações: “Que eu nunca seja cego para a beleza da paisagem! Que eu possa ouvir música sem qualquer corda vibrante!”2. 2 Writings, VIII, p. 72. Setembro de 1850. No original: “That I might never be blind to the beauty of the landscape! To hear music without any vibrating cord!”. 315 REFERÊNCIAS Obras de Thoreau: THOREAU, Henry David. A Walk to Wachusett. In: ______. Excursions and Poems. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 5, p. 133-152. THOREAU, Henry David. 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Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 11. 316 THOREAU, Henry David. Journal VI: December 1, 1853 — August 31, 1854. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 12. THOREAU, Henry David. Journal VII: September 1, 1854 — October 30, 1855. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 13. THOREAU, Henry David. Journal VIII: November 1, 1855 — August 15, 1856. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 14. THOREAU, Henry David. Journal IX: August 16, 1856 — August 7, 1857. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 15. THOREAU, Henry David. Journal X: August 8, 1857 — June 29, 1858. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 16. THOREAU, Henry David. Journal XI: July 2, 1858 — February 28, 1859. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 17. THOREAU, Henry David. Journal XII: March 2, 1859 — November 30, 1859. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 18. THOREAU, Henry David. Journal XIII: December 1, 1859 — July 31, 1860. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 19. THOREAU, Henry David. Journal XIV: August 1, 1860 — November 3, 1861. Editado por Bradford Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau, 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906, v. 20. THOREAU, Henry David. Mission. In: ______. Excursions and Poems. 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